“Vivos ali só Nando com a lamparina de querosene e Cristo na luz de sua glória. Diante do Cristo a temível balança onde os menores pecados de omissão e de intenção rompiam a linha da fé, deslocando com extravagância o fiel.”
Este, com certeza, foi um dos meus primeiros choques literários. Depois vieram outros, incontáveis, como a descoberta do humor em Machado de Assis e a Palmares onírica dos textos de Hermilo Borba Filho, mas as duas frases iniciais do romance Quarup, de Antonio Callado, um romancista da safra de 1917, foi um dos meus impactos inaugurais.
Li o livro, lembro bem, ainda quando me perdia pelas ruas interioranas de Palmares carregando sempre um livro a tiracolo e nos sonhos o desejo de escrever textos mirabolantes. Pensava num livro de contos com as histórias que ouvia dos mentirosos em meu cotidiano. Depois vi que seria plágio do Pantaleão de Chico Anísio que por sua vez é plágio do Alexandre de Graciliano Ramos. Depois pensei num romance onde um grupo de ciganos era massacrado pelas desditas de uma cidadezinha qualquer, depois pensei… os projetos iam se acumulando sem futuro na cabeça talvez por ser ainda um arremedo de escritor arremessado contra o muro-fortaleza intransponível da frase de Callado.
Por essa época li dele A Madona de Cedro, que comprei na banca de seu Odílo, como parte da coleção Literatura Brasileira Contemporânea que a Editora Três fazia chegar semanalmente nas bancas de revista. Fui também arrebatado por suas frases iniciais: “Quando a Quaresma estourava nos montes e nas igrejas, Delfino Montiel não era o único a pensar no afamado caso do roubo da Semana Santa. Só que Delfino sabia muito mais sobre o caso do que os demais.” Pelo caminho da leitura íamos aprendendo do sumiço de uma Madona barroca de uma igreja de Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Quase um romance policial enfeitado com os apelos e os mecanismos dos romances históricos. Um primor.
Antonio Callado, fluminense nascido em Niterói nos idos de 1917, no entanto, começou com um fracasso. No final da década de 1940 escreve um romance, Moema, uma saga amazônica anunciando a miséria das comunidades indígenas. Teve a prudência de mandar os originais para três amigos: Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins e Guimarães Rosa. Ninguém aprovou e o projeto foi definitivamente esquecido. No entanto, ali já se mostrava uma das mais fortes características da prosa de Callado, a capacidade de viajar pelos variados cenários brasileiros. Seus romances vão de Palmares aos bares de Copacabana, passando pelo Xingu, São Paulo, Minas Gerais.
Esta mobilidade ficcional se deve à própria movimentação do jornalista que correu todas as plagas em busca de novos e inquietantes assuntos. Aliás, foi uma viagem ao sertão da Bahia, junto com a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que o levou ao primeiro romance publicado, Assunção de Salviano, onde “os anseios de justiça social e o fanatismo religioso das populações sertanejas confluem no drama de Manuel Salviano, que, obrigado ao papel de taumaturgo por razões de tática política, se deixa empolgar por ele e acaba encontrando no martírio e na morte a plena realização de seus ardores místicos”, no dizer de José Paulo Paes.
O trabalho com os múltiplos cenários também lhe valeu uma forte crítica. Em dados momentos sua ficção escorrega pelo pitoresco, já que lhe faltava vivência mais real e presente para encontrar a verdadeira alma das pessoas que descreve. Isso se nota mais fortemente em Quarup, quando o ex-padre Nando se refugia em Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, então quase uma aldeia de pescadores. Os tipos populares que circundam a vida do protagonista são realmente chapados e até estereotipados.
Dentro de todo este universo ficcional interessava mesmo a Callado era refletir sobre a opressão que se abatia no Brasil. Embora tenha sido marcado pelas vivências do período militar – Quarup foi o primeiro romance a denunciar a tortura nos cárceres da ditadura -, um aprofundamento nesta obra, revela que ela luta, e lutou, contra a opressão sobre os menos favorecidos. Não foi sem motivo, enfim, que o romancista foi preso por duas vezes, já no alvorecer do golpe militar, em 1964, e no inicio de seu recrudescimento, em 1968.
Mesmo sob as ameaças constantes, nunca se intimidou. Em 1977 lança Reflexos do Baile, onde um grupo de guerrilheiros, na tentativa de resgatar os amigos presos, planeja sequestrar a Rainha de Inglaterra, que está em visita ao Brasil.
Permanece com a temática política em seu romance seguinte, Sempreviva, de 1981, onde Quinho, um exilado político, volta clandestino ao Brasil para descobrir a verdade sobre a morte de sua mulher, assassinada numa sessão de tortura.
São livros tensos, doloridos, embora contados com a verve poética de Callado. Aliás, quando ele renuncia a esta verve, em seu último romance, A Expedição Montaigne, se volta à irrealização. Para contar a história do jornalista Vicentino Beirão, que resgata em um sanatório do interior baiano o camaiurá Ipavu, recorre à tônica picaresca. O plano é ir até o Xingu e montar uma revolta indígena para invadir as cidades e cobrar a dívida social que o país tem com aquelas nações quase extintas.
O problema é que, ao preferir trafegar pelo mundo do picaresco, termina por produzir um texto que não se realiza plenamente, nem como denúncia nem como gracejo. Uma pena.
Em 1985 Callado publica um breve texto sobre as condições fundiárias no Brasil, Entre o Deus e a Vasilha. O título ele foi buscar em Eça de Queirós que, numa carta a Ramalho Urtigão, escreve que o artista de posse do barro pode fazer um Deus ou uma vasilha, e sentencia: “creio que o Brasil optou pela vasilha”.
Antonio Callado passou sua vida de escritor mitigando a angústia de falar de um Deus supremo, sim, mas incapaz de aplacar o vazio das vasilhas carregadas pelos trabalhadores famintos. E, despido do panfletário, construiu uma obra consciente; forte.