Começava logo depois do açude velho, nas imediações do grupo escolar, e se estendia pela rua de barro entre casas de tijolos batidos, em sua maioria, num tempo em que ninguém sabia o que era calçamento, indo até o Cruzeiro onde ficavam os animais de montaria e bois de carro.
Isso, já pelas quatro e meia, cinco da manhã.
Todo trajeto da vila era ocupado por toscas barracas cobertas por velhas lonas e caixões de pinho, onde eram expostos farinha, feijão e milho.
Nas “miudezas”, eram vendidos produtos mais refinados, como perfumes, brilhantinas, rendas, ri-ris, colchetes, agulhas, linhas, tesouras, pentes e mais uma gama de “brevidades” para atender às necessidades daquela gente do mato.
Já as “miçangas” eram as lonas estendidas no chão, com enxadas, pás, picaretas, foices, bacias de zinco e alumínio, urupemas, “canelas de ema” pra pintar casa e outras bugigangas de grosseiro fabrico.
O espaço para os utensílios de barro era separado, acho que para os matutos não quebrarem com os pés.
Mas o nosso espetáculo começava já na terça-feira, quando os caminhões começavam a chegar da feira do Boi Velho, trazendo as atrações do dia seguinte.
Eram cegos, aleijados, vendedores de remédios com tejus e salamantas dentro de maletas, emboladores, folheteiros e outros anônimos, que acampavam no oitão da igrejinha, onde passavam a noite, para no dia seguinte venderem os seus produtos.
Recordo de nós, meninos curiosos, assistindo à encenação daqueles artistas do povo, no ensaio geral daquele que, para eles, era apenas mais um passo na peleja pela sobrevivência naquela “vida amarga vida”.
Mas, para nós outros, era o novo que estava chegando.
Tinha um sujeito muito magro e pálido que, sempre sentado numa lona no chão, vendia folhetos e remédios pra não sei o quê. Nos acessos de asma que tinha, tirava de um estojo de alumínio, uma seringa de vidro, puxava de dentro de um frasco um líquido que, misturado ao pó de outro frasco redondo, era injetado na veia do seu braço cadavérico, enforcado por um tubo de borracha que ele amarrava, usando os dentes pra ajudar.
Isso, ali no meio da feira, na frente de todo mundo.
Dava medo ver aquela cena, mas ele tinha algo que nos seduzia, que eram os folhetos que lia e as histórias que neles tinham.
Nunca me esqueci de três ceguinhas, que pareciam ser gêmeas e cantavam acompanhadas de ganzás, repetindo gestos sincronizados de cabeça e olhos sem luz.
Pelo menos, era isso que me parecia.
Muitos anos depois, vendo as ceguinhas de Campina Grande, no belíssimo filme A pessoa é para o que nasce, me vem aquela imagem que nunca me saiu da lembrança.
– Seriam elas?
Os cheiros dos diversos produtos de se comer espalhados ali, misturados com o do fumo, das cordas de sisal queimando nas bancas de fumo pra acender os cigarros, juntando com o som das vozes, o berro de cabras e ovelhas, as conversas, as cantorias daquela gente, tudo formava na nossa cabeça uma monumental confusão que nos acompanhava até à noite, quando o sono invadia o nosso viver naquele lugar silencioso e tranquilo no meio da caatinga onde ficava a nossa casa.
Aos passos dos animais que nos conduziam de volta pra casa, ia se dissipando aos poucos aquele momento mágico da feira.
E como num passe de mágica, tudo aquilo ia ficando para trás.
A paisagem ia mudando de perfil aos passos lentos dos bois do carro que nos conduzia, até que tudo dava lugar à tranquilidade da nossa aldeia.
Tudo ia ficando lentamente para trás.
Até ficar definitivamente.
– Outra feira? Sabe Deus quando, quando o cabelo crescer de novo ou o dente doer novamente.
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