– Você tem uma crônica para me emprestar?
Quem me contou dessa prática foi Fernando Sabino. O mineiro disse-me que, no sufoco do prazo e diante da total e absoluta falta de assunto, costumava ligar para os amigos – Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos eram os, digamos, agiotas mais requisitados – solicitando o empréstimo de uma crônica. A recíproca também era verdadeira. Várias vezes teve que ceder breves histórias que serviram de brilhantes textos dos amigos.
Eles somente não ousavam incomodar o velho Rubem Braga. Paulo Mendes até que tentou. Apanhou o telefone e fez o desesperado pedido.
– E eu lá tenho crônica para emprestar a vagabundo! – respondeu um vetusto cronista batendo o telefone.
Desesperado para voltar a ocupar este espaço fubânico, e na ausência de cronistas a quem ligar e de um assunto qualquer que fugisse de nossa política prenhe de largas emoções, apelei para o roubo. Isso mesmo, roubei uma crônica e confesso o crime.
No final do ano passado, querendo prestar uma homenagem à Rádio Cultura dos Palmares, o editor Arnaldo Ferreira, das Edições Bagaço, me ligou. Tencionava fazer uma agenda para o ínclito sistema de comunicação. E pediu-me um texto. Escrevi uma crônica.
As condicionantes da vida, no entanto, murcharam o projeto e a crônica ficou quicando nos arquivos de meu computador.
Hoje lembrei da coitada.
Destarte, impoluto leitor, eu, ladrão de mim mesmo, apresentou-lhe a crônica roubada.
* * *
Palmares Falando com o Mundo
A rua se chamava Coronel Izácio, mas a gente só falava no Caminho Para Treze de Maio. Entre a repressão militar que se insinuava na possível bravura de um coronel que até hoje não sei de quem se trata e a liberdade da data festiva, vivíamos num Palmares lúdico, em um terreno de descobertas. E o edifício avermelhado, de fachada alta, com amplo auditório nos levava a imaginar o mundo que estava para além do horizonte de canaviais, para além da ponte de Japaranduba.
Todas as manhãs despertávamos às oito horas com o prefixo da Rádio Cultura dos Palmares, que não chegava a ser uma rádio, mas um serviço de alto-falante. Naquelas primeiras horas vinham as notícias lidas das páginas do Diário de Pernambuco. E ficávamos sabendo de mortes e tragédias e esperanças e tudo mais que o mundo podia oferecer às imaginações soltas e perdidas naquele microcosmo com cheiro e sabor permanentes de açúcar e injustiças e possibilidades de futuro.
Depois vinham as músicas de Marinês e sua Gente, Roberto Carlos e todos os outros ritmos que nos embalavam. Serra Grande era a melhor das aguardentes, mas eu Pitu e tu Pitu, todo mundo a se servir nas farras que então ensaiávamos, e a festa subitamente era interrompida. Todas as vezes que morria alguém de escol, para nosso desgosto, a rádio passava o dia a tocar música clássica. Uma chatice.
Então passávamos, carrancudos, naquele quase feriado, em frente ao prédio avermelhado na direção de Pirangi. Eu ainda não sabia o tanto que me deliciavam os acordes de Beethoven, Mozart, Bach.
Mas logo vinham outras festas.
O auditório, certa feita, abriu as portas para receber Waldick Soriano. Ele bebia durante a apresentação e soltava a voz em infinitos boleros. Ensaiávamos vaias e ríamos de tudo e de nada. Outro dia foi Nelson Gonçalves quem tomou conta do palco bebericando uma caneca que dizia ser café enquanto cantava largos sambas-canção. Teve uma senhora que se desentendeu com o cantor já não sei porque. Pouca atenção prestávamos a tudo. A vida era feita de outros prazeres e eu não sabia que havia um belo Brasil profundo embalado por vozeirões e boleros e canções e mágoas infindas. Vínhamos de três raças muito tristes, mas eu desconhecia tal fato.
Com prazer e expectativa fui ao auditório para ouvir de viva voz o Coronel Ludugero, um artista de Caruaru que ganhava o mundo falando com alegria de um Nordeste abissal, lírico e despido de tristezas. Um Nordeste que, adverso em suas configurações tradicionais, transformava homens em gênios artísticos. O Coronel passou mal e não conseguiu se apresentar. Saí dali frustrado e talvez indignado com quem dizia horrores do artista. Eu era tão somente um menino, mas começava a entender melhor o mundo à minha volta. E a compreensão foi tão concreta que protestei, anos depois, contra a vaia dada a Luís Gonzaga pelos medíocres de plantão na quadra do Colégio Diocesano.
Quando a Rádio Cultura se tornou de fato em uma rádio, destituindo os velhos alto-falantes e se enfronhando pelas ondas do Padre Landel de Moura, eu já não estava mais em Palmares, mas, como todo criminoso volta à cena do crime, sempre volto à cidade, as vezes apenas em memória e coração.
Numa dessas voltas ouvi Do Rego, logo de manhã cedo, despertando o povo com um chocalho, transpirando Nordeste por todos os poros. E ao meio-dia se ouvia o programa Combate caminhado à toa pelas ruas, pois todas as casas respiravam as notícias policiais.
Hoje não sei o que toca em suas ondas, mas lembro do espanto de seu Luiz, pai do escritor Luiz Berto, diante daquelas salas geladas e cheias de microfones. “Pra mim essa é a melhor rádio do mundo, mas eu também só conheça essa.” Para mim, que conheço outras tantas rádios, a Rádio Cultura dos Palmares é a melhor do mundo, pois trago na alma a herança que ela me legou.
Não chegava a ser uma rádio, era um serviço de alto-falante, mas nos emprenhava de cultura. Minha árvore de hoje é um tanto da semente que ela ontem regou.