Distanciam-se os hinos de Momo, diriam os pessimistas, mas existem os otimistas que vêm aproximar-se de maneira célere a chegada de um novo carnaval. Entre um e outro tempo, nos resta a saudade da festa e a expectativa de novas euforias. “Quem é de fato bom pernambucano…”, há décadas canta a canção.
Nestes tempos pretensamente politicamente corretos, no entanto, até o carnaval tem sido vítima da intolerância policialesca. Bem antes de suar os clarins já circulava na Internet mensagem com os lúdicos dedos do humor apontando para as polêmicas marchinhas carnavalescas. O teu cabelo não nega é racismo, a cabeleira do Zezé é homofobia, vou beijar-te agora, assédio sexual… e por aí seguiam as condenações.
Tudo parecia brincadeira, mas a coisa tomou outra dimensão. Vi várias matérias na TV onde os compositores de marchinhas, sobretudo João Roberto Kelly, eram questionados e chamados a explicar a verve humorística. O próprio Kelly tentava suavizar os versos de sua Maria Sapatão dizendo que tudo foi uma inspiração do Chacrinha, o Velho Guerreiro, que pediu algo bem mais apimentado, mas ele, malandro velho, optou por uma letra mais leve, mais dúbia… “de dias é Maria, de noite é João…”
A criatividade, no entanto, parecia fadada a perder a peleja.
Poucos dias antes do carnaval, um amigo meu, professor de música, foi provocado a selecionar o repertório da festinha carnavalesca de uma escola primária. Cumpriu a missão com o maior prazer e desprendimento, mas logo foi chamado pela diretora da unidade, e o argumento era o mesmo lido nas redes sociais: impossível tocar estas músicas, pois o teu cabelo não nega é racismo, a cabeleira do Zezé é homofobia, vou beijar-te agora, assédio sexual…
Parafraseando Shakespeare, há mais intolerância entre o céu e a terra do que posso imaginar nossa vã indignação…
As vezes penso que os intolerantes, ainda bem, não costumam escutar a música popular, do contrário, alguns compositores, como Noel Rosa, já estariam condenados em todas as inquisições possíveis. É do poeta da Vila algumas pérolas da misoginia, ou do anti-feminismo. Quando sua esposa, preocupada com o pouco dinheiro que circulava pelo doce lar do compositor, informou que iria arranjar um trabalho, o poeta cantou: “Você vai se quiser, pois a mulher não se deve obrigar a trabalhar. Mas não vá dizer depois, que você não tem vestido e que o jantar não dá pra dois… todo cargo masculino, desde o grande ao pequenino, hoje em dia é pra mulher, e por causa dos palhaços, ela esquece que tem braços, nem cozinhar ela quer…”
Em outro samba, bem mais cáustico, Noel se lamentava de uma certa figura: “Oh, que mulher indigesta, indigesta, merece um tijolo na testa. Esta mulher é ladina, toma dinheiro, é até chantagista. Arrancou-me dois dentes de platina, e foi logo vender pro dentista. E quando se manifesta, o que merece é entrar no açoite. Ela mais indigesta do que prato de salada de pepino à meia-noite…”
Versátil, talvez para gáudio das feministas, Noel exaltou a sabedoria da mulher num amor de parceria cantado por Araci de Almeida. “Saiba primeiro que fulana é minha amiga e comigo ela não briga, com ciúme de você. Você provoca briga entre rivais para depois ver nos jornais, seu nome e seu clichê. Há muito tempo minha amiga me avisava que ela sempre conversava com você no seu jardim, e começou nossa parceria, eu fui por ela
e ela foi por mim. (…) Nós aturamos os seus modos irritantes, mas filamos bons jantares nos melhores restaurantes. Você não sai de nosso pensamento, você foi negócio, e foi divertimento.”
Bom, tomara que aí o velho Noel não esteja melindrando os modernos metrossexuais…
E por falar em vila Isabel, Martinho da Vila é quem foi certa feita crucificado por cantar o verso “você não passa de uma mulher…”. Curioso é que exatamente no tempo em que o exército de anjos vingadores caia em cima do compositor, a socialite (é, essa coisa virou qualitativo…) falida Carmem Mayrink Veiga se queixava aos repórteres da revista Veja: “Hoje trabalho como uma negra qualquer…”
Eu pelo menos não escutei nenhum grito contra essa manifestação de racismo claro e evidente…
Tudo tem seu tempo certo, ensina uma outra canção popular. É preciso aprender e entender o tempo em que essas músicas foram compostas, afinal, Graciliano Ramos não pode ser visto como idiota ao dizer que o futebol não vingaria no Brasil. Ele falava de uma prática dos anos 1920 quando aquele era um esporte elitista, onde os negros só podiam jogar se pintassem o rosto com um pó branco.
Essa mania de desandar a verve humorística das gentes, no entanto, é coisa antiga. Lembro de uma apresentadora de programa infantil que condenava ao fogo dos infernos a ingênua cantiga de roda “Atirei o pau no gato…”, dizia ser uma apologia à violência contra os animais, etc., peibufo e coisa e tal. Essa moça, creio, chegou a montar uma loja para criança chamada Não Atirei o Pau no Gato.
Ela ficaria indignada lendo Millôr Fernandes: “Á noite todos os pardos são gatos”?
Meu conforto é que, a história nos traz incontáveis provas, a inteligência sempre vence a intransigência. Que o diga uma moça que fagueira desfilava pelas ruas carnavalescas de Olinda com uma blusa branca onde se li em letras garrafais: Me Atirei no Pau do Gato.