A cidade de Monteiro na Paraíba, na década de sessenta, vivia cheia de caminhões e caminhoneiros, a maioria transportando cargas do algodão, que ainda era abundante naquela época.
Lembro que nos dias de semana, as calçadas que rodeavam o mercado público ficavam forradas de enormes lonas e sobre elas os remendadores que com suas agulhas, linhas grossas, e macetinhos de madeira remendavam, com paciência e extrema habilidade os buracos nelas causados pelas longas caminhadas. Era mais uma profissão que girava em torno da cultura do algodão.
Zacarias Policarpo, pai de Batista, (ainda hoje caminhoneiro) e Luciene, meus primeiros vizinhos em Monteiro, ainda hoje, meus amigos, Joaquim Muniz, Jeronimo, João de Iaiá, Zé Tempero, eram velhos navegadores da estrada.
Orestes, Carretão, Pedro Sola, Antonio Grosso e Mário Cabeção eram os “chapeados” ou “ganhadores”, gigantes estivadores que com seus chapéus esquisitos, feitos com metades de velhas bolas de couro, carregavam sem cansaço nenhum a frota de caminhões que partiam todos os dias para os mais diferentes destinos do nosso imenso país.
Mário Cabeção era ganhador. Era um “mulato sarará” de grossos lábios, sempre estourados pelo sol escaldante e o clima seco do Cariri. Na parte superior da boca somente os dois caninos, os outros , perdidos talvez nas muitas brigas em que se metia quando bebia. Enfrentava e botava pra correr dois, três ou até mais soldados de polícia, nos cabarés da cidade, ia preso mas deixava no local um considerável estrago. Dizem que, após cada contenda, era soldado pra todo lado à procura de capacetes e cassetetes perdidos durante o conflito, tudo isso, numa época em que essas questões eram resolvidas com cassetetes de um lado e murros de outro, armas de fogo, jamais.
Mário foi também um dos melhores zagueiros do time local. A lembrança que tenho dele é de quando já não havia mais algodão e caminhões a carregar. Decadente, bêbado e descalço, era apenas um Sansão dominado pelos Filisteus, perambulando pelos bares da cidade na mais absoluta pobreza, porém sem pedir nada a ninguém. Através da sua rota e desabotoada camisa, dava pra ver a musculatura ainda rija do seu peito de gigante.
Não sei quando morreu, nem se seus poucos amigos estavam lá junto, tomando a “saideira”. Certamente embarcou num daqueles enterros da “caridade”, sem choro nem flores e apenas uma vela de chama mortiça a derramar sebo derretido nas táboas do seu pobre esquife. Seguramente nunca vai ter o seu nome colocado numa rua da cidade que o viu nascer.
Mário, como todos os outros “ganhadores”, além da atividade do dia, ainda ia fazer “bico” à noite, carregando fretes dos passageiros que chegavam nos ônibus da “Realeza”. Com o apurado, ia beber e pagar cachaça com preá, rolinha ou arribaçã, para os amigos, na barracas de Pedrinho Crispim, Metódio, Luzia, Nazinho Fogueteiro e tantas outras espalhadas naquela ribeira do Paraíba.
Contam que uma noite, desceu do ônibus a Madre Superiora do Colégio das Lurdinas, tendo como bagagem um enorme baú contendo só Deus sabe o que (troços de freira, talvez). Mário que estava no seu plantão, jogou o baú na cabaça e tocou pro colégio que ficava a uns quatrocentos metros de distância. Com o pescoço quase enterrado nos ombros e as pernas bambas pela carga descomunal, tocou para o seu destino acompanhando o comboio das irmãs que foram buscar a Madre.
Chegando no colégio, botou a carga no chão e ficou esperando o pagamento do frete, quando uma freirinha veio fechar o portão do estabelecimento.
– Deus lhe pague seu Mário, agredeceu a irmãzinha, já empurrando o pesado portão.
Mário deu a última cartada:
– Apois irmã, diga pelo menos onde é o escritório desse homem pra eu ir receber o meu frete!