“Pisar a areia. Ver o mar. Sentir a brisa úmida de encontro à pele do meu rosto recém-escanhoado. Dia quente, céu azul, o sol brilhando sem tréguas. Verão carioca. O sol forte cega-me. Sinto que o pouco contato com ele, durante o último ano, fez com que os meus olhos esquecessem a clara e plena luminosidade. Como velhos amigos que se reencontram, por enquanto tateamos um ao outro no nosso primeiro contato em busca de um ponto de apoio no passado.”
Sempre me incomodou este trecho do romance Em Liberdade, de Silviano Santiago. Explico. O texto tenta transcreve um suposto diário de Graciliano Ramos depois que deixou a prisão. E por que o incômodo? Vamos lá.
“O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito… O mar…”, diz a canção de Caymmi. Realmente é bonito, mas não para todos. E Graciliano era um desses. Daí ler a cena quase idílica do escritor com o mar não me parece verossímil. Intimidade com o sol até vá lá, mas com o mar?
E não se pode condenar o velho Graça, é uma questão de preferência. “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito…”, Caymmi tem razão, mas não aos olhos de todos, repito. Os versos, há décadas, invadem os ouvidos com harmonia, beleza, sensibilidade. Acarinham os corações mais empedernidos e mesmo aqueles que não conhecem o mar ficam a sonhar com suas ondas, seu azul intenso, sua profunda beleza. Já outros olham toda aquela paisagem líquida com despreza e até enfado.
Lembro de um amigo perdido pelo tempo, Antônio Campos, um poeta do Recife, tradutor refinado de William Blaker (não confundir com o escritor e advogado homônimo, idealizador da Fliporto). Os poetas, mesmo os líricos, nem sempre são praticantes da delicadeza. Antônio estava nesse balaio. Costumava ler ao lado de uma janela e, quando os textos, sobretudo os poemas, não lhe tocavam, jogava o volume pela janela. Foi o descarte bibliográfico mais radical que conheci.
Pois bem, voltando ao mar, estávamos em São José da Coroa Grande e Antônio, com seu inseparável cachimbo, balançava numa rede enquanto lia. Alguém de passagem atirou-lhe o convite: “Antônio, vamos ver o mar?” “Ver o quê? Ali não tem novidade nenhuma, só um bocado de água indo prá frente e prá trás…”
Graciliano devia ter uma opinião parecida. Lembro-me de seu filho, Ricardo Ramos, contando que, certa feita, caminhando com o pai pelo Rio de Janeiro, diante das montanhas e do mar, suspirou: “É muito bonito…”. “Prefiro o sertão”, respondeu o velho. E frente ao espanto do filho começou a descrever a paisagem seca, esturricada, cheia de cactos e misérias. Anos depois Ricardo lembrava: “E ele quase me convenceu de que tinha razão…”
Li e reli Memórias de Cárceres e sempre me admirou o fato de Graciliano descrever toda uma viagem marítima sem falar no mar. O máximo de concessão que faz é quando, de passagem por Maceió, olha pela escotilha e vislumbra as casas distantes, as casas, não a praia. Também em seu romance Angústia, que se passa todo ele na ensolarada Maceió, o ambiente é o do centro, da praça dos Martírios, do Bebedouro, não chega sequer perto da Pajuçara.
Mas também não se pode botar Silviano Santiago em uma fogueira inquisitorial. Ele escreveu Em Liberdade num instante de angústia, com um irmão preso pelos agentes da repressão da ditadura militar dos anos 1970, e sentia a necessidade de falar de prisões e liberdades. E logo de saída transcrever como epígrafe uma sentença do mestre Otto Maria Carpeaux: “Vou construir meu Graciliano Ramos.”
Apenas pensei nisso tudo caminhando pelo calçadão da Pajuçara e encontrando ali, eternizado em bronze, o velho Graça, com seu inseparável cigarro e seu terno largo. Nada mais destoante para minha visão de rabugento que prefere encontrá-lo no beco da Moeda, na rua do Macena. Desculpe leitor, mas aprendi com Mário Quintana que “um erro em bronze é um erro eterno”.
Deixando a rabugice de lado, reconheço que as homenagens devem ser feitas e são merecidas por muitos. No entanto há exageros e contradições. Foi o que se deu com o escritor Valter Pedrosa Amorim.
Eu o conheci ali pelo início da década de 1980, já com alguns livros de contos e um romance publicados. Alagoano, vinha de uma família de tradições comunistas. Um de seus primos, Jayme Pedrosa, fora assassinado durante a repressão militar. E assim Valter não negava suas convicções. E por elas sofria. Naquele tempo, como engenheiro sanitarista, trabalhava na consultoria de uma instituição internacional lá para as bandas da Colômbia, pois não conseguia nenhum emprego no Brasil. Por suas crenças políticas fora demitido de várias companhias estatais de saneamento, a última em Brasília, onde então morava sua família.
Tinha um sonho, entrar para a Academia Alagoana de Letras e resolveu se candidatar à vaga deixada pelo senador Teotônio Vilela. Começou a cabalar votos e estava indo muito bem, a eleição líquida e certa, não havia a menor possibilidade de derrota, até que se deu o desastre. Foi à Maceió para acompanhar de perto o pleito e logo concedeu entrevista a um jornal que estampou sua declaração como manchete: “Chego à Academia como cidadão comunista”.
Volto derrotado para Bogotá. Alagoas, que expulsou de suas terras Graciliano Ramos o acusando de comungar com o credo comunista, não perdoou seu filho Valter.
Para minha surpresa, anos depois, num sábado pela manhã, abro o jornal e leio, consternado, o convite para a missa de sétimo dia em louvor à alma do velho comunista Valter Pedrosas Amorim.
As homenagens são justas, mas às vezes contraditórias.
Não me espantarei se algum dia encontra uma estátua de Valter Pedrosa Amorim na calçada da igreja dos Martírios.