Pensei em gritar: “Zefa, Zefa, as cigarras estão cantando, Zefa…” Mas lembrei que não havia nenhuma Zefa por perto e que o brado seria plágio ao imenso Jorge de Lima: “Zefa, chegou o inverno! / Formigas de asas e tanajuras! / Chegou o inverno! / Lama e mais lama / chuva e mais chuva, Zefa! / Vai nascer tudo, Zefa…”, canta ele em seu poema Inverno.
O fato é que as cigarras começaram a cantar no Cerrado e isso é anúncio de chuva. Desde que por aqui desembarquei que fui aprendendo os caprichos da natureza árida desse pedaço de chão. A seca intensa começa por volta de março, mais tardar em abril, e queima as árvores retorcidas, fazendo a gente acreditar que nenhum lastro de vida se abriga mais ali. Mas logo vem a florada dos ipês. Primeiro o ipê rosa, depois o amarelo e por fim o branco. É um perder as flores para que o outro comece a exibir suas cores. Há gente que acredita numa quarta florada, a do ipê roxo, mas, dizem os botânicos, isso é lenda urbana, ou melhor, somente uma outra tonalidade de um rosa mais caprichoso.
E aí cantam as cigarras… a gente caminha sob as árvores ouvido o zunido agudo, bonito para meu gosto de pouca musicalidade. E há quem se irrite com os bichinhos canoros. Chegam a acusa-los de não deixar a cidade dormir. Civilizadamente sugiro que tamponem os ouvidos, ou, cangaceiramente, mando que se danem da cidade ao ouvir o primeiro tilintar do cicadídeo.
Há séculos estes bichinhos são injustiçados. Creio que tudo começou com La Fontaine, no século XVII. Para exaltar a dignidade do trabalho, o francês criou a famigerada lenda onde a cigarra passa o verão a cantar enquanto a formiga trabalha. No inverno, sem mantimentos guardados e faminta, a cigarra procura a formiga que lhe nega ajuda. Mas só mesmo na Europa alguém pode pedir ajuda à formiga. Por aqui, há muito rezamos que ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil. Destarte, coube a Millôr Fernandes resolveu a pendenga. Segundo nosso cronista, é verdade que a cigarra passou o verão cantando, mas, para frustração dos europeus, no inverno, com o dinheiro ganho com direitos autorais e apresentações, foi passear numa praia caribenha. Embora eu ache que ela desembarcou em Brasília… E aqui passou a anunciar as chuvas.
Sem bem que falo de um tempo onde até o calendário e o clima deitavam honestidade, seguiam rigorosamente suas determinantes. Lembro bem do Sete de Setembro neste Planalto que, como previu Juscelino Kubitschek, se tornou o centro das altas decisões nacionais. Pela manhã a multidão se encaminhava para o Eixão, onde desfilavam soldados orgulhosos de seus fuzis, de seus tanques de guerra, ao som de uma musiquinha.
Eu tinha horror à festa desde que lera um texto de Albert Einstein: “a pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem sente prazer ao marchar ao som de uma musiquinha, este homem não merece um cérebro humano, já que a espinha dorsal o satisfaz”. Como era impossível passar impune ao ler tal afirmativa na casa dos quinze anos, aproveitava o feriado nacional para me satisfazer com as cervejas dos clubes e bares e esperar a chuva.
Isso era também uma certeza. Nas tardes de sete de setembro chovia em Brasília. Eram as primeiras chuvas, aquelas que pouco molham o asfalto, mas bastante para nos aliviar do calor inclemente e dá mote para os meteorologistas de botequim: “o aguaceiro esse ano chega decomforça…”. E enquanto a chuva não descia decomforça nos hidratávamos com cerveja.
Não tínhamos a ousadia do sertanejo. Muitas vezes vi a cena. Rodando pelas estradas sob um céu bonito de chover, sentia os primeiros pingos e, súbito, explodir a festa. Nos terreiros das fazendas, a gente sertaneja saía de casa e, sob a água bondosa, conversava, dançava, ria de felicidade.
Cá em Brasília ficávamos sob a proteção dos tetos, pois as águas, além de alívio, traziam infortúnios. Quando engrossava seu corpo sobre o asfalto, não chegava a arrastar a poeira feita lama nem o óleo deixado pelos automóveis. Esta alquimia transforma o chão áspero numa superfície deslizante, e os acidente machucam veículos e pessoas mais sensíveis aos bens materiais, pois assim caminha a humanidade no Planalto Central.
Falo como se o tempo fosse passado, pois o tempo é passado. Há muito a natureza tem reagido aos desmandos dos homens e já não se faz tão pontual e rigorosa em seus gestos. Outubro caminho célere para seus estertores e as chuvas não despencaram. Meus ouvidos pouco musicais parecem perceber certa rouquidão na voz das cigarras, e a chuva não cai.
A gravidade do fato fica no advento de estarmos assentados num dos mais generosos berços hídricos do Brasil. No Distrito Federal, que hoje sofre com a falta de água, assentasse o Parque Nacional das Águas Emendadas, berço de duas grandes bacias fluviais, a Tocantins/Araguaia, que corre até o Atlântico, e a Paraná, fundamental na formação do Estuário do Plata. E padecemos de sede.
Definitivamente a natureza endoideceu, como a anatomia de Vladimir Maiakovski – “em mim a natureza enlouqueceu. Sou todo coração”. A natureza hoje é toda uma ebulição de contradições. Desorienta a própria marcha natural de biodiversidade. Ainda esta semana vi vários ipês amarelos floridos. Pareceram-me fantasmas retardatários.
Mas nos resta a esperança da natureza está brincando de esconde-esconde. O padre Antonio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, fala de uma certa mentira do céu que acontece diariamente no Maranhão: “Amanhece o sol muito claro, prometendo um formoso dia, e dentro de uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover no mais entranhado inverno”.
Tomara que toda esta agonia não passe de uma longa mentira do céu.