Sou homem do interior, anterior aos encantos luminosos do mundo externo.
Lá do longe – 128 quilômetros -, no canavial, à sombra do bueiro da usina, via o Recife como o objeto mais longínquo que cabia à mão alcançar, ali estava o fim do mundo e o início do meu paraíso particular. O olhar do menino enxergava a cidade na régua das impossibilidades, um espaço que se vestia com as cores do apenas desejo que fui alimentando aos poucos.
Tenho a lembrança antiga de um carnaval. É o que de mais distante chega a memória. Sei que havia cores e bailados nas ruas, mas minha visão é de um mundo em preto e branco, foliões com alegria renovada tomando o chão da praça Maciel Pinheiro. Os leões de pedra olhando-me e eu com medo – a euforia contrastava com o sentimento mesquinho. Acho que meu avô estava doente, num leito do Hospital Português. Uma lembrança difusa, como devem ser as reminiscências da infância.
O certo é que entravámos com solenidade no hospital de ambiente branco e asséptico, mas meu tio, Jones Melo, o galã Roberto da novelaA Moça do Sobrado Grande, veiculada pela TV Jornal do Commercio, chegava sob o deslumbramento de enfermeiras e pacientes. E a direção do Português, para evitar transtornos, o proibiu de visitar o pai em horas regulares. Somente conseguia chegar ali se esgueirando nos mais tardios instantes da noite.
Tudo era lúdico naquela cidade, e mesmo a morte e suas dores estavam suavizadas pelos encantamentos tantos.
À beira do Capibaribe, na rua da Aurora, tinha um tobogã, para mim imenso, interminável. Com o heroísmo à flor da pele, subia aquelas escadas sem fim para escorregar sentado em sacos de estopa pelo quase infinito ondulante feito em chapas de metal. Naquela tarde brincante, subindo a escadaria, uma freira caminhava à minha frente. Súbito o vento libidinoso do Atlântico levantou a saia da religiosa. Vi sua calcinha imensa e imaculadamente branca. Aquele foi o pecado maior de minha infância.
Minha intimidade com o Recife foi crescendo assim.
Na adolescência saía de Palmares num ônibus da Viação Rio Una para comprar livros e discos. Partia no cedo da manhã e voltava no fim da tarde, cheio de deleites para meus próximos dias. Comprei Tieta do Agreste na Livro 7 e comecei a ler no ônibus da volta. De Jorge Amado tinha me deliciado apenas com a primeira fase, a socialista, que chegava até Os Subterrâneos da Liberdade. Depois de Gabriela, Cravo e Canela, aquele ar picaresco do baiano, que eu desconhecia, não me interessava. Foi voltando do Recife que descobri a obra única de Jorge, um escritor que se apoderou do picaresco para melhor solidificar sua linhagem de protesto e denúncia.
Quando enfim sai do interior atraído pelas luzes da capital, deixei para trás alguns sonhos e segui me desfazendo de ilusões e despojos de amores adolescentes. Uma ex-namorada, bela e morena, me deixara solitário ao pé do muro de chapisco do Colégio Nossa Senhora de Lourdes e carreguei em minha bagagem a vontade de reviver os desejos testemunhados pelo deserto beco do Confiança.
Desembarquei na cidade, no Recife, para mitigar os bancos do Colégio Alpha, na rua Corredor do Bispo. Fui morar na rua do Cotovelo, na Boa Vista. Desculpem. Sei que há muitos anos, muito antes de meu nascimento, a via já se chamava rua Visconde de Goiana, uma homenagem justa. O homem teve cabedal. Foi político, fazendeiro e magistrado. Nascido no Recife, se formou na Universidade de Coimbra e voltou ao Brasil nas águas da família Real que fugia de Napoleão nos idos de 1807. A partir daí governou o Rio de Janeiro e o Pará e descambou em mandos até dirigir a Faculdade de Direito de Olinda. Homem de escol, é certo, mas que nunca deveria ter roubado o lúdico cotovelo da rua onde morei, da rua onde sempre volto para tomar sorvete na Frisabor.
Uma fase de estudos, mas também de boemia. Íamos ao Mustang tomar chope e comer largos sanduíches. Ao Bar Atenas, na Rio Branco, para reviver o ambiente grego que assistíamos nos filmes do São Luiz. Ao Bar do Tenente, no Pátio de São José, para beber cerveja, dançar ciranda e paquerar os livros da Livraria Cordel. Ao Ele e Ela, num dos becos que desaguam na rua da Imperatriz, para bebericar cachaça com caldinho de feijão. E íamos…
Véio Faceta, certa noite, se apresentou no bar da Livro 7. Fui ver o espetáculo levado por um tio, Paulo Rogério, que optou por sentar na fila do gargarejo. O artista estava visivelmente desencontrado naquele ambiente pouco popular, mas não deixou de fazer a festa. E como precisava de um gancho para segurar a descontração, resolveu fazer meu casamento com uma de suas pastoras, e logo uma a quem chamava de Póica. Vermelho de vergonha, aguentei firme as provocações sem fim de Faceta.
Saindo dali fui afogar meu constrangimento em outros bares, em outros copos. Madrugada alta, na volta para casa, meu tio, como era de costume, passou no Cemitério de Santo Amaro para comprar rosas para a esposa que, desprovida de humor, o esperava em casa.
Já por este tempo morava em Afogados, na rua Vinte e Um de Abril, e dali saía no ônibus-elétrico da Mustadinha para chegar ao Centro, pois minha cidade, onde aprendi a ser mais que brasileiro, aprendi a ser pernambucano, só chegava à ponte do Pina, estava muito aquém de Boa Viagem, vinha pelos bairros de Santo Antônio, de São José, pela Boa Vista e desaguava em Apipucos. Um Recife interior que me fez introspectivo e feliz.
E um dia tive que deixar o Recife… fui correr trecho, ganhar o mundo, mas meu horizonte ficou para sempre aberto pela Mata Atlântica de Dois Irmãos, para sempre expandido para Atlântico.
Esta cidade hoje é tão minha, tão intimamente minha, que as vezes me pego chamando-a por um nome antigo: Mauriciópolis, a Cidade Maurícia.