PRISÃO DOMICILIAR
Raimundo Floriano
Os primeiros meses da 46ª Legislatura, iniciada a 1º de fevereiro de 1979, foram uma pesadíssima barra.
Que o digam Antônio Ribeiro Pinto, Damiana de Jesus Santos Gusmão, Djaci de Miranda, João Ferreira, Maria Aparecida Lima, Maria Rosa Alves, Mário Cerqueira Caldas Filho, Marta Coeli de Souza Ferreira, Neide Fernandes de Aguiar, Sandra Giometti Sandoval Santos e Uíres Lindembergue Santana Marques, funcionários da então Seção de Habitação – da qual me era dada a suprema honra de ser o chefe –, a braços com a reforma do mobiliário e dos imóveis funcionais destinados à acomodação dos deputados recém-empossados.
Além do crônico déficit de moradias com que a Câmara se deparava, Brasília apresentava sua capacidade hoteleira completamente abarrotada, com as unidades ocupadas ou reservadas por lobistas, convidados e curiosos, não necessariamente por causa da retomada das atividades legislativas, mas, principalmente, pela posse do Presidente Figueiredo, marcada para o dia 15 de março.
A Quarta Secretaria, responsável pelo setor habitacional da Casa, ante a imperiosa necessidade da presença dos deputados na Capital – pois eles é que dariam posse ao general –, e diante da inexistência de vagas nos hotéis, resolvera conceder um auxílio pecuniário a cada qual dos não-reeleitos que devolvessem o apartamento funcional até o final de janeiro.
Tão logo os imóveis eram desocupados, a chave era encaminhada à Seção de Habitação que, com suas equipes externas e se valendo das empresas adredemente contratadas, desencadeava os procedimentos necessários à sua colocação em condições de uso no mais curto prazo.
No 8º Andar do Anexo I, em sala com área inferior a trinta metros quadrados, aglomeravam-se os onze abnegados supramencionados, a chefia, oito mesas, duas unidades de controle Visi-record, máquinas de escrever, calcular e contabilidade, prateleiras, arquivos, fichários, com os funcionários literalmente vazando pelo ladrão. A Sandra, por exemplo, trabalhava num cantinho gentilmente cedido pela Seção contígua. O Antônio, que cuidava do arquivamento de processos e demais papéis, trabalhava sempre de pé, descansando, quando podia, numa cadeira na copa. Somem-se a isso os fornecedores recebendo empenhos ou entregando faturas, os vistoriadores com seus pareceres, os fiscais com seus relatórios, os novos deputados e suas famílias escolhendo modelos e cores, e as emergências de praxe, para se ter uma ideia do sufoco que era a rotina diária daquela repartição, prolongando-se pela noite e não respeitando sábados, domingos e feriados.
E foi nesse aperreio que, um dia, ainda no comecinho de fevereiro, recebi na Seção o seguinte bilhete:
“Se entrar, uso o revólver!
Se entrar, a bala come!
(a) Deputado Antunes de Oliveira”
Não dei a devida atenção à mensagem. O deputado Antunes de Oliveira, do Amazonas, com mandato findo, tinha feito os devidos acertos na Quarta Secretaria, ficando estabelecido que o Apartamento 501, do Bloco J, da SQN 302, onde residira, seria destinado ao deputado Nagib Haickel, que seguira para o Maranhão com a finalidade de arrumar e trazer sua mudança. Como a chave já se encontrava em nosso poder, eu julgara estar vazio o imóvel e autorizara às empresas a execução dos serviços.
Ignorava, portanto, que o ex-deputado Antunes de Oliveira se arrependera quanto ao combinado e, de posse de uma cópia da chave, mantida consigo, voltara ao apartamento com a intenção de nele permanecer.
A primeira empresa que lá chegou foi proibida de entrar e serviu de portadora da ameaçante mensagem.
A segunda empresa, desconhecendo o que ocorria, tentou penetrar no imóvel, provocando a ira do ex-parlamentar, que resolveu vir à Câmara e proferir pessoalmente a intimidação.
Pelo meio-dia, ele chegou à Seção. Era um homem alto, forte e sua voz denotava firmeza e determinação. Recuando, vez em quando, a aba do paletó, para que eu e todos os circunstantes víssemos o que parecia ser o cabo de um tresoitão à cintura, reiterou a promessa:
– Se entrar, uso o revólver! Se entrar, a bala come!
E se foi, radiante com o efeito provocado por sua atitude.
Nesse ínterim, a firma com a pintura a seu cargo, portando uma duplicata da chave, e alheia à gravidade do momento, encontrava-se no apartamento e, em obediência às exigências constantes das especificações elaboradas por nossos arquitetos, principiara a retirada de todos os espelhos e tomadas, luminárias, maçanetas e metais externos das portas, gavetas e armários.
Estava quase cumprido esse item, quando foram os pintores surpreendidos pelo ex-deputado que, arma em punho, os expulsou do local.
Aí, a coisa aconteceu. O ex-deputado entrou, bateu a porta com violência e, depois de algum tempo, dirigiu-se ao banheiro, batendo – presume-se – também a porta com a mesma energia, fez lá o que pretendia ou necessitava, porém, quando tentou sair, se viu impedido: estava irremediavelmente trancado, e da maçaneta nem sinal, ou melhor, só o vão.
Sem ter como se liberar, e talvez desprovido da arma para estourar a fechadura, restou-lhe o único recurso conhecido nesses impasses – gritar.
Gritar e chutar a porta do banheiro, foi o que ele fez, chamando a atenção dos outros moradores e da Equipe de Manutenção da Quadra, cujo encarregado me ligou, apavorado, solicitando instruções. Pedi-lhe um tempo, prometendo pensar rapidamente numa solução que a todos satisfizesse.
E pensei. Pensei na Segurança da Câmara, pensei em chamar a Polícia, pensei em acionar o Corpo de Bombeiros. Acima de tudo, pensei na repercussão negativa para a imagem do Congresso Nacional, caso houvesse um tiroteio durante a operação de resgate. Tomei a decisão:
– Mantenham-se atentos! Esperem que Sua Excelência fique calmo, até dar a certeza de completa ausência de perigo de reação ou fogo cruzado. Constatado isso, subam lá e soltem-no!
O que levou mais de hora!
No dia seguinte, dei de cara com ele na agência do Banco do Brasil. Ao me ver, abriu um sorriso bonachão, me estendeu a mão e falou:
– Você viu, Raimundo, em que trapalhada eu me meti? Se não fossem vocês, eu teria ficado preso o dia todo!
Aquele sorriso me tranquilizou. O perigo não mais existia. Mesmo assim, timidamente balbuciei:
– Pois é, deputado. O medo que eu tive foi de que a bala me comesse!
– Isso é porque você não me conhece. Sou muito brincalhão, gozador, e só queria dar um susto em vocês. Aquilo tudo não passava de brincadeira!
Limitei-me a concordar:
– Então, tá!
Deputado Antunes de Oliveira,
o amazonense gozador
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