TROÇO PRA BURRO
Raimundo Floriano
O fenômeno é mundial. A posse de um chefe de governo, em qualquer nação do planeta, seja nos Estados Unidos, na Rússia, na Alemanha, na Bósnia-Herzegóvina ou no Paraguai, caracteriza-se por conchavos de gabinetes e acertos nos bastidores, estrelados pelas maiores capacidades do país, pressurosas em dar sua cota de sacrifício na composição dos primeiro, segundo e terceiro escalões do organograma governamental.
A Nova República do Brasil, iniciada em 1985, não foi exceção. Deixo de lado, aqui, a formação do estado-maior e preenchimento dos demais cargos na administração do saudoso Presidente Tancredo Neves, porque o centro das operações se situou, como foi amplamente divulgado na época, nas mãos de Dona Antônia, a quem cabia a confecção do nacionalmente famoso Mapa de Nomeações. Refiro-me à segunda fase, quando principiou a Era Sarney.
Aí, sim, a coordenação ficou pulverizada, espargindo-se sobre muitos gabinetes parlamentares do Congresso Nacional, cujos membros eram assediados, como já disse, por desprendidos patriotas, incondicionalmente dispostos ao holocausto na aceitação de qualquer incumbência, a mais espinhosa que fosse, no intuito de colaborar para o fortalecimento das instituições, a consolidação da democracia e a rápida inclusão de nossa Pátria no fechado círculo dos novos integrantes do Primeiro Mundo.
Talvez devido à pressa, alguns se descuidavam na apresentação de seus currículos, trazendo-os manuscritos em papel de rascunho. A quase totalidade, em compensação, compunha-se de reconhecidas sumidades, caprichosas e perspicazes, cujos nomes tornariam fulgurante a gestão do Presidente José Sarney, caso este os agraciasse com a deferência de sua escolha.
Na época, eu chefiava o gabinete do Deputado Jorge Cury, PTB-RJ, primeiro líder do Partido Trabalhista Brasileiro na atual fase, solicitadíssimo por seus conterrâneos e correligionários, que nele viam o caminho seguro para o almejado atendimento às suas postulações.
Trabalhar com o Deputado Jorge Cury foi um inestimável prazer e enriqueceu sobremaneira minha vida funcional. Um dos mais brilhantes advogados do fórum trabalhista, redação primorosa, oratória fluente e inflamada, invejável cultura geral, sólido conhecimento da gramática e do léxico, o Deputado Jorge Cury detinha como qualidades principais a sinceridade, a franqueza, a amizade, a generosidade, o desapego às coisas materiais e um coração do tamanho do mundo.
De projetos seus derivaram-se a lei dispondo sobre a emissão regular, pela Caixa Econômica Federal, de extratos individuais correspondentes às contas vinculadas do FGTS, e a que permite às viúvas pensionistas do INSS contraírem novas núpcias sem perderem o direito ao benefício, porquanto pela legislação anterior eram forçadas à vida em concubinato ou ao restante da existência em completa castidade.
Sem o Deputado Jorge Cury, a sigla PTB estaria, desde 1981, em poder de Leonel Brizola. Com o Deputado Jorge Cury e sua destemida dissidência em 1984, revogou-se o instituto da fidelidade partidária, possibilitando a esmagadora vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.
Exigente no comando, sabia valorizar um chefe e não renunciava aos preceitos da autoridade e hierarquia. Como todo bom sírio-libanês, tinha seus momentos de exaltação e ciclotimia, e o desempenho das atividades junto a ele requeria muito manejo e diplomacia, o que não me faltou, resultando do nosso quotidiano um relacionamento respeitoso e fraterno, que soubemos consolidar com o passar do tempo.
Mas retomemos o fio da meada.
Naquela conjuntura, a mim competia o recebimento e a guarda dos currículos, entregando-os ao deputado conforme sua determinação. Cabia-me, também, atender a todos os candidatos, proporcionando-lhes infraestrutura, apoio e orientação na Casa. Paulatinamente, estabelecemos uma afável convivência, caracterizada pela cordialidade e singeleza, chegando um deles a me perguntar, certa vez, com visível curiosidade:
– Raimundo, o que é que tu apitas?
Foi aí que me dei conta da minha total indigência no campo das credenciais. De todos os engravatados presentes naquele gabinete, eu era o único a não possuir um registro organizado de seus títulos e aptidões, e essa constatação provocou-me a imediata resolução de elaborar um documento que, sendo simples e resumido, chamasse logo a atenção do leitor e externasse concisa e precisamente as seletas habilidades a mim inerentes. Produzi, assim, o seguinte cartão:
Traduzo, embora tudo se encontre no Aurélio, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, ou algumas palavras sejam formadas obedecendo-se à etimologia:
Dona Carmem: Pessoa tão importante na Bahia, que um ato oficial saíra publicado mais ou menos assim: “...no uso de suas atribuições, nomeia Fulana de Tal (sobrinha de Dona Carmem) para o cargo de...” Carmem, igualmente, é o nome de uma comadre minha, baiana, residente em Taguatinga.
Maranhense: Nascido no Maranhão.
Conterrâneo do Homem - O homem que nomeava, também era de lá.
Amanuense - Servidor público.
Cinesíforo - Motorista.
Alectoromaquista - Apreciador de brigas de galo.
Melômano - Apaixonado pela música.
Banjoísta - Batedor de banjo.
Íncubo - Anjo sedutor.
Rapsodo - Seresteiro.
Vascaíno - Torcedor do Clube de Regatas Vasco da Gama.
Diascevasta - Revisor de textos.
Partenomante - Perito na arte de adivinhar se é virgem ou não uma mulher, ministrando-lhe beberagens ou mediante outros expedientes.
Cruciverbista - Viciado em palavras cruzadas.
Parafrasta - Tradutor.
Calemburista - Trocadilhista.
Abencerragem - De extrema dedicação.
Fescenino - Sacana.
Decifrador - Solucionista de enigmas, problemas e charadas.
Discófilo - Colecionador de discos.
O sucesso do cartão foi estrondoso, transformando-o rapidamente em matéria do Jornal do Brasil, Diário de Pernambuco, Estadão e Coluna do Millôr Fernandes. O primeiro frequentador do gabinete a recebê-lo apressou-se em mostrá-lo ao deputado, que achou genial a ideia e me chamou à sua presença:
–Doutor Raimundo, por que o senhor não acrescentou aqui: “Chefe do gabinete do deputado Jorge Cury?”
–Porque, deputado, conhecendo-o tão bem como conheço, sei que a estas horas o senhor estaria me dizendo: “Que é isso, doutor? Misturando o serviço com brincadeira? Pode tirar meu nome disso aí!”
Deputado Jorge Cury,
o primeiro líder do PTB moderno