Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado sexta, 27 de outubro de 2017

AS CIGARRAS ESTÃO CANTANDO

Pensei em gritar: “Zefa, Zefa, as cigarras estão cantando, Zefa…” Mas lembrei que não havia nenhuma Zefa por perto e que o brado seria plágio ao imenso Jorge de Lima: “Zefa, chegou o inverno! / Formigas de asas e tanajuras! / Chegou o inverno! / Lama e mais lama / chuva e mais chuva, Zefa! / Vai nascer tudo, Zefa…”, canta ele em seu poema Inverno.

O fato é que as cigarras começaram a cantar no Cerrado e isso é anúncio de chuva. Desde que por aqui desembarquei que fui aprendendo os caprichos da natureza árida desse pedaço de chão. A seca intensa começa por volta de março, mais tardar em abril, e queima as árvores retorcidas, fazendo a gente acreditar que nenhum lastro de vida se abriga mais ali. Mas logo vem a florada dos ipês. Primeiro o ipê rosa, depois o amarelo e por fim o branco. É um perder as flores para que o outro comece a exibir suas cores. Há gente que acredita numa quarta florada, a do ipê roxo, mas, dizem os botânicos, isso é lenda urbana, ou melhor, somente uma outra tonalidade de um rosa mais caprichoso.

E aí cantam as cigarras… a gente caminha sob as árvores ouvido o zunido agudo, bonito para meu gosto de pouca musicalidade. E há quem se irrite com os bichinhos canoros. Chegam a acusa-los de não deixar a cidade dormir. Civilizadamente sugiro que tamponem os ouvidos, ou, cangaceiramente, mando que se danem da cidade ao ouvir o primeiro tilintar do cicadídeo.

Há séculos estes bichinhos são injustiçados. Creio que tudo começou com La Fontaine, no século XVII. Para exaltar a dignidade do trabalho, o francês criou a famigerada lenda onde a cigarra passa o verão a cantar enquanto a formiga trabalha. No inverno, sem mantimentos guardados e faminta, a cigarra procura a formiga que lhe nega ajuda. Mas só mesmo na Europa alguém pode pedir ajuda à formiga. Por aqui, há muito rezamos que ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil. Destarte, coube a Millôr Fernandes resolveu a pendenga. Segundo nosso cronista, é verdade que a cigarra passou o verão cantando, mas, para frustração dos europeus, no inverno, com o dinheiro ganho com direitos autorais e apresentações, foi passear numa praia caribenha. Embora eu ache que ela desembarcou em Brasília… E aqui passou a anunciar as chuvas.

Sem bem que falo de um tempo onde até o calendário e o clima deitavam honestidade, seguiam rigorosamente suas determinantes. Lembro bem do Sete de Setembro neste Planalto que, como previu Juscelino Kubitschek, se tornou o centro das altas decisões nacionais. Pela manhã a multidão se encaminhava para o Eixão, onde desfilavam soldados orgulhosos de seus fuzis, de seus tanques de guerra, ao som de uma musiquinha.

Eu tinha horror à festa desde que lera um texto de Albert Einstein: “a pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem sente prazer ao marchar ao som de uma musiquinha, este homem não merece um cérebro humano, já que a espinha dorsal o satisfaz”. Como era impossível passar impune ao ler tal afirmativa na casa dos quinze anos, aproveitava o feriado nacional para me satisfazer com as cervejas dos clubes e bares e esperar a chuva.

Isso era também uma certeza. Nas tardes de sete de setembro chovia em Brasília. Eram as primeiras chuvas, aquelas que pouco molham o asfalto, mas bastante para nos aliviar do calor inclemente e dá mote para os meteorologistas de botequim: “o aguaceiro esse ano chega decomforça…”. E enquanto a chuva não descia decomforça nos hidratávamos com cerveja.

Não tínhamos a ousadia do sertanejo. Muitas vezes vi a cena. Rodando pelas estradas sob um céu bonito de chover, sentia os primeiros pingos e, súbito, explodir a festa. Nos terreiros das fazendas, a gente sertaneja saía de casa e, sob a água bondosa, conversava, dançava, ria de felicidade.

Cá em Brasília ficávamos sob a proteção dos tetos, pois as águas, além de alívio, traziam infortúnios. Quando engrossava seu corpo sobre o asfalto, não chegava a arrastar a poeira feita lama nem o óleo deixado pelos automóveis. Esta alquimia transforma o chão áspero numa superfície deslizante, e os acidente machucam veículos e pessoas mais sensíveis aos bens materiais, pois assim caminha a humanidade no Planalto Central.

Falo como se o tempo fosse passado, pois o tempo é passado. Há muito a natureza tem reagido aos desmandos dos homens e já não se faz tão pontual e rigorosa em seus gestos. Outubro caminho célere para seus estertores e as chuvas não despencaram. Meus ouvidos pouco musicais parecem perceber certa rouquidão na voz das cigarras, e a chuva não cai.

A gravidade do fato fica no advento de estarmos assentados num dos mais generosos berços hídricos do Brasil. No Distrito Federal, que hoje sofre com a falta de água, assentasse o Parque Nacional das Águas Emendadas, berço de duas grandes bacias fluviais, a Tocantins/Araguaia, que corre até o Atlântico, e a Paraná, fundamental na formação do Estuário do Plata. E padecemos de sede.

Definitivamente a natureza endoideceu, como a anatomia de Vladimir Maiakovski – “em mim a natureza enlouqueceu. Sou todo coração”. A natureza hoje é toda uma ebulição de contradições. Desorienta a própria marcha natural de biodiversidade. Ainda esta semana vi vários ipês amarelos floridos. Pareceram-me fantasmas retardatários.

Mas nos resta a esperança da natureza está brincando de esconde-esconde. O padre Antonio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, fala de uma certa mentira do céu que acontece diariamente no Maranhão: “Amanhece o sol muito claro, prometendo um formoso dia, e dentro de uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover no mais entranhado inverno”.

Tomara que toda esta agonia não passe de uma longa mentira do céu.

 


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