O CRUCIVERBISTA DECIFRADOR
Raimundo Floriano
Há coisa de dois meses, passando pela Banca de Jornais da SQS 215 Sul, onde moro, fui desafiado pelo jornaleiro Ronaldo Alves, sócio-proprietário daquele estabelecimento, para uma partida de damas, atividade mental e manual ali praticada com muito empenho e dedicação. Sem saber que o antagonista era intitulado no tabuleiro, arrisquei-me, daí resultando levar uma costela e um porco, que são a impossibilidade de mover as pedras. No dia seguinte, nova disputa, agora no dominó, da qual me saí igualmente chamuscado – em quatro rodadas, um gato, ou seja, apanhei de 4 x 0.
Ora, pensei eu, por que vou continuar dando vexame, se posso enfrentar o Ronaldo e todos os circunstantes em algo no qual sou bom, que me dá real chance de também ser vencedor? Assim raciocinando, pus em prática uma provocação: que aparecesse alguém para disputar comigo, com tempo marcado, a resolução das palavras cruzadas que o Correio Braziliense publica diariamente.
Moderação à parte, sempre fui bom no cruciverbismo – do latim crucis, cruz + verbu, palavra –, ou seja, em palavras cruzadas. Às vezes, me dizem que essa palavra não existe, que o correto é palavra-cruzadista ou, simplesmente, cruzadista. Pensando desse modo, a Língua Portuguesa jamais evoluirá. Pois eu respondo que, se a palavra não existe mesmo, está inventada, e pronto!
Também sou frequentemente vencedor de torneios de decifração de mensagens codificadas, adivinhações, cartas enigmáticas e charadas, podendo confirmar essas minhas habilidades por meio deste certificado, concedido pela revista O Cruzeiro, o mais importante hebdomadário – semanal – do País até o final dos anos 60:
O desafio foi lançado no alvorecer de um domingo, quando, para demonstrar minha aptidão, pedi ao jornaleiro Samuel, sócio e irmão do Ronaldo – tendo como testemunha alguns taxistas do Ponto em frente à Banca e o pedestre Valério, morador da SQS 415 e assíduo frequentador do local –, que cronometrasse o meu desempenho. Comecei a solucionar o problema daquele dia às 6h37. Às 6h40, dei a tarefa por terminada. Em três minutos! Logo após, a página foi destacada do jornal e afixada em ponto bem visível e chamativo, para despertar a atenção dos possíveis concorrentes.
Semanas mais tarde, surgiu o primeiro adversário. Fui convocado às pressas para iniciar a contenda. Em minha presença, porém, o rival se sobrestimou e disse que aceitaria competir, mas no idioma dele, o Inglês. Topei no ato, e já providenciava a obtenção de uma revista especializada, quando o inimigo desconversou, alegando estar sem tempo, mas prometendo voltar noutro dia, e que eu me preparasse, pois traria para assessorá-lo seu microcomputador portátil.
Na data aprazada, ele apareceu na Banca com um laptop. Eu, com uma caneta Bic.
Cito alguns nomes de espectadores desse evento literário: Severino, Plínio, Augusto, Pires, Adão e Zé Pinto, todos taxistas; Divina, corretora zoológica; Waldir e seu irmão Wilmar, vendedores ambulantes de frutas; Leonídia, poetisa; seu Vicente, amansador de burro brabo; Sandro, mestre em solucionática; José Armando, professor de Português; seu Francisco e seu Belarmino, jogadores de dominó e damas; Nourival, pescador; seu Manoel Lima, economiário; Sequinho, jornaleiro da 416 Sul; dona Suely Bezerra, turismóloga; seu Lauro, meirinho – oficial de justiça – catalano; seu Olavo, militar e deputado potiguar; seu Manoel, funcionário do Senado Federal; seu Francisco Rufino, mestre-de-obras; Tião Eletricista; Gélson, técnico em serviços gerais; Seu Manoel de Jesus, doutor no tabuleiro; dona Dorinha, dona Jany e seu Bené, fregueses dos mais antigos; Ribamar Careca, Jurandir e Alex, caixeiros; Frank e Eduardo, motoqueiros; Manoel Loiola, negociante cearense; os infantes Reinaldo e Rafael, filhos do Ronaldo.
Sei que um computador ajuda muito, é indispensável na atualidade, mas igualmente tenho ciência de que para o cruciverbista, num torneio desses, com tempo marcado, é necessário mais que a tecnologia. Faz-se mister ter conhecimento de alguns macetes do metier, palavrinhas que se deve ter na memória. Por exemplo, diálogo entre esposos ou amantes é oaristo, fato passado anterior a outro também passado – o mais-que-perfeito – é aoristo, tatu bola é apar, coisas assim.
Cada qual recebeu a página do Correio Braziliense e, tendo o Ronaldo como juiz e cronometrista, recebeu o sinal para iniciar. Repeti a façanha anterior. Em três minutos, tudo estava preenchido. O opositor, porém, não conseguiu completar a tarefa.
Naqueles dias, a mídia dava ampla divulgação a um computador denominado Deep Blue, que estava desafiando – e vencendo-os enxadristas de todo o planeta Terra. Como tenho os olhos meio esverdeados, a plateia começou a me chamar de Deep Green. Todos, frustrados pelo combate que não houve – pois aquilo foi como tomar doce de criança –, passaram a me considerar de padrão internacional, vez que funcionários de embaixadas de diversos países, que pegam ali seus jornais, se declararam incompetentes para me encarar e também porque não me recusei à diversidade idiomática, não temi o Inglês, que é universal, nem tremi ante a ameaça de um computador.
E hoje, os fregueses da citada Banca, mais os moradores da 215 Sul, inflam o peito de orgulho, por constatarem que a Quadra, em modesto anonimato, possui, dentre seus concidadãos, dois campeões: Nílton Santos, mundial de futebol na Suécia e no Chile, e Deep Green, no cruciverbismo.
Deep Green e sua caneta, vencendo a parafernália tecnológica