Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo domingo, 30 de setembro de 2018

O GALO

 

O GALO

Arthur Azevedo

 

 

A cena passa-se na roça, a uma légua da estação menos importante da Estrada de Ferro Leopoldina, lugarejo sem denominação geográfica, mas que pertence ao município do Rio Bonito, e aqui o digo, para que os leitores não suponham que estou inventando uma historieta.

 

Havia no lugarejo em questão uma palhoça habitada por dois roceiros, marido e mulher, que todos os domingos iam à povoação mais próxima vender os produtos da sua pequena roça e ouvir missa. Assim, atamancavam eles a vida, pedindo a Deus que não lhes desse muita fazenda, mas lhes conservasse a saúde.

 

Ora, um belo dia, a saúde desapareceu: o marido, apesar de ter a resistência de um touro, foi para a cama, atacado por umas cólicas terríveis, que o faziam ver estrelas. A mulher, coitada!, estava sem saber o que fizesse, pois que já havia em vão experimentado todas as mezinhas caseiras, quando ali passou por acaso, ao trote do seu jumento, o Dr. Marcolino, que exercia a medicina ambulante numa zona de muitas léguas. A roceira agradeceu a Providência que lhe enviava o doutor e pediu a este que examinasse o doente e o pusesse bom o mais baratinho que lhe fosse possível.

 

O Dr. Marcolino apeou-se, entrou na palhoça, examinou o enfermo, auscultou-o, martelou-lhe o corpo inteiro com o nó do dedo grande e explicou a moléstia com palavras difíceis que aquela pobre gente não entendeu. Depois, abriu o saco de viagem que levava à garupa do animal, tirou alguns vidros, de cujo conteúdo derramou algumas gotas num copo d'água, e disse doutoralmente:

 

– Aqui fica esta poção para ser tomada de três em três horas.

– Ah! Seu doutor, nós aqui não podemos contar as horas, porque não temos relógio!

– Regulem-se pelo sol. O sol é um excelente relógio quando não chove e o tempo está seguro.

– Não sei disso, seu doutor, não entendo do relógio do sol.

 – Nesse caso não sei como... Ah!...

 

Este ah!, com que o doutor interrompeu o que ia dizendo, foi produzido pela presença de um galo que passava no terreiro, majestosamente.

 

– Ali está um relógio, continuou o doutor: aquele galo. Todas as vezes que ele cantar, dê-lhe uma colher do remédio. E adeus! Não será nada: Depois de amanhã voltarei para ver o doente.

 

Foi-se o médico, e daí a dois dias voltou ao trote do seu jumento.

 

Quem o recebeu foi o marido:

 

– Que é isto?... Já de pé...

– Sim, senhor: estou completamente bom, não tenho mais nada. E não sei como agradecer.

 

Mas a mulher interveio com ar magoado:

 

– Sim, ele não tem mais nada, mas o pobre galo morreu.

– Morreu? Por quê?.

–Não sei, doutor... ele bebeu todo o remédio.

– Quem?...O galo?...

– Sim, senhor; todas as vezes que ele cantava, eu, segundo a recomendação do doutor, abria-lhe o bico, e derramava-lhe uma colher da droga pela goela abaixo! Que pena! Era um galo tão bonito!

 


Arthur Azevedo domingo, 23 de setembro de 2018

O GALÃ

 

O GALÃ

Arthur Azevedo

 

 

Um belo dia, naquela pacata e honesta capital da província de segunda ordem, apareceram, pregados nas esquinas, enormes cartazes anunciando a próxima estreia de uma excelente companhia dramática, vinda do Rio de Janeiro.

 

Há muito tempo o velho teatro não abria as portas ao público, e este, enfarado de peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comédia. Havia, portanto, na cidade uma animação e rebuliço desusados.

 

Falara-se na vinda da companhia, mas ninguém tinha absoluta certeza de que ela viesse, porque o empresário receava não fazer para as despesas. Agora, os cartazes, impressos em letras garrafais, confiram a auspiciosa notícia, provocando um entusiasmo indizível. Muita gente saía de casa só para os ver, certificando-se, pelos próprios olhos, de tão grata novidade.

 

A companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas até então se tinham aventurado às incertezas de uma temporada naquela tranquila cidade. Dois artistas, pelo menos, a primeira-dama e o galã, vinham precedidos de grande fama. Ela já lá tinha estado, quando menos célebre, porém, era a primeira vez que lá ia, e por isso o esperavam com uma ansiedade fácil de imaginar.

 

Quando a companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no cais de desembarque; houve música, foguetes e aclamações. Tanto a primeira-dama como o galã foram acompanhados ao hotel por inúmeros admiradores – e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer à janela, onde, visivelmente comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe.

 

A estreia foi um delírio. O teatro encheu-se completamente: não havia um lugar desocupado. O presidente da província (era no tempo do Império) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras famílias, apresentavam magnífico aspecto.

 

Representou-se A Morgadinha de Valflor.

 

A primeira-dama agradou muito, mas sem causar grande impressão, porque já tinha sido vista no papel da protagonista e não parecia agora superior ao que dantes fora. Quem triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o galã, o melhor Luís Fernandes que até então pisara naquele palco.

 

Era um artista experimentado, com todas as qualidades e defeitos indispensáveis para agradar às plateias provincianas; bom órgão, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, bigodes fartos e retorcidos, olhos pisados, bons dentes – nada faltava a Luís Fernandes para ser desejado, não só pela Morgadinha de Valflor, como por todas as espectadoras sentimentais.

Entre estas, havia uma, Sinhazinha Brites, cujo espírito enfermiço aquele formoso intérprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente.

 

Ela sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em quem tão bem assentavam os calções e as botas do tempo do diretório – e, por mais que tentasse disfarçar, não pôde encobrir ao marido os violentos resultados daquela fascinação. Ele, o marido, o Brites, era um sujeito observador e inteligente, a quem não deixava de inquietar o caráter romanesco de sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas suas longas cismas em noites de luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia.

 

Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida é, procurando o lado prático de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de femme incomprise, divagando continuamente pelos intermúndios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem feio como todos os homens sem educação física; ela, uma das moças mais bonitas da terra. Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes: faltava-lhes um filho que reprimisse na senhora as fantasias da senhorita.

 

Com uma boa posição no comércio, rico ou, pelo menos, remediado, honesto, escrupuloso, solícito, amável, e, como já ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto, um marido ideal. O segundo espetáculo da companhia foi com O Romance de Um Moço Pobre.

 

Observou o sobressaltado marido que Máximo Odiot causava à sinhazinha uma impressão ainda mais pecaminosa que a produzida por Luís Fernandes. Quando o pano desceu depois da famosa cena das ruínas do castelo abandonado, em que o herói de Octave Feuillet se atira num precipício, exclamando: – Vou salvar a honra! – sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estática, sem articular um som, os lábios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar úmido perdido no vago.

 

O público aplaudiu calorosamente, chamando três vezes os artistas à cena, e ela não saiu daquele êxtase.

 

– Que tens?... Estás incomodada?... – Perguntou o Brites.

 

A moça estremeceu, passou as mãos pelos olhos, como se despertasse de um sonho, e suspirou, dizendo:

 

– Não, não tenho nada.

 

Na manhã seguinte, o Brites experimentou o maior desgosto da sua vida conjugal: ouviu perfeitamente sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do galã. Isto resolveu-o a atacar de frente o minotauro. Não deixou perceber coisa alguma. Almoçou alegremente e foi para o trabalho à hora costumada. Quando voltou à tarde, aproximou-se de sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe:

 

– Trago-te uma notícia que talvez te contrarie...

– Qual?

– O galã da companhia dramática vem cá jantar amanhã.

– O galã!

– Sim; aquele que ontem fez com tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritório uma carta de recomendação, e eu, não sabendo como obsequiá-lo, convidei-o para jantar. Amanhã, não há espetáculo: ele está livre.

 

Sinhazinha, que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulação, limitou-se a responder:

 

– Que maçada!

 

Ela mal dormiu durante a noite e, no dia seguinte, agitada pela ideia de que ia ver de perto, apertar a mão e falar ao irresistível galã, passou as horas febricitante, nervosa, mudando de lugar a cada momento. Felizmente, os preparativos do jantar ofereceram uma espécie de derivativo àquele acesso nervoso.

 

Quando, às seis horas da tarde, chegou o galã, ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e sinhazinha dobrou-se à evidência.

 

Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara inteiramente raspada... de véspera. A alvura da camisa era suspeita, as botinas eram cambraias, as unhas não eram irrepreensíveis, a sobrecasaca tinha nódoas, e as calças, joelheiras.

 

A desilusão continuou durante o jantar. O galã, aliás boa pessoa, não tinha absolutamente conversação, nem de outro assunto que não fosse da sua vida de teatro. Disse mal dos colegas, arrastou a primeira-dama pela rua da amargura, e afirmou que não faria parte daquela tropa fandanga, se não tivesse que sustentar mulher e cinco filhos, em véspera de seis.

 

E não sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia! Sinhazinha estava pasmada, e o Brites, radiante.

 

Quando o galã saiu, logo depois do café, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada de todos os devaneios da sua imaginação doentia.

 

– Que diferença!... Não parece o mesmo!...

 

– Pudera! Quem tu viste no teatro não foi ele: foi o Luís Fernandes, foi o Máximo Odiot.

 

Alguns meses depois, havia naquela casa o que até então lhe faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorinha.

 


Arthur Azevedo domingo, 16 de setembro de 2018

O ESPÍRITO

 

O ESPÍRITO

Arthur Azevedo

 

 

O caso que vou contar passou-se há um bom par de anos, quando no Rio de Janeiro o espiritismo não tinha ainda o caráter de seriedade nem os ilustres prosélitos que hoje tem, mas começava a ocupar a atenção e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fé. Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos lhe perdoavam por não ser culpa dele.

 

O nosso herói não se empregava absolutamente noutra coisa que não fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade. Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e só gastava o rendimento do seu patrimônio. Casara-se com d. Laura que, não sendo formosa que o inquietasse, nem feia que lhe repugnasse, era mais inteligente e instruída que ele. Esta superioridade dava-lhe certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar doméstico, onde só a sua vontade e a sua opinião prevaleciam sempre.

 

O Garcia não se revoltava contra a passividade a que era submetido pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava a ele o resto? Sim, que d. Laura já não lembrava do Frederico...

 

Quem era esse Frederico? Um elegante guarda-livros, que a namorava quando o Garcia apareceu iluminado pela sua auréola de capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate.

 

Ou fosse para melhorar de situação ou porque realmente o magoasse a vitória fácil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d. Laura não se tinha casado, mudara-se para São Paulo, e nunca mais souberam dele, nem ela, nem o Garcia. Num dia em que este, ano e meio depois de casado, perguntou, a gracejar, pelo primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o tranquilizar, respondeu, simulando indiferença:

 

– Não sei... Parece que morreu...

– Morreu?...

– Pelo menos disseram-me que sim... em São Paulo... Não sei ao certo, nem isso me interessa.

 

Por esse tempo, já o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo, nos mistérios do espiritismo, e fazia parte de um grupo, um dos primeiros que organizaram nesta cidade, para estudar os fenômenos revelados nos livros de Allan-Kardec.

 

Os associados reuniam-se todos os sábados para consultar a mesa giratória, evocar espíritos e conversar com defuntos célebres. Produziam-se, realmente, alguns fenômenos, que impressionaram profundamente o espírito débil de Garcia, a ponto de fazer com que ele não pensasse mais noutra coisa a não ser em almas de outro mundo. Tinha o nosso espírita grande curiosidade de evocar por meio de tal mesa giratória o espírito de Frederico, apenas para verificar se estava morto o seu antigo rival; abstinha-se, porém, de o fazer pelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e ridículo.

 

Mas, uma noite, em que a sessão ainda não começara, e estavam presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, o Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espírito de um amigo. Os outros aquiesceram. Sentaram-se os três e espalmaram as mãos sobre uma pequena mesa de três pés, que em poucos minutos começou a mexer-se como um ser animado.

 

– Está presente o espírito que evoquei? – Perguntou o Garcia em voz sinistra e cavernosa. – Se está presente, dê duas pancadas!

 

A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu.

 

– Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! – Continuou o Garcia, no mesmo tom.

 

A mesa deu seis pancadas.

 

 – F – disseram os dois companheiros.

– Adiante!

 

A mesa deu dezoito pancadas.

 

– R – repetiram os espíritas.

– Adiante!

 

A mesa deu cinco pancadas.

 

– E – explicou um dos três.

– F, R, E – disse o outro.

 

E em tom de comando, acrescentou:

 

– Se é Frederico, dê uma pancada forte!

 

A mesa deu uma pancada tão violenta, que partiu a perna.

 

O Garcia ergueu-se lívido e assombrado, gaguejando:

 

– Estou satisfeito.

 

– Mesmo porque é preciso consertar a mesa – concluiu um dos companheiros.

– Com duas pernas é impossível fazê-la trabalhar.

 

O que preocupava o grupo já não eram os espíritos invisíveis nem os fenômenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo animal; o que todos ali desejavam era ver um espírito materializado, e para isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vãos. Nessa ocasião, estavam presentes no Rio de Janeiro não só o espírito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de São Paulo para tratar de um negócio urgente, de três a quatro dias.

 

Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponível para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver – apenas ver – d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhes como não só a viu, como lhe falou; e até entrou para a sala. O caso é que, naquela noite, a mesma da evocação, voltando o Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessão não se realizara por falta de número, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a rua, e ficou tão estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra.

 

O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe os passos apressados, se sentara mais que depressa numa cadeira de balanço, a ler um livro, fingindo a maior tranquilidade.

 

– Que quer isto dizer?

– Isto quê?

– Esse homem que acaba de sair daqui?

– Um homem?! Daqui?! Tu estás doido!

– Oh, senhora! Pois não esteve aqui um homem?

– Estás doido, repito.

– Eu vi-o!

– Não podias ter visto.

– Vi-o, e era o Frederico!

 

  1. Laura soltou uma risada.

 

– Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor é deixares-te disso!

 

O Garcia pensou:

–- Um morto... Sim, ele está' morto... e ele então materializou-se para aparecer-me... Não foi outra coisa!

 

No sábado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo:

–- Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicação muito importante: sou médium vidente!

– Deveras? – Exclamaram todos em coro.

 

– É o que lhes digo! Sábado passado, ao entrar em casa, encontrei no corredor uma pessoa que morreu em são Paulo.

– Conte-nos isso – ordenou o presidente do grupo – você não teve medo?

– Eu? Nenhum! O espírito, sim, o espírito é que, pelos modos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir.

 


Arthur Azevedo domingo, 09 de setembro de 2018

O EPAMINONDAS

 

O EPAMINONDAS

Arthur Azevedo

 

 

Conquanto exercesse a profissão de advogado, e como tal fosse muitas vezes coagido a mentir, o Dr. Lacerda abominava mentirosos, e tudo perdoava ao filho, ao Epaminondas, menos falir à verdade; por isso lhe dera o nome do famoso general tebano, que nem brincando mentia.

 

Releva dizer que, em solteiro, no tempo em que andou de casa e pucarinha com a Esmeralda, que deixou fama nas rodas alegres da vida carioca, o Dr. Lacerda foi mais enganado por essa mulher que Cláudio por Messalina; desse amargo período da sua existência lhe ficou talvez, aquele sentimento de repulsão aliás muito louvável, por tudo quanto não fosse a expressão exata e cristalina da verdade.

 

Depois que a Esmeralda partiu para a Europa, e serenou a vida do seu amante, gravemente perturbada por aqueles amores infelizes e ridículos, o Dr. Lacerda, desejoso de constituir família encontrou D. Sidônia, uma excelente moça e formosa, de quem se enamorou, e que aceitou satisfeita a sua mão de esposo, porque o amava. Casaram-se.

 

Eram felizes, mas na sua felicidade havia uma nuvenzinha: a Esmeralda. Com o seu estimável, mas inconvenientíssimo sistema de não encobrir a verdade, fosse qual fosse, o Dr. Lacerda contara lealmente, ainda noivo, todo o seu tempestuoso passado àquela que deveria ser sua esposa.

 

Imprudência foi, porque D. Sidônia ficou ciumenta desse passado. A Esmeralda ainda vivia; apenas mudara de terra; poderia de um momento para outro aparecer inopinadamente, e perturbar a ventura do amoroso casal. Talvez não estivesse de todo extinta a chama antiga; bastaria, talvez, a presença daquela mulher perigosa para reacendê-la no coração do advogado.

 

Esses receios não se modificaram profundamente com o nascimento do Epaminondas, nem mesmo com o deslizar do tempo.

 

Havia já nove anos que viera ao mundo o homônimo do estadista de Tebas, quando um belo dia D. Sidônia soube, pelo próprio marido, que a Esmeralda voltara da Europa, e mais bela, mais atraente que nunca. Era a verdade, a verdade implacável, que ele não podia esconder.

 

A esposa sobressaltou-se, coitada, – mas o marido tranquilizou-a com estas palavras:

 

– Não é justo que me tenhas na conta de um homem desprezível. Não sinto por essa mulher senão asco.

– Não, não és, bem sei, um homem desprezível; és, pelo contrário, o modelo dos homens de bem; mas a natureza é fraca, e essa mulher um demônio capaz de transformar o teu caráter!

– Não creias.

– Olha, Lacerda, se eu souber que estiveste com ela... que lhe falaste... eu... nem sei que desatino farei!... Sou capaz de suicidar-me!...

– Cala-te! Não digas tolices!...

– Em todo caso, se te encontrares com esse diabo, se lhe falares, por amor de Deus não me digas nada! Ao menos por esta vez, só por esta vez, encobre-me a verdade!... Podes causar uma desgraça!... Vê como estou nervosa!...

– Isso passa.

 

Poucos dias depois, seriam três horas da tarde, estava o advogado no seu consultório da rua da Quitanda, em companhia do Epaminondas, que viera ter com o pai a fim de preveni-lo que D. Sidônia, viria buscá-lo para ir com ele ao dentista.

 

De repente, abriu-se a porta do consultório, e a Esmeralda entrou como um raio.

 

– Ah! Lacerda, meu Lacerda, em fim te encontro!...

 

E, sem fazer caso do menino, a turbulenta cocotte abraçou com veemência e beijou repetidas vezes o seu ex-amante que, em vão, forcejava por se ver livre daquela intempestiva e escandalosa expansão.

 

– Deixe-me, senhora! Que é isto? Olhe o pequeno! É meu filho!

 

Mas qual! A Esmeralda, chorando e rindo ao mesmo tempo, continuava a abraçá-lo e beijá-lo cada vez com mais efusão, e o Epaminondas, atônito, pasmado, arregalava os olhos, sem se atrever a erguer-se da cadeira em que estava sentado.

 

Nisto, o Dr. Lacerda ouviu um frufru de saias na escada, e reconheceu os passos de sua mulher, que subia.

 

O pobre diabo soltou um grito de terror e, com um gesto enérgico e brutal, afastou de si a inconsequente Esmeralda.

 

– É minha mulher! Esconda-se!...

 

A cocotte compreendeu tudo, e, sem dizer palavra, meteu-se numa alcova cuja porta o advogado fechou.

 

Todos esses movimentos se realizaram num abrir e fechar d'olhos.

 

  1. Sidônia entrou no consultório, e, vendo o marido com o colarinho um pouco amarrotado e o laço da gravata desfeito, e o Epaminondas muito espantado, passou a vista de um para outro, e perguntou:

 

– Que foi?... Que se passou?... Com quem falavas tu?... Quem estava aqui?...

– Ninguém... nada... bem vês, – balbuciou o Dr. Lacerda.

 

Houve uma pausa.

 

O consultório estava impregnado do perfume da Esmeralda, um perfume indiscreto e capitoso que a anunciava de longe; felizmente, porém, D. Sidônia achava-se naquele dia atacada por um defluxo providencial, que lhe tirava completamente o olfato.

 

Ela voltou-se para o filho:

 

– Epaminondas, teu pai ensinou-te a não mentir em nenhuma circunstância da vida: dize-me a verdade: quem estava aqui?

– Uma senhora?

– Que senhora?

– Não a conheço.

– Que fez ela?

– Entrou como uma doida, e deu muitos beijos e muitos abraços em papai!

 

  1. Sidônia fulminou com um olhar terrível o Dr. Lacerda, que, para disfarçar, atava de novo a gravata.

 

– Que senhora é essa? – Interrogou ela com os lábios trêmulos.

 

O Epaminondas respondeu pelo pai:

 

– Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, com um chapéu muito grande!

– Onde está essa mulher?

– Papai disse-lhe que se escondesse, e ela escondeu-se...

– Onde?

– Naquele quarto.

 

  1. Sidônia empurrou com o pé a porta da alcova, mas não encontrou ninguém lá dentro: a Esmeralda, praça velha que não se apertava nas ocasiões difíceis, abrira outra porta, comunicando com o corredor, e conseguira descer rapidamente a escada e sair para a rua sem fazer o menor ruído.

 

Vendo a situação bem encaminhada, o Dr. Lacerda recobrou o sangue-frio, e, enquanto D. Sidônia revistava a alcova, disse baixinho ao filho:

 

– Epaminondas, é preciso mentir; senão, tua mãe mata-se!

 

E quando D. Sidônia voltou da alcova, recebeu-a com uma gargalhada:

 

– Ah! Ah! Ah! Ah!...

– Que quer isso dizer? – Perguntou ela.

 

– Quer dizer que caíste como um patinho!

– Hem?

– Isto foi uma comédia arranjada por mim, com o auxílio do Epaminondas. Fui eu que lhe ensinei aquela história de moça bonita, de chapéu grande!

– Mas... para quê?

– Como disseste que te suicidaria se eu falasse à Esmeralda, queria ver o que farias! Mas tenho pena de te ver aflita, e não espero pelo resultado da pilhéria...

– Isso é verdade, Epaminondas?

– É mamãe, – respondeu o pequeno, com um tom de convicção de quem jamais fizera outra coisa, senão mentir.

– E este colarinho amarrotado?... E esta gravata?

– Foi de propósito, minha tola, para dar um quê de verossimilhança à coisa.

– Achas então que sou tola? – Disse D. Sidônia sorrindo e sentando-se tranquilamente. – Tolo és tu!

– Por quê?

– Não te lembras de que não me poderia entrar na cabeça que estivesse aos beijos com essa mulher em presença do Epaminondas!

– É verdade! Que queres? Para mim, bem sabes, não há nada mais difícil do que inventar uma peta. Vamos ao dentista!

 

Dali por diante, o Epaminondas começou a mentir por quantas juntas tinha.


Arthur Azevedo domingo, 02 de setembro de 2018

O CUCO

 

O CUCO

Arthur Azevedo

 

 

Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite.

 

A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava ferrada no sono.

 

* * *

 

O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.

 

As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: – "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa.

 

* * *

 

Uma noite, foi o nosso herói ao Cassino Nacional e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas chanteuses, uma gommeuse e outra excentrique.

 

Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensão da Praia do Russel.

 

Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!

 

Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e, antes de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.

 

O seu quarto – seu e de sua esposa – era contíguo à sala de jantar e tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.

 

Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.

 

Logo ouviu o Roberto, a senhora remexer-se na cama e disse consigo:

 

– Sebo! Lá acordei minha mulher!

 

Ela perguntou:

 

– És tu, Roberto?

– Sim, sou eu, sinhazinha.

 

E o marido acrescentou para si:

 

– Felizmente não sabe que horas são.

 

Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."

 

– Estou perdido! – Pensou o Roberto, mas uma ideia luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e, quando o pássaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." até completar onze cucos.

 

O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o pássaro com tanta perfeição.

 

– Onze horas – disse ele depois do décimo primeiro cuco –. Julguei que fosse mais cedo!

 

E começou a despir-se.

 

A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Não deu pela coisa.


Arthur Azevedo domingo, 26 de agosto de 2018

O CHAPÉU (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

 

O CHAPÉU

Arthur Azevedo

 

 

O Ponciano, rapagão bonito,

Guarda-livros de muita habilidade,

Possuindo o invejável requisito

De uma caligrafia

A mais bela, talvez, que na cidade

E no comércio havia,

Empregou-se na casa importadora

De Praxedes, Couceiro & Companhia,

Casa de todo Maranhão credora,

Que, além de importadora, era importante,

E, se quebrasse um dia,

Muitas outras consigo arrastaria.

 

Do comércio figura dominante,

Praxedes, sócio principal da casa,

Tinha uma filha muito interessante.

O guarda-livros arrastava-lhe a asa.

 

Começara o romance, o romancete

Num dia em que fez anos

E os festejou Praxedes co'um banquete,

Num belo sítio do Caminho Grande,

Sob os frondosos galhos veteranos

 

Que secular mangueira inda hoje expande.

A mesa circular, sem cabeceira,

Rodeando o grosso tronco da mangueira,

Um belíssimo aspecto apresentava:

Reluzindo lá estava

O leitão infalível,

Com o seu sorriso irônico,

Expressivo, sardônico.

Sabeis de alguma coisa mais terrível

Do que o sorriso do leitão assado?

E nos olhos, coitado!

Lhe havia o cozinheiro colocado

Duas rodelas de limão, pilhéria

Que sempre faz sorrir a gente séria.

Dois soberbos perus de forno; tortas

De camarão, e um grande e majestoso

Camorim branco, peixe delicioso,

Que abre ao glutão do paraíso as portas;

Tainhas ouríchocas recheadas,

Magníficas pescadas,

E um presunto, um colosso,

Tendo enroladas a enfeitar-lhe o osso,

Tiras estreitas de papel dourado.

 

Compoteiras de doce, encomendado

A Calafate e a Papo Roto; frutas;

Vinho em garrafas brutas.

Amêndoas, nozes, queijos, o diabo.

Que se me meto a descrever aquilo,

Tão cedo não acabo!

 

O Ponciano fora convidado:

Quis o velho Praxedes distingui-lo.

Fazia gosto vê-lo

Convenientemente engravatado,

De calças brancas e chapéu de pelo,

E uma sobrecasaca

Que estivera fechada um ano inteiro

E espalhava em redor um vago cheiro

De cânfora e alfavaca.

 

Mal que o viu, Gabriela

(Gabriela a menina se chamava)

Lançou-lhe uma olhadela

Que a mais larga promessa lhe levava...

Como  que os olhos dele e os olhos dela

Apenas esperavam

Encontrar-se; uma vez que se encontravam,

De modo tal os quatro se entendiam

Que, com tanto que ver, nada mais viam!

 

 

Apesar dos perigos,

Por ninguém o namoro foi notado.

Pois que o demônio as coisas sempre arranja.

Praxedes, ocupado,

Fazia sala aos ávidos amigos;

A mulher de Praxedes, nas cozinhas,

Inspecionava monstruosa canja

Onde flutuavam cinco ou seis galinhas

E um paio, um senhor paio,

E os convivas, olhando de soslaio

Para a mesa abundante e os seus tesouros

Não tinham atenção para namoros.

Quando todos à mesa se assentaram,

Ele e ela ficaram

Ao lado um do outro... por casualidade,

E durante três horas, pois três horas

Levou comendo toda aquela gente,

Entre as frases mais ternas e sonoras

Juraram pertencer-se mutuamente.

Quando na mesa havia só destroços,

Cascas, espinhas, ossos e caroços,

E o café fumegante

Circulou, – nesse instante,

Eram noivos Ponciano e Gabriela.

 

– Como, perguntou ela,

Nos poderemos escrever? Não vejo

Que o possamos fazer, e o meu desejo

É ter notícias tuas diariamente.

Respondeu ele: – Muito facilmente:

Quando a casa teu pai volta à noitinha

Traz consigo o Diário, por fortuna;

Escreverei com letra miudinha,

Na última coluna,

Alguma coisa que ninguém ler possa

Quando não esteja prevenido. – Bravo!

Que bela ideia e que ventura a nossa

Porém se esse conchavo

Serve para me dar notícias tuas,

Não te dará, meu bem, notícias minhas. –

Mas não esteve com uma nem com duas

O namorado, e disse:

- Temos um meio. – Qual? Não adivinhas?

Teu pai usa chapéu. – Sim... que tolice!

– Ouve o resto e verás que a ideia é boa;

Um pedacinho de papel à-toa

Tu meterás por baixo da carneira

Do chapéu de teu pai; dessa maneira

Me escreverás todos os dias... – úteis.

Oh!, precauções inúteis!

Durante um ano inteiro

O pai ludibriado

Serviu de inconsciente mensageiro

Aos amores da filha e do empregado.

– Até que um dia (tudo é transitório,

Até mesmo os chapéus) o negociante

Entrou de chapéu novo no escritório.

 

Ponciano ficou febricitante!

Como saber qual era o chapeleiro

Em cujas mãos ficara o chapéu velho?

Muito inquieto, o brejeiro

Ao espírito em vão pediu conselho;

Dispunha-se, matreiro,

A sair pelas ruas, indagando

De chapeleiro em chapeleiro, quando

O chapeleiro apareceu!... Trazia

O papelinho que encontrado havia!

Atinara com tudo o impertinente

E indignado dizia:

– Sou pai de filhas!... Venho prontamente

Denunciar uma patifaria!

O hipócrita queria

Mas era, bem se vê, cair em graça

A um medalhão da praça.

 

O pai ficou furioso, e, francamente,

Não era o caso para menos; houve

Ralhos, ataques, maldições, et cetera;

Mas, enfim, felizmente

Ao céu bondoso aprouve

(O rapaz tinha tão bonita letra!)

Que não fosse a menina pro convento,

E a comédia acabasse em casamento.

Ponciano hoje é sócio

Do sogro, e faz negócio.

Deu-lhe uma filha o céu

Que é muito sua amiga

E está casa não casa;

Mas o ditoso pai não sai de casa

(Aquilo é balda antiga)

Sem revistar o forro do chapéu.


Arthur Azevedo domingo, 19 de agosto de 2018

O 15 E O 17

 

O 15 E O 17

(IMPRESSÃO DA LEITURA DE UM CONTO FRANCÊS)

Arthur Azevedo

 

 

– Com efeito, Francelina! Que tempo levaste para ires ali à venda! Querias lá ficar?

– Não, senhora; é porque estas casas novas parecem-se todas umas com as outras, e por isso, em vez de entrar no 15, entrei no 17. Varei por ali adentro até a cozinha!

– Que estás dizendo?

– A verdade, patroa. De agora em diante, não entro em casa sem olhar para o número da porta!

– Depois te habituarás. Isso aconteceu porque estás na casa há oito dias apenas. Bom. Compraste o que tinhas de comprar?

– Sim, senhora.

– Não falta mais nada?

– Não, senhora.

– Então, até logo. Fecha a porta da rua e trata de preparar o jantar. As cinco horas, estarei de volta.

 

E D. Isabel, que já estava pronta para sair, passou para o corredor, desceu a escada e desapareceu.

 

A Francelina fechou a porta da rua, conforme a patroa lhe recomendara, e foi para a cozinha.

 

Não havia passado meia hora, quando a mulata (a Francelina era mulata) ouviu bater levemente à porta da rua. Correu à janela da sala de visitas para ver quem era, e deu com uma senhora idosa, bastante idosa, pequenina, curvada, esperando que lhe abrissem a porta.

 

A criada não a conhecia, mas pensou consigo que não haveria inconveniente em abrir a porta a uma velha, e por isso fê-la entrar.

 

– Ora, graças! Julguei que me deixassem ao sol durante uma hora! Dá cá a mão, rapariga! Ajuda-me a subir a escada! Bem sabes que já não tenho olhos!

– Que deseja a senhora? – Perguntou Francelina, quando chegaram à sala de visitas.

– Escusas de falar baixo! Bem sabes que já não tenho também ouvidos! Nem olhos, nem ouvidos, nem pernas! E por isso leva-me à cadeira de balanço. Onde está ela?... Já mudou de lugar! Que mania a de minha sobrinha! Está sempre com os móveis daqui para ali.

 

A Francelina levou a velhota para a cadeira de balanço, onde a instalou comodamente.

 

– Ora, espera! Parece-me que eu não a conheço! Você é nova na casa?

– Sim, senhora! Estou aqui há oito dias.

– Grite!

– Estou aqui há oito dias.

– Grite mais alto!

– Estou aqui há oito dias,

– Há oito dias? Então não me conhece, porque há um mês que eu cá não venho. Sou tia da sua patroa. Onde está ela?

– Saiu.

– Hem?

– Saiu.

– Mais alto!

– Saiu.

– Saiu? Também aquilo não faz senão saracotear! Então agora que veio morar na cidade! Olha, ó... como te chamas?

– Francelina.

– Hem?

– Francelina.

– Olha, Marcelina, vai buscar uma xícara de café bem quente, com uma gotinha de conhaque, mas, antes disso, descalça-me estas botinas, e traze-me os chinelos da sua patroa, e também um dos travesseiros da cama. Enquanto ela não vem, vou passar pelo sono.

 

A Francelina fez tudo quanto ordenou a velha, e deixou-a adormecida na sala, com os pés e a cabeça metidos nos chinelos e no travesseiro de D. Isabel.

 

Quando esta chegou da rua, às cinco horas da tarde, a criada disse-lhe:

 

– A tia da patroa está dormindo lá na sala.

– A minha tia? Mas eu não tenho tia!

– Como não tem tia?

 

E a Francelina contou-lhe tudo quanto se passara.

 

–Ora essa! – Exclamou D. Isabel, e correu para a sala, acompanhada pela criada.

 

A velha dormia profundamente.

 

– Mas eu não conheço, não sei quem é esta senhora! Que quer isto dizer?... Que mistério será este?... Vou acordá-la.

 

E D. Isabel começou a sacudir a velha, que não acordava.

 

A Francelina teve uma frase estúpida:

 

– Sacuda com força, patroa, porque ela é surda!

 

  1. Isabel sacudiu com mais força, e nada!

 

– Meu Deus! Esta rigidez!... Esta rigidez!...

 

E a dona da casa soltou um grito estridente.

 

– Que é, patroa?

– Esta velha está morta!

– Morta?!

 

Efetivamente, a pobre velhinha, durante o sono, sem se sentir, passara desta para melhor.

 

Imagine-se a aflição das duas mulheres diante daquele cadáver misterioso; mas D. Isabel, que era inteligente, pensou:

 

– Quem sabe se a velha não entrou no 15 pensando que era o 17?

 

E, pelo muro do terraço, chamou a vizinha:

 

– Ó vizinha? Vizinha?...

– Que é?

– A senhora não tem uma tia velha, surda e catacega?

– Tenho, sim, senhora.

 

  1. Isabel respirou.

 

– Pois mande buscá-la, porque ela está na minha casa. Entrou aqui por engano.

– Ela que venha; não é preciso mandar buscá-la.

– Isso é, porque está... doente... Adoeceu aqui...

 

Meia hora depois a pobre velha era removida.... para o Necrotério.

 


Arthur Azevedo domingo, 12 de agosto de 2018

NA HORTA

 

NA HORTA

Arthur Azevedo

 

 

Morava o barão da Cerveira num belo palacete que, a pedido da baronesa, mandara edificar no centro de uma grande chácara do Andaraí Grande.

 

A baronesa, as meninas e os meninos, seus filhos, desfrutavam a beleza e o conforto da encantadora vivenda, ele não, porque, apesar de enriquecido e quarentão, conservava o costume, adquirido desde os primeiros tempos da sua vida comercial, de sair de casa pela manhã e só voltar à noite, para dormir.

 

Os domingos e dias santificados, em vez de gozar as delícias do descanso, passava-os o barão a examinar e pôr em ordem contas e outros papéis de umas tantas associações, que eram, como dizia ele, a sua cachaça.

 

– És um esquisitão!– Observava continuamente a baronesa. – Não valia a pena comprarmos esta chácara!

– Gozando-a vocês, gozo-a eu!

 

Entretanto, num belo domingo de sol, sentiu o barão desejos de percorrer os seus domínios, e fê-lo, com espanto da família e do chacareiro, o José, que estava acocorado diante de um grande canteiro de repolhos, e se levantou, surpreso e respeitoso, quando viu aproximar-se o patrão.

 

* * *

 

Antes do baronato, o barão chamava-se modestamente Manuel Barroso.

 

Nascera em Portugal, numa aldeola do Minho, que não figura nos compêndios de geografia. Veio aos dez anos para o Brasil, num navio de vela, entregue aos cuidados de um homem de bordo, e consignado a uma casa comercial do Rio de Janeiro.

 

Não conhecera os carinhos maternos: contava apenas três anos quando perdeu a mãe. O pai, que ficara viúvo e com dois filhos, confiou-o e mais o irmão a uma família, que pouco se preocupou com a educação dos dois rapazes.

 

– O mais velho irá para o Brasil, sentenciava o pai; o mais novo há de ser padre, se Deus nos der vida e saúde!

 

* * *

 

Veio o Manuel para o Brasil e teve a felicidade de encontrar excelentes amos, que o obrigaram a aprender a ler por cima e fazer as quatro operações.

 

Mal aprendera a escrever, o pequeno pegou na pena e fez uma carta ao pai, pedindo que lhe mandasse novas suas e do mano, mas tanto essa como outras ficaram sem resposta.

 

Com aqueles simples conhecimentos – ler, escrever e contar – entrou na vida, e não foram necessários outros para que lhe sorrisse a fortuna. A sua inteligência, realmente notável, supria tudo. Não havia na praça farejador de bons negócios que lhe levasse as lampas; mas o que contribuía, principalmente, para fazer dele um dos negociantes mais estimados do Rio de Janeiro, era o escrúpulo honrado com que sempre se havia em todas as suas relações comerciais. Ao contrário do que geralmente se observa, Manuel Barroso não se satisfazia apenas com ganhar dinheiro; tinha muito prazer em dá-lo a ganhar aos outros.

 

O grande caso é que o nosso aldeão, aos vinte anos, estava perfeitamente encarreirado, como se costuma dizer.  Aos trinta, era rico; e, aos quarenta, riquíssimo, tendo percorrido já toda a escala do medalhão comercial: diretor de bancos e companhias, provedor de irmandades, ministro de ordens terceiras, comendador, conselheiro e barão. Não lhe faltava nada, nem mesmo o retrato a óleo.

 

* * *

 

Aos trinta anos, casou-se com uma moça, pobre – uma excelente senhora brasileira, que não poderia encontrar melhor esposo –, e, logo depois de casado, resolveu dar, em companhia de sua mulher, um passeio à pátria, e visitar o lugarejo onde nascera, e do qual saíra havia já vinte anos.

 

Não achou lá ninguém. O pai falecera pouco depois da sua vinda para o Brasil, e o irmão abandonara o lugar, ignorando todos o rumo que tomara. A própria família, que o acolhera depois da morte da mãe, tinha desaparecido. Finalmente, o Manuel encontrou na povoação apenas dois ou três companheiros de infância, que o supunham morto. A sua viagem foi desoladora.

 

Entretanto, o "brasileiro" não saiu da aldeia sem deixar nas mãos do pároco a soma precisa para a reconstrução da capela em que fora batizado, e outra soma, ainda maior, para ser distribuída pelos pobres.

 

Voltando ao Brasil, o venturoso casal começou a ter filhos que foi um louvar a Deus; não se passaram dez anos sem oito batizados; mas o destino, mostrando-se a Manuel Barroso, mais que aos outros homens, desejoso de equilibrar e harmonizar entre si as circunstâncias, aumentava-lhe os haveres ao mesmo tempo que os filhos, de sorte que a verdadeira prosperidade do nosso homem começou com a sua prolificação.

 

* * *

 

A manifestação mais flagrante e ostensiva da sua fortuna era aquela magnifica propriedade do Andaraí Grande, em cuja chácara o deixamos percorrendo pela primeira vez os canteiros de uma horta opulenta.

 

Dissemos que o hortelão se levantara surpreso e respeitoso ao avistar o patrão.

 

O pobre homem descobriu-se humildemente e ficou um tanto curvado, a rolar o chapéu entre as mãos.

 

O barão deu-lhe um bom-dia afável dizendo-lhe:

 

– Cubra-se, homem! Olhe que está sol!

 

E ia passando; mas na fisionomia simpática do hortelão brotou um sorriso que o fez parar.

 

– Então? Trabalha-se?

– Alguma coisa, s'or barão, alguma coisa.

– Mas hoje é domingo.

– Isso não quer dizer nada.

– Há quanto tempo está você cá em casa?

– Saberá vossoria que haverá oito meses pelo São João.

– Está satisfeito?

– Se estou satisfeito! Não, não devo estar?! A s'ora baronesa e os meninos são tão bons para mim.

– Você é de Portugal ou das Ilhas?

– Sou do Minho.

– Também eu. De Braga ou de Viana?

– De Viana.

– Também eu.

– Nasci ali perto da Vila Nova de Cerveira, num lugarito chamado de São Miguel das Almas.

– Em São Miguel? Como se chama você?

– José Barroso.

– Oh, diabo! Você é filho de João Barroso?

– Sim, s'or barão.

– Sua mãe chamava-se Maria José?

– Sim, s'or barão; mas não a conheci. Meu pai queria que eu fosse padre, mas, coitado, morreu logo... deixou-me ao deus dará. Estive na África... não arranjei nada... vai então resolvi embarcar para o Brasil. Pelo Santo Inácio, vai fazer um ano que cá estou.

– Você não tem um irmão?

– Não sei se o tenho ou se o tinha. Saiu da aldeia ainda o nosso pai era vivo. Disseram que tinha vindo para o Brasil. Nunca mais tive notícias dele.

 

E o hortelão agachou-se de novo diante de seu canteiro.

 

– Homem! Deixa lá esses repolhos, exclamou o barão, e dá cá um abraço! Teu irmão sou eu!

 

Imaginem a cena que se passou.

 

* * *

 

Quando a baronesa viu entrar em casa o marido de mãos dadas ao chacareiro, ficou muito admirada e perguntou:

 

– Que foi isto? Encontraste alguma coisa que te desagradasse?

– Pelo contrário: encontrei um irmão! Teresa, abraça teu cunhado; meninos, meninas, tomem a bênção a seu tio!...


Arthur Azevedo domingo, 29 de julho de 2018

NA EXPOSIÇÃO

 

NA EXPOSIÇÃO

Arthur Azevedo

 

 

O Raimundo saiu do Maranhão aos vinte anos, muito disposto a nunca mais lá voltar, para não tornar a ver Filomena – e, desde que aqui chegou (já lá se vão tantos anos!), fugiu de todas as coisas e de todas as pessoas que lhe pudessem recordar a sua terra natal.

 

Não lhe falassem no bacuri, nem no mucuri, nem no açaí, nem no arroz de cuchá, nem no tabaco do Codó, nem nas cuias da Maioba, nem nos requeijões de São Bento, nem nos camarões de Alcântara; não pronunciassem na sua presença os nomes de Gonçalves Dias, João Lisboa, Sotero dos Reis, Joaquim Serra e outros maranhenses ilustres; não se referissem, de modo que ele pudesse ouvir, às novenas dos Remédios, aos passeios do Anil, aos banhos do Cutim e às serenatas ao luar no Pau da Bandeira ou no campo do Ourique; tudo isso lhe trazia à memória Filomena, aquela ingrata, que, depois de ter feito mil juramentos de que só dele seria, esqueceu-o para lançar-se nos braços do Cardoso, um negociante apatacado, com quem se casou.

 

Depois deste golpe, que esteve quase a matá-lo, Raimundo incompatibilizou-se com o Maranhão e tornou-se o mais carioca dos cariocas; entretanto, conservou no coração a lembrança dolorosa daquele amor infeliz, e, fiel ao seu próprio infortúnio, não procurou mulher que o fizesse esquecer Filomena. Ficou solteiro.

 

Durante muitos anos, os seus sentimentos não se modificaram; ultimamente, porém, a idade começou a exercer no seu espírito uma ação benéfica, e ele refletiu, pela primeira vez, que a sua terra não tinha culpa da ingratidão de Filomena.

 

– Preciso reconciliar-me com o Maranhão, pensou Raimundo, e foi com esta ideia sensata que ele procurou a seção maranhense no Palácio da Exposição.

 

Mas, percorrendo as salas onde se acham expostos os produtos do seu Estado, o pobre-diabo começou a ver Filomena em tudo; Filomena aparecia-lhe nos móveis, nos artefatos, nas fibras, nos tecidos, nas rendas, nas favas, no arroz – Filomena surgia de toda a parte!

 

As salas estavam quase desertas; além do Raimundo, estavam ali apenas três visitantes e uma família – marido, mulher, cinco filhos e uma criada, que examinavam tudo com atenção.

 

De repente, no meio daquele silêncio, a voz do marido repercutiu:

 

– Filomena!

– Que é Cardoso?

– Vem ver como é bem-feita esta rede!

 

O Raimundo ficou frio e como que grudado ao chão. Filomena! Cardoso! Era ela! Era ele! Eram eles!

 

Passados alguns momentos, ele voltou ao seu natural, e, disfarçado, aproximou-se... Que transformação!... Que ruína!

 

Mas que transformação também a dele, porque ela não o reconheceu.

 

O caso é que essa visita à Exposição completou a cura, que já começara. O Raimundo voltou a ser um bom maranhense, e agora está disposto a matar saudades da sua terra. Filomena já não existe.

 


Arthur Azevedo domingo, 22 de julho de 2018

MORTA QUE MATA

 

MORTA QUE MATA

Arthur Azevedo

 

 

Um dia em que o Barreto, acabado o expediente, palestrava com alguns dos seus colegas de Repartição, queixou-se da mesquinhez dos ordenados.

 

– Ora! Tu nada sofres! Acudiu um dos colegas, com um sorriso impertinente.

– Nada sofro?! Ora esta! Por quê?!

– Porque és rico!

– Rico, eu?!...

– Naturalmente. Se não fosses rico, tua mulher não poderia andar coberta de brilhantes!

 

O Barreto soltou uma gargalhada.

 

– Ah, meu amigo, os brilhantes de minha mulher são falsos, são baratinhos, não valem nada!

– Não parece.

– Não parece, mas são. Minha mulher é de uma economia feroz, e tudo quanto economiza emprega em toaletes e joias..., mas que joias!... Falsas, falsas como Judas... já lhe tenho dito um milhão de vezes que se deixe disso; que não use joias, uma vez que não pode usá-las verdadeiras; que ela somente a si mesma se ilude, tornando-se ridícula aos olhos do mundo; mas não há meio: aquilo é mania! Tirem tudo, tudo à Francina, mas deixem-lhe as suas joias de pechisbeque!

 

Realmente assim essa Francina, de vez em quando, mostrava ao marido um par de bichas de brilhantes ou um colar de pérolas, que produziam o mais deslumbrante efeito, mas não passavam de joias de teatro, compradas com os vinténs que ela poupava nas despesas da copa.

 

Barreto, que fora sempre um pobretão, nada entendia de pedras finas e por isso achava que as de sua mulher, apesar de falsas, eram bonitas; mas, no íntimo, ele envergonhava-se daquela fulgurante exibição no pescoço, nos braços, nos dedos e nas orelhas de Francina.

 

– Os que sabem que essas joias são falsas, pensava ele, hão de me achar ridículo; os que as supõem verdadeiras poderão fazer de mim um juízo ainda mais desagradável. Toda a gente sabe quanto ganho: os meus vencimentos figuram na coleção de leis, na tabela anexa ao regulamento da minha Repartição.

 

O Barreto pensava bem; mas a sua debilidade moral não permitia que ele contrariasse Francina.

 

Um dia, o fracalhão percebeu – com que alegria! – Que ela estava no seu estado interessante. Eram casados havia oito anos, e só agora se lembrava o céu de abençoar a sua união, mandando-lhes um filho! Ele esperava que os cuidados maternos modificassem o que sua mulher tinha de ridícula e vaidosa.

 

Mas as suas esperanças foram cruelmente frustradas pela fatalidade: a criança, extraída a ferros, nasceu morta, e Francina morreu de eclampsia.

 

O Barreto sentiu tanto, tanto, que quase morreu também.

 

Havia um mês que era viúvo, quando um dia lhe apareceu em casa um homem que ele não conhecia, e se deu a conhecer como um dos joalheiros mais conhecidos da capital.

 

O Barreto perguntou-lhe o motivo da sua visita.

 

– É muito simples. A falecida sua senhora tinha joias. É natural que o senhor não precisando delas pretenda desfazer-se de algumas, senão de todas. Venho pedir-lhe que me dê a preferência.

– Preferência para quê?

– Para comprá-las.

– Mas, meu caro senhor, as joias de minha mulher são falsas.

– Falsas? Ora essa! E é a mim que o senhor diz isso, a mim que lhas vendi! A sua senhora seria incapaz de pôr uma joia falsa!

– O senhor engana-se!

– Tanto não me engano, que lhe ofereço por essas joias, se se conservam todas em seu poder, sessenta contos de réis!

 

O Barreto ficou petrificado; entretanto, disfarçou como pôde a comoção, e despediu o joalheiro, dizendo que o procuraria na loja.

 

Logo que ficou só, encaminhou-se para o quarto da morta, e abriu a cômoda onde se achavam as joias; mas, ao vê-las, sentiu uma onda de sangue subir-lhe à cabeça e caiu para trás.

 

Quando lhe acudiram, estava morto.

 


Arthur Azevedo domingo, 15 de julho de 2018

MAL POR MAL

 

MAL POR MAL

Arthur Azevedo

 

 

Há bons maridos que se tornam maus porque as mulheres não são boas.

 

O Sebastião está ou esteve nesse caso: tão apoquentado se viu pela cara-metade, que, um belo dia, resolveu procurar na rua os carinhos que não encontrava no lar doméstico.

 

Não foi preciso procurar muito. O acaso fê-lo encontrar na Avenida Central, diante de um cinematógrafo-anúncio, uma bela morena que lhe deu volta ao miolo e lhe tirou noites de sono.

 

Se D. Flaviana, a mulher do Sebastião, fosse meiga e condescendente, e não tivesse tão mau gênio, está visto que ele não se deixaria prender nos braços de outra; mas deixou-se prender – e preso ficou ao ponto de arranjar uma casinha lá para os lados da Cidade Nova, onde esconderam – a morena e ele – o seu delicioso pecado.

 

E tão bem escondidinho estava que ninguém sabia de nada, exceção feita de Sepúlveda, o melhor amigo de Sebastião.

 

E o Sepúlveda não podia ser mais obsequioso. Como percebeu que a felicidade do amigo estava naquele derivativo, ele próprio se encarregou de alugar a casinha e mobiliá-la. A sua obsequiosidade foi ao ponto de arranjar para a porta da rua uma fechadura que se abria com a mesma chave da fechadura conjugal. De modo que o Sebastião não tinha necessidade de andar com duas chaves, o que seria perigoso.

 D. Flaviana, se fosse mais observadora, teria notado que de certo tempo em diante o Sebastião começou a sofrer resignado todas as suas impertinências. O pobre diabo dizia consigo: – "Lá tenho a Mirandolina para consolar-me." – Mirandolina era o nome da morena.

 

Entretanto, o Sebastião não ficava nenhuma noite fora de casa. Passava algumas horas com a Mirandolina, mas, à hora conveniente, lá ia para casa.

 

Uma noite destas, encontrou D. Flaviana acordada e disposta a brigar. Ela andava já com suas desconfianças de que o marido tinha contrabando lá fora, e entendeu que naquela noite deveria pôr tudo em pratos limpos. Recebeu o pobre homem com duas pedras na mão.

 

– Onde esteve o senhor até estas horas?

– Não tenho que lhe dar satisfações!

–Quero saber onde o senhor esteve! Olhe que eu perco a cabeça!

– Pois perca, mas, antes disso, deixe-me ir embora!

– Que leve a breca! – Disse consigo.

 

Mas era tarde, muito tarde, e o Sebastião precisava dormir. Lembrou-se de ir para um hotel, mas refletiu:

 

– Para quê, se tenho Mirandolina? Ela não conta comigo! Vai ter um alegrão com a minha volta!

 

E lá foi para a casa da Mirandolina.

 

Meteu a chave no trinco, abriu a porta sem rumor, e entrou devagarinho no quarto dela, que ressonava.

 

Aproximou-se e viu, surpreso, que um homem dormia ao lado de Mirandolina. Deu toda a força ao bico do gás, e reconheceu que esse homem era o Sepúlveda, o seu melhor amigo.

 

Este levantou-se estremunhado.

 

– Fica onde estás! A casa é tua deste momento em diante! Disse-lhe o Sebastião.

 

E o mísero saiu, e voltou para o lado da mulher legítima, que encontrou chorosa e quase submissa.

 

– No final das contas, pensou ele, mal por mal, antes a obrigação que a devoção.

 


Arthur Azevedo domingo, 08 de julho de 2018

INGENUIDADE

 

INGENUIDADE

Arthur Azevedo

 

 

O Vaz desejava a Ernestina Friandes, não porque ela não tivesse todas as aparências de uma senhora honesta; desejava-a, porque o marido, o Friandes, era um pax vobis, que estava mesmo a pedir que o enganassem.

 

Quando, após quatro meses de perseguições incessantes, o sedutor conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito atrapalhado, por não saber aonde levar a moça. Em casa dela, era impossível um encontro: havia a tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em casa dele, também não podia ser, porque ele não tinha casa; apesar dos seus trinta anos, vivia ainda sob o teto e às sopas do pai.

 

* * *

 

O nosso herói lembrou-se, afinal, de um amigalhaço muito dado a cavalarias altas; foi ter com ele, expôs-lhe a situação e pediu-lhe que lhe arranjasse um ninho.

 

– Tu compreendes! Não posso nem devo levá-la a uma dessas casas de alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria abusar da sua inocência!

– Então a pequena é tão inocente assim?

– Se é! Não fala senão de pálpebras caídas, e qualquer coisa lhe faz subir o rubor às faces! Sou o seu primeiro amante!

– Deixa-te dessas pretensões! A gente nunca é o primeiro amante!

– Falas assim porque não a conheces.

– Vou indicar-te um lugar aonde podes levá-la com toda a segurança, porque é uma casa que ainda não está conhecida. Rua tal, número tantos. Vai até lá e procura de minha parte a D. Efigênia, que te servirá perfeitamente. Olha, leva-lhe o meu cartão.

 

O Vaz foi à casa indicada e obteve o que desejava: um bom quarto, espaçoso, bem mobiliado, arejado, com todos os requisitos, inclusive o de ficar logo no topo da escada, de modo que ele e a Ernestina poderiam entrar sem ser vistos.

 

* * *

No dia da entrevista, correu tudo às mil maravilhas. O Vaz esperou a sua presa na esquina; ele entrou primeiro, ela, depois, e lá se demoraram perto de hora e meia.

 

Por que tanto tempo? Porque uma virtude não cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitência!

 

Arrependida de haver subido aquela escada infame, a Ernestina resistiu quanto pôde.

 

– Não! Não! Não!... Eu quero conservar-me fiel aos meus deveres!... Que juízo estará o senhor a fazer de mim?

 

O Vaz – justiça se lhe faça – não respondeu como Pedro I, que era um bruto.

 

– E o Friandes?... E o meu pobre Friandes, que tem tanta confiança em mim?

 

* * *

A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda ficou, e D. Efigênia veio perguntar-lhe com o mais amável dos seus sorrisos:

 

– Então?, agradou-lhe o quarto?

– Muito e, se a senhora quisesse, eu ficaria com ele só para mim.

– Ah!, isso não pode ser.

– Por quê?

- Porque há um cavalheiro e uma dama que têm este cômodo tomado para todas as quartas e sábados, às quatro horas. Não sendo nesses dias e a essa hora, o quarto é seu.

– Bom.

 

O Vaz pagou generosamente a hospedagem e saiu.

 

* * *

 

No dia seguinte, lembrou-se que era sábado, e, sendo um desocupado, sentiu desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4 horas. Para isso, postou-se, no momento aprazado, bem defronte da casa hospitaleira, arranjando, por trás de uma árvore um magnífico posto de observação.

 

O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era um velho com todas as aparências de respeitável.

.

A dama pouco se demorou: era a própria Ernestina Friandes. Imaginem a surpresa do Vaz que, daquele momento em diante, convencido de que o ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres.

 


Arthur Azevedo domingo, 01 de julho de 2018

HISTÓRIA DE UM SONETO

 

HISTÓRIA DE UM SONETO

Arthur Azevedo

 

 

Antes de entrar definitivamente na vida prática, Ludgero Baptista, hoje um dos nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas; entretanto, um dos seus sonetos – um, pelo menos – foi escrito com más tenções, e, se alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e três anos, idade em que o homem não sabe medir bem as consequências dos seus atos... nem dos seus versos.

 

Havia, naquele tempo, como ainda as há, e em maior número, talvez, uma senhora casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia em arrastar atrás de si uma chusma de corações masculinos, e cuja formosura fazia sensação em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa, muito dado a festas e espetáculos.

 

Ludgero encontrou-a um dia no Jockey Club, e aconteceu-lhe o mesmo que a todos os rapazes do seu gênero: enamorou-se dela. Dali por diante não perdia corrida de cavalos em que Laura Rosa estivesse, e, ou fosse que realmente os olhos da formosa dama lhe prometessem mais do que deviam, ou fosse natural filáucia de namorado jovem, ele considerou-se autorizado a empregar algumas diligências, a fim de que os seus amores saíssem do período ingrato do platonismo, e entrassem numa situação mais positiva.

 

Para isso, recorreu à musa, que não abandona o poeta nessas emergências exóticas, e escreveu o soneto em questão. Era nada mais nem menos que uma injúria, até certo ponto atenuada pela rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores de versos tiveram, em todos os tempos, o privilégio de insultar as senhoras, sem que a moral pública os responsabilizasse por isso.

 

Eis aqui o soneto, que se intitulava:

 

SÚPLICA

 

Desde o dia feliz em que, pasmado,

Pela primeira vez te vi, senhora,

Um sentimento no meu peito mora

Feito de angústia e feito de pecado.

 

Não creias que ninguém houvesse amado

Tão loucamente como eu te amo agora,

Nem mesmo, oh! Linda Laura, no de outrora

Cavalheiresco tempo celebrado!

 

Para que finde o meu suplício airoso,

Ou me concede o mendigado beijo,

Este martírio transformado em gozo,

 

Ou revela ao teu dono o meu desejo:

Talvez ele me faça venturoso,

Dando-me a doce morte, enfim, que almejo!

 

Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu nome, L. B., e publicou-o na revista literária Nova Aurora, órgão especial dos "novos" daquela época.

 

Publicado o soneto, mandou o poeta entregar um número do periódico à "linda Laura", procurando, naturalmente, ocasião em que o comendador Rosa não estava em casa, e tendo o cuidado de chamar, com um traço de lápis vermelho, a atenção da moça para os versos em que tão indiscretamente ia envolvido o nome dela.

 

Não sei qual foi o resultado obtido por Ludgero, nem isso importa à narrativa; creio, entretanto, que a súplica não foi atendida: nem Laura Rosa lhe deu aquele "mendigado beijo", que era um eufemismo bandalho, nem disse nada ao seu dono, e ainda bem, porque se o poeta não logrou a ventura que almejava, também não perdeu a vida, que aproveitou mais tarde, nem mesmo apanhou a sova que merecia.

 

O caso é que o nosso homem tomou juízo, e abriu mão de todas as suas veleidades poéticas, para cuidar de coisas mais sérias e mais úteis. A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de algumas centenas de contos de réis, e, aos trinta e sete, principiou a sentir, pela primeira vez, necessidade de constituir família.

 

Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma família de amigos, a interessante Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal, quer no moral, quer no físico.

 

Blandina contava apenas vinte e três primaveras, justamente a idade que ele tinha quando escrevera a "Súplica"; mas, não obstante essa diferença de quatorze anos, o casamento não lhes pareceu desproporcionado: queriam-se deveras. Ela talvez fosse um pouco romântica, cheia de mistérios e devaneios, sequiosa do imprevisto e do ignorado; mas esse defeito, se o era, não repugnava ao que em Ludgero ficara do sonhador de outrora.

 

Casaram-se.

 

Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez primeiros anos; mas, passado esse tempo, ele, que estava às portas do semicentenário, e poderia passar por mais velho, ao passo que ela não parecia ter ainda os seus trinta e três, julgou que sua mulher já não o amava como dantes.

 

Perdi o encanto – disse ele aos seus botões – tenho agora os cabelos grisalhos, engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a mocidade, a beleza e a elegância que tinha na ocasião do nosso primeiro encontro... O nosso enlace não era, mas tornou-se desigual... Para sermos felizes até a morte, fora preciso que envelhecêssemos juntos, como Filêmon e Báucis.

 

Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de casada, nunca reparou que seu marido ressonava alto, não o podia agora suportar, queixando-se de não poder dormir ao som de um rabecão. Ao mesmo tempo, deixava-se absorver, horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de instante a instante, como se alguma coisa lhe faltasse.

 

Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o que se passava em torno de si. Não lhe tardou perceber que a sua casa era constantemente rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo, filho de sua mulher. De uma feita, deu com ele à esquina entregando uma carta à cozinheira; escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e interceptou a missiva no momento preciso em que esta passava das mãos da intermediária para as de sua mulher.

 

Ludgero tomou a mão de Blandina, que tremia como varas verdes, e levou-a para o interior do seu gabinete.

 

– Quem é aquele sujeitinho que te mandou esta carta?

– Não sei – respondeu ela, e desatou a chorar.

– Por que choras?

– Choro, porque não tenho culpa. Não sei quem me escreveu... Desconfio de um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me cumprimenta com um sorriso muito amável quando me vê à janela... Juro-te que eu devolvia essa carta sem abrir!

– Abro-a eu! – Disse Ludgero, engasgado pela comoção - e rasgou o invólucro. Estava dentro um soneto, escrito em papel ridículo, cercado de florinhas e rendilhado nos cantos.

 

Ao ler o primeiro verso, “Desde o dia feliz em que, pasmado”, o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido copiado, palavra por palavra, sofrendo apenas uma alteração no segundo quarteto: o nome de "Laura" fora substituído pelo de "Blandina", o que, aliás, desfigurava o verso, evidenciando que o copista era inteiramente hóspede em metrificação.

 

Ludgero deu uma gargalhada.

 

– De que te ris?... Que há que te faça rir? – Perguntou Blandina.

– Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que não é dele, e sim meu!

– Teu?

– Sim! A coincidência é notável... Vais ver!

 

Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o número amarelado da Nova Aurora, em que vinha estampada a sua "Súplica".

 

– Aqui tens! Olha! Compara! Está assinado com as minhas iniciais!

– Tu fazias versos?

– Fazia-os, e ainda os farei, se quiser – tanto assim, que vou escrever outro soneto em resposta a este, e hás de tu copiá-lo com tua letra, e eu mesmo o entregarei ao tal mocinho.

– Está dito!

 

A prontidão com que Blandina proferiu esse "está dito" foi a melhor prova que Ludgero teve de que poderia continuar a conservá-la junto de si. O mesmo não sucedeu à cozinheira, que foi posta na rua.

 

No dia seguinte, estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e, na mesma tarde, quando o rapazola, parado à esquina, interrogava as janelas, Ludgero aproximou-se dele, e disse-lhe:

 

– Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero que, depois de lê-la, o meu amiguinho não me rondará mais a porta; mas, se continuar, previno-o de que o mato a bengaladas!...

 

O rapazola fugiu, e não consta que reaparecesse no bairro. Foi esta a:

 

RESPOSTA

 

Para satisfazer ao seu pedido,

Na parte da denúncia e não do beijo,

Revelei a meu dono o seu desejo.

Os versos entreguei a meu marido.

 

Este, em vez de ficar enfurecido,

E de agarrar um ferro malfazejo,

Tomou a coisa à conta de gracejo,

E pôs-se a rir como um perdido!

 

Pois se é ele o autor do tal soneto!

O senhor copiou-o da Nova Aurora,

Estragando-lhe apenas um quarteto...

 

Ele, que a Musa já mandou embora,

Cede-lhe os versos (discrição prometo),

Mas não quer sociedade na senhora.

 

Blandina Baptista

 

Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe os cabelos grisalhos, o abdômen, o reumatismo e, até, o ressonar alto: adora-o.

 

Ludgero descobriu que o rapazola era filho de Laura Rosa; provavelmente, encontrou o soneto entre os papéis da mãe, que já não existia...

 

O ex-poeta viu em tudo isso uma espécie de punição, e, como tem os seus momentos de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser ferido, mais dia menos dia, pela própria arma que forja com intenção maligna, mesmo quando essa arma seja simplesmente um mau soneto.

 


Arthur Azevedo domingo, 24 de junho de 2018

HISTÓRIA DE UM DOMINÓ

 

HISTÓRIA DE UM DOMINÓ

Arthur Azevedo

 

 

Perdoem-me os leitores se eu, de ordinário alegre, venho contar-lhes uma história triste, num dia em que todos estão predispostos ao riso; mas. . . que querem? Tenho uma natureza especial: o Carnaval entristece-me, e o "Abre alas, que quero passar" soa aos meus ouvidos como um canto de agonia e de morte.

 

* * *

 

Dado esse pequeno cavaco, saibam os leitores que conheço um homem, o Abreu, que é o mais triste dos homens: só se compraz na solidão e no silêncio, não tem amigos, vive só, e nunca ninguém o viu rir, nem mesmo sorrir.

 

Entretanto, esse casmurro, em chegando o Carnaval, veste um dominó e sai à rua mascarado. Isto são favas contadas todos os anos. O ano passado, um vizinho teve a curiosidade e a pachorra de mascarar-se também para acompanhá-lo a certa distância, e observar o que ele fazia.

 

Era domingo gordo; toda a população estava na rua. O Abreu apeou-se do bonde, o mesmo bonde em que vinha o curioso que o acompanhava, um bonde do Catumbi, o bairro onde moravam ambos, e desceu com muita dificuldade a Rua do Ouvidor. Chegando em frente à casa de um alfaiate, em cuja porta estavam sentadas algumas donas e donzelas à espera das Sociedades, parou, encostando-se na parede da casa fronteira, e ali se deixou ficar, pregando no grupo das senhoras os olhos, que faiscavam através dos dois buracos da máscara de seda.

 

O Abreu demorou-se ali seguramente meia hora, e o vizinho, farto de esperar, resolveu abandoná-lo, dizendo consigo: – Ora! É um esquisito!... Deixemo-lo!...

 

Deixou-o efetivamente, mas uma hora depois, voltou, e ainda lá encontrou o Abreu no mesmo ponto e na mesma posição em que o havia deixado. Examinou então com mais cuidado o grupo das senhoras, e reconheceu, surpreso, que uma delas era a mulher do Abreu.

 

* * *

 

Sim, que o Abreu tinha sido casado com uma bonita mulher que um dia o abandonou para amancebar-se com um sujeito que ele supunha seu amigo, e ao qual abrira confiadamente as portas de sua casa. O amante lá estava por trás do grupo também à espera das Sociedades. Toda a gente os supõe casados.

Desde que lhe sucedeu essa desgraça, o Abreu tornou-se triste, e sua tristeza durou e dura ainda, porque ele amava profundamente aquela ingrata. Amava-a tanto, que neste mundo só uma coisa lhe proporcionava um simulacro de prazer: vê-la de perto.

 

Entretanto, os leitores compreendem que o Abreu não poderia procurar a miúdo tão singular espécie de consolação, e, nos raros encontros fortuitos que tinha com ela, não a encarava de modo a satisfazer aquele apetite mórbido.

 

Mas, uma vez, há cinco anos, disseram-lhe que sua mulher tinha assistido ao Carnaval sentada à porta do alfaiate e, no ano seguinte, o Abreu, metido num dominó alugado, foi verificar se ela escolhera o mesmo ponto. Encontrou-a, e, durante muitas horas, conseguiu vê-la de perto e à vontade.

 

Daí por diante, o infeliz marido não perdeu um Carnaval, e é muito provável que amanhã lá esteja a postos em frente à casa do alfaiate. Os leitores, com alguma pachorra, poderão certificar-se de que este conto não é inventado.


Arthur Azevedo domingo, 17 de junho de 2018

FATALIDADE

 

FATALIDADE

Arthur Azevedo

 

I

O Tenente de Cavalaria Remígio Soares, teve a infelicidade de ver, uma noite, D. Andréia num camarote do Teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

 

A "mulher do próximo", notando que a "desejavam", deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e rasgados. Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão, que se apresentava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

 

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o Tenente Soares acompanhou, a certa distância, casal até o Largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele – um bonde do Bispo –, sentando-se, como por acaso, o lado de D. Andréia. Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda, seria faltar à verdade. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andréia, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

 

Ele ficou sabendo onde ela morava.

 

II

 

O Tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, – pudera! Às dez horas da manhã, atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo! Mas – que contrariedade! – As janelas de D. Andréia estavam fechadas.

 

O cavaleiro foi até a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patatá, patati, patatá! E as janelas não se tinham aberto! O passeio foi novamente renovado à tarde, – o tenente passou, tornou a passar, - continuavam fechadas as janelas! Malditas janelas!...

 

Durante quatro dias, o namorado foi e veio, a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento! Mas, ao quinto dia – Oh! Ventura! – Ele viu sair do convento um molecote, que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

 

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento: proibia expressamente à senhora sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérberos; um, a tia do marido, e um jardineiro muito fiel ao patrão.

 

Mas o providencial moleque, nesse mesmo dia, se encarregou de entregar à patroa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta – digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada – a resposta não se fez esperar por muito tempo.

 

Ei-la:

 

"O senhor pede-me uma entrevista e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?... Onde?... Quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós... Como há um deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos ambos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança."

 

Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de D. Andréia; procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta, D. Andréia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha.

 

III

 

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa e esperar por ela. Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela! Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.

 

IV

 

Os leitores, – e, principalmente, as leitoras – me desculparão de não pôr no final deste ligeiro conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armando Silvestre. Em todo o caso, verão que a moral não é sacrificada.

 

O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero. Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

 

– Que tens tu?

– Ainda mo perguntas!

– Paciência, meu velho; Jacó esperou quatorze anos.

– Esta coisa tem-me posto doente... – Bem sabes que gozava uma saúde de ferro... Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba.... Tenho tonteiras!

– Isso é calor; a tua Andréia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para tonteiras!

 

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo de benemérito laxativo. Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andréia, anunciando-lhe uma carta. Pouco depois, entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

 

"A velha amanheceu hoje com febre, e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será, talvez."

 

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de D. Andréia! Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento; nenhum namorado faria confissões dessa ordem... O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

 

"Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir! Quando algum dia houver certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoarás."

 

V

 

Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

 

– Vê tu que grande remédio é a água de Janos! Um só copo serviu para três cabeças!

– Como três?

– A tua, que tinha tonteiras, a de D. Andréia que estava cheia de fantasias, e a do marido, que andava muito arriscada.

 

Efetivamente, a moça não perdoou.

 

O Tenente Remígio Soares nunca mais a viu.


Arthur Azevedo domingo, 10 de junho de 2018

ENCONTROS REVELADORES

 

ENCONTROS REVELADORES

Arthur Azevedo

 

 

Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do Segundo Império. A historieta não será talvez muito divertida, mas é humana. Lá vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro da Justiça, que o nomeara juiz de Direito de Niterói, lembrou-se o Dr. Sales de convidá-lo para padrinho de seu último pimpolho. O ministro aceitou o convite, mas como a época era de grande agitação política e não lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuração ao seu oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representá-lo na cerimônia, e levar o pequeno à pia.

 

À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr. Sales, onde o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o próprio conselheiro.

 

O bom homem já estava, aliás, habituado a esses togatés. Depois que o ministro, seu companheiro de infância e amigo íntimo, fizera dele o seu oficial de gabinete, o seu auxiliar de imediata confiança, quase o seu alter ego, o Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha inúmeros amigos de cuja existência nem sequer suspeitava. Antes que ele exercesse aquela posição oficial, pouca gente o cumprimentava; depois que a exercia, todos lhe tiravam o chapéu!

 

Terminada a cerimônia do batizado, o Dr. Pinheiro quis retirar-se: estava cumprida a sua missão, mas o Dr. Sales e toda a família instaram com ele para almoçar.

 

O almoço fez-lhe mal. Na ocasião em que o padrinho por procuração ergueu a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo juiz de Direito ao seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro e secretário de Estado dos negócios da Justiça, o Sr. Pinheiro sentiu turbar-se-lhe a vista e a casa andar à roda. Caiu sentado sobre a cadeira, quebrando a taça que tinha na mão, e perdeu os sentidos.

 

Foi um alvoroço. Saíram todos dos seus lugares e cercaram o Dr. Pinheiro, que não dava acordo de si.

 

Entre os comensais, havia, felizmente, um médico. Transportado para um quarto e estendido sobre um leito, o Dr. Pinheiro foi imediatamente socorrido e medicado.

 

– Não há de ser nada, explicou o médico, mas é preciso que o doente fique no mais absoluto repouso; que ninguém lhe fale nem ele fale a ninguém!

– Mas, que foi?

– Um ameaço de congestão.

 

No mesmo dia, o Dr. Sales mandou à casa do Dr. Pinheiro, que era viúvo, não tinha família de espécie alguma e morava com ele apenas um criado, que foi ter logo com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca.

 

No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre, para participar-lhe que o seu oficial de gabinete adoecera em Niterói, mas S. Exa. não lhe pôde dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelação na Câmara, e não podia pensar noutra coisa.

 

O Dr. Pinheiro, logo no outro dia pretendeu recolher-se aos penates, mas o médico proibiu-lhe terminantemente, dizendo:  – Uma imprudência pela qual não me responsabilizo!

 

Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niterói, metido entre quatro paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia, sentiu-se completamente restabelecido, e teve alta. Durante esse tempo, alguma coisa se passara, de certa importância, mas, em casa do Dr. Sales, nada disseram ao Dr. Pinheiro, receando que qualquer comoção moral lhe produzisse novo ataque.

 

Seguido pelo seu fiel criado, que o não abandonou um instante, o Dr. Pinheiro tomou a barca e, chegando ao Pharoux, entrou num carro que estava à sua espera, indo o criado para a boleia.

 

Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura obrigada do gabinete do ministro, sujeito que costumava saudá-lo com muitos rapapés, agora, ao vê-lo, apenas levou a mão à aba do chapéu.

 

Mais adiante, na Rua da Assembleia, outro importuno olhou para ele e desviou os olhos, fingindo que não o via.

 

No Largo da Carioca, um oficial da Secretaria, que se empenhara, não havia muito, com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o oficial de gabinete um olhar de proteção.

 

– Não há que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministério!

 

De fato, havia três dias que o ministério caíra, depois da tal interpelação. Ninguém o dissera ao Dr. Pinheiro, nem verbalmente nem por escrito: ele adivinhou-o, graças àqueles três encontros reveladores.


Arthur Azevedo domingo, 03 de junho de 2018

EM SONHOS

 

EM SONHOS

Arthur Azevedo

 

 

– Ora, sempre há sonhos muito esquisitos!  – Exclamou o César, logo pela manhã, quando se ergueu da cama.

– Com quem sonhaste? – Perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.

– Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava!

– E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? – Perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.

– Oh! Meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos!

– Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma conveniência tem.

– Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!

– Não estou zangada, mas, simplesmente, ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!

– Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!... Eu não queria!... D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!...

– Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela.

– Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!...

–Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos!

– Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!...

– Sim, tens razão, César... Sonhos são sonhos... uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que nenhuma culpa tens.

– Ora, ainda bem que te chegas à razão!

 

E não se falou mais nisso: a discussão passou... como um sonho.

 

Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama.

 

– Que é isto? – Perguntou César despertando. – Ergueste hoje mais cedo?

– Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!

– Sim?... Com quem sonhaste?

– Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!

– Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!

– Sonhei; que tem isso?... Que culpa tenho eu?

– Conta-me o teu sonho.

– Isso não! Tu já ficaste tão zangado sabendo que sonhei com o Braguinha; que não farias se eu te contasse o resto?!

– Margarida! Nunca esperei que tu.

– Deixa-te disso!... Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: não beijei – fui beijada!

 

O César saltou da cama furioso:

 

– Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!

– Ora, aí tens! – Exatamente o caso do fazendeiro!

 


Arthur Azevedo domingo, 27 de maio de 2018

ELEFANTES E URSOS

 

ELEFANTES E URSOS

Arthur Azevedo

 

 

Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele só vibrava e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando tinha um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas.

 

Dizem que, na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era incapaz de pregar uma peta.

 

Ora, uma ocasião, estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam representados ambos os sexos e todas as idades.

 

As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita para comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o Miranda, o maior estroina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso herói.

 

Mas isso não foi nada – dizia este, retorcendo as pontas dos seus enormes bigodes grisalhos. – Isso não foi nada, à vista do que me aconteceu numa aldeia do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria atrás de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o moço com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que nunca falhou. Mas restava a fêmea... A arma estava descarregada, mas eu, carioca da gema, lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma rasteira tão na regra, que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela pesada massa, tive tempo de carregar a espingarda e mandá-la passear no outro mundo. O moço estava salvo.

 

Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou:

 

– O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que o valha, muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do elefante macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil pessoas.

 

Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra:

 

– O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.

– Você já esteve em Ceilão? – Perguntou o coronel.

– Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar – sim, porque também sou caçador! – Saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados!

– E que fez você? – Perguntou o coronel, interessado deveras.

– Não fiz nada – respondeu o Miranda. – Fui comido!

 


Arthur Azevedo domingo, 20 de maio de 2018

DUAS APOSTAS

 

DUAS APOSTAS

Arthur Azevedo

 

 

Quando apareceu o primeiro número d'O Século, o Comendador Salazar, que encontrou um exemplar em casa, tomou-o entre as mãos, percorreu-o rapidamente com os olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o Deus, um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça:

 

– Isto não tem vida para um mês!

– Por que, papai? – Perguntou a senhorita Esmeralda.

– Porque não tem. É um jornaleco que não me inspira a menor confiança.

 

A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redarguiu logo:

 

– Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo!

– Por que, minha filha?

– Porque tem.

– Veremos.

 

Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Souzinha, e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha não tinha ainda completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade.

– É muito cedo para pensarem em casamento! – Sentenciara ele.

 

Mas, voltando a O Século:

 

– Com que então, papai é de parecer que este jornal será efêmero?

– Já te disse que sim!

– Pois bem: façamos uma aposta. Se O Século não viver um ano, eu bordarei um par de chinelos de lã para papai; se viver... no dia em que ele completar o primeiro aniversário, papai consentirá no meu casamento com seu Souzinha.

 

O comendador soltou uma gargalhada e disse:

 

– Pois está dito!

 

Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Souzinha acompanhavam a vida d'O Século! A moça comprava todas as tardes um número da folha, e colocava-o bem à vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse.

 

– Então O Século ainda vive?

– Ainda, e não parece disposto a morrer!

– Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulação!

 

No dia em que O Século completou o seu primeiro aniversário, Esmeralda lembrou ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter.

 

Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa:

–- Casamos a pequena com um criançola! Hás de ver que aquele maricas tão cedo não nos dará um neto!

 

A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente:

– Vamos fazer uma aposta, papai?

– Que aposta?

 

– Se no dia em que O Século completar o segundo aniversário o senhor não tiver ainda a satisfação de ser avô, eu bordarei aquelas famosas chinelas... se tiver, abrirá com um conto de réis uma caderneta da Caixa Econômica, em favor do pequeno... ou da pequena...

 

Há dois meses Esmeralda é mãe e o comendador já se explicou com o conto de réis.

 

O outro dia, ela chegou-se ao pai, e disse:

 

– Vamos fazer outra aposta?

– Qual?

 

- Se no dia em que O Século completar o terceiro aniversário...

 

– Nada! Nada! Não me apanhas! O tal Século tem vida para... um século!

DUAS APOSTAS

Arthur Azevedo

 

 

Quando apareceu o primeiro número d'O Século, o Comendador Salazar, que encontrou um exemplar em casa, tomou-o entre as mãos, percorreu-o rapidamente com os olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o Deus, um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça:

 

– Isto não tem vida para um mês!

– Por que, papai? – Perguntou a senhorita Esmeralda.

– Porque não tem. É um jornaleco que não me inspira a menor confiança.

 

A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redarguiu logo:

 

– Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo!

– Por que, minha filha?

– Porque tem.

– Veremos.

 

Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Souzinha, e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha não tinha ainda completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade.

– É muito cedo para pensarem em casamento! – Sentenciara ele.

 

Mas, voltando a O Século:

 

– Com que então, papai é de parecer que este jornal será efêmero?

– Já te disse que sim!

– Pois bem: façamos uma aposta. Se O Século não viver um ano, eu bordarei um par de chinelos de lã para papai; se viver... no dia em que ele completar o primeiro aniversário, papai consentirá no meu casamento com seu Souzinha.

 

O comendador soltou uma gargalhada e disse:

 

– Pois está dito!

 

Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Souzinha acompanhavam a vida d'O Século! A moça comprava todas as tardes um número da folha, e colocava-o bem à vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse.

 

– Então O Século ainda vive?

– Ainda, e não parece disposto a morrer!

– Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulação!

 

No dia em que O Século completou o seu primeiro aniversário, Esmeralda lembrou ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter.

 

Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa:

–- Casamos a pequena com um criançola! Hás de ver que aquele maricas tão cedo não nos dará um neto!

 

A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente:

– Vamos fazer uma aposta, papai?

– Que aposta?

 

– Se no dia em que O Século completar o segundo aniversário o senhor não tiver ainda a satisfação de ser avô, eu bordarei aquelas famosas chinelas... se tiver, abrirá com um conto de réis uma caderneta da Caixa Econômica, em favor do pequeno... ou da pequena...

 

Há dois meses Esmeralda é mãe e o comendador já se explicou com o conto de réis.

 

O outro dia, ela chegou-se ao pai, e disse:

 

– Vamos fazer outra aposta?

– Qual?

 

- Se no dia em que O Século completar o terceiro aniversário...

 

– Nada! Nada! Não me apanhas! O tal Século tem vida para... um século!


Arthur Azevedo domingo, 13 de maio de 2018

DONA EULÁLIA

 

DONA EULÁLIA

Arthur Azevedo

 

 

Quando cheguei, a casa mortuária estava cheia de gente. No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro enormes tochas acesas, e sobre a essa um caixão, dentro do qual D. Eulália dormia o último sono.

 

Já tinha passado a hora do saimento. Faltava apenas o padre. O padre não aparecia. O viúvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um parente que, pelos modos, tinha se encarregado do enterro:

 

– Então?.. . Esse padre?

– Já cá devia estar. O Tio Eusébio quer que eu vá buscá-lo?

– É favor, Cazuza.

 

E o parente saiu muito apressado. Dez minutos depois, o Eusébio aproximou-se de mim e disse-me baixinho:

 

– E nada de padre! Estava escrito que este dia não passava para mim sem alguma contrariedade...

 

* * *

 

Justifiquemos esse grito do coração. O Eusébio não foi um marido feliz; D. Eulália, que tinha muito mau gênio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno. O pobre homem não tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido como um fâmulo quando entrava mais tarde; devia dar contas de um níquel, de um miserável níquel que lhe desaparecesse do bolso!

 

Apesar de casado havia já quinze anos, ele não se pudera habituar a essa existência ridícula, e sentia-se envelhecer prematuramente na alma e no corpo. Não tinha filhos, – e era melhor assim, porque, com certeza, D. Eulália não lhos perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza, e fecundá-lo-ia, para humilhá-lo ainda mais!

 

* * *

 

Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusébio tentou reagir contra o mau gênio de D. Eulália; num dia, porém, que lhe falou mais alto e lhe bateu o pé, recebeu em troca uma tremenda bofetada, cujo estalo ressoou em todo o quarteirão. Durante quinze dias, a vizinhança não se ocupou de outra coisa.

 

O marido que apanha da cara-metade está perdido; o que apanha e chora, está irremissivelmente perdido. O Eusébio apanhou e chorou... Daquele dia em diante, foi-se-lhe toda a autoridade marital: tornou-se em casa um manequim, um pax vobis, um joão-ninguém.

 

Era, entretanto, um homem simpático, virtuoso, apreciadíssimo por numerosos amigos e muito conceituado na repartição de onde tirava o necessário para que nada faltasse a D. Eulália.

 

* * *

 

De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusébio, nenhuma o ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miúdo, porque, graças ao mau gênio da dona da casa, a cozinha estava constantemente abandonada. Como as impertinências de D. Eulália já tinham fama no bairro, e nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusébio era obrigado a procurar cozinheira muito longe de casa. O que ele queria era alugá-la, mas bem sabia que, na venda, a recém-chegada seria logo posta ao corrente de tais impertinências.

 

* * *

 

Um dia, o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela mulher.

 

– Levante-se, tome banho, vista-se e vá procurar uma cozinheira!

– Quê!... Pois a Maria...?

 – Acabo de pô-la no olho da rua!

– Por quê?

– Não é da sua conta! Mexa-se!...

– Uma cozinheira que não estava em casa há oito dias!...

– Basta de observações! Quem manda aqui sou eu! Vamos! Vista-se! E nada de agências, hem? Olhe que se me traz cozinheira de agência, não passa da porta da rua!

 

* * *

 

Nesse dia o Eusébio teria purgado todos os seus pecados, se os tivera, e se D. Eulália não fosse já um purgatório bastante. O pobre-diabo, que morava no Rio Comprido, foi, levado por informações, procurar uma cozinheira em São Francisco Xavier. Já estava alugada; entretanto, lá lhe disseram que no Morro do Pinto havia outra, muito boa, que lhe devia servir. O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem e subiu o Morro do Pinto.

 

A cozinheira não estava em casa; tinha ido passar uns dias com uma parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho aconselhou o Eusébio a que não adiasse a diligência; a mulher trabalhava primorosamente em forno e fogão, era morigerada e estava morta por achar emprego. Abalou o Eusébio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a mulher na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta já para sair. Por pouco mais, a viagem teria sido baldada.

 

Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpático e humilde, que, à primeira vista, inspirava certa confiança. Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusébio, a julgar pela prontidão com que se ajustaram.

 

– Bem; amanhã lá estarei, meu patrão.

– Amanhã, não: há de ser hoje, porque se entro em casa sem cozinheira, minha mulher...

 

O Eusébio interrompeu-se – ia deitando tudo a perder, – e emendou: –... minha mulher, que é muito boa senhora, mas nem sempre acredita no que eu digo, há de supor que me remanchei.

– Nesse caso, meu patrão, é preciso que eu vá primeiramente ao Morro do Pinto.

– Pois vamos ao Morro do Pinto... respondeu resignado o resignado Eusébio.

 

* * *

 

Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadíssimo, doente, sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata. D. Eulália recebeu-o com duas pedras na mão:

 

– Onde esteve o senhor metido até estas horas? Oh! Que coisa ruim... que homem insuportável... Só a minha paciência!...

– A senhora não calcula como me custou encontrar esta mulher, mas, enfim... parece que desta vez ficamos bem servidos.

– Pois sim –resmungou D. Eulália – vão ver que é alguma vagabunda!

 

E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual arrogância:

 

– Chegue-se mais! Não gosto de gritar e quero que me ouçam!

 

A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna.

 

– Como se chama? – Perguntou D. Eulália.

– Eulália.

– Eulália?!

– Eulália, sim, senhora!

– Eulália?! Rua! Rua!

 

E, voltando-se para o marido:

 

– Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma cozinheira com o mesmo nome que eu? Que desaforo!...

– Mas, senhora.

– Cale-se! Não seja burro!

 

* * *

 

Creio que o Eusébio está justificado: a morte de D. Eulália não poderia contrariá-lo.

 


Arthur Azevedo domingo, 06 de maio de 2018

DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA

 

DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA

Arthur Azevedo

 

 

O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer-se na vida alheia e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros.

 

Ele observou que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na Rua São Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes – um, já de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito e elegante.

 

O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro era o pagador e o segundo o amant de coeur.

 

O primeiro, além de ser mais velho, tinha uns ares de dono de casa que não enganava a ninguém; as suas visitas eram mais demoradas, duravam às vezes toda a noite; ao passo que o outro aparecia de fugida, e não saía para a rua sem primeiro examinar se não passava alguém.

 

Ora, aconteceu que, certa noite, achando-se numa soirée familiar em casa de um amigo que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que também lá estava.

 

A pessoa que fez a apresentação afastou-se, e o nosso indiscreto disse logo ao Peixoto que já o conhecia. O moço chamava-se Peixoto.

– Já me conhecia? De onde? – Perguntou este muito intrigado.

–Da Rua São Francisco Xavier.

– Cale-se! Por amor de Deus, não me comprometa! Eu tenho família, sou casado, e minha mulher está aqui! Olhe, é aquela senhora vestida de azul.

– Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguém saberá.

– Aquilo é um contrabando. São destas coisas em que a gente se mete não sabe como, e de que é muito difícil livrar-se.

– Ora! O amigo ainda está na idade, não acabou ainda de pagar o seu tributo; mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o outro mal tinha acabado de sair! Por mais dois ou três minutos, encontravam-se à porta. Eu moro defronte, e vi tudo por trás da veneziana.

– O senhor disse "o outro". Que outro?

– O dono.

– Como o dono? O dono sou eu!

– Quero dizer: o "marchante".

– Não há outro marchante senão este seu criado! Dar-se-á caso que aquela mulher receba um homem quando eu lá não estou? Dar-se-á que me engane?

– Não! Não creio que ela o engane com um homem feio, que podia ser pai do senhor... um sujeito barrigudo... careca...

 

O Lustosa reconheceu a asneira que tinha feito, mas era tarde.

 

– Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres são capazes de tudo. Tenho aí um carro à porta. Vou até lá. Quero verificar agora mesmo se sou traído por aquele diabo. A ocasião é excelente. Ela não me espera, porque sabe que vim a esta reunião... minha mulher está distraída... Até logo!

 

O Peixoto saiu, e pouco depois ouvia-se rodar o carro.

 

O Lustosa ficou perguntando a si mesmo quando se corrigiria daquele mau costume de intrometer-se na vida alheia.

 

O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele.

 

– Obrigado pelo serviço que me prestou. Surpreendi lá dentro o careca em ceroulas. Ela quis me convencer que era um tio. Desavergonhada! Estou livre daquela péla!

– Pois, senhores, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que o senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro, com aquela cara, o coió! Decididamente, em se tratando de mulheres, devemos sempre contar com o absurdo e o inverossímil!

 


Arthur Azevedo domingo, 29 de abril de 2018

DE CIMA PARA BAIXO

 

DE CIMA PARA BAIXO

Arthur Azevedo

 

Naquele dia, o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e, imediatamente, mandou chamar o diretor-geral da Secretaria. Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.

 

– Estou furioso! – Exclamou o conselheiro. – Por sua causa, passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador!

– Por minha causa? – Perguntou o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos.

– O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!

– Que me está dizendo, Excelentíssimo...?

 

E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:

– É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...! –

– É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o meu oficial de gabinete!

 

E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:

– Por sua causa, esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a minha demissão!...

– Oh!...

– Sua Majestade não a aceitou...

– Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem.

– Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.

– Peço mil perdões a Vossa Excelência – protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza.

 

O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:

 

– Bom! Mande reformar essa porcaria!

 

O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª Seção, que o encontrou fulo de cólera.

 

– Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. ministro!

- Por minha causa?

– O Sr. mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!

 

E atirou-lhe o papel, que caiu no chão. O chefe da 3ª Seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou:

 

– Queira Vossa Senhoria desculpar, Sr. diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e tudo tão urgente!...

– O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!

– Não era o caso para tanto...

– Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta!

– Eu... Vossa Senhoria...

– Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.

– Eu... Vossa Senhoria.

– Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!

 

O chefe da 3ª Seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:

 

– Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. diretor-geral!

– Por minha causa?

– O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado!

 

E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.

 

– Eu devia propor a sua suspensão por quinze dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. diretor-geral não me tratasse com tanto respeito e consideração!

– O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...

– Ainda o confessa!

– Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos...

– Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...

– Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...

– Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...

 

O amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um continuo.

 

– Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção!

– Por minha causa?

– Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!

– Foi porque...

– Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!

– Mas...

– Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!...

 

O continuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria.

– Estou furioso! Por tua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!

– Por minha causa?

–Sim; quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto?

– Porque...

– Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua! Serventes não faltam!...

 

O preto não redarguiu. O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois de jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.

 

O mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.

 

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe de seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...

 


Arthur Azevedo domingo, 22 de abril de 2018

CONJUGO VOBIS

 

CONJUGO VOBIS

Arthur Azevedo 

 

A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um namorado misterioso, que via passar todas as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem trajado, sobrecasaca, chapéu alto, botinas de bico fino, bengala de castão de prata, pincenê de ouro. Limitava-se a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria também, para animá-lo, mas, qual! O moço parecia de uma timidez invencível, e o romance não passava do primeiro capítulo.

 

– Com certeza, um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas o diabo é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira a chegar à fala!

 

Afinal, um dia, passando, como de costume, ele atirou para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras: "Amo-a, e desejava saber se sou correspondido."

 

No dia seguinte, ele apanhou a resposta, que ela atirou à rua: "Não posso dizer que o amo, porque não o conheço, mas simpatizo muito com a sua pessoa. Diga-me quem é."

 

* * *

 

Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a que estão sujeitos os corações humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em casa como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por todos os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua família) a fazerem as malas, porque, no dia seguinte, às 5 horas da manhã, partiam para Caxambu.

 

– Mas isto assim de repente! – Protestou a velha. – Vai ser uma atrapalhação!

– Não quero saber de nada! O médico disse-me que, se eu não partisse imediatamente para Caxambu, era um homem morto! Eu devia até seguir pelo noturno! Estou com uma congestão de fígado em perspectiva!

 

Angelina ficou desesperada por não ter meios de prevenir o moço e lá partiu para Caxambu, com o coração amargurado.

 

* * *

 

Não a lastimem, compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu Angelina tinha se esquecido completamente do namorado. Isso não foi devido aos efeitos das águas, que não servem para o coração como servem para o fígado, mas à presença de um rapaz que estava hospedado no mesmo hotel que a família Seabra e, em correção e elegância, nada ficava a dever ao outro.

 

Era um médico do Rio de Janeiro, recentemente formado, moço de talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna própria.

 

O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o seu fígado melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a ideia de um casamento entre Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha à cara.

 

Em conclusão, o casamento foi tratado lá mesmo, sob o formoso e poético céu do Sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possível, na Capital Federal.

 

* * *

 

Regressando das águas, onde se demorou um mês, Angelina viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressão de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante de debruçar-se no peitoril.

 

* * *

 

No dia do casamento, os noivos, as famílias dos noivos, as testemunhas e os convidados lá foram para a pretoria.

 

– Tenham a bondade de esperar–- disse-lhes o escrivão. – O doutor não tarda aí.

 

Sentaram-se todos em silêncio, e, pouco depois, o pretor fazia a sua entrada solene.

 

Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a ponto de perder os sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro namorado.

 

O mísero disfarçou como pôde a comoção, e resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro à mulher que o seu coração desejava.

 

* * *

 

Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria apenas o juiz e o escrivão, este perguntou àquele:

 

– Que foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não parecia o mesmo! Que lhe sucedeu?

 

O moço confiou-lhe tudo.

 

O escrivão, que era um velhote retrógrado e carola, ponderou:

 

– Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento civil; no religioso, é impossível.


Arthur Azevedo domingo, 15 de abril de 2018

COMO O DIABO AS ARMA!

 

COMO O DIABO AS ARMA!

Arthur Azevedo

 

O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensível desta cidade em que são raríssimos os maridos irrepreensíveis; entretanto (vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo.

 

Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os pássaros. Pelo menos, morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados.

 

Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas... como chegar à fala?... Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.

 

Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde para o Leme.

 

O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação. O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava lendo, murmurou:

 

– Preciso muito falar-lhe.

– Pois fale – respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rósea folha vespertina.

– Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?

– Quando quiser.

– Amanhã?

– Amanhã, seja! Sabe onde é?

– Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta.

– Por quê?

– Depois lhe direi.

– Bom. Esperá-lo-ei às dez e meia.

– Adeus!

– Até amanhã!

 

E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.

 

No dia seguinte, à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou entreaberta.

 

– Mas por que todo este mistério? – Perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de longos anos.

– É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.

– Quem? O tal Paulino?

– Conhece-o?

– De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta da mulher dele?

– Da mulher de quem?... Do Paulino?...

– Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!

– Mas de que Paulino fala a senhora? – Perguntou o pobre homem, já trêmulo e agitado.

– Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher!

– Os amantes da mulher?!...

– Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!...

– Os outros?... Então são muitos?!...

– Mais de um é, com certeza... já vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante.

– Deve ser o Gouveia!

– E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pera, pincem azul...

– Deve ser o Magalhães! Dois amigos!...

 

E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda. Sentia as faces em fogo. Receou uma congestão cerebral. A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-de-colônia, que o reanimou.

 

– Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e você não sabia...

– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informação. Se não viesse à sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!

 

E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atônita, outra coisa além de um copo d'água.

 

No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas não perde por esperar.

 

Ora, aí têm como o diabo as arma!


Arthur Azevedo domingo, 08 de abril de 2018

CHICO

 

CHICO

Arthur Azevedo

 

 

Um dia, o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu caráter obsequioso e humilde.

 

            – Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão que só tu poderás desempenhar a meu gosto.

            – Estou às suas ordens.

            – Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons casamentos, sempre à espera de um príncipe, como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por casa, e nem ela, nem eu, sabemos quem é.

            – Ele chama-se...?

            – Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz lacônica, em que declarou à Maricota que a amava e desejava ser seu esposo. Já me disseram – e é tudo quanto sei a seu respeito – que esteve empregado na estrada de ferro, onde não esquentou lugar. Preciso de mais amplas e completas informações a respeito desse indivíduo e, para obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.

 

O Chico dissimulou uma careta.

 

            – Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?

– Certamente.

– Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e me venhas dizer quem é, ao certo, esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa comissão com a brevidade possível, pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana.

 

O Chico pôs-se a coçar a cabeça e não disse nada. Bem sabia quanto era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico, já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.

 

            – Está dito?

– Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.

 

No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central, e perguntou-lhe se conhecia um sujeito que ali tinha estado algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel.

 

            – Um bêbado! –  respondeu prontamente o outro.

– Bêbado?

            – Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!

– Mas não se terá corrigido?

            – Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança é o Trancoso. – Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal que não se dava com o sogro.

            – Casado?

            – Casado, sim!

            – Quem é esse Trancoso?

            – Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os lados de Inhaúma.

            – Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?

            – Pois não!

 

No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia à porta do Trancoso.  Veio abrir-lha um velho asmático, envolvido numa capa, lenço de seda ao pescoço, carapuça enterrada até às orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos. Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com "esse bandido"!

 

            – Mas não é ele seu genro?

            – Foi, por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos desgostos à minha filha, que a matou!

            – Eu desejava apenas tomar algumas informações a respeito desse homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que me pediu para...

            – Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal senhora, com quem ele se pretende casar, quiser passar fome e ser armazém de pancada, não poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!...

 

Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua.

 

Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre, refletiu que todas essas informações, partindo de um homem tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme convicção de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.

 

Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os amores de Maricota e Alexandrino haviam assumido proporções consideráveis, e o Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de tomar informações a respeito do pretendente.

 

            – Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais. –  Exclamou o médico ao ver então o seu cliente gratuito.

            – Trouxe-lhe informações seguras!

            – Boas ou más?

            – Péssimas.

 

O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.

 

–  Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem é o teu Pimentel.

– Pois diga! – Resmungou Maricota com um olhar zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico.

 

Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:

 

            – O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não passasse de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito desagradável.

            – Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é senhora das suas ações.

 

O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de família, contou minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que chegara. Quando ele acabou o relatório:

 

            – Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! – Bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pé. – E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!

 

Não houve palavras que a convencessem de que tal casamento seria um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.

 

Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!

 

Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido solícito, dedicado, carinhoso e previdente; não ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a bisca em família – e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrível perspectiva de que ele seria o contrário.

 

            – Maricota apanhou a sorte grande! – Diziam os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda.

Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com frieza o informante.

O pobre Chico perdeu o amigo e o médico, foi odiado por Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:

 

– Eu devia quebrar-te a cara, miserável, mas perdoo-te, porque és um desgraçado!

 

Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.


Arthur Azevedo domingo, 01 de abril de 2018

BARCA

 

BARCA

Arthur Azevedo

 

 

Há maridos e mulheres, dizem as más línguas, que passam o verão em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se é isso exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é.

 D. Senhorinha, esposa exemplar, exemplaríssima, era casada com um negociante rico, o João Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela em Petrópolis até abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se tornava inabitável durante a canícula.

 

O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifão, se lambe todo. Havia na Rua do Riachuelo uma francesa que lhe dava volta ao miolo e constantemente o obrigava a perder a barca.

 

Nessas ocasiões, D. Senhorinha recebia sempre um telegrama, e acreditava, coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era muito ocupado. Por fim, João Saraiva tantas e tão repetidas vezes perdia a barca, por este ou aquele motivo, que marido e mulher resolveram adotar uma palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra "barca".

 

* * *

 

Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na sua solidão petropolitana, quando lhe levaram um telegrama. Ela abriu-o um pouco sobressaltada, pois o marido não costumava telegrafar àquela hora, e qual não foi a sua surpresa vendo que o telegrama dizia simplesmente: "Barca".

 

– Não pode ser! Pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha às 4 horas e são apenas 2! Com duas horas de antecedência meu marido não podia adivinhar que perderia a barca! Aqui há coisa.

 

* * *

 

Naquele dia, o marido não apareceu em Petrópolis, e, no dia imediato, quando a senhora lhe pediu uma explicação, ele não se atreveu a dizer-lhe que o progresso agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados, ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro e o de Petrópolis.

 

João Saraiva deu a D. Senhorinha uma razão esfarrapada, que ela fingiu aceitar, e, na manhã seguinte, entrou furioso no escritório, dirigindo-se imediatamente a um dos empregados.

 

– Ó seu Barros, a que horas você passou anteontem aquele telegrama?

– Logo que o senhor m'o deu.

– Fê-la bonita! Pode limpar a mão à parede! Pois eu não lhe disse que só o passasse depois das 4 horas?

– Disse, disse; mas como tive que ir lá para os lados do Telégrafo, julguei que não houvesse inconveniente.

–  Ora valha-o Deus, seu Barros! Você deu cabo da minha tranquilidade doméstica.

 

* * *

 D. Senhorinha desceu imediatamente de Petrópolis e nunca mais quis saber de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca.


Arthur Azevedo domingo, 25 de março de 2018

BANHOS DE MAR

 

BANHOS DE MAR

Arthur Azevedo

 

 

Manuel Antônio de Carvalho Santos,

Negociante dos mais acreditados,

Tinha, em sessenta e tantos,

Uma casa de secos e molhados

Na Rua do Trapiche. Toda a gente

– Gente alta e gente baixa –

O respeitava. Merecidamente:

 

A sua firma era dinheiro em caixa.

Rubicundo, roliço,

Era já outoniço,

Pois há muito passara dos quarenta

E caminhava já para os cinquenta.

O bom Manuel Antônio

(Que assim era chamado),

Quando do amor o deus (Deus ou demônio,

Porque como um demônio os homens tenta,

Trazendo-os num cortado)

Fê-lo gostar deveras

De uma menina que contava apenas

Dezoito primaveras,

E na candura de anjo

Causava inveja às próprias açucenas.

 

Tinha a menina um namorado, é certo;

Porém o pai, um madeireiro esperto,

Que no outro viu muito melhor arranjo,

Tratou de convencê-la

De que, aceitando a mão que lhe estendia

Manuel Antônio, a moça trocaria

De um vaga-lume a luz por uma estrela

 

Ela era boa, compassiva, terna,

E havia feito ao moço o juramento

De que a sua afeição seria eterna;

Porém dobrou-se à lógica paterna

Como uma planta se dobrara ao vento.

 

Sabia que seria

Tempo perdido protestar; sabia

Que, na opinião do pai, o casamento

Era um negócio e nada mais. Amava;

Sentia-se abrasada em chama viva;

Mas... tinha-se na conta de uma escrava,

Esperando, passiva,

Que um marido qualquer lhe fosse imposto,

Contra o seu coração, contra o seu gosto.

 

Calou-se. Que argumento

Podia a planta contrapor ao vento?

 

No dia em que a notícia

Do casamento se espalhou na praça,

A Praia Grande inteira achou-lhe graça

E comentou-a com feroz malícia,

E na porta da Alfândega,

E no leilão do Basto

Outro caso não houve era uma pândega!

Que às línguas fornecesse melhor pasto

Durante uma semana, ou uma quinzena,

Pois em terra pequena

Nenhum assunto é facilmente gasto,

E raramente um escândalo se pilha.

Quando um dizia: – A noiva do pateta

Podia muito bem ser sua filha,

Logo outro exagerava: – Ou sua neta!

 

O moço desdenhado,

Que na tesouraria era empregado,

E metido a poeta,

Durante muito tempo andou de preto,

Co'a barba por fazer, muito abatido;

Mas, se a barba não fez, fez um soneto,

Em que chorava o seu amor perdido.

 

Do barbeiro esquecido

Só foi à loja, e vestiu roupa clara,

Depois que a virgem que ele tanto amara

Saiu da igreja ao braço do marido.

 

Pois, meus senhores, o Manuel Antônio

Jamais se arrependeu do matrimônio;

Mas, passados três anos,

Sentiu que alguma coisa lhe faltava:

Não se realizava

O melhor dos seus planos.

 

Sim, faltava-lhe um filho, uma criança,

Na qual pudesse reviver contente,

E este sonho insistente,

E essa firme esperança

Fugiam lentamente.

À proporção que os dias e os trabalhos

Seus cabelos tornavam mais grisalhos.

 

Recorreu à Ciência:

Foi consultar um médico famoso,

De muita experiência,

E este, num tom bondoso,

Lhe disse: – A Medicina

Forçar  não pode a natureza humana.

Se o contrário imagina,

Digo-lhe que se engana.

 

 Manuel Antônio, logo entristecido,

Pôs os olhos no chão; mas, decorrido

Um ligeiro intervalo,

O médico aduziu, para animá-lo:

– Todavia, Verrier, se não me engano,

Diz que os banhos salgados

Dão belos resultados...

Experimente o oceano!

 

No mesmo dia o bom Manuel Antônio,

Á vista de juízo tão idôneo,

Tinha casa alugada

Lá na Ponta d'Areia,

Praia de banhos muito frequentada,

Que está do porto à entrada

E o porto aformoseia.

 

Nessa praia, onde um forte

Do séc'lo dezessete

Tem tido vária sorte

E medo a ninguém mete;

Nessa praia, afamada

Pela revolta, logo sufocada

De um Manuel Joaquim Gomes,

Nome olvidado, como tantos nomes;

Nessa praia que... (Vide o dicionário

Do Doutor César Marques) nessa praia,

Passou três meses o quinquagenário,

Com a esposa e uma aia.

 

Não sei se coincidência

Ou propósito foi: o namorado

Que não tivera um dia a preferência,

Maldade que tamanhos

Ais lhe arrancou do coração magoado,

Também se achava a banhos

Lá na Ponta d'Areia...

 

Creia, leitor, ou, se quiser, não creia:

Manuel Antônio nunca o viu; bem cedo,

Sem receio, sem medo

De deixar a senhora ali sozinha,

Para a cidade vinha

Num escaler que havia contratado,

E voltava à tardinha.

 

Tempos depois – marido afortunado!

Viu que a senhora estava de esperanças...

 

Ela teve, de fato,

Duas belas crianças,

E o bondoso doutor, estupefato,

Um ótimo presente,

Que o pagou larga e principescamente!

 

Viva o banho de mar! Ditoso banho!

Dizia, ardendo em júbilo, o marido.

– Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!

Doutor, meu bom doutor, agradecido!

 

Pouco tempo durou tanta ventura;

Fulminado por uma apoplexia,

Baixou Manuel Antônio à sepultura.

 

O desdenhado moço um belo dia

A viúva esposou, que lhe trazia

Amor, contos de réis e formosura.

 

E no leilão do Basto

Diziam todos os desocupados

 

Que nunca houve padrasto

Mais carinhoso para os enteados.


Arthur Azevedo domingo, 18 de março de 2018

ASSUNTO PARA UM CONTO

 

ASSUNTO PARA UM CONTO

Arthur Azevedo

 

 

Como sou um contador de histórias, e tenho que inventar um conto por semana, sendo, aliás, menos infeliz que Scherazada, porque o público é um sultão Shariar menos exigente e menos sanguinário que o das Mil e Uma Noites, sou constantemente abordado por indivíduos que me oferecem assuntos, e aos quais não dou atenção, porque eles em geral não têm uma ideia aproveitável.

 

Entre esses indivíduos, há um funcionário aposentado que, na sua roda, é tido por espirituoso, o qual, todas as vezes que me encontra, obriga-me a parar, diz-me, invariavelmente, que estou ficando muito preguiçoso, e, com um ar de proteção, o ar de um Mecenas desejoso de prestar um serviço que, aliás, não lhe foi pedido, conclui, também invariavelmente:

 

– Deixe estar, que tenho um magnífico assunto para você escrever um conto! Qualquer dia destes, quando eu estiver de maré, lá lh'o mandarei.

 

Há dias, tomando o bonde para ir ao Leme espairecer as ideias, sentei-me por acaso ao lado do meu Mecenas que, na forma do costume, começou por invectivar a minha preguiça, e prosseguiu assim:

 

– Creio que já lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um conto...

– Já m'o disse mais de vinte vezes!

– Qualquer dia lá lh'o mandarei.

– Não! Há de ser agora! O senhor tem me prometido esse assunto um rol de vezes, e não cumpre a sua promessa. Nós vamos a Copacabana, estamos ao lado um do outro, temos multo tempo.... Venha o assunto!...

– Não; agora não!

– Pois há de ser agora, ou então convenço-me de que tal assunto não existe, e o senhor mentiu todas as vezes que m'o prometeu!

 – Ora essa!

– Sim, que o senhor tem feito como aquele cidadão que prometia ao Eduardo Garrido, todas as vezes que o encontrava, um calembur para ser encaixado na primeira peça que ele escrevesse. Até hoje o Garrido espera pelo calembur!

– Eu tenho o assunto do conto – explicou o Mecenas–, mas queria escrevê-lo...

– Para quê? Basta que m'o exponha verbalmente.

– Então, lá vai: é a história de uma herança falsa, um sujeito residente na Espanha escreve a outro sujeito residente no Rio de Janeiro uma carta dizendo que morreu lá um homem podre de rico, chamado, por exemplo, D. Ramon, e que esse homem não deixou herdeiros conhecidos: a herança foi toda recolhida pela nação; mas o tal sujeito residente na Espanha, que é um finório, manda dizer ao tal sujeito residente no Rio de Janeiro, que é um simplório, que existem aqui herdeiros, cujos nomes ele não revelará ao simplório sem que este mande pelo correio tantas mil pesetas. O simplório manda-lhe o dinheiro, e fica eternamente à espera dos nomes dos herdeiros. – Que tal?

– Muito bom!

– Você não acha aproveitável este assunto?

– Acho-o magnífico, interessantíssimo, espirituoso! Tanto assim que vou escrever o conto e publicá-lo no próximo número d'O Século!

– Ora, ainda bem! Quando lhe faltar assunto, venha bater-me à porta: o que não me falta é imaginação!

– Muito obrigado; não me despeço do favor.

 

Como vê o leitor, aproveitei o assunto do imaginoso Mecenas.


Arthur Azevedo domingo, 11 de março de 2018

AS PARADAS

 

AS PARADAS

Arthur Azevedo

 

 

O Norberto, que a princípio aceitou com entusiasmo as paradas dos bondes de Botafogo, é hoje o maior inimigo delas. Querem saber por quê? Eu lhes conto.

 

O pobre rapaz encontrou uma noite, na Exposição, a mulher mais bela e mais fascinante que os seus olhos ainda viu, e essa mulher – Oh, felicidade!... Oh, ventura!... –, essa mulher sorriu-lhe meigamente e com um doce olhar convidou-o a acompanhá-la. O Norberto não esperou repetição do convite: acompanhou-a.

 

Ela desceu a Avenida dos Pavilhões, encaminhou-se para o portão, e saiu como quem ia tomar o bonde; ele seguiu-a, mas estava tanto povo a sair, que a perdeu de vista. Desesperado, correu para os bondes, que uns seis ou sete havia prontos a partir, e subiu a todos os estribos, procurando em vão com os olhos esbugalhados a formosa desconhecida.

 

– Provavelmente, foi de carro – pensou o Norberto, que logo se pôs a caminho de casa.

 

Deitou-se, mas não pôde conciliar o sono: a imagem daquela mulher não lhe saía da mente. Rompia a aurora, quando conseguiu adormecer para sonhar com ela, e no dia seguinte não se passou um minuto sem que pensasse naquele feliz encontro.

 

Daí por diante, foi um martírio. O desditoso namorado começou a emagrecer, muito admirado de que lhe causassem tais efeitos um simples olhar e um simples sorriso. Passaram-se alguns dias, e cada vez mais crescia aquele amor singular, quando, uma tarde – Oh, que ventura!... Oh, que felicidade!... –, uma tarde, passeando no Catete, o Norberto vê, num bonde das Laranjeiras, a dama da Exposição. Ela não o viu.

 

O pobre-diabo fez sinal ao condutor para parar, mas, por fatalidade, o poste da parada estava muito longe, e o bonde não parou. E não haver ali à mão um tílburi, uma caleça, um automóvel!... O Norberto deitou a correr atrás do bonde, mas só conseguiu esfalfar-se. Que pernas humanas haverá tão rápidas como a eletricidade?

 

Esse novo encontro acendeu mais viva chama no peito do Norberto, e não tiveram conta os passeios que ele deu do Largo do Machado às Águas Férreas, na esperança de ver a sua amada e falar-lhe.

 

Oito dias depois, o Norberto percorria de bonde, pela centésima vez, as Laranjeiras, quando, nas alturas do Instituto Pasteur, viu passar – Oh, felicidade!... Oh, ventura!... –, viu passar na rua a mulher que tanto o sobressaltava.

 

– Pare! Pare!... Gritou ele ao condutor.

– Aqui não posso; vamos ao poste de parada!

 

O Norberto quis descer, mas a rapidez com que o bonde rodava era tamanha, que não se atreveu.

 

Chegando ao poste de parada, ele atirou-se à rua, e deitou a correr para o lugar onde vira a mulher, mas, onde estava ela? Tinha desaparecido!

 

Aí está por que o Norberto é hoje o maior inimigo das paradas.


Arthur Azevedo domingo, 04 de março de 2018

ÀS ESCURAS

 

ÀS ESCURAS

Arthur Azevedo

 

 

 

Havia baile naquela noite em casa do Cachapão, o famoso mestre de dança, que alugara um belo sobrado na Rua Formosa, onde todos os meses oferecia uma partida aos seus discípulos, sob condição de entrar cada um com dez mil-réis. D. Maricota e sua sobrinha, a Alice, eram infalíveis nesses bailes do Cachapão.

 D. Maricota era a velha mais ridícula daquela cidadezinha da província; muito asneirona, mas metida a literata, sexagenária, mas pintando os cabelos a cosmético preto, e dizendo a toda a gente contar apenas trinta e cinco primaveras – feia de meter medo e tendo-se em conta de bonita, era D. Maricota o divertimento da rapaziada. Em compensação, a sobrinha, a Alice, era linda como os amores e muito mais criteriosa que a tia.

 

O Lírio, moço da moda, que fazia sempre um extraordinário sucesso nos bailes de Cachapão, namorava a Alice, e no baile anterior lhe havia pedido... um beijo.

– Um beijo?! Você está doido, seu Lírio?! Onde? Como? Quando?

– Ora! Assina você queira...

– Eu não dou; furte-o você se quiser ou se puder.

 

 Isto dizia ela porque bem sabia que as salas estavam sempre cheias de gente, e a ocasião não poderia fazer o ladrão. Demais, D. Maricota, a velha desfrutável, que andava um tanto apaixonada pelo moço, que aliás podia ser seu neto, tinha ciúmes e não os perdia de vista.

 

Mas o Lírio, que era fértil em ideias extraordinárias, combinou com um camarada, o Galvão, que este entrasse no corredor do sobrado às 10 horas em ponto, e fechasse o registro do gás. Se o Lírio bem o disse, melhor o fez o Galvão; mas ao namorado saiu-lhe o trunfo às avessas, como vão ver.

 

Faltavam dois ou três minutos para as 10 horas, quando ele se aproximou de Alice e murmurou-lhe ao ouvido:

 

– Aquela autorização está de pé?

– Que autorização?

– Posso furtar o beijo?

– Quando quiser.

– Bom; vamos dançar esta quadrilha.

 

Mas a velha D. Maricota levantou-se prontamente da cadeira em que estava sentada e enfiou o braço no braço do moço, dizendo:

 

– Perdão, seu Lírio! Esta quadrilha é minha! O senhor já dançou uma quadrilha e uma valsa com Alice! E arrastou o Lírio para o meio da sala.

 

De repente, ficou tudo às escuras.

 

Passado um momento de pasmo, D. Maricota agarrou-se ao pescoço do Lírio e encheu-o de beijos, dizendo muito baixinho:

 

– Ingrato! Ingrato! Foi o meu bom amigo que apagou as luzes!

 

E aqui está como ao Lírio saiu o trunfo às avessas.


Arthur Azevedo domingo, 25 de fevereiro de 2018

AS CEREJAS

 

AS CEREJAS

Arthur Azevedo

 

 

 

– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?

– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me... Os cobres são tão curtos!

– Gostas realmente de cerejas?

– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.

– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruínam.

– Tens razão.

 

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano. O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

 

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses. Acompanhou-a. Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

 

– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.

 

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.

 

– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!

 

O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa. Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.

 

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.

 

– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!

– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão de Açúcar.

– Ao Pão de Açúcar?

– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!

– Por quê?

– Por causa das cerejas.

– Que cerejas?

– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido", com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?

– As cerejas?

– Sim, as cerejas!

– Mas como soubeste que eu...?

– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?

 

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

– Oh! Diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!

– Eu logo vi!...

 

  1. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

 

No dia seguinte, esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:

 

– Estavam na Estação.

 

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha...


Arthur Azevedo domingo, 18 de fevereiro de 2018

A VIÚVA DO ESTANISLAU

 

A VIÚVA DO ESTANISLAU

Arthur Azevedo

 

 

Por ocasião da morte do marido, aquele pobre Estanislau, que, depois de uma luta horrível, foi afinal vencido pela tuberculose, Adelaide parecia que ia também morrer. Dizia-se que ela amava tanto o marido, que fizera o possível para contrair a moléstia que o matou e acompanhá-lo de perto no túmulo. Emagreceu a olhos vistos, e toda a gente contava que, mais dia menos dia, Deus lhe fizesse a vontade; mas o tempo, que tudo suaviza e repara, foi mais forte que a dor, e ano e meio depois de enviuvar, Adelaide estava rubicunda e linda como não estivera jamais.

 

O Estanislau deixou-a paupérrima. O pobre rapaz não contava arrumar a trouxa tão cedo, ou, por outra, não teve com que preparar o futuro. Enquanto viveu, nada faltou em casa; depois que ele morreu, tudo faltou, e Adelaide, que felizmente não tinha filhos, aceitou a hospitalidade que lhe ofereceram seus pais.

 

– Vem outra vez para o nosso lado, disseram-lhe os velhos; façamos de conta que te não casaste.

 

Não tardou muito que aparecesse um namorado à viúva. Era um excelente moço, o Miranda, que frequentava a casa dos velhos por ser funcionário da mesma secretaria onde o pai de Adelaide era chefe. Foi com muita satisfação que este notou a simpatia que o Miranda manifestava pela moça, e pulou de contente quando o rapaz, um dia, na repartição, se abriu com ele, dizendo-lhe que ser seu genro era o que mais ambicionava neste mundo.

 

O velho foi para casa alegre como um passarinho, e disse tudo à mulher.

 

– Sabes, Henriqueta? O Miranda confessou-me hoje que gosta da Adelaide e quer casar-se com ela. Estou satisfeitíssimo, porque nossa filha não poderia encontrar melhor marido! Que me dizes?

– Digo que seu Miranda é uma sorte grande, mas duvido que Adelaide aceite.

– Duvidas, por quê?

– Porque ela só pensa no Estanislau: é uma viúva inconsolável. Engordou, tomou cores, goza saúde, mas aposto que não admite que lhe falem noutro casamento.

– Deixe-a comigo; vou sondá-la.

 

O velho sondou-a, efetivamente, e reconheceu que D. Henriqueta calculava bem.

 

– Não me fale em casamento, papai! Eu considerar-me-ia uma mulher indigna se desse um substituto ao meu pobre Estanislau!

 

Mas o velho que não era peco, não se deixou vencer e insistiu, lançando mão de quanto argumento lhe sugeriu a sua longa experiência do mundo.

 

– Minha filha, numa terra de maldizentes como este Rio de Janeiro, a reputação de uma viúva moça e bonita corre tantos perigos, que a melhor resolução que tens a tomar, para fazer respeitar a memória honrada do teu Estanislau, é casares-te em segundas núpcias. Uma única dificuldade haveria para isso: o marido; mas neste particular, minha filha, foste de uma fortuna fenomenal. O Miranda caiu-te do céu! Olha, eu, se tivesse que escolher um genro, não escolheria outro, e tu, se te casares com ele, darás muito prazer a tua mãe, e tornarás feliz a minha velhice.

 

Essas palavras, que acabaram molhadas de lágrimas de enternecimento, calaram no ânimo de Adelaide, e na mesma noite, como a família se achasse reunida na sala de jantar, e o Miranda presente, ela dirigiu-se a este nos seguintes termos:

 

– Meu amigo, sei que o senhor gosta muito de mim e deseja ser meu marido; sei que o nosso casamento daria muita satisfação a meus pais; mas devo dizer-lhe que ainda amo o Estanislau como se ele estivesse vivo, e não posso amar dois homens ao mesmo tempo.

 

Os velhos morderam os beiços; o Miranda remexeu-se na cadeira, sem responder.

 

– Sei também que o senhor é um perfeito cavalheiro e que nada lhe falta para ser um marido ideal; aprecio o seu caráter, a sua bondade, a sua inteligência; mas, se nos casarmos, não poderei levar-lhe o sentimento que todo o homem tem o direito de exigir no coração da sua noiva. Se depois desta declaração leal e honesta, persiste em querer ser meu esposo, aqui tem a minha mão.

– Aceito-a! Respondeu prontamente o Miranda, tomando a mão que lhe estendeu Adelaide. Aceito-a, porque – perdoe a minha vaidade – tenho alguma confiança no meu merecimento, e espero conquistar o seu amor!

 

Casaram-se, e hoje, que estão unidos há um ano, podem gabar-se, ela de ter tido verdadeiras surpresas fisiológicas, e ele de ser amado como o Estanislau nunca o foi.

– Es então feliz, minha filha?

– Muito feliz, mamãe; o Miranda é tão bom marido, que, lá no outro mundo, o Estanislau, se meteu a mão na consciência, com certeza me perdoou.

 


Arthur Azevedo domingo, 11 de fevereiro de 2018

A RITINHA

 

A RITINHA

Arthur Azevedo

 

 

Naquela noite, o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento penoso, que não podia definir. Tinham-lhe dito que estava no Rio de Janeiro a Ritinha, aquela interessante menina que, há trinta anos, lá na província, fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.

 

Andou morto por vê-la, não que lhe restasse no coração nem no espírito outra coisa senão a saudade que todos nós sentimos da infância e da adolescência – queria vê-la por mera curiosidade. Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o esperava, num teatro. Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua corpulência descomunal. Mostrou-lha um comprovinciano e amigo:

 

– Não querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens!

– Onde

– Naquele camarote.

– Quê! Aquela velha gorda?...

– É a Ritinha!

– Virgem Nossa Senhora!

 – E aquele homem de óculos azuis, que está de pé, no fundo do camarote? É o marido?

– Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora muito magra que está ao lado dela. O marido é o velhote que está quase escondido por trás do enorme corpanzil da tua ex-namorada.

 

O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela mulher, que fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa. Não podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora. Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a estátua antiga. Tinha a visão exata do passado.

 

Representava-se uma comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacência, de espectadora mal-educada e por isso mesmo pouco exigente. Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso, tremiam convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos. O genro, que se conservava sério e imperturbável, lançava-lhe uns olhos repreensivos e inquietos através dos óculos azuis. Ela não dava por isso.

 

– Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? Perguntou o Flores.

– Nada... apenas passear... estão de passagem para a Europa.

 

* * *

 

E aí está por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que não sabia definir. Quando ele se espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que o esperava todas as noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página. Todo o seu passado lhe afluía à memória. Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram vizinhos, – brincaram juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade.

 

Depois de dezessete anos, aquela afeição tomou, nele, nela não, um caráter mais grave: transformou-se em amor. Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho. Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o do homem, raro é o moço que, ao desabrochar da vida, não teve amores malogrados.

 

Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha não esperou que ele crescesse e aparecesse: tendo-se-lhe apresentado um magnífico partido, fez-se noiva aos dezoito anos. O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola, mas tinha a idade de Romeu, a idade em que já se ama.

 

Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar Ritinha e em seguida suicidar-se. Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com seis balas, e marcou para o dia seguinte a perpetração do atentado.

 

Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro. Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não encontrou a arma.

 

– Oh!

 

Procurou-a no chão, atrás do baú, por baixo da cômoda: nada!

 

* * *

 

– Para que precisas tu de um revólver, meu filho? Perguntou a mãe do rapaz, entrando no quarto.

– Está com a senhora?

– Está.

– Mas como soube...?

– As mães adivinham.

 

Flores não disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e chorou copiosamente. Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar à vontade; depois, enxugou-lhe os olhos com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe:

 

– Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te?

– Sim, mas primeiro matá-la-ia também!

– E não te lembraste de mim?... Não te lembraste de tua mãe?...

– Perdoe!

 

E nova torrente de lágrimas lhe inundou a face.

 

– Ouve, meu filho: na tua idade feliz, um amor cura-se com. outro. O que neste momento se te afigura uma desgraça irremediável, mais tarde se converterá numa recordação risonha e aprazível. Se todos os moços da tua idade se matassem por causa disso, e matassem também as suas ingratas, há muito tempo que o mundo teria acabado. Raros são os que se casam com a sua primeira namorada. O que te sucedeu não é a exceção, é a regra. O mal de muitos, consolo é.

– Eu quisera que Ritinha não pertencesse a nenhum outro homem!

– Matá-la? Para quê? Ela desaparecerá sem morrer... nunca mais terá dezoito anos... A idade transforma-nos tal qual a morte. Não imaginas como tua mãe foi bela!

 

O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se passara, e receoso de que o filho, impulsivo por natureza, praticasse algum desatino, resolveu mandá-lo para o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do casamento de Ritinha.

 

* * *

 

Naquela noite, o Flores, quase quinquagenário, chefe de repartição, lembrava-se das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham. Ainda naquele momento, sua mãe, que há tantos anos estava morta, parecia falar-lhe, parecia dizer-lhe:

 

– Não te dizia eu?

– E que impressão receberia Ritinha se me visse? Pensou ele. Também eu sou uma ruína...

 

* * *

 

O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas, a do passado e a do presente.

Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta última, dizia consigo:

 

– Olhem se eu a tivesse matado!


Arthur Azevedo domingo, 04 de fevereiro de 2018

A PEQUETITA

 

A PEQUETITA

Arthur Azevedo

 

 

Como o Bandeira é positivista e não admite a vacina, o Coriolano, que é sobrinho do Bandeira e dirigido por ele, não quis que a Pequetita se vacinasse. Quando D. Isaura, sua esposa, lhe falou nisso, foi como se lhe propusesse uma vergonha.

 

– Pois tu conheces as minhas ideias e me propões semelhante coisa? Vacinar a Pequetita? Que diria o tio Bandeira?

 D. Isaura, que tinha muito bom senso, não costumava contrariar a vontade do marido: submetia - se resignadamente a quanto ele dizia. Por seu gosto, a Pequetita se vacinaria; mas como o Coriolano era de opinião contrária, a Pequetita não seria vacinada. Ora aí está.

 

Mas veio a varíola, e o bairro em que morava o   Coriolano   foi   o mais   experimentado   pela epidemia.   O pobre-diabo   via, aterrorizado, passarem todos   os   dias   enterros   de crianças   da vizinhança, e tremia pela sorte da Pequetita.

 

Um   dia   em   que   o   tio   Bandeira   lhe   apareceu   em casa, o   Coriolano   deu-lhe   uma   pequena investida em favor da vacinação, mas o positivista foi inflexível: lançou-lhe um olhar severo, pegou no chapéu e na bengala e disse:

 

– Se você me torna a falar em vacina, saio por aquela porta e nem o Teixeira Mendes será capaz de fazer com que eu aqui ponha mais os pés!

– Bom, não se zangue, meu tio: já cá não está quem falou.

 

Entretanto, a epidemia aumentava cada vez mais, e o Coriolano, que andava inquieto e sobressaltado, um dia apanhou D. Isaura a jeito e fez-lhe ver os seus receios.

 

– Se não fosse o tio Bandeira.

– Mandarias vacinar a Pequetita?

– É exato.

– Entretanto, não te aconselho a que o faças sem lhe dizer francamente que tomaste essa resolução. Se lhe mentisses, ele não te perdoaria!

– Ô diabo! Se a Pequetita. Oh! Nem disso me quero lembrar! Eu teria remorso toda a vida!

– Pois vai à casa do tio Bandeira, e dize-lhe com toda a hombridade que vais mandar vacinar a menina! Não és nenhuma criança nem nenhum idiota que se deixe governar pelos outros!

– Tens razão.

 

O Coriolano foi à casa do tio Bandeira, e voltou amargurado, com lágrimas nos olhos e na voz.

 

– Então? Falaste-lhe? – Perguntou D. Isaura.

– Não.

– Por quê?

– Encontrei-o morto!

– Morto?!

– De varíola hemorrágica! Foi atacado anteontem, e, hoje ao meio-dia, era cadáver! E eu sem saber de nada! Pobre do Bandeira!...

 

E o Coriolano desatou em pranto.

 

Quando serenou, disse a D. Isaura:

 

– Amanhã, pela manhã... hoje mesmo, ser for possível, vacina-se a Pequetita.

– Não é preciso.

– Por quê?

– Porque a Pequetita há dois meses que está vacinada.

– Há dois meses?!

– Sim! Desde que começou a epidemia!

– E nada me disseste!

-–Para quê? Para te zangares? Se fiz mal, Deus me perdoará porque fui levada pelo meu instinto

de mãe.


Arthur Azevedo domingo, 28 de janeiro de 2018

A NOTA DE CEM MIL-RÉIS

 

A NOTA DE CEM MIL-RÉIS

Arthur Azevedo

 

 

O Cavalcanti era um marido incorreto, para não empregar um adjetivo mais forte; imaginem que os seus recursos não davam para acudir a todas as necessidades da família e, no entanto, era ele um dos amantes da Josephine Leveau, uma cocotte francesa, cujo nome era muito conhecido nas rodas alegres, e se prestava aos trocadilhos mais interessantes, quer em francês, quer em português.

 

Como a esposa do Cavalcanti era uma hábil costureira, recorreu à sua habilidade para ajudar nas despesas de casa. Um dia fez um vestido para uma amiga, e, tão bem feito, tão elegante, que a sua fama correu de boca em boca, e valeu-lhe uma freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar. Havia meses em que ela fazia trezentos mil-réis.

 

O Cavalcanti não protestou, pelo contrário aprovou. Fez mais, como vão ver.

 

Uma bela manhã, a Josephine mandou-lhe pedir cem mil-réis para uma necessidade urgente, e ele não os tinha, nem sabia aonde ir buscá-los. Hesitou durante algum tempo em cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Já o leitor adivinhou que o miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar à amante.

 

A pobre senhora não manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto, abriu uma gaveta onde guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de cem mil-réis, ainda nova. Antes de levá-la ao marido, que esperava na sala de jantar, contemplou-a durante algum tempo, como para despedir-se dela para sempre, e então notou que alguém escrevera num canto estas palavras com letra miúda: "Nunca mais te verei, querida nota!" E como D. Margarida – ela chamava-se Margarida – tivesse um lápis à mão, escreveu por baixo daquelas palavras "Nem eu!".

 

O Cavalcanti empalmou os cem mil-réis com um estremeção de alegria.

 

– Este dinheiro faz-te muita falta? – Perguntou ele.

– Não – respondeu ela –, hoje mesmo espero receber igual quantia.

 

Meia hora depois, o Cavalcanti entregava a nota, dentro de um envelope, a Josephine Leveau. Nesse mesmo dia, D. Margarida recebeu os outros cem mil-réis que esperava. Contra o seu costume, o Cavalcanti estava em casa.

 

– Olha, disse-lhe ela, aqui estão os cem mil-réis que eu contava receber. A freguesa é boa.

– Quem ela é? – Perguntou o marido.

– Não a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um vestido de seda, riquíssimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato.

– Mas é senhora séria?

– Parece. É francesa, e casada com um banqueiro, disse-me ela. Naturalmente, o marido é também francês, porque ela chama-se Madame Leveau.

– Leveau! – Repetiu o Cavalcanti empalidecendo.

– Conheces?

– Não.

– Então, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O vestido foi hoje de manhã cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro.

– Onde mora essa Madame Leveau?

– Na Rua do Catete.

 

Dizendo isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem mil-réis.

 

– Que coincidência! – Disse ela; a nota é da mesma estampa da qual te dei hoje de manhã! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!...

 

Este grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase "Nunca mais te verei", e o seu acréscimo: "Nem eu!".

 

–  Que foi? – Perguntou o Cavalcanti.

– A nota é a mesma!...

– A mesma? – Repetiu o marido gaguejando.

– A mesmíssima! Reconheço-a por causa destas palavras... Vê! A minha letra!...

 

O Cavalcanti arranjou uma desculpa esfarrapada: disse que tinha pago os cem mil-réis ao banqueiro Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D. Margarida não engoliu a pílula, e foi à casa de Josephine certificar-se de que esta era uma cocotte frequentada por seu marido.

 

A pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista. Ganha muito dinheiro.


Arthur Azevedo domingo, 21 de janeiro de 2018

A NÃO-ME-TOQUES

 

A NÃO-ME-TOQUES!

Arthur Azevedo

 

I

 

Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, – não que lhe faltassem candidatos, mas – infeliz moça! –, naquela capital de província não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de ser seu marido.

 

Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigências da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta.

 

– Que diabo! – Dizia o Comendador à sua mulher, D. Guilhermina, – estou vendo que será preciso encomendar-lhe um príncipe!

– Ou então, acrescentava D. Guilhermina, esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade...

– Está você bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman.

 

Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomável. Suficientemente ricos, tinham dado à filha uma educação de fidalga, habituando-a desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes caprichos. Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando correntemente o francês e o inglês, tocando muito bem o piano, cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas para se julgar um avis rara na sociedade em que vivia, e não encontrar em nenhuma classe homem que merecesse a honra insigne de acompanhá-la ao altar.

 

Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo Comendador em companhia da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituía, naquela boa terra, um título de superioridade. Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a erguer os olhos para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco certa corrente de animadversão.

 

Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de La Fontaine, e, como a qualquer indivíduo, macho ou fêmea, que estivesse em tal ou qual evidência, era difícil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela "Não-me-toques".

 

II

 

Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, – tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela... Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o único talvez, que jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos.

 

Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal. Por esse tempo, veio ao Mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se, fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes ia buscá-la no colégio.

 

Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, "Seu José" (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição por aquela menina se transformava, tomando um caráter estranho e indefinível; mas calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio do seu platonismo.

 

Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (não sei com que propriedade) o "tombo" da casa comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicação e amizade, a sua situação era ainda a de um simples empregado; o patrão, ingrato e egoísta, pagava-lhe em consideração e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de uma vez, apareceram a Seu José ocasiões de trocar aquele emprego por uma situação mais vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera.

 

III

 

Um dia, tudo mudou de repente. Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe aconselhava o contrário, o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulação, cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta, viu-se obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe atirado pelo destino contra a altivez da Não-me-toques. A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu, deixando a família numa situação embaraçosa.

 

Um verdadeiro deus ex-machina apareceu, então, na figura de Seu José que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se a D. Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão.

 

IV

 

O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova eloquente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade, quando o falecimento da viúva D. Guilhermina veio colocar a filha numa situação difícil... Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a Não-me-toques?

 

Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes era um ato que as circunstâncias impunham... Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Não que Seu José lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno e honrado; estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão mais velho, – e ela, que recusara a mão de tantos doutores, não podia afazer-se a ideia de se casar com ele. Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a Não-me-toques lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus contínuos e impertinentes muxoxos, um dia lhe dissera:

 

– Não sei o que supões que tu és, ou o que nós somos! Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador da minha casa e da minha raça!

 

Tratava-se, por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuação da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe também a continuação da raça. Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe trêmulo, e com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.

 

V

 

Casaram-se. Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José levou à Antonieta um coração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das suas obrigações materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser a única preocupação do seu espírito...

 

Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica: era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido, aliás, até então, o único homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de Não-me-toques. O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silêncio, sem que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.

 

VI

 

Antonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera, e onde ninguém a visitava, porque o seu caráter a incompatibilizara com toda a gente. O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa, atordoando-a com o bulício das primeiras capitais do Velho Mundo.

 

De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas. Começou então uma nova existência para Antonieta, que, não obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne.

 

As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas. Agora já lhe não chamavam a Não-me-toques; ela tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontâneo para cada visita. Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios, escutava-os agora com prazer. 

 

Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico e conseguiu uma entrevista.  – Esse primeiro amante foi prontamente substituído. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos...

 

VII

 

E quando Seu José, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala, deixou esta frase escrita num pedaço de papel:

 

"Enquanto foi solteira, achava minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me."

 

(Correio da Manhã, 12 de outubro de 1902)


Arthur Azevedo domingo, 14 de janeiro de 2018

A MELHOR VINGANÇA (CONTO DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

 

A MELHOR VINGANÇA

Arthur Azevedo

 

 

O Vieirinha namorou durante dois anos a Xandoca; mas o pai dele, quando soube do namoro, fez intervir a sua autoridade paterna.

 

– A rapariga não tem eira nem beira, meu rapaz; o pai é um simples empregado público, que mal ganha para sustentar a família! Foge dela antes que as coisas assumam proporções maiores, porque, se te casares com essa moça, não contes absolutamente comigo – faze de conta que morri, e morri sem te deixar vintém. Tu és bonito, inteligente, e tens a ventura de ser meu filho; podes fazer um bom casamento.

 

Não sei se o Vieirinha gostava deveras da Xandoca; só sei que, depois dessa observação do Comendador Vieira, nunca mais passou pela Rua Francisco Eugênio, onde a rapariga todas as tardes o esperava com um sorriso nos lábios e o coração a palpitar de esperança e de amor.

 

O brusco desaparecimento do moço fez com que ela sofresse muito, pois que já se considerava noiva, e era tida como tal por toda a vizinhança; faltava apenas o pedido oficial.

 

Entretanto, Xandoca, passado algum tempo, começou a consolar-se, porque outro homem, se bem que menos jovem, menos bonito e menos elegante que o Vieirinha, entrou a requestá-la seriamente, e não tardou a oferecer-lhe o seu nome. Pouco tempo depois estavam casados.

 

Dir-se-ia que Xandoca foi uma boa fada que entrou em casa desse homem. Logo que ele se casou, o seu estabelecimento comercial entrou num maravilhoso período de prosperidade. Em pouco mais de dois anos, Cardoso – era esse o seu nome – estava rico; e era um dos negociantes mais considerados e mais adulados da praça do Rio de Janeiro. Ele e Xandoca amavam-se e viviam na mais perfeita harmonia, gozando, sem ostentação, os seus haveres e, de vez em quando, correndo mundo.

 

Uma tarde em que D. Alexandrina (já ninguém a chamava Xandoca) estava à janela do seu palacete, em companhia do marido, viu passar na rua um bêbedo maltrapilho, que servia de divertimento aos garotos, e reconheceu, surpresa, que o desgraçado era o Vieirinha. Ficou tão comovida, que o Cardoso suspeitou, naturalmente, que ela conhecesse o pobre-diabo, e interrogou-a neste sentido.

 

– Antes de nos casarmos, respondeu ela, confessei-te, com toda a lealdade, que tinha sido namorada e noiva, ou quase noiva, de um miserável que fugiu de mim, sem me dar a menor satisfação, para obedecer a uma intimação do pai.

– Bem sei, o tal Vieirinha, filho do Comendador Vieira, que morreu há três ou quatro anos, depois de ter perdido em especulações da bolsa tudo quanto possuía.

– Pois bem - o Vieirinha ali está!

 

E Alexandrina apontou para o bêbado que, afinal, caíra sobre a calçada, e dormia.

 

– Pois, filha, disse o Cardoso, tens agora uma boa ocasião de te vingares!

– Queres tu melhor vingança?

– Certamente, muito melhor, e, se me dás licença, agirei por ti.

– Faze o que quiseres, contanto que não lhe faças mal.

– Pelo contrário.

 

Quando, no dia seguinte, o Vieirinha despertou, estava comodamente deitado numa cama limpa e tinha diante de si um homem de confiança do Cardoso.

 

– Onde estou eu?

– Não se importe. Levante-se para tomar banho!

 

O Vieirinha deixou-se levar como uma criança. Tomou banho, vestiu roupas novas, foi submetido à tesoura e à navalha de uni barbeiro, e almoçou como um príncipe. Depois de tudo isso, foi levado pelo mesmo homem a uma fábrica, onde, por ordem do Cardoso, ficou empregado. Antes de se retirar, o homem que o levava deu-lhe algum dinheiro e disse-lhe:

 

– O senhor fica empregado nesta fábrica até o dia em que torne a beber.

– Mas a quem devo tantos benefícios?

  – A uma pessoa que se compadeceu do senhor e deseja guardar o incógnito.

 

O Vieirinha atribuiu tudo a qualquer velho amigo do pai; deixou de beber, tomou caminho, não é mau empregado, e há de morrer sem nunca ter sabido que a sua regeneração foi uma vingança.

 


Arthur Azevedo domingo, 07 de janeiro de 2018

A MELHOR AMIGA

 

A MELHOR AMIGA

Arthur Azevedo

 

 

I

 

A mais ingênua e virtuosa das esposas, D. Ritinha Torres, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que o marido a enganava, namorando escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer a profissão de modista. Havia muitas manhãs que Venâncio Torres – assim se chamava o pérfido – acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava sua xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Notícias debruçado a uma das janelas da sala de visitas.

 

Como D. Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a vizinha, que o namorava também. A pobre senhora não disse nada: voltou para o quarto, deitou-se de novo, e, à hora do costume, simulou que só então despertava.

 

Tivera até aquela data o marido na conta de um irrepreensível modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um suspiro. Mas, às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Ubaldina de Melo, que se mostrou admiradíssima.

 

– Que é isto? Tu aqui a estas horas! Temos novidade?

– Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me

 

E, deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.

 

– Engana-te? Perguntou a outra, que empalidecera de súbito.

– E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!...

– Oh, Ritinha! Isso é lá possível!...

– Não me disseram: vi; vi com estes olhos que a terra há de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!

– Olha que as aparências enganam...

– E os homens ainda mais que as aparências.

 

O pranto recrudescia.

 

– E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a ..to!

– Que queres tu que te faça? Perguntou D. Ubaldina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada.

– Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o que devo fazer... Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!

– Disseste-lhe alguma coisa?

– A quem?

– A teu marido.

– Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga.

 

  1. Ubaldina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe carinhosamente as mãos, assim falou:

 

– Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu marido engana-te... se é que te engana...

– Engana-me!..

– Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a sério.

– Achas então que...

– Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices do Melo, e digo como dizia a outra: – Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que mo restitua quando se recolher ao lar doméstico. Filosofia no caso!

– Vejo que não sentes por teu marido o mesmo que sinto pelo meu...

 

A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:

 

– Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que, por enquanto, não passa, felizmente, de um namoro sem consequências, poderá um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!

 

– Mas...

– Não há mais nem meio! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás fazer.

– Aceito de bom grado os conselhos, minha amiga, mas não sei se terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.

– Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se extremamente difícil.

 

Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação a cruz do casamento.

 

II

 

Logo que ficou sozinha, D. Ubaldina, que até então a custo se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas. Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio Torres era empregado.

 

– Alô! Alô!

– Quem fala?

– O Sr. Venâncio está?

– Está. Vou chamá-lo.

 

Minutos depois D. Ubaldina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgência. Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão de lágrimas e imprecações.

 

– Que é isto?! Que é isto?! Perguntou, atônito.

–          Sei tudo! Bradou ela. Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte!

 

Venâncio ficou aterrado.

 

– A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse.

 

E, agarrando-o, com impetuosidade:

 

– Ah! Mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?

– Isso é uma invenção tola. Eu não namoro modistas.

–Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal, nunca visto... Afianço-te que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!..

 

Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pôde, as suas madrugadas.

 

  1. Ubaldina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação. Entretanto, ameaçava-o sempre:

 

– Olha que se me constar que... Não te digo mais nada!...

 

Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Ubaldina:

 

– Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga.

 

E desceu.

 

III

 

Oito dias depois, D. Ubaldina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos:

 

"Minha boa amiga. – Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio madrugou nem foi à janela. Queira Deus que isto dure! Como sou feliz! – Tua do coração, Ritinha Torres."


Arthur Azevedo domingo, 31 de dezembro de 2017

A FILOSOFIA DO MENDES

 

A FILOSOFIA DO MENDES

Arthur Azevedo

 

 

Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias altas: não havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato vivendo só, na sua casinha de solteiro, independente e feliz.

 

Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão provocado pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.

 

Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara – ela chamava-se Bárbara – lhe confessou que era casada com um sujeito chamado Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva, ficou horrorizado de si mesmo. Ficou horrorizado, mas era tarde: gostava dela, e não teve forças para fugir-lhe.

 

As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara não ia ter pessoalmente com o Fulgêncio, escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava sem resposta. Essa imprudência teve mau resultado: um dia, Bárbara Mendes entrou em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.

 

– Que é isto?

– Alegra-te! Meu marido, que é muito abelhudo, encontrou debaixo do meu travesseiro a tua última carta e expulsou-me de casa.

– Hein?

– Foi melhor assim: agora sou tua, só tua, e por toda a vida!... Não estás contente?

– Muito...

– Estou te achando assim a modo que...

– É a surpresa... a comoção... a alegria...

– Como vamos ser felizes! Mas olha, peço-te que não te exponhas nestes primeiros tempos... O Mendes é ciumento e brutal, e, mesmo antes de ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revólver!

 

O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói, viveu dali por diante em transes terríveis. Saía de casa o menos possível, e, nas ruas, só andava de tílburi, recomendando aos cocheiros que fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes, punha-se a tremer que nem varas verdes.

 

Um dia, tendo descido de um tílburi no Largo da Carioca, para comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou de repente muito pálido e trêmulo e quis fugir, mas o outro agarrou-o por um braço, dizendo-lhe com muita brandura:

 

– Faça favor... venha cá... não se assuste... não trema... não lhe quero mal... ouça-me... é para o seu bem...

 

O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:

 

– Eu sei que o sr. tem medo de mim que se pela: receia que eu o mate, ou que lhe bata.... Tranquilize-se: não lhe farei o menor mal. Pelo contrário!

 

O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo. As maxilas batiam uma na outra.

– Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão! O Sr. Prestou-me um relevante serviço: livrou-me de Bárbara! E não era meu amigo, sim, porque, em geral, são os amigos que têm a especialidade desses obséquios...

 

O Fulgêncio continuava a tremer.

 

– Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela peste, sou outro homem, vivo mais satisfeito, como com mais apetite, tudo me sabe melhor, e durmo que é um regalo... Aqui entre nós, se o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie de luvas, não faça cerimônia; estou pronto a pagar – não há nada mais justo... Ande desassombradamente por toda a parte... não receie uma vingança, que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder servir para alguma coisa, disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.

 

Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de estar na rua, mas, em pouco tempo, se convenceu de que não podia estar em casa, porque Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes foi o mais feliz dos três.


Arthur Azevedo domingo, 24 de dezembro de 2017

A DOENÇA DO FABRÍCIO

 

A DOENÇA DO FABRÍCIO

Arthur Azevedo

 

 

O Fabrício era amanuense numa repartição pública, e gostava muito da Zizinha, filha única do Major Sepúlveda. O seu desejo era casar-se com ela, mas para isso era preciso ser promovido, porque os vencimentos de amanuense não davam para sustentar família. Portanto, o Fabrício limitava-se à posição de namorado, esperando ansioso o momento em que pudesse ter a de noivo.

 

Um dia, o rapaz recebeu uma carta de Zizinha, participando-lhe que o pai, o Major Sepúlveda, resolvera passar um mês em Caxambu, com a família, e pedindo-lhe que também fosse, pois ela não teria forças para viver tão longe dele. Sorriu ao amanuense a ideia de ficar uma temporada em Caxambu, hospedado no mesmo hotel que Zizinha. Sendo como era, moço econômico, tinha de parte os recursos necessários para as despesas da viagem; faltava-lhe apenas a licença, mas com certeza, o ministro não lha negaria.

 

Enganava-se o pobre namorado. O ministro, a quem ele se dirigiu pessoalmente, perguntou-lhe, de carão fechado:

 

– Para que quer o senhor dois meses de licença?

– Para tratar-me.

– Mas o senhor não está doente!

– Estou, sim, senhor; não parece, mas estou.

– Nesse caso, submeta-se à inspeção de saúde e traga-me o laudo. Só lhe darei a licença sob essa condição.

 

Três dias depois o Fabrício, metido numa capa, com lenço de seda atado em volta do pescoço, a barba por fazer, algodão nos ouvidos, foi à Diretoria Geral de Saúde. O seu aspecto era tão doentio, que o doutor encarregado de examiná-lo disse logo que o viu:

 

– Aqui está um que não engana: vê-se que está realmente enfermo!

 

E, dirigindo-se ao Fabrício:

 

– Que sente o senhor?

 

O Fabrício respondeu com uma voz arrastada e chorosa:

 

– Sinto muitas coisas, doutor; dores pelo corpo, cansaço, ferroadas no estômago, opressão no peito.

– Vamos lá ver isso! Dispa o casaco!

 

O Fabrício pôs-se em mangas de camisa, e o médico auscultou-o.

 

– Não tem tosse?

– Tenho, mas só à noite; não me deixa dormir.

– Bom. Pode vestir o casaco.

 

E o doutor foi escrever o laudo, que entregou ao amanuense. Este, na rua, desdobrou o papel, para ver que espécie de doença lhe arranjara o médico e leu: "Cardialgia sintomática da diátese artrítica."

 

Não imaginem o efeito que lhe produziram essas palavras enigmáticas para ele.

 

–E não é que eu estou mesmo doente? - Pensou o pobre rapaz.

 

Ao chegar em casa, tinha as fontes a estalar. Vieram depois arrepios de frio, a que sucedeu uma febre violenta, e febre foi ela, que durou vinte dias.

O enfermo teve alta justamente quando Zizinha voltava de Caxambu com um noivo arranjado lá.

 

Maldita cardialgia sintomática da diátese artrítica.


Arthur Azevedo domingo, 17 de dezembro de 2017

A DÍVIDA

A DÍVIDA

Arthur Azevedo

 

I

 

Montenegro e Veloso formaram-se no mesmo dia, na Faculdade de Direito de São Paulo. Depois da cerimônia da colação do grau, foram ambos enterrar a vida acadêmica num restaurante, em companhia de outros colegas, e era noite fechada quando se recolheram ao quarto que, havia dois anos, ocupavam juntos em casa de umas velhotas na Rua de São José. Aí se entregaram à recordação da sua vida escolástica, e se enterneceram defronte um do outro, vendo aproximar-se a hora em que deviam separar-se, talvez para sempre. Montenegro era de Santa Catarina, e Veloso, do Rio de Janeiro; no dia seguinte aquele partiria para Santos, e este, para a capital do Império. As malas estavam feitas.

 

–Talvez ainda nos encontremos, disse Montenegro. O mundo dá tantas voltas!

– Não creio, respondeu Veloso. Vais para a tua província, casas-te, e era uma vez o Montenegro.

– Caso-me?! Aí vens tu! Bem conheces as minhas ideias a respeito do casamento, ideias que são, aliás, as mesmas que tu professas. Afianço-te que hei de morrer solteiro.

– Isso dizem todos...

– Veloso, tu conheces-me há muito tempo: já deves estar farto de saber que eu quando digo, digo.

– Pois sim, mas há de ser difícil que em Santa Catarina te possas livrar do conjugo vobis. Na província, ninguém toma a sério um advogado solteiro.

– Enganas-te. Os médicos, sim; os médicos é que devem ser casados.

– Não me engano tal. Na província, o homem solteiro, seja qual for a posição que ocupe, só é bem recebido nas casas em que haja moças casadeiras.

– Quem te meteu essa caraminhola na cabeça?

– Se fosses, como eu, para a Corte, acredito que nunca te casasses; mas vais para o Desterro: estás aqui estás com uma ninhada de filhos. Queres fazer uma aposta?

– Como assim?

– O primeiro de nós que se casar pagará ao outro... Quanto?

– Vê tu lá.

– Deve ser uma quantia gorda.

– Um conto de réis.

– Upa! Um conto de réis não é dinheiro. É preciso que a aposta seja de vinte contos, pelo menos.

– Ó Veloso, tu estás doido? Onde vamos nós arranjar vinte contos de réis?

– O diabo nos leve se aqueles canudos não nos enriquecerem

– Está dito! Aceito! Mas olha que é sério!

– Muito sério. Vai preparando papel e tinta enquanto vou comprar duas estampilhas.

– Sim, senhor! Quero o preto no branco! Há de ser uma obrigação recíproca, passada com todos os efes e erres!

Veloso saiu e logo voltou com as estampilhas.

 

– Senta-te e escreve o que te vou ditar.

 

Montenegro sentou-se, tomou a pena, mergulhou-a no tinteiro, e disse:

 

– Pronto.

 

Eis o que o outro ditou e ele escreveu:

 

"Devo ao Bacharel Jaime Veloso a quantia de vinte contos de réis, que lhe pagarei no dia do meu casamento, oferecendo como fiança desse pagamento, além da presente declaração, a minha palavra de honra."

 

– Agora eu! Disse Veloso, sentando-se:

 

"Devo ao Bacharel Gustavo Montenegro a quantia de vinte contos de réis... etc."

 

As declarações foram estampilhadas, datadas e assinadas, ficando cada um com a sua.

 

No dia seguinte Montenegro embarcava em Santos e seguia para o Sul, enquanto Veloso, arrebatado pelo trem de ferro, se aproximava da Corte.

 

II

 

Montenegro ficou apenas três anos em Santa Catarina, que lhe pareceu um campo demasiado estreito para as suas aspirações: foi também para a Corte, onde o Conselheiro Brito, velho e conhecido advogado, amigo da família dele, paternalmente se ofereceu para encaminhá-lo, oferecendo-lhe um lugar no seu escritório.

 

Chegado ao Rio de Janeiro, o catarinense desde logo procurou o seu companheiro de estudos, e não encontrou da parte deste o afetuoso acolhimento que esperava. Veloso estava outro: em três anos transformara-se completamente. Montenegro veio achá-lo satisfeito e feliz, com muitas relações no comércio, encarregado de causas importantes, morando numa bela casa, frequentando a alta sociedade, gastando à larga.

 

O catarinense, que tinha uma alma grande, sinceramente estimou que a sorte com tanta liberalidade houvesse favorecido o seu amigo; ficou, porém, deveras magoado pela maneira fria e pelo mal disfarçado ar de proteção com que foi recebido.

 

Veloso não se demorou muito em falar-lhe da aposta de São Paulo.

 

– Olha que aquilo está de pé!

– Certamente. A nossa palavra de honra está empenhada.

– Se te casas, não te perdoo a dívida.

– Nem eu a ti.

Os dois bacharéis separaram-se friamente. Veloso não pagou a visita a Montenegro, e Montenegro nunca mais visitou Veloso. Encontravam-se às vezes, fortuitamente, na rua, nos bondes, nos tribunais, nos teatros, e Veloso perguntava infalivelmente a Montenegro:

 

– Então? Ainda não és noivo?

– Não.

– Que diabo! Estou morto por entrar naqueles vinte contos...

 

III

 

Um dia, Montenegro foi convidado para jantar em casa do Conselheiro Brito. Não podia faltar, porque fazia anos o seu venerando protetor, mestre e amigo. Lá foi, e encontrou a casa cheia de gente. Passeando os olhos pelas pessoas que se achavam na sala, causou-lhe rápida e agradabilíssima impressão uma bonita moça que, pela elegância do vestuário e pela vivacidade da fisionomia, se destacava num grupo de senhoras.

 

Era a primeira vez que Montenegro descobria no mundo real um físico de mulher correspondendo pouco mais ou menos ao ideal que formara. Não há mulher, por mais inexperiente, a quem escapem os olhares interessados de um homem. A moça imediatamente percebeu a impressão que produzira, e, ou fosse que por seu turno simpatizasse com Montenegro, ou fosse pelo desejo vaidoso de transformar em labaredas a fagulha que faiscaram seus olhos, o caso é que se deixou vencer pela insistência com que o bacharel a encarava, e esboçou um desses indefiníveis sorrisos que nas batalhas do amor equivalem a uma capitulação. O acordo tácito e imprevisto daquelas duas simpatias foi celebrado com tanta rapidez, que Montenegro, completamente hóspede na arte de namorar, chegou a perguntar a si mesmo se não era tudo aquilo o efeito de uma alucinação. O namoro foi interrompido pela esposa do Conselheiro Brito, que entrou na sala e cortou o fio a todas as conversas, dizendo:

 

– Vamos jantar.

 

À mesa, por uma coincidência que não qualificarei de notável, colocaram Montenegro ao lado da moça. Escusado é dizer que ainda não tinham acabado a sopa, e já os dois namorados conversavam um com o outro como se de muito se conhecessem. Na altura do assado, Montenegro acabava de ouvir a autobiografia, desenvolvida e completa, da sua fascinadora vizinha.

 

Chamava-se Laurentina, mas todas as pessoas do seu conhecimento a tratavam por Lalá, gracioso diminutivo com que desde pequenina lhe haviam desfigurado o nome. Era órfã de pai e mãe. Vivia com uma irmã de seu pai, senhora bastante idosa e bastante magra, que estava sentada do outro lado da mesa, cravando na sobrinha uns olhares penetrantes indagadores. Os pais não lhe deixaram absolutamente nada, além da esmeradíssima educação que lhe deram; mas a tia, que generosamente a acolheu em sua casa, tinha, graças a Deus, alguma coisa, pouca, o necessário para viverem ambas sem recorrer ao auxílio de estranhos nem de parentes. Para não ser muito pesada à tia, Lalá ganhava algum dinheiro dando lições de piano e canto em casas particulares; eram os seus alfinetes.

 

– Fui educada um pouco à americana, acrescentou; saio sozinha à rua sem receio de que me faltem ao respeito, e sou o homem lá de casa. Quando é preciso, vou eu mesma tratar dos negócios de minha tia.

 

E elevando a voz:

 

– Não é assim, titia?

 

– É, minha filha, respondeu do lado oposto à velha, embora sem saber de que se tratava.

 

Lalá era suficientemente instruída, e tinha algum espírito mais que o comum das senhoras brasileiras. Essas qualidades, realmente apreciáveis, tomaram proporções exageradas na imaginação de Montenegro. Este disse também a Lalá quem era, e contou-lhe os fatos mais interessantes da sua vida, exceção feita, já se sabe, da famosa aposta de São Paulo. E tão entretidos estavam Montenegro e Lalá nas mútuas confidências que cada vez mais os prendiam, que nenhuma atenção prestaram aos incidentes da mesa, inclusive os brindes, que não foram poucos.

 

Acabado de jantar, improvisou-se um concerto e depois dançou-se. Lalá cantou um romance de Tosti. Cantou mal, com pouca voz, sem nenhuma expressão, e a Montenegro pareceu aquilo o non plus ultra da cantoria. Dançou com ela uma valsa, e durante a dança apertaram-se as mãos com uma força equivalente a um pacto solene de amor e fidelidade. Ele sentia-se absolutamente apaixonado quando, de madrugada, se encaminhou para casa, depois de fechar a portinhola do carro e magoar os dedos da moça num último aperto de mão.

 

Era dia claro quando o bacharel conseguiu adormecer. Sonhou que era quase marido. Estava na igreja, de braço dado a Lalá, deslumbrante nas suas vestes de noiva. Mas ao subir com ela os degraus do altar, reconheceu na figura do sacerdote, que os esperava de braços erguidos, o seu colega Veloso, credor de vinte contos de réis.

 

IV

 

Nesse mesmo dia, Montenegro estava sozinho no escritório, e trabalhava, quando entrou o Conselheiro Brito.

 

– Bom dia, Gustavo.

– Bom dia, conselheiro.

 

O velho advogado sentou-se e pôs-se a desfolhar distraidamente uns autos; mas, passados alguns minutos, disse muito naturalmente, sem levantar os olhos:

 

– Gustavo, aquilo não te serve.

– Aquilo quê?

– Faze-te de novas! A Lalá.

– Mas...

– Não negues. Toda a gente viu. Vocês estiveram escandalosos. Se tens em alguma conta os meus conselhos, arrepia carreira enquanto é tempo. Tu a conheces?

– Não, senhor; mas encontrei-a em sua casa, e tanto bastou para formar dela o melhor conceito.

–Lá por isso, não, meu rapaz! Eu não fumo, mas não me importa que fumem perto de mim.

– Então ela...?

– Não digo que seja uma mulher perdida, mas recebeu uma educação muito livre, saracoteia sozinha por toda a cidade e não tem podido, por conseguinte, escapar à implacável maledicência dos fluminenses. Demais, está habituada ao luxo, ao luxo da rua, que é o mais caro; em casa arranjam-se ela e a tia sabe Deus como. Não é mulher com quem a gente se case. Depois, lembra-te que apenas começas e não tens ainda onde cair morto. Enfim, és um homem: faze o que bem te parecer.

 

Essas palavras, proferidas com uma franqueza por tantos motivos autorizada, calaram no ânimo do bacharel. Intimamente ele estimava que o velho amigo de seu pai o dissuadisse de requestar a moça, – não pelas consequências morais do casamento, mas pela obrigação, que este lhe impunha, de satisfazer uma dívida de vinte contos de réis, quando, apesar de todos os seus esforços, não conseguira até então pôr de parte nem o terço daquela quantia.

 

Mas o amor contrariado cresce com inaudita violência. Por mais conselhos que pedisse à razão, por mais que procurasse iludir-se a si próprio, Montenegro não conseguia libertar-se da impressão que lhe causara a moça. O seu coração estava inteiramente subjugado. Ainda assim, lograria, talvez, vencer-se, se, vinte dias depois do seu encontro com Lalá, esta não lhe escrevesse um bilhete que neutralizou todos os seus elementos de reação.

 

"Doutor. – Sinto que o nosso romance o enfastiasse tanto, que o senhor não quisesse ir além do primeiro capítulo. Entretanto, não imagina como sofro por não saber os motivos que atuaram no seu espírito para interromper tão bruscamente... a leitura. Diga-me alguma coisa, dê-me uma explicação que me tranquilize ou me desengane. Esta incerteza mata-me. Escreva-me sem receio, porque só eu abro as minhas cartas. – Lalá."

 

A primeira ideia de Montenegro foi deixar a carta sem resposta, e empregar todos os meios e modos para esquecer-se da moça e fazer-se esquecer por ela; refletiu, porém, que não poderia justificar o seu procedimento, se recusasse a explicação com tanta delicadeza solicitada. Resolveu, portanto, responder a Lalá com um desengano categórico e formal, e mandou-lhe esta pílula dourada:

 

"Lalá. – Deus sabe quanto eu a amo e que sacrifício me imponho para renunciar à ventura e à glória de pertencer-lhe; mas um motivo imperioso existe, que se opõe inexoravelmente à nossa união. Não me pergunte que motivo é esse; se eu 1ho revelasse, a senhora achar-me-ia ridículo. Basta dizer-lhe que a objeção não parte de nenhuma circunstância a que esteja ligada sua pessoa; parte de mim mesmo, ou antes, da minha pobreza. Adeus, Lalá; creia que, ao escrever-lhe estas linhas, sinto a pena pesada como se estivessem fundidos nela todos os meus tormentos. – G. M."

 

– Que conselho me dá vossemecê? Perguntou Lalá à sua tia, depois de ler para ela ouvir a carta de Montenegro.

– O conselho que te dou é tratares de arranjar quanto antes uma entrevista com esse moço, e entenderes-te verbalmente com ele. Isto de cartas não vale nada. Ele que te diga francamente qual é o tal motivo... e talvez possamos remover todas as dificuldades. Não percas esse marido, minha filha. O Doutor Montenegro é um advogado de muito futuro; pode fazer a tua felicidade.

 

No dia seguinte Montenegro recebeu as seguintes linhas:

 

"Amanhã, quinta-feira, às duas horas da tarde, tomarei um bonde no Largo da Lapa, porque vou dar uma lição na Rua do Senador Vergueiro. Esteja ali por acaso, e por acaso tome o mesmo bonde que eu e sente-se ao pé de mim. Recebi a sua carta; é preciso que nos entendamos de viva voz. – Lalá."

 

O tom desse bilhete desagradou a Montenegro. Quem o lesse diria ter sido escrito por uma senhora habituada a marcar entrevistas. Entretanto, à hora aprazada o bacharel achou-se no Largo da Lapa. Recuar seria mostrar uma pusilanimidade moral, que o envergonharia eternamente. Depois, como ele possuía todas as fraquezas do namorado, deixou-se seduzir pela provável delícia dessa viagem de bonde. Quando o veículo parou no Largo do Machado, Lalá sabia já qual o motivo pecuniário que se opunha ao casamento. Ouvira sem pestanejar a confissão de Montenegro.

 

– O motivo é grave, disse ela; o Doutor Veloso tem a sua palavra de honra, e o senhor não pode mudar de estado sem dispor de uma soma relativamente considerável; mas... eu sou mulher e talvez consiga...

– O quê? Perguntou Montenegro sobressaltado.

– Descanse. Sou incapaz de cometer qualquer ação que nos fique mal. Separemo-nos aqui. Eu lhe escreverei.

 

Lalá estendeu a mão enluvada que Montenegro apertou, desta vez sem lhe magoar os dedos. Ele apeou-se e galgou o estribo de outro bonde que partia para a cidade.

 

– Já está pago, disse o condutor a Montenegro quando este lhe quis dar um níquel.

 

O bacharel voltou-se para verificar quem tinha pago por ele, e deu com os olhos em Veloso, que lhe disse de longe, rindo-se:

 

– Foi por conta daqueles vinte, – sabes?

– Reza-lhes por alma! Bradou Montenegro, rindo-se também.

 

V

 

Esse "reza-lhes por alma" queria dizer que Montenegro voltara desencantado do seu passeio de bonde. Lalá parecera-lhe outra, mais desenvolta, mais americana, completamente despida do melindroso recato que é o mais precioso requisito da mulher virgem. Ele deixou-se convencer de que a moça, depois de ouvir a exposição franca e leal das suas condições de insolvabilidade, desistira mentalmente de considerá-lo um noivo possível, dizendo por dizer aquelas palavras "talvez eu consiga", palavras à-toa, trazidas ali apenas para fornecer o ponto final a um diálogo que se ia tornando penoso e ridículo.

 

Montenegro fez ciente do seu desencanto ao Conselheiro Brito, que lhe deu parabéns, e daí por diante, só se lembrou de Lalá como de uma bonita mulher de quem faria com muito prazer sua amante, mas nunca sua esposa. Desaparecera completamente aquele doce enlevo causado pela primeira impressão. O "reza-lhes por alma" saiu-lhe dos lábios com a impetuosidade de um grito da consciência. A desilusão foi tão pronta como pronto havia sido o encanto. Fogo de palha.

 

VI

 

Entretanto, mal sabia Montenegro que Lalá concebera um plano extravagante e o punha em prática enquanto ele, tranquilo e despreocupado, imaginava que ela o houvesse posto à margem. Depois de aconselhar-se com a tia, que não primava pelo bom senso, a professora de piano e canto encheu-se de decisão e coragem, foi ter com o Doutor Veloso no seu escritório e disse-lhe que desejava dar-lhe duas palavras em particular. A beleza de Lalá deslumbrou o advogado, e, como este era extremamente vaidoso, viu logo ali uma conquista amorosa em perspectiva.

 

–Tenha a bondade de entrar neste gabinete, minha senhora.

 

Lalá entrou, sentou-se num divã, e contou ao Doutor Veloso toda a sua vida, repetindo, palavra por palavra, o que dissera a Montenegro durante o jantar do Conselheiro Brito. Admirado de tanta loquacidade e de tanto espírito, Veloso perguntou-lhe, terminada a história, em que poderia servi-la.

 

– Sou amada por um homem que é digno de mim, e o nosso casamento depende exclusivamente do doutor.

– De mim?

– A minha ventura está nas suas mãos. Custa-lhe apenas vinte contos de réis. Não quero crer que o doutor se negue a pagar por essa miserável quantia a felicidade... de uma órfã.

– Não compreendo.

– Compreenderá quando eu lhe disser que o homem por quem sou amada é o seu amigo e colega Doutor Gustavo Montenegro.

– Ah! Ah!...

– Escusado é dizer que ele ignora absolutamente a resolução, que tomei, de vir falar-lhe.

– Acredito.

– Qual é a sua resposta?

– Minha senhora, balbuciou Veloso, sorrindo; eu tenho algum dinheiro, tenho... mas perder assim vinte contos de reis...

– Recusa?

 

– Não, não recuso; mas peço algum tempo para refletir. Depois de amanhã venha buscar a resposta.

 

A conversação continuou por algum tempo, e Veloso começou a sentir pela moça a mesmíssima impressão que ela causara a Montenegro. Lalá notou o efeito que produzia, e pôs em distribuição todos os seus diabólicos artifícios de mulher astuta e avisada.

 

– Feliz Gustavo!

– Feliz... por quê?

– É amado!

– Oh! Não vá agora supor que ele me inspirasse uma paixão desenfreada!

– Ah!

– É um marido que me convém, isso é; mas se o doutor não abrir mão da dívida, e ele não se puder casar, não creia que eu me suicide!

 

Ouvindo esta frase, Veloso adiantou-se tanto, tanto, que, dois dias depois, quando Lalá foi saber a resposta, ele recebeu-a com estas palavras:

 

– Não!... Se eu abrisse mão dos vinte contos, ele seria seu marido, e...

– E...?

– E eu... tenho ciúmes.

 

No dia seguinte ele era apresentado à tia, manejo aconselhado pela própria velha.

 

– Este é mais rico, mais bonito e até mais inteligente que o outro... Não o deixes escapar, minha filha!

 

A verdade é que Veloso não se introduziu em casa de Lalá com boas intenções; mas a esperteza da moça e as indiscrições do advogado determinaram em breve uma situação de que ele não pôde recuar. Imagine-se a surpresa de Montenegro quando lhe anunciaram o casamento de Lalá com o seu colega, e a indignação que dele se apoderou quando por portas travessas veio ao conhecimento do modo singular por que fora ajustado esse consórcio imprevisto.

 

VII

 

No dia seguinte ao do casamento, estava Montenegro no escritório, quando recebeu um cheque de vinte contos de réis, enviado pelo marido de Lalá.

 

– Não acha que devo devolver este dinheiro? Perguntou ele ao Conselheiro Guedes.

– Não; mas não o gastes; afianço-te que terás ocasião mais oportuna para devolvê-lo.

 

E assim foi.

 

A lua-de-mel não durou dois meses. Os dois esposos desavieram-se e logo se separaram judicialmente. Ele voltou à vida de solteiro e ela tornou para casa da tia. Um dia, Montenegro encontrou-a num armarinho da Rua do Ouvidor, e tais coisas lhe disse a moça, tais protestos fez e tão arrependida se mostrou de o haver trocado pelo outro, que dois dias depois ela entrava furtivamente em casa dele. Nesse mesmo dia o desleal Veloso recebeu uma cartinha concebida nos seguintes termos:

 

"Doutor Veloso. – Devolvo-lhe intacto o incluso cheque de vinte contos de réis, porque a dívida que ele representa é uma estudantada imoral, sem nenhum valor jurídico. – Gustavo Montenegro."


Arthur Azevedo domingo, 10 de dezembro de 2017

A CONSELHO DO MARIDO

 

A CONSELHO DO MARIDO

Arthur Azevedo

 

 

Estamos a bordo de um grande paquete da Messagéries Maritimes, em pleno Atlântico, entre os dois hemisférios. Dois passageiros, que embarcaram no Rio de Janeiro, um de quarenta e outro de vinte e cinco anos, conversam animadamente, sentados ambos nas suas cadeiras de bordo.

 

– Pois é como lhe digo, meu amiguinho! – Dizia o passageiro de quarenta anos – o homem, todas as vezes que é provocado pela mulher, seja a mulher quem for, deve mostrar que é homem! Do contrário, arrisca-se a uma vingança! O caso da mulher de Putifar reproduz-se todos os dias!

– E se o marido for nosso amigo?

– Se o marido for nosso amigo, maior perigo corremos fazendo como José do Egito.

– O que você está dizendo é simplesmente horrível!

– Talvez, mas o que é preferível: ser amante da mulher de um amigo sem que este o saiba, ou passar aos olhos dele por amante dela sem o ser, em risco de pagar com a vida um crime que não praticou?

– Acha então que temos o direito sobre a mulher do próximo...?

– Desde que a mulher do próximo nos provoque. Se o próximo é nosso amigo, paciência! Não se casasse com uma mulher assim! Olhe, eu estou perfeitamente tranquilo a respeito da Mariquinhas! Trouxe-a comigo nesta viagem porque ela quis vir; se quisesse ficar no Rio de Janeiro, teria ficado e eu estaria da mesma forma tranquilo.

– Mas o grande caso é que se um dia algum dos seus amigos...

– Desse susto não bebo água. Já um deles pretendeu conquistá-la... chegou a persegui-la.... Ela foi obrigada a dizer-mo para se ver livre dele... Dei um escândalo! Meti-lhe a bengala em plena Rua do Ouvidor!

 

Dizendo isto, o passageiro de quarenta anos fechou os olhos, e pouco depois deixava cair o livro que tinha na mão: dormia. Dormia, e aqueles sonos de bordo, antes do jantar, duravam pelo menos duas horas.

 

O passageiro de vinte e cinco anos ergueu-se e desceu ao compartimento do paquete onde ficava o seu camarote.

 

Bateu levemente à porta. Abriu-lhe uma linda mulher que se lançou nos seus braços. Era a Mariquinhas.

 

–Então? – Perguntou ela – consultaste meu marido?

– Consultei...

– Que te disse ele?

– Aconselhou-me a que não fizesse como José do Egito. Amigos, amigos, mulheres à parte.

E o passageiro de vinte e cinco anos correu, cautelosamente, o ferrolho do camarote.


Arthur Azevedo domingo, 03 de dezembro de 2017

O ASA NEGRA

 

O ASA-NEGRA

Arthur Azevedo

 

 

Quando, em 185..., poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara.

A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica. Só algumas horas mais tarde, pôde acudir ao chamado; mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara.

 

O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis consequências, não só da inépcia das mulheres que assistiram a sua mãe, como do falecimento desta. Era aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio.

 

* * *

 

Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível afastou-o logo desse causador involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço. Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não encontrava defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmatoadas estúpidas do mestre-escola. Isto acontecia diariamente.

 

O mestre, afinal, cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem instrução, não tendo achado no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da inteligência medíocre. Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comércio.

 

Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática faria o resto. Dentro de algum tempo, o menino, que já contava dezesseis anos, deveria entrar, corno ajudante de guarda-livros, para certo escritório de comissões; mas, oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor.

 

Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprazado, em casa do futuro patrão.

 

– Cá estou eu.

– Quem é você?

– O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.

– Ah! Sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa.

 

E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.

 

– Ah! Murmurou despeitado o infeliz alcantarense.

 

O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.

 

* * *

 

Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria pelas ruas de S. Luís. Andava maltrapilho e quase descalço. Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde.

Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra possível. Diariamente, lhe chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.

 

Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra.

 

* * *

 

Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina. Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napeias de Rubens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas dentadas de um gigante.

 

Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve, coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.

 

Infelizmente assim não sucedeu.

 

Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não lhe indagava das forças. As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara com a aurea mediocritas relativa do condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas.

 

De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte.

 

* * *

 

Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano. Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético, espumante; mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente. O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos.

 

Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido. Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho. Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até então de si.

 

O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido. Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda a família.

 

Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas da Baía de São Marcos.

 

* * *

 

Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela Baia de São Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha ermida solitária. Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina. No Maranhão, as paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio: têm também olhos.

 

* * *

 

Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente nas águas negras da baía, esperam-no os braços roliços da viúva do doido. Embarcou. Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu serviço.

 

* * *

 

Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até então se conservara plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em três minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique.

 

– Cada um cuide de si! Bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heroico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.

 

Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer... A embarcação submergiu-se. O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera. Debalde!

 

Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona d'água, chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua mão encontrou alguma coisa fria. Muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi arremessado à praia...

 

O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.


Arthur Azevedo domingo, 26 de novembro de 2017

A AMA-SECA

 

A AMA-SECA

Arthur Azevedo

 

O Romualdo, marido de D. Eufêmia, era um rapaz sério, lá isso era, e tão incapaz de cometer a mais leve infidelidade conjugal como de roubar o sino de São Francisco de Paula; mas – vejam como o diabo as arma! Um dia D. Eufêmia foi chamada, a toda a pressa, a Juiz de Fora, para ver o pai que estava gravemente enfermo, e como o Romualdo não podia naquela ocasião deixar a casa comercial de que era guarda-livros (estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a senhora acompanhada pelos três meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca deste último, que era ainda de colo.

 

Foi a primeira vez que o Romualdo se separou da família. Custou-lhe muito, coitado, e mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana, D. Eufêmia lhe escreveu, dizendo que o velho estava livre de perigo, mas a convalescença seria longa, e o seu dever de filha era ficar junto dele um mês pelo menos.

 

O Romualdo resignou-se. Que remédio!...

 

Durante os primeiros tempos saía do escritório e metia-se em casa, mas no fim de alguns dias, entendeu que devia dar alguns passeios pelos arrabaldes, hoje este, amanhã aquele. Era um meio, como outro qualquer, de iludir a saudade.

 

Uma noite, coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo tomou o bonde do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora.

 

Nessa noite fatal a virtude do Romualdo deu em pantanas: tencionando ele ir até o fim da linha, como fazia todas as noites, apeou-se na Rua Mariz e Barros, ali pelas alturas da Travessa de São Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças antes.

 

E ele viu, à luz de um lampião, o vulto dela saltitante e esquivo, e apressou o passo para apanhá-la, o que conseguiu facilmente, porque, pelos modos, ela já contava com isso.

– Boa noite!

– Boa noite.

– Como se chama?

– Antonieta.

– Pode dar-me uma palavra?

– Por que não falou no bonde?

– Era impossível... estava tanta gente... e estes elétricos são tão iluminados.

– Mas o sinhô bolinou que não foi graça! Vamos, diga: que deseja?

– Desejo saber onde mora.

– Não tenho casa minha; tou empregada numa famia ali mais adiente, por siná que não stou satisfeita, e ando procurando outra arrumação.

– Onde poderemos falar em particular?

– Não sei.

– Você sai amanhã à noite?

– Amanhã não, porque saí hoje, e não quero abusá.

– Então, depois de amanhã?

– Pois sim.

– Onde a espero?

– Onde o sinhô quisé.

– Na Praça Tiradentes, no ponto dos bondes. Às oito horas.

– Na porta do armazém do Derby?

– Isso!

– Tá dito! Inté depois d'amanhã às oito hora.

– Não falte!

– Não farto não!

 

No dia seguinte, o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritório, que era useiro e vezeiro nessas cavalarias... baixas, e o camarada levou a condescendência ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha preparado adrede para os contrabandos do amor.

 

Antonieta foi pontual; à hora marcada lá estava à porta do Derby, com ares de quem esperava o bonde.

 

O Romualdo aproximou-se, fez um sinal, afastou-se e ela seguiu-o...

 

Dez dias depois, estava ele arrependidíssimo da sua conquista fácil, e com remorsos de haver enganado D. Eufêmia, aquela santa! Procurava agora meios e modos de se ver livre da mulata, cuja prosódia era capaz de lançar água na fervura da mais violenta paixão.

 

Vendo que não podia evitá-la, tomou o Romualdo a deliberação de fugir-lhe, e uma noite deixou-a à porta do ninho, esperando debalde por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido dar-lhe um anel, justamente nessa noite.

 

– Diabo! Pensou ele, Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel!

 

Voltou, afinal, D. Eufêmia de Juiz de Fora. Veio no trem da manhã, inesperadamente, e já não encontrou o marido em casa.

 

Estava furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estação da Barra. Podia ser que não fosse de propósito. O mais certo, porém, era o ter sido desencaminhada por um sujeito que vinha no trem a namorá-la desde Paraibuna.

 

Quando D. Eufêmia contou isso ao marido, acrescentou indignada:

 

– Que homens sem-vergonha!... Não podem ver uma mulata!...

 

O Romualdo perturbou-se, mas disfarçou, perguntando:

– E agora? E preciso anunciar! Não podemos ficar sem ama-seca!

– Já mandei o Zeca pôr um anúncio no Jornal do Brasil.

No dia seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar para casa, a primeira coisa que perguntou à senhora foi:

 

– Então? Já temos ama-seca?

– Já; é uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de sapeca. Chama-se Antonieta.

– Hem? Antonieta?

– Que tens, homem?

– Nada; não tenho nada... E jeitosa?... Tem cara de sapeca?... Manda-a embora! Não serve! Nem quero vê-la!...

– Ora essa! Por quê? Olha, ela aí vem.

Antonieta chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo; mas o Romualdo tinha fechado os olhos, dizendo consigo:

– Que escândalo!... Rebenta a bomba!... Este diabo vai reclamar o anel!

 

Mas, como nada ouvisse, o mísero abriu os olhos e – oh! Milagre! – Era outra Antonieta!

 

Ele pensou, os leitores também pensaram que fosse a mesma; não era.

 

Decididamente, há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres.


Arthur Azevedo domingo, 19 de novembro de 2017

TREZENOS E QUARENTA E CINCO

TREZENTOS E 45

Arthur Azevedo

 

 

– És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque decididamente não te sabes governar!

– Exageras, nhanhã!

– Não! Não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é cega: cego és tu!

– Já vês que a culpa não é minha...

– Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!

– Mas também não me desarranjei...

– Para seres promovido a 1º Oficial da tua Repartição, foi preciso que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.

– Fizeste mal.

– Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!

– Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que estás enganada, nhanhã.

– Deveras?

– Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la ao ministro, este disse-me: "Não era preciso que sua senhora se incomodasse: o decreto estava lavrado."

– Pois sim! Isso disse ele... E quando o decreto estivesse, efetivamente, lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se és tão caipora!

– Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim... Pelo menos tive uma grande felicidade na vida!

– Qual foi, não me dirás?

– A de ter casado contigo...

 

Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e, naquele dia, as suas impertinências habituais não foram mais longe.

 

* * *

 

O pobre Reginaldo – assim se chamava o marido – habituara-se, de muito, àquelas recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e paciência. Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, – não era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em ostentação: era isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.

 

* * *

 

Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava. Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à casa, e, no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto que, à viva força, lhe queria impingir um bilhete de loteria, – uma grande loteria de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.

 

Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava insistindo; mas, de repente, lhe acudiu a ideia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.

 

* * *

 

Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa extraorçamentária, não teria a sua aprovação; mas, que querem? – O pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a consciência quando não contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede. Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:

 

- Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso...! Aí está! Dez mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!... E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos. Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.

 

Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.

 

– Número 345! Exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinquenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?

 

Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.

 

– 345! Pois isto é lá número que se compre!

– Agora não há remédio.

– Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.

– Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra!

– Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!

– Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria não se trocam...

– Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e eu tenho muita sorte!

 

Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete. Desta vez, o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia ficar satisfeita. Não ficou:

 

– Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes.. – Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345...

 

* * *

 

Pois, senhores, no dia seguinte o nº 38788 saiu branco, e o nº 345 foi premiado com a sorte grande.

 

* * *

 

Imagine-se o desespero de nhanhã:

 

– Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?

– Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha...

– Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado grosso!

– Ora essa!

– Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!

– Olha que eu pego na palavra...

– Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!...

– Absurdo aconselhado por ti...

– Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!

– Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!...

 

A boas horas vêm esses protestos de energia! E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: "Cem contos de réis"! Nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.

 

* * *

 

Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e disse-lhe com muito carinho:

– Sossega. Eu fiz uma coisa... mas vê lá! Não ralhes comigo...

– Que foi?

– Não troquei o bilhete!

– Não trocaste o bilhete? – Gritou nhanhã, erguendo-se de um salto, com os olhos muito abertos.

– Não! Pois eu faria lá essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!

– Compraste então o outro bilhete?

– Comprei...

– Nesse caso... estamos ricos?

– Temos cem contos.

– Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!

– Qual! Eu continuo a ser o rei dos caiporas.

– Não digas isso!

– Digo, porque se o não fosse, o número 38788, teria apanhado a sorte imediata...

 


Arthur Azevedo domingo, 12 de novembro de 2017

SABINA


Arthur Azevedo domingo, 05 de novembro de 2017

PIPI

 


Arthur Azevedo domingo, 29 de outubro de 2017

VI-TÓ-ZÉ-MÉ

 


Arthur Azevedo domingo, 22 de outubro de 2017

O TINOCO


Arthur Azevedo domingo, 15 de outubro de 2017

DOIS VELHOS


Arthur Azevedo domingo, 08 de outubro de 2017

EPISÓDIO DE VIAGEM

 

 


Arthur Azevedo domingo, 01 de outubro de 2017

O CUSCUZ

 

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Arthur Azevedo domingo, 24 de setembro de 2017

A FREIRA

 


Arthur Azevedo domingo, 17 de setembro de 2017

AQUELE MULATINHO

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Arthur Azevedo domingo, 10 de setembro de 2017

O GOMES


Arthur Azevedo domingo, 03 de setembro de 2017

INCRUENTO

 


Arthur Azevedo domingo, 27 de agosto de 2017

UMA AMIGA


Arthur Azevedo domingo, 20 de agosto de 2017

CARTAS ANÔNIMAS, CONTO DE ARTHUR AZEVEDO, ESCRITOR MARANHENSE


Arthur Azevedo domingo, 13 de agosto de 2017

O DOIDO


Arthur Azevedo domingo, 06 de agosto de 2017

RECORDAÇÃO


Arthur Azevedo domingo, 30 de julho de 2017

CORREIO DE ALÉM-TÚMULO


Arthur Azevedo domingo, 23 de julho de 2017

O HOLOFOTE


Arthur Azevedo segunda, 17 de julho de 2017

AS PÍLULAS

(Do livro Contos Ephemeros)

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Arthur Azevedo domingo, 02 de julho de 2017

O CUSTODINHO

(Do livro Contos Ephemeros)


Arthur Azevedo domingo, 18 de junho de 2017

A BERLINDA

(Do livro contos Ephemeros)


Arthur Azevedo domingo, 11 de junho de 2017

TEUS OLHOS

 

(Do livro Contos Ephemeros)

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Arthur Azevedo domingo, 04 de junho de 2017

POETAS


Arthur Azevedo domingo, 28 de maio de 2017

OS CHARUTOS

(Do livro Contos Ephemeros)

 


Arthur Azevedo domingo, 21 de maio de 2017

INCÊNDIO NO POLYTEAMA

(Do livro Contos Ephemeros)

 


Arthur Azevedo domingo, 14 de maio de 2017

O NÚMBARO (CONTO DO ESCRITOR MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

Do livro Contos Ephemeros)

 

 

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Arthur Azevedo domingo, 07 de maio de 2017

JOÃO SILVA (CONTO DO ESCRITOR MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

JOÃO SILVA

Arthur Azevedo

 

Em casa do comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.

 

Quando digo "todos", não digo a verdade, porque o vizinho não era completamente estranho à srta. Sara, filha única do aludido comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.

 

Conquanto não fosse precisamente um Adônis, esse desconhecido começava a impressionar o seu   espírito   de   moça,   até   então   despreocupado   e   tranquilo,   quando   certa   manhã   os   sons maviosos de uma flauta atraíram a sua atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho   que,   sentado   num   banco   de   ferro,   sob   uma   velha   latada   de   maracujás,   soprava   o sugestivo   instrumento  de Pã,  o  mesmo  indivíduo   cujos  olhares  a  perseguiam  na  rua  ou  no teatro.

 

Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus leitores. Não, a srta. Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso é que a   filha   do   comendador   Freitas   não   fez   a   esse   respeito   a   menor   confidência    a nenhuma   pessoa   da   casa, e   esta   reserva   era, talvez, o   prenúncio   de   um   sentimento   mais decisivo.

 

Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos.

 

A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo, poupando apenas a latada de maracujás. Pouco a pouco, sozinho, sem o auxílio de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.

 

Ás nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funções de criado de quarto, copeiro, cozinheiro, vinha chamá-lo para almoçar. Depois do almoço ele saía, esperava o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais a via senão no dia seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.

 

Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificação aquele gênero de vida, mas não!  Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda a gente em casa do comendador Freitas perdia-se em conjecturas.

 

O que havia de mais singular na existência daquele moço era, talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicável.

 

O comendador tinha-o na conta de um misantropo, enfezado contra a sociedade: na opinião de d. Andreza, sua esposa, era um viúvo inconsolável. D. Irene, irmã de d. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opinião, e divergiam todos uns os outros.

 

O copeiro quis certificar-se da verdade interrogando o preto velho, mas este a todas as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.

 

Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do comendador Freitas.

 

Da janela do seu quarto, a srta. Sara podia namorá-lo, sem ser vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo d. Irene, que via mosquitos na lua.

 

Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de modular na flauta uma enternecedora melopeia, mostrou à srta. Sara um objeto que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara, Era uma pedra, envolta num pedaço papel, em que vinha uma declaração de amor redigida em termos respeitosos.

 

A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.

 

E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da chácara para o quintal, do quintal para a chácara, aproximando um do outro aqueles dois corações separados por um muro.

 

Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!

 

O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da srta. Sara, se esta se sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.

 

Um velho amigo do comendador, o comandante Pedroso, oficial de Marinha reformado, padrinho de batismo da srta.  Sara, infalível aos domingos na Fábrica das Chitas, havia se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista.

 

Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações que concordavam inteiramente com o que já sabia a srta. Sara.

 

– É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar desdenhoso; não tem onde cair morto!

 

Mas acrescentou:

– Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau rapaz, nem mau funcionário.

 

Essas informações fizeram com que dali por diante o vizinho deixasse de ser objeto de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a srta. Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.

 

  1. Andreza, que desejava ser sogra de um príncipe, caiu das nuvens, zangou-se, bateu o pé, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou a filha a acabar com "essa pouca-vergonha", pois do contrário o pai mandaria dar uma tunda de pau no tal patife!

 

  1. Irene, a quem d. Andreza transmitiu a confidência que recebera, ficou furiosa, e aconselhou a irmã que contasse tudo ao marido. A outra assim fez.

 

O comendador Freitas, para quem a vida de família correra até então sem o menor incidente desagradável, e que não estava, portanto, preparado para essa crise doméstica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escândalo com que se regalou a vizinhança.

 

Esse tratamento desabrido fez com que despertassem na srta. Sara instintos de revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em paixão indômita e violenta – tão violenta que a moça adoeceu.

 

Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepaguá, onde alugou um sítio.

 

Foi em Jacarepaguá que o comandante Pedroso, aparecendo um belo domingo em que a convalescente devia fugir de casa – pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela –, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de São Paulo. O rapaz voltara da Europa e vira, num teatro, a srta. Freitas. Sabendo que ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse à família.

– Esse casamento seria uma felicidade, disse o comendador; mas, infelizmente, a pequena continua apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!

 

– Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela... verá como a decido a aceitar o paulista!

 

– Você!

 

– Eu, sim!

 

– Duvido!

 

– Não custa nada experimentar. Oh, Sarita, vem cá, minha filha! Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!

 

E voltando-se para os compadres:

 

– Façam favor de não interromper a nossa conferência!

 

O padrinho fechou-se na sala com a afilhada, e tão persuasivo foi, que um quarto de hora depois – um quarto de hora apenas! – Saíram ambos muito contentes. A srta. Sara parecia outra!

 

A estupefação foi geral.

– Conseguiste alguma coisa? – Perguntou o pai ao padrinho.

 

– Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada.

 

O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, à entrada do sitio.

 

Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o flautista!

 

O comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; d. Andreza e d. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força dos seus pulmões:

 

– Este é o senhor Pedro Linhares!

 

Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas palavras:

 

– Senhor comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Sarita desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de combinação com o meu amigo aqui presente...

 

E apontou para o comandante, que sorriu.

 

– ... me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilância paterna, dona Sarita deveria fugir deste sítio em companhia de João Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e vem pedi-la em casamento.

 

A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro não confia em si.

 

(Do livro Contos Cariocas)

 

 


Arthur Azevedo domingo, 30 de abril de 2017

A TIA ANINHA

A TIA ANINHA

Arthur Azevedo 

 

Ainda há poucos anos, havia, numa das capitais do Norte, uma velhinha pobre, paupérrima que não mendigava, mas aceitava o agasalho que lhe davam algumas famílias compassivas, passando um mês aqui, outro ali, quinze dias acolá. Uma bela manhã chegava com sua lata de folha (tudo quanto possuía) e aboletava-se entre afagos e sorrisos de boa-vinda.

– Seja bem aparecida, tia Aninha! O seu quarto lá está, tem sua cama preparada! Mas desta vez demore-se mais tempo: você a ninguém incomoda nesta casa, nem aumenta a despesa: fique o tempo que quiser.

Mas a tia Aninha, quando suspeitava que a sua presença ia se tornando aborrecida, levantava o voo e partia, com a sua lata de folha, para alojar-se noutra parte.

Era uma velhinha alegre, mas de uma alegria que nenhum observador experimentado acharia natural e sincera.

As crianças adoravam-na, porque ela sabia contar-lhes muitas histórias bonitas de fadas e lobisomens – e aí está um dos motivos por que a tia Aninha, depois de prolongada ausência, era sempre bem recebida, com a sua lata de folha.

*

Foi numa dessas casas hospitaleiras que a encontrei um dia (antes a não encontrasse!), rodeada de fedelhos boquiabertos e ofegantes. Interessou-me aquele rosto enrugado e macilento, em que julguei descobrir vestígios de um passado cheio de peripécias e vicissitudes.

A velha boêmia simpatizou comigo, pelo que, aliás nenhum merecimento me atribui, porque ela – coitadinha! – simpatizava com toda a gente. Nas suas palavras, nos seus gestos e nos seus olhares, que brilhavam ainda através de duas pequeninas frestas esquecidas entre as pálpebras, nunca ninguém descobriu a menor prevenção contra pessoa alguma.

Não pertencia ao tipo, muito comum no Brasil e creio que em toda a parte, da velha parasita, que anda de lar em lar, de alcova a alcova, trazendo e levando enredos, novidades e mexericos, dando fé do que se passa em casa de Fulano para chalrar em casa de Beltrano, adulando as donas e seduzindo as donzelas, embiocada e devotada.

Como lhe mentissem, dizendo que eu era romancista, a tia Aninha me declarou, sorrindo, que a sua vida tinha sido um verdadeiro romance, e essa declaração me levou (antes não levasse!) a revolver aquelas cinzas, curioso de se embaixo delas crepitavam ainda as derradeiras brasas.

Crepitavam; mas a história da tia Aninha era vulgaríssima, sem incidentes excepcionais nem grandes lances e surpresas do acaso. Se ela imaginava que aquilo daria um romance, não fazia mais do que fazem todos os indivíduos para quem o mundo não foi um mar de rosas. Não há criatura infeliz que não esteja persuadida que da sua existência se faria a mais interessante das novelas.

Nascera a tia Aninha pouco depois da Independência. Era filha única de um negociante português, sofrivelmente apatacado. A sua vida correu pacifica e serena até os vinte anos. Foi nessa idade que o seu coração falou: ela apaixonou-se por um caixeiro do pai.

A mãe que desejava ser sogra de um príncipe, descobrindo um dia esses amores, que aliás duravam, havia já dois anos, foi ter com o marido e disse-lhe tudo.

O negociante enfureceu-se; pôs imediatamente no andar da rua o mísero subalterno que se atrevia a levantar os olhos tão alto, e andou por o todo bairro comercial a pedir de porta em porta que ninguém o arrumasse. O rapaz ficou, portanto, incompatibilizado com a praça, e resolveu partir para o Rio de Janeiro, procurando no Sul a fortuna que lhe fugia no Norte. Partiu.

Partiu, mas antes disso, prometeu, por intermédio de uma boa amiga da moça, guardar-lhe fidelidade, e voltar um dia, quando melhorasse de posição, e de haveres, para casar-se com ela.

Prometeu igualmente escrever-lhe por todos os correios, promessa que cumpriu, graças ainda ao gracioso intermédio da amiga, que recebia as cartas, embora endereçadas à tia Aninha.

Isto passava-se em 1844. Durante dois anos vieram cartas por todos os correios. Nas penúltimas, o moço queixava-se, em caracteres trêmulos, de que se sentia muito enfermo, e nas últimas que eram lacônicas, escritas sob um esforço violento e visível já não falava um doente, mas um moribundo. "Talvez seja esta a minha última carta", escreveu ele um dia – e a moça não recebeu mais nenhuma.

Dois ou três meses depois, o pai friamente, à mesa do jantar, deu-lhe a notícia da morte do noivo.

A pobrezinha contava já vinte e seis anos. Se até então repelira todas as propostas de casamento que lhe foram feitas pelo pai, dali por diante não admitiu que lhe falassem mais nisso.

O velho, depois de se meter imprudentemente numa arriscada especulação de açúcares, faliu em 1850, e alguns meses depois desaparecia, fulminado por uma congestão.

Mãe e filha ficaram reduzidas à pobreza extrema. Os amigos de outrora, sumiram-se, afugentados pelo aspecto da miséria.

Em 1855, redobraram ainda os infortúnios de Aninha, com a morte da mãe, vítima do cólera-morbo.

Datavam dessa época a sua vida de boêmia e a sua lata de folha. Tinha então apenas trinta e três anos, mas não lhe davam menos de cinquenta tais foram os estragos causados pelo sofrimento.

*

Quando a tia Aninha acabou de me contar todas essas coisas, uma tarde em que por acaso nos achamos sozinhos, num dos seus asilos habituais, no jardim, à sombra de uma latada, não me atrevi a dizer-lhe que na sua existência de viúva-virgem não havia matéria para um romance, a menos que o talento e a imaginação do romancista suprissem o que lhe faltava. Entretanto, proferi esta frase, que continha uma fórmula de consolação:

– A sua vida é, na realidade, um verdadeiro romance, tia Aninha; mas creia que esse mesmo tem sido o romance de muitas mulheres.

– Oh! Se o senhor lesse as cartas que ele me escreveu! Só elas dariam páginas e páginas. Era um simples caixeiro, mas muito inteligente. Quer vê-las?

– O quê?

– As cartas!

– Ainda as conserva?

– Se ainda as conservo? São a minha fortuna. Vou buscá-las.

A velha ergueu-se, foi ao seu quarto, e pouco depois voltou trazendo a sua inseparável lata de folha.

*

Li algumas das cartas: nada havia nelas de extraordinário, mas tinham, relativamente, muito valor material, porque estavam todas seladas com os selos das nossas primeiras emissões postais: o "olho de boi", o "trezentos réis inclinados" e outros.

– Diz a senhora muito bem; a sua fortuna está nestas cartas! Saiba, tia Aninha, que cada um destes selos vale centenas de mil réis!

A pobre velha, que ignorava a mania filatélica, não compreendeu: foi preciso que eu lho explicasse.

Ela protestou:

– Desfazer-me das minhas cartas? Nunca!

– Não se desfaça das cartas; desfaça-se dos selos.

– Estes selos podem valer milhões! Não os venderei! Para que preciso de dinheiro?

Deveria calar-me. Tenho remorsos de haver revelado ao dono da casa onde me achava a existência dos selos da tia Aninha. Ele foi o primeiro a querer comprá-los para negócio.

Pouco tardou que se espalhasse em toda a cidade a notícia de que a velha possuía uma riqueza encerrada na sua lata de folha. Por fim, já não se dizia que eram selos do correio, mas velhas moedas de ouro, joias raras e preciosíssimas, o diabo!

E era o seu tesouro tão cobiçado, tanta gente lhe falava nele e manifestava o desejo de examiná-lo, que a tia Aninha, mais ciosa da sua lata de folha que Harpagon do seu cofre, tinha pesadelos e alucinações terríveis, vivia num contínuo sobressalto, não podia dormir duas horas que hão despertasse aos gritos, sonhando que lhe roubavam a sua querida lata, o seu travesseiro.

Agora havia empenhos para hospedá-la; aconselhavam-na a fazer testamento, adulavam-na, perseguiam-na com uma solicitude que a desvairou, que lhe tirou lentamente o raciocínio e a saúde.

Mais do que nunca não esquentava lugar, aparecia e logo desaparecia; já não contava às crianças as suas bonitas histórias de fadas e lobisomens; já não falava a ninguém no seu romance, sem perceber, coitada! que o seu romance começava agora.

Os pequeninos, que dantes a adoravam, tinham medo dela, e os garotos apupavam-na quando a mísera passava, com a desconfiança no olhar, desgrenhada, andrajosa, descalça, faminta, apertando nos braços esqueléticos a sua lata de folha, o seu travesseiro, o seu tesouro.

*

Uma noite em que a tia Aninha, vagabundeando à-toa, atravessava uma praça deserta e silenciosa, foi assaltada por um malfeitor que a roubou, depois de atordoá-la com uma paulada. Conduzida, algumas horas depois, para um hospital, expirou pronunciando o nome do noivo, martirizada menos pela paulada assassina que pela ideia de haver perdido as suas cartas de amor. 

(Do livro Contos Cariocas)

 


Arthur Azevedo domingo, 23 de abril de 2017

VOVÔ ANDRADE

VOVÓ ANDRADE

Arthur Azevedo

 

 

Ele aparecera um belo dia na casa de pensão de Dona Eugênia, acompanhado de três baús e um pequeno cofre de ferro. Pedira o aposento mais barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia ele, estava habituado a tomar uma única refeição por dia, e parca, muito parca.

 

Ninguém sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia, conquanto não fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar à língua, mas quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele não respondia, dando a entender apenas, por meias palavras, que passara por sérios dissabores, que   tinha   sofrido   muito   e   mudara   de   terra   para   que   ninguém   lhe   lembrasse   o passado.

 

Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era português, e emigrara muito criança para uma das nossas províncias onde viveu perto de sessenta anos.

 

Não consentia entrassem no seu quarto, que ele próprio varria e espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado à chave, abrindo e remexendo o cofre e os baús.

 

Um dos hóspedes, o   Braguinha, guarda-livros   de   uma   casa   importante, afirmou   ouvir   no aposento do velho o tilintar de moedas de ouro.

 

– Aquilo é uma espécie de tio Gaspar, dos Sinos de Corneville – afirmava o dito Braguinha, com uma convicção que se comunicou aos outros hóspedes.

 

***

 

Mas podia lá ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapéu surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava, no fim do mês, a sua módica pensão.

 

***

 

A dona da casa, que era viúva, e tinha três filhos, três bonitos rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, também se convenceu de que o seu novo hóspede era um avarento sórdido; intimá-lo-ia, talvez, a procurar cômodo noutra parte, se ele não se tivesse afeiçoado desde   logo   aos   três   meninos, mostrando-lhes   uma   simpatia   fora   do   comum, contando-lhes histórias que os divertiam. Quem meus filhos beija, minha boca adoça.

 

– Adoro as crianças - dizia o velho a Dona Eugênia. – Que quer? Não tenho mais ninguém sobre a terra: sou completamente só.

 

– Só? Pois nem um parente?...

 

– Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu amava, e esqueceu-se de mim neste mundo de atribulações e misérias.

 

***

 

Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia-idade, compadre da Dona Eugênia, que a visitava miúdo e a assistia com os seus conselhos de homem prático. As más línguas diziam que esse amigo do defunto era alguma coisa mais que um simples conselheiro, porém sobre esse ponto não tenho nenhuma indicação exata, nem ele importa à minha narrativa.

 

A   verdade   é   que, com   a   morte   do   marido, Dona   Eugênia   se   achou   numa   situação   muito precária, e foi o compadre quem lhe forneceu o capital necessário para o estabelecimento da casa de pensão, que prosperava.

 

Um dia em que Dona Eugênia lhe disse que a presença do misterioso velhote a aborrecia, e ela já o teria posto a andar, se ele se não mostrasse tão amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu:

 

– Pô-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrário: conserve-o. Este hóspede foi a fortuna que lhe entrou em casa!

 

– A fortuna?

 

– A fortuna, sim!  É um velho rico e avarento, que não tem herdeiros...  Pô-lo fora!  Que ideia! Trate-o com todo o carinho, e faça com que seus filhos o respeitem e o amem.

 

Naquela casa o Barbosa tinha sempre razão. Poucos dias depois, Dona Eugênia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento maior, mais espaçoso, mais arejado, com boa mobília, colchão de arame e duas janelas dizendo para o jardim.

 

Fez mais:  obrigou-o, com bons modos, a tomar   duas   refeições   por   dia, como   os   demais hóspedes, e pela manhã mandava-lhe chocolate ou café com leite e biscoitos.

 

O velho derramava lágrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inútil, que não tinha onde cair morto.

 

Dona Eugênia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o dia em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos menos com roupa e calçado. Agora não lhe faltava nada.

 

O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança de ser contemplado por sua morte, começou também a mimoseá-lo com guloseimas, charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados, etc.

 

Entretanto, o velho não modificou os seus hábitos de solidão. Ninguém lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante horas e horas – a abrir e fechar o cofre e os baús.

 

Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugênia a sua pensão, esta disse-lhe:

 

– Não se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro; não tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade não me faz ficar mais rica nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa da família.

 

***

 

A situação durou assim muito tempo. O velho Andrade passava uma vida de lorde, tratado a vela de libra.

 

Agora, manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve insinuação para ser logo presenteado tanto pela viúva como pelo Braguinha.

 

Este   foi   afastado   a   conselho   do   prudente   Barbosa.   Era   um   concorrente   perigoso.   Tanto fizeram, que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, não deixando, contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque a viúva sequestrava o seu precioso hóspede.

 

***

 

Já estava o Andrade havia dois anos na casa de pensão, quando uma noite, achando-se a sós com Dona Eugênia, disse-lhe:

 

– Quero fazer-lhe urna comunicação, minha santa protetora. Estou velho e posso morrer de um momento para outro...

 

– Não diga isso; o senhor tem para dar e levar!

 

– Há lá no meu quarto um cofre de ferro cuja chave está sempre comigo. Esse cofre é um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho senão quatro patacas e umas bugigangas sem valor. Pois bem; previno-a de que lá dentro está o meu   testamento...   – O seu testamento!  Dirá   a senhora; mas você não tem o que deixar!  – Pois tenho, sim senhora – tendo naqueles baús muitos objetos, de nenhum valor, é verdade, mas que, se eu fechasse os olhos sem ter feito as minhas disposições testamentárias, seriam arrecadados pelo consulado português e vendidos em hasta pública. É isso que desejo evitar, dando destino ao que é meu.

 

Essa revelação fez com que redobrassem os carinhos que cercavam o velho. Levavam-no aos teatros, às festas, aos passeios; enchiam-no   de   marmeladas   e   vinhos   finos.   Os   meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovô Andrade".

 

E o hóspede tornou-se caro. Só não lhe davam médico e botica, porque tinha uma saúde de ferro, e nunca precisou disso.

 

E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo mistério sobre o seu passado; não havia meio de lhe arrancar uma confidência!

 

***

 

Dona Eugênia começou a impacientar-se:

 

– Este velho é capaz de nos enterrar a todos!

 

– Tenha paciência; ature-o, que há de receber capital e juros acumulados – dizia o Barbosa. – Naquela idade o homenzinho não pode ir muito longe.

 

E não foi.

 

Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hóspede da casa de pensão, vovô Andrade caiu fulminado por uma apoplexia. Para festejar o quinto aniversário das suas relações, Dona Eugênia obsequiara-o com um opíparo jantar, abundantemente regado e ele comeu e bebeu demais.

 

Os   meninos, que   já estavam crescidos (o   mais   velho   ia   fazer   dezoito anos), choraram sinceramente. A viúva, insofrida, quis abrir logo o cofre, e tê-lo-ia feito se o discreto Barbosa lho não obstasse.

 

– Não mexa em cousa alguma. Vou chamar quem de direito.

 

Veio   a   autoridade   consular, que abriu   o   cofre.   Este   continha, efetivamente, um   invólucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento", e cerca de trezentos mil réis em notas do Tesouro e moedas de prata e ouro, as tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha.

 

Dois baús estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inúteis, e o outro continha objetos que representavam algum valor: a roupa e os demais presentes com que o vovô Andrade tinha sido durante cinco anos obsequiado na casa de pensão.

 

O testamento dizia:

 

"Achando-me septuagenário e reduzido à miséria, sem um parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortúnios, tinha que optar entre a mendicidade e o suicídio.

 

Não optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me rico e avarento, bastante para isso dois velhos baús e um cofre de ferro, último vestígio de melhores tempos.

 

Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais alguma coisa.

 

Uns dirão que fui tratante; dirão outros que fui filósofo. Para mim é o mesmo.

 

Dentro do cofre encontrarão a quantia necessária para o meu enterro".

 

***

 

Quem se lavou em água de rosas foi o Braguinha.

 (Do livro Contos Cariocas)

 


Arthur Azevedo domingo, 16 de abril de 2017

O JAÓ

O JAÓ

Arthur Azevedo

 

Numa noite em que estávamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram à baila os meus contos, e não houve na assistência quem se não gabasse de saber casos que forneceriam magníficos assuntos para este gênero de literatura amena.

– Pode ser – disse eu – mas devo confessar-lhes que até hoje não pude aproveitar para os meus trabalhos um único assunto oferecido nessas condições. Os contos inventaram-se, o que não quer dizer que não sejam também o produto do que se vê e observa na vida real, ou o renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais.

– Ora! Eu sei a história de um jaó, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou contá-la enquanto minha mulher apronta o chá!

– Conta, que ele há de gostar – disse D. Emília, desaparecendo da sala.

– Vamos à história do jaó! – Exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar ânimo ao dono da casa.

A cena passa-se em Cataguases, no Estado de Minas, ainda nos ominosos tempos da monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona.

Houve um movimento geral de atenção, e todos nós aproximamos as nossas cadeiras.

– A um quarto de légua da localidade, havia "um situante", como lá dizem, homem já maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com a filha.

Esta chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeição; morena, esbelta, cabelos negros, e ondeados, olhos de fogo, lábios rubros e magníficos dentes. De mais não era estúpida nem de todo ignorante: fazia as quatro operações; cosia admiravelmente e no governo da casa mostrava-se expedita e asseada.

Era agente da estação da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixão da caça, e, nos lazeres do seu emprego, não fazia outra coisa senão caçar.

Um dia em que as suas diligências cinegéticas o levaram lá para as bandas do sitio do velho Serrano, que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo.

Pelos modos, o efeito foi recíproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque na roça não se encontram duas pessoas que não se cumprimentem, embora não se conheçam; mas sorriam um para o outro, e isso já não estava nos usos e costumes indígenas.

Durante três dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou noutro lugar.

Afinal, chegaram à fala, e ele que talvez levasse más intenções, foi desarmado pela candura e pela ingenuidade de Mimi.

Amaram-se, amaram-se deveras; entretanto, aquelas entrevistas na estrada eram perigosas; podia passar alguém...

– Ficaremos à vontade – disse ela com uma adorável confiança no seu amado – à sombra de uma caneleira que há nos fundos lá de casa. Entra-se por aquele atalho, e vai-se dar mesmo lá.

– E teu pai?

– Meu pai está da outra banda, fazendo o roçado; só vai pros lados da caneleira uma vez na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Você dá um sinal, e eu vou ter com você.

– Qual há de ser o sinal?

– Você é caçador; deve saber piar.

– Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jaó...

– Jaó, prefiro jaó, é triste, mas é bonito.

O namorado piou, para dar uma amostra da sua habilidade; o pio não podia ser mais perfeito.

No dia seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e não quis sair de casa, o que bastante contrariou Mimi.

– Hoje nada de sol! – Disse ele; – tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com facilidade. Ontem se me não engano, ouvi cantar um jaó, e tomei a coisa como agouro, porque há muito tempo esse pássaro não aparecia por cá.

– Ora, papai, isso agora é tolice!

– Será, mas não vou ao roçado. Nada, que teu avô não faz outro!

E dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho Serrano tirou da parede a sua espingarda, dizendo:

– Para não ficar com as mãos vadias, vou limpar esta sujeita, que está criando ferrugem.

E, depois de descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a limpá-la.

O tiro foi um alívio para Mimi – em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mão do pai era um perigo iminente para o namorado.

Mas – oh! Contrariedade! – Concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e carregou de novo a espingarda.

No momento de pendurá-la, ouviu-se o pio do jaó.

– Ouviste, Mimi? – Perguntou Serrano, empalidecendo de súbito, com a arma ainda na mão; ouviste?

– Não, senhor; que foi?

– O jaó! – Não ouvi nada; vocem'cê enganou-se.

– Não! Estes ouvidos de velho caçador não se enganam... E aquilo é agouro!...

– Que agouro, que nada!

– Há dois anos piou um jaó no sitio do João Bernardo... lembras-te?... E três dias depois o João Bernardo esticou a canela...

– Coincidência.

– Eu nunca te quis dizer nada, mas quando tua mãe morreu, tinha piado um jaó na véspera, ali mesmo, do lado da caneleira. É um pássaro da morte, pior que a coruja!

Palavras não eram ditas, ouviu-se de novo o jaó.

Serrano estremeceu dos pés à cabeça:

– Ouviste agora? Vê, minha filha, vê como tenho as mãos frias! Vou matar aquele diabo!

– Ora, papai, deixe o pobre jaó! Ele não é o que vocem'cê pensa!

– Pois sim! Aquele não há de cá voltar! Vá agourar lá pro inferno.

O velho ia sair, mas a filha, desesperada agarrou-o pelo braço:

– Não! Não faça isso, papai! Pelo bem que me quer!

E vendo que o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pôs-se a gritar com toda a força dos seus pulmões:

– Jaó! Jaó! Vai te embora, que papai quer te matar!

– Espera que ele te entenda?

E, com um arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da caneleira.

Mimi continuou a gritar:

– Jaó! Meu jaozinho! Foge, foge que papai lá vai à tua procura para matar-te!...

O velho voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o pássaro.

–Que diabo, menina! Parece que ele te entendeu...

E pendurou tranquilamente a espingarda.

O Novais calou-se.

– Está terminado o conto? – Perguntei depois de uma pausa.

– Está; não o achas interessante?

– Não é mau, mas falta-lhe a conclusão. Que fim levou o jaó?

– Aqui o tens na tua presença, meu amigo; o jaó era eu.

– E a Mimi, esta sua criada – acrescentou D. Emília, que voltava com a bandeja do chá.

 

(Do livro Contos Cariocas)

 


Arthur Azevedo domingo, 09 de abril de 2017

UM INGRATO

UM INGRATO

Arthur Azevedo

 

O Vieira havia levado a vida inteira remando contra a maré. Por fim conseguiu reunir algum dinheiro, não se sabe como, e abriu uma modestíssima loja de cigarros na Rua dos Ourives. Dava para viver, mas, como se sabe, não se precisa de muita coisa para viver. Morava com a mulher num quartinho ao lado da modesta loja, e Dona Maricota cozinhava, lavava e passava a roupa do marido e de alguns conhecidos, pois não tinham filhos. 

Pensando na vida e esperando os clientes, Vieira estava certo dia encostado no balcão da loja enquanto a mulher preparava o almoço, como de costume, quando entrou apressadamente um velho, meio congestionado, quase sem poder falar. Sentou-se num banquinho que ali havia, queixando-se silenciosamente e apenas murmurando algumas palavras. O traje do recém-chegado indicava pessoa de boa posição social. Solícito, Vieira indagou: 

— Que tem o senhor, cavalheiro? O que aconteceu? 

O velho levantou os olhos e só conseguiu dizer, com voz apagada: 

— Água! 

Vieira foi imediatamente buscar um copo d’água, que o velho bebeu, reanimando-se um pouco. E perguntou de novo: 


— O que aconteceu? 


— Não sei... Uma coisa que me deu de repente... Mas felizmente não foi nada, como o Sr. pode ver. Bastou esse copo d’água para sentir-me bem. 

— Não quer alguma outra coisa? Talvez um pouco de água com limão... 

— Não, nada. Muito obrigado. 


O velho permaneceu ainda ali uns vinte minutos, conversando amistosamente com Vieira, perguntando-lhe sobre seus negócios, sua família, sua vida. Quando saiu, apertou-lhe com vigor a mão, renovando seus agradecimentos.

 
Dois dias depois apareceu novamente, sentou-se no banquinho e fez novas demonstrações de agradecimento, conversando amigavelmente durante meia hora.

 
Voltou no dia seguinte, e Vieira lhe apresentou Dona Maricota, com quem simpatizou bastante. Inteiraram-se então de que o assíduo visitante era o Comendador Matos, negociante aposentado, solteiro e sem filhos, que vivia de rendas, sem outra ocupação além da cobrança dos aluguéis e da renda dos altos negócios. Quando o Comendador saiu, Vieira disse à esposa: 

— Parece que esse sujeito está disposto a vir aqui todos os dias, para entreter-se em conversa. 

— É uma amizade que não devemos desprezar — respondeu a mulher, de espírito prático.

— Por quê? 

— Que pergunta! Pode ser que encontremos nesse homem um protetor...

— Que protetor coisíssima nenhuma! Um passatempo aborrecidíssimo, é o que você deve dizer. Não percebeu que ele nem sequer fuma? Não comprou até agora nem uma caixa de fósforos... 

Entretanto, quando o Comendador voltou no dia seguinte, encontrou uma cadeira, no lugar do banquinho. Precisamente nesse dia ficaram estabelecidas definitivamente as relações de amizade. A partir desse momento o velho foi infalível, sempre chegava na mesma hora. Não se passou muito tempo, e começou a ser-lhe oferecida durante a visita uma xícara de café, que se tornou um hábito durante os seguintes cinco anos. 


Quando não aparecia na hora de costume, Dona Maricota se inquietava: 


— O Comendador não veio. Estará doente? Por que não vais à casa dele? Pode ser que esteja doente, não acha? 

Afinal o velho entrava, e Vieira avisava à mulher: 

— Já está aqui o Comendador, Maricota. Traga já o cafezinho... 

As relações chegaram a ser tão estreitas, que uma vez Vieira queixou-se da falta de freguesia. O velho lhe disse: 

— É natural, pois você tem uma casa que não inspira confiança. Isto aqui não é uma verdadeira loja, é apenas um cubículo. 

— Mas muitos começaram como eu, e acabaram ficando ricos. 

— Isso foi antigamente. Hoje em dia as lojas de cigarros têm que estar bem instaladas, com pelo menos duas portas, boas estantes, tudo bem ordenado e bem sortido. 

— É bem verdade, mas tudo isso custa dinheiro, e não vejo como possa consegui-lo. 

— Não se preocupe por questões de dinheiro. Procure uma casa melhor, em pleno centro, e deixe o resto por minha conta. 

Com efeito, Vieira não demorou a encontrar um local apropriado. Alugou-o, tendo o próprio Comendador como fiador. Um mês depois o novo estabelecimento estava funcionando. Não faltava nada, havia até um acendedor de cigarros constantemente ligado, que os clientes podiam usar. 
O casal mudou-se para o segundo andar do mesmo imóvel, e o Comendador emprestou o dinheiro para a compra dos móveis. Quando foi assinar os papéis, Vieira perguntou se o Comendador tinha interesse em ser seu sócio. 



— Nada disso! Eu me aposentei por completo dos negócios, e não tenho o menor desejo de voltar a eles. Serei simplesmente seu credor. Basta você assinar umas quinze promissórias, com juros muito reduzidos e prazos folgados. 

Assim foi. Vieira resgatou as letras uma por uma, nos prazos estipulados. Sem esforço, pois a loja prosperava de maneira satisfatória. Dona Maricota já se entregava aos afazeres domésticos com mais parcimônia. Um dia notou que ia ser mãe, portanto uma nova felicidade em perspectiva. 

— Quero ser o padrinho! — Indicou o Comendador quando foi informado.

O excelente homem já era considerado pessoa da casa, seguindo sempre o seu próprio ritmo, tomando o cafezinho sentado no mesmo local, já agora numa cadeira estofada, para mais comodidade. 
A pontualidade com que foram pagas as quinze promissórias fez aumentar a amizade do velho, pois colocava acima de tudo a probidade comercial, a honra da firma. Quando o menino foi batizado, o padrinho deu-lhe um bonito enxoval e fez para ele um seguro de vida. Desde então era raro a criança não receber todos os dias um presente ou um agrado. De vez em quando, Vieira e Maricota também eram obsequiados. 

— Comendador, por que tantos cuidados? O senhor não deve incomodar-se tanto conosco. 

— Não me incomodo, absolutamente. Vocês são minha única família. Não tenho ninguém mais no mundo, a não ser vocês. 

— Bendito aquele copo de água! — Dizia Dona Maricota, sempre que o velho tinha algum rasgo de generosidade. 

— Graças àquele copo d’água mudou nossa sorte — acentuava o marido, — e espero que com o tempo ainda viremos a ser ricos. 

Não sabendo como manifestar seu reconhecimento por tão inverossímil proteção, Vieira mandou pintar a óleo um retrato do Comendador, que colocou na sala de visitas. 
Mas tudo se acaba. Um dia o comendador deixou de aparecer na loja, que tão assiduamente visitava durante tantos anos. Vieira correu imediatamente à casa onde morava, e o encontrou seriamente doente. Quis levá-lo para sua casa, onde seria tratado com desvelo familiar, mas o comendador resistiu. Era seu propósito recolher-se a um asilo para idosos, e foi necessário respeitá-lo. A doença se agravou. Embora não lhe faltasse nenhum dos recursos da medicina, morreu depois de quinze dias. 
Vieira e Dona Maricota imaginavam — era natural — que ambos e o pimpolho seriam os únicos herdeiros, já que o velho não tinha família. Enganaram-se. O testamento, o único que apareceu entre os papéis do velho, e que foi divulgado depois do enterro, só contemplava no benefício o afilhado, com dez contos de réis. O resto era dividido entre hospitais e asilos. Nem o próprio Vieira tinha um único centavo no testamento. 

— Estranho! — Bramiu Dona Maricota. — Nunca imaginei que aquele homem não nos deixasse ricos. Por que nos dizia então que éramos os únicos membros de sua família? Que mal-empregados os oitenta mil réis da coroa que lhe mandamos!


— Tenho intenção de não aceitar os dez contos que deixou ao nosso filho — confessou Vieira —. Dez contos! Que miséria! 

— Seria melhor não haver deixado nada! Nosso filho não precisa de esmolas!

— Tenho até vontade de destruir o retrato — disse indignado o marido. 

— Não! Não vale a pena. Esse retrato pode ser comprado por alguma das instituições que herdarão o dinheiro desse velho tacanho. 

Lançou um olhar severo sobre o retrato do Comendador, que sorria compassivamente, enquanto exclamava decepcionada: 

— Este mundo está cheio de ingratos!... 

 (Do livro Contos Cariocas)

 


Arthur Azevedo domingo, 02 de abril de 2017

CAVAÇÃO, CONTO DE ARTHUR AZEVEDO

CAVAÇÃO

Arthur Azevedo 

 

Naquela manhã, o Saldanha estava desesperado: não havia quinze dias que lhe entrara na algibeira, inesperadamente, uma bela nota de quinhentos mil-réis, e já não lhe restava um níquel desse dinheiro!

É verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada fortuna coincidira com o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhô-nhô, e tinha havido peru de forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não são dias!

O semiconto-de réis voou, sem que o imprevidente Saldanha empregasse dez tostões em qualquer coisa útil. A conta da venda – uma conta de cabelos brancos – ficou por pagar, não se comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas de roupa!

O dinheiro viera das mãos de certo negociante da rua da Alfândega, que encomendara ao Saldanha uma série de artigos metendo à bulha uma companhia em liquidação, isto é, os respectivos liquidantes. O nosso homem, que tinha dedo para essa espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o desejado efeito. O prosador contava com cem mil-réis. Recebeu quinhentos.

Foi um delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cócegas de comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco minutos diante de um gramofone. – Que surpresa seria para a pequenada! – Mas resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que teve depois de endinheirado.

E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera sucessivamente dezenove empregos e desesperara de obter o vigésimo. Era um boêmio incorrigível, um desgraçado, que chegara aos trinta e oito anos sem uma onça de juízo.

Um dia em que lhe pareceu, e pareceu a todos, que estava definitiva e solidamente arrumado num cartório de tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia versos, e não de pé quebrado, porque para esse outro gênero de literatura também não lhe faltavam aptidões.

Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente dos seus Gemidos sonoros, coleção de poesias, cujos dois mil exemplares passou um a um pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que fazia aquilo apenas para pagar as despesas de impressão, pois não mercadejava a sua musa.

Depois de esgotada completamente a edição, o Saldanha, frequentador assíduo de todas as lojas de alfarrábios, comprava por baixo preço quantos exemplares, e não eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro comercial, aos negociantes dinheirosos.

O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenólogo intuitivo, conhecia pela cara, ou, segundo a sua própria expressão, "pela pinta", esses mecenas fortuitos, e, além disso, aprendera de cor uma infinidade de lábias para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as pessoas a quem se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita era certa.

Note-se que ninguém duvidava da identidade do poeta, porque o seu retrato lá estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidíssimo, na primeira página dos Gemidos sonoros.

Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d'alma da linda Ignez: não podia durar muito. Os volumes, à força de viajar dos primitivos donos para os alfarrabistas, dos alfarrabistas para o Saldanha, do Saldanha para os protetores das letras nacionais, e destes outra vez para os alfarrabistas, ficaram tão ensebados ("fatigados", como se diz em linguagem bibliográfica), que já não havia meio de lhes dar saída.

Por isso, a mais séria, a mais firme preocupação do industrioso Saldanha era que uma nova edição dos Gemidos fizesse gemer os prelos. Por conta dele, já se sabe, porque não havia editor que se arrojasse à empresa. E essa preocupação de tal modo absorvia, que ele absolutamente não pensava noutra coisa e vivia de expedientes.

Como já ficou dito, naquela manhã o Saldanha estava desesperado. Durante os três últimos dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado com as derradeiras cinco patacas, melancólicos vestígios dos quinhentos mil-réis. O homem da venda já lhe não fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os.

O autor dos Gemidos sonoros saiu de casa sem um vintém, dizendo: – Vou cavar! – E baixou à cidade a pé. Morava lá para os lados de Estácio de Sá.

Parecia uma fatalidade! Todas as bolsas a que recorreu encontrou implacavelmente fechadas. Já tantas vezes tinham servido.

Não teve coragem de pedir cinco mil-réis ao negociante que dias antes remunerara com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a penetrar no escritório do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço – e comeu-o com remorsos, porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na boca.

Sem ser bom pai, pois ninguém pode ser bom pai sem ter juízo, o Saldanha era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em pratos de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora pelo caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gaudérios que topava.

Depois do almoço, abundantemente regado por um magnífico virgem "vindo diretamente", o Saldanha atirou-se de novo ao terrível trabalho de "cavação". Passaram-se duas, passaram-se três horas, e nada, nada, nada! E os pequenos sem comer!

Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espírito a ideia nítida da dolorosa situação em que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.

Passavam, na direção das barcas de Niterói, muitos homens apressados, e o Saldanha notando que raro era aquele que não levava um embrulho enfiado no dedo.

– É para os filhos, pensava; são homens que trabalham, que têm como eu poderia ter, o ordenado certo no fim do mês... Não são ociosos nem boêmios, como eu...

 

Ideias negras acudiram-lhe em tropel ao cérebro avinhado, produzindo febre. As horas correram sem que ele desse fé, subjugado como estava pelo sofrimento. Numa espécie de delírio, ouvia apenas rumor – o choro dos filhos.

Quando saiu desse torpor, caía a tarde. O lusco-fusco envolvia o mar e os lados da Tijuca estavam coloridos por um crepúsculo de fogo.

As pernas trôpegas, a cabeça pesada, a língua seca, o Saldanha levantou-se com a firme resolução de tomar uma barca e, chegando ao meio da baía, atirar-se ao mar.

– É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achará quem a ampare melhor do que eu. Os órfãos mais infelizes são os que têm pai...

Depois dessa reflexão filosófica, ele encaminhou-se para a estação das barcas, e só então se lembrou de que não tinha dinheiro para a passagem; avistou, porém, um sujeito que levava à mesma direção, e dizendo consigo: “vou cavar pela última vez", dirigiu-se ao transeunte com toda a resolução:

– O cavalheiro dispõe de trezentos réis? Não tenho dinheiro comigo, estou doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca.

O outro mediu-o de alto a baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no bolso do colete, hesitou, arrependeu-se, enfiou a mão na algibeira do casaco, tirou um caderninho de cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao Saldanha, com uma expressão no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte: "A mim não me enganas tu; com este pedacinho de papel não irás beber."

O boêmio agradeceu, sorrindo tristemente à ideia de que o tal pedacinho de papel era o seu passaporte para a eternidade.

O sujeito seguiu o seu caminho, e ele ia seguir também quando viu no chão outro pedaço de papel, de maiores dimensões, dobrado em quatro, que lhe pareceu – oh, fortuna – uma nota de banco.

Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil-réis.

Trêmulo, nervoso, abriu a nota, percorreu-a no verso e no reverso, e, desconfiado de uma alucinação dos sentidos, examinou-a à luz de um lampião aceso naquele instante.

Depois, meteu-a no bolso, e "tocou à toda" para a rua do Ouvidor, lépido, contente, como se momentos antes não se houvesse representado um drama dentro de sua alma.

Entrou no Café do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos depois, na Confeitaria Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes: frangos assados, empadinhas, doces, vinho do Porto, etc.

Tomou um tílburi no 1argo de são Francisco, e ao chegar perto de casa, ainda na rua, gritou como um possesso:

- Terezinha! Cota! Chiquinha! Nhô-nhô! Eduardinho! Aqui estou eu, aqui está papai com um banquete opíparo! Toca a música!

Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar.

O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar vitorioso, espalhou a comezaina sobre a mesa.

– Mas dize-me: como foi que tu... – ia perguntar a esposa.

– Come! come! Interrompeu o marido; come, depois te contarei. Dá cá dali o saca-rolhas!

E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto:

– Ah, Terezinha! Decididamente sou a criatura mais feliz que o céu cobre!

E durante três dias o Saldanha não "cavou".

(Do livro Contos Cariocas)

 


Arthur Azevedo domingo, 26 de março de 2017

COMES E BEBES

COMES E BEBES

Arthur Azevedo 

 

Algum tempo antes de entrar definitivamente, na vida prática, o bacharel Sesostris, que hoje é pai de família e magistrado, teve as suas veleidades literárias, e topava a tudo; poesia, conto, folhetim, romance e teatro.

Foi o manuscrito da sua primeira e única peça que o introduziu na caixa de um teatro, e o aproximou de Rosalina, que das nossas atrizes era naquele tempo a primeira em beleza e a última em talento. Essa Rosalina, que o empresário conservava no elenco da companhia em atenção unicamente às suas virtudes plásticas, casara-se com um ator por seu turno ali conservado tão somente por ser marido dela.

Dizer que era uma segunda Penélope no tocante à fidelidade conjugal seria faltar descaradamente à verdade que devo aos leitores das minhas historietas; pelo menos as más línguas, e mesmo as boas, não a poupavam: mais de um frequentador habitual do teatro onde ela se exibia era apontado como tendo solicitado, e obtido os seus favores mais íntimos.

O bacharel Sesostris foi convidado pelo empresário para fazer a leitura da peça uma tarde, no palco, depois do ensaio e a hora aprazada, sentou-se diante de uma pequena mesa rodeado de quase toda a companhia, e abriu um manuscrito.

Ia em meio o primeiro ato, ouvido em silêncio com um recolhimento digno de uma tragédia, quando o comediógrafo sentiu que do joelho de Rosalina, sentada à sua direita, se desprendia um calor comunicativo que o perturbava. Sabe Deus como pôde o rapaz concluir a leitura daquele primeiro ato!

Durante o segundo, continuaram as manifestações equivocas, ou antes, inequívocas, e o bacharel, suando frio, tremendo, gracejando, deixava que se perdessem todos os efeitos cômicos das situações e do diálogo. Os ouvintes, cada vez mais frios e reservados, atribuíam a indisposição do leitor à impressão terrível de se achar ali submetido à opinião e ao julgamento de tantas sumidades artísticas.

Durante o terceiro ato, Rosalina completou com o pé – um pé pequenino, admiravelmente calçado –a obra de sedução que principiara com o joelho.

Terminada a leitura o empresário, que durante os dois primeiros atos a interrompera com significativos e irreverentes bocejos, e agora dormia a sono solto, despertou logo que ouviu as consoladoras palavras: "cai o pano", e disse ao comediógrafo:

– Sim, senhor, é uma bonita comédia... mas não é para o meu teatro... é muito fina, tem pouca bexigada... Entretanto, não digo que a não represente... hei de representá-la, mas quando o teatro estiver mais encarreirado. O doutor tem muito talento: escreva outra comédia, mas com sal mais grosso, com sal de cozinha.

– De cozinha?!

– De cozinha, sim senhor! Isto de sal fino não traz dez réis à bilheteria!

O bacharel Sesostris, que tinha a inestimável fortuna de contar apenas vinte e dois anos, deixou-se iludir; mas, quando mesmo recebesse, como dramaturgo, um desengano formal, que lhe importava, se Rosalina, a formosa Rosalina, tão cobiçada por todos os homens, ali estava para consolá-lo das medonhas lutas de autor incipiente?

Quando o empresário acabou de lhe recomendar o sal grosso, ele voltou-se e procurou-a com os olhos: ela desaparecera, sem ao menos dizer-lhe adeus...

Dali por diante, o bacharel entrou a frequentar a caixa do teatro, e especialmente o camarim de Rosalina; esta, porém, não renovou as manifestações do joelho e do pé, como se resolvida estivesse a mostrar ao moço que ele não podia subir mais alto...

Figurava na companhia um velho ator que se dizia muito amigo de Sesostris, e lhe captara a confiança; este escolheu-o para confidente dos seus amores, e contou-lhe as provocações da atriz.

O velho ator sorriu maliciosamente.

– Como se explica - perguntou o bacharel – que essa mulher depressa mudasse de sentimento a meu respeito?

– Explica-se perfeitamente: você ia ler uma comédia e ela queria apanhar o primeiro papel. Desde o momento em que percebeu a peça não seria representada, fez tanto caso de você como da primeira camisa que vestiu.

– Então se a comédia fosse aceita...?

– Se a comédia fosse aceita, a Rosalina seria sua! E só assim poderia tê-la de graça – aquilo é mulher de dinheiro.

Passaram-se três meses, e o teatro longe de se encarreirar como esperava o empresário, entrou numa dessas crises tão comuns na vida nossos teatros. Depois de cinco ou seis desastres, o público afastou-se e o empresário deixou de pagar regularmente aos artistas. A situação era desesperada.

Rosalina e o marido sofreram como os demais, considerando-se felizes quando apanhavam dez ou vinte mil-réis por conta dos vencimentos atrasados.

Foi nestas circunstâncias que o pé e o joelho da atriz voltaram a perturbar o sossego do bacharel Sesostris.

A opinião do velho ator não a desmerecera no espírito do moço; aos vinte e dois anos o coração é cego para os defeitos da mulher por quem palpita, e quando por ventura resolva analisá-los, acaba verificando que são qualidades e não defeitos.

Uma noite, Sesostris, ao despedir-se dela, deixou-lhe nas mãos bilhete pedindo-lhe uma entrevista, e dizendo-lhe que na noite seguinte, durante o espetáculo, iria buscar a resposta ao camarim.

E foi.

A atriz deixou sair o cabeleireiro que a penteava, e disse ao namorado:

– Seja prudente! Nem uma palavra sobre o assunto do seu bilhete.

– Mas... a resposta?

– Disfarce... Está ali sobre a janela... por baixo do pratinho da moringa... Faça de conta que vai beber água... Olhe que a porta do camarim está aberta, e há por aí muita gente desconfiada da sua assiduidade.

Sesostris disfarçou, foi ao lugar da moringa, levantou o pratinho, encontrou o bilhete, meteu-o na algibeira, conversou ainda alguns momentos, em voz alta, sobre o calor, a falta do público, etc... e saiu, impaciente por ler a desejada resposta.

Para fugir a quaisquer olhares indiscretos, meteu-se no mictório do teatro e foi ali, meio sufocado pelas exalações amoniacais, que leu o seguinte:

"Doutor. – Antes de responder ao seu amável bilhete, quero merecer-lhe um grande obséquio. Como sabe, a empresa está nos devendo três quinzenas, o dia 15 está na porta, e é provável que ainda desta vez fiquemos a ver navios, porque o teatro não tem feito nada. Estamos na miséria. Embora isto muito me custe, peço-lhe que nos mande, amanhã, para a nossa casa, que o doutor sabe onde é, os mantimentos constantes da inclusa lista, e que são para a nossa despensa. Desculpe o incômodo e creia na amizade da sua – Rosalina."

A esta carta inverossímil, estava, efetivamente anexa, uma lista de secos e molhados - tantos litros de feijão, tantos quilos de carne-seca, etc. Nada faltava: azeite, macarrão, azeitonas, vinho, pacotes de velas, lamparinas, manteiga, o diabo!

No dia seguinte parava uma carroça à porta de Rosalina, levando todos esses comes e bebes; mas o bacharel Sesostris, apesar dos seus vinte e dois anos, entendeu que nunca mais deveria aparecer àquela estúpida.

 

(Do livro Contos Cariocas)

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Arthur Azevedo domingo, 19 de março de 2017

IN EXTREMIS

IN EXTREMIS

Arthur Azevedo 

 

O Major Brígido era viúvo e tinha uma filha de vinte anos, lindíssima, que fazia muita cabeça andar à roda; entretanto, o coração da rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal. Quero dizer que Gilberta – era este o seu nome – se enfeitiçou justamente pelo mais insignificante de quantos a requestavam – pelo Teobaldo Nogueira, sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem retida certa que lhe desse o direito de constituir família, mendigando aqui e acolá, no comércio, pequenas comissões, corretagens, e lambugens adventícias.

O Major Brígido, cheio de senso prático, vendo com maus olhos essa inclinação desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que, apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu conselheiro, o oráculo reservado para as grandes emergências da vida.

– Deixe-a! Opinou o Viegas. Se você a contraria, aquilo fica de pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua escolha poderia ser melhor... Não ataque de frente a questão!... Não bata com o pé... não invoque a sua autoridade de pai...

O Major Brígido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se à janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os cumprimentou.

O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita afabilidade. Pareceu ao major que o momento não podia ser mais propício para uma explicação; tratou de aproveitá-lo.

– Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa amiudadas vezes por nossa casa, e não creio que seja pelos meus bonitos olhos...

Gilberta corou e sorriu.

– Não quero nem de leve contrariar as tuas inclinações, casar-te-ás com o homem, seja quem for, que escolheres para marido. O teu coração pertence-te: dispõe dele à vontade. Entretanto, o meu dever de pai e amigo é abrir-te os olhos para não dares um passo de que mais tarde te arrependas amargamente. Não me parece que este homem te convenha, não tem posição social definida, não ganha bastante para tomar sabre os ombros quaisquer encargos de família, e – deixa que teu pai seja franco – não é lá muito bem visto no comercio... Não és uma criança nem uma tola, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas de um homem! Não és rica, mas, bonita, inteligente, boa como és, não te faltarão pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira.

Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os lábios e não disse palavra.

De nada valeram os conselhos paternos.

Daí por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mês depois, quando o pai se preparava para impingir-lhe novo sermão, ela atalhou-o declarando peremptoriamente que amava aquele homem, com todos os seus defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro!

Consultado o oráculo Viegas, este aconselhou uma estação de águas que distraísse a moça. O Major Brígido sacrificou-se em pura perda.

Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca.

Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento, depois de fazer uma exposição deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em que ganhava para cima de três contos de réis. Já tinha posto alguma coisa de parte e contava, mais dia menos dia, estabelecer-se definitivamente. Se fosse um especulador, um aventureiro mal-intencionado, procuraria casamento vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor.

O casamento ficou assentado.

* * *

O Major Brígido sofreu com isto um grande desgasto, agravado em seguida pela súbita enfermidade do Viegas, o seu melhor amigo, o seu oráculo, que caiu de cama e em menos de uma semana ficou às portas da morte.

Dois médicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises eram frequentes, esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em sangue.

Nesta situação extrema o Viegas chamou para junto do seu leito o Major Brígido, e disse-lhe:

– Meu velho, eu vou morrer...

– Deixa-te de asneiras!

– Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senão de ti e de tua filha? Bem sabes que não tenho ninguém... Meu irmão, que não vejo há vinte anos, é um patife, um bandido, que está, dizem, milionário, e que, sabendo do meu estado, não me vem visitar... Minha irmã, que reside em Paris, é uma mulher perdida, uma desgraçada, que sempre me envergonhou...

– Não se lembre agora disso!

– Não fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma coisa que por minha morte irá para as mãos dessas duas criatura... Lembrei-me de fazer testamento, mas um testamento poderia dar lugar a uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com 100 contos de réis, isto é, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas jurídicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienável... tu bem me entendes... Ela tem um noivo, mas este não se oporá, talvez, a uma fortuna da qual participará mais tarde. A situação desse homem será modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com uma maça solteira, casar-se-á com uma senhora viúva...

E acrescentou:

– Viúva e virgem.

O Major Brígido recalcitrou; que haviam de dizer? Seriam capazes de inventar até que ele abusara de um agonizante! Mas o Viegas insistiu, apresentando, com extraordinária lucidez, todos os argumentos imagináveis, inclusive aquele de que a última vontade de um moribundo é sagrada.

Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a proposta do Viegas, e disse logo que não se prestava a esta comédia fúnebre, mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrário, instou com ela para que aceitasse, e defendeu calorosamente a piedosa ideia do tuberculoso.

A moça ressentiu-se dessa falta de escrúpulos, mas disfarçou o seu sentimento e disse:

– Meu pai, faça o que entender!

* * *

Alguns dias depois havia em casa do Viegas um vaivém de pretores, padres, testemunhas, escrivães, tabeliães, sacristães, etc.; mas todo esse movimento, longe de fazer com que o enfermo piorasse, ajudou-o a voltar à vida.

As hemoptises tinham cessado.

Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tão bem que desconfiou dos seus médicos e mandou chamar um dos nossos príncipes da Ciência, para examiná-lo.

Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnóstico dos colegas.

– Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor é tão tuberculoso como eu! Aquele sangue era do estômago... Trate do seu estômago que este desvio é grave.

– Mas as hemoptises...

– Que hemoptises, que nada. Hematêmeses, isso sim!

Pouco depois o Viegas, completamente restabelecido, empreendeu uma grande viagem à Europa com sua mulher. Era preciso pôr uma barreira entre ela e o Teobaldo – e que barreira melhor que o Atlântico?

* * *

A viagem durou dois anos. O Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha, nascida na Itália.

Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas.

Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brígido notícias do Teobaldo Nogueira.

– Está na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava reservado para minha filha, se não fosse a sua generosidade!

– Quando nos casamos, já ela não gostava dele pelo empenho interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadáver que valia cem contos...

Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se do marido e disse-lhe:

– E creia Viegas, que se você houvesse morrido, a minha viuvez seria eterna.

 

(Do livro Contos Cariocas)

 

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Arthur Azevedo domingo, 12 de março de 2017

POBRES LIBERAIS

POBRES LIBERAIS

(Arthur Azevedo)

 

 

Foi no tempo do Império.

 

O notável político   Dr. Francelino Lopes, sendo presidente de uma província cujo nome não mencionarei   para   não   ofender   certas   suscetibilidades, aliás   mal   entendidas, resolveu, aquiescendo ao desejo dos chefes mais importantes do partido conservador (era o que estava de cima), fazer uma grande excursão por todo o interior da província, visitando as principais localidades.

 

A notícia dessa resolução abalou necessariamente a população inteira, e por toda a parte, não só as câmaras municipais como os cidadãos mais importantes, correligionários do governo, se prepararam para receber condignamente o ilustre delegado do gabinete imperial.

 

Na primeira cidade visitada pelo Dr. Francelino, foi S. Exa. Recebido na estação da estrada de ferro, que   se   achava   ricamente   adornada, ao   som   do   Hino   Nacional, executado   por   uma indisciplinada charanga, e das bombas dos foguetes estourando no ar e das aclamações do povo, cujo entusiasmo, se não era real, era, pelo menos, espalhafatoso e turbulento.

 

Estavam presentes todas as autoridades locais. Houve três discursos, cada qual mais longo, a que S. Exa. respondeu com poucas, mas eloquentes palavras.

 

Da   estação   da   estrada   de   ferro, seguiu   o presidente, a   carro, acompanhado   sempre   pelas autoridades   e   grande   massa   de   povo, para   a   câmara   municipal, onde   o   esperava   opíparo banquete, a que fez honra o estômago de S. Exa., o qual estava a dar horas como se fosse o estômago de um simples mortal.

 

À mesa, defronte do presidente, sentou-se a Baronesa de Santana, esposa do chefe do partido dominante, abastado fazendeiro, que se reservara a honra e o prazer de hospedar o grande homem.

 

Este, que era bem parecido, que não tinha ainda 40 anos, e gozava na capital do império de uma reputação um tanto donjuanesca, sentia-se devorado pelos olhares ardentes da baronesa, de idade digna de um príncipe.

 

Eram 9 horas da noite quando terminou o banquete pelo brinde de honra, erguido por S. Exa. à Sua Majestade, o Imperador.

 

Como   a   charanga   estivesse   presente   e   as   moças   manifestassem   o   desejo   de   dançar, improvisou-se   um   baile, e   o   Dr.   Francelino   Lopes   dançou   uma   quadrilha   com   a   baronesa, apertando-lhe   os   dedos   de   um   modo   que   nada   tinha   de   presidencial.   A   essa   inócua manifestação muscular limitou-se, entretanto, o esboçado namoro, que não prosseguiu por falta absoluta de ocasião.

 

Como o presidente se queixasse da fadiga produzida pela viagem, a festa foi interrompida, e as autoridades conduziram S. Exa. aos aposentos que lhe estavam reservados em casa do barão, na mesma praça onde se achava o edifício da Câmara.

 

Nessa casa que, apesar de baixa, era a melhor da cidade, haviam sido preparadas duas salas e uma alcova para o ilustre hóspede.

 

Qualquer dos três compartimentos estava luxuosamente mobiliado e o leito era magnífico.

 

Os donos da casa, o presidente da Câmara, o juiz de direito, o juiz municipal, o vigário, o delegado de polícia e outras pessoas gradas, mostraram a S. Exa. os seus cômodos, pedindo-lhe mil desculpas por não ter sido possível arranjar coisa melhor, e todos se retiraram fazendo intermináveis mesuras.

 

O último a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietário e redator principal d'A Opinião Pública, órgão do partido conservador.

 

– Peço   permissão   para   oferecer   a V.   Exa.   o número   do meu jornal publicado   hoje.   Traz a biografia   e   o   retrato   de   V.   Exa.   V.   Exa.   me   desculpará, se   não   achar   essa   modesta manifestação de apreço à altura dos merecimentos de V. Exa.

 

O Dr. Francisco Lopes agradeceu, fechou a porta e soltou um longo suspiro de alívio.

 

* * *

 

Logo que se viu sozinho, o presidente lembrou-se do seu criado de quarto, que ali devia estar... Onde se meteria ele? Provavelmente adormecera noutro cômodo da casa.

 

Felizmente o dorminhoco tivera o cuidado de desarrumar a mala de S. Exa. e pusera à mão a sua roupa de cama e os seus chinelos.

 

O   hóspede   descalçou-se, despiu-se, envergou   a   camisola   de   dormir, deitou-se, e   abriu A Opinião Pública, disposto a ler a sua biografia antes de apagar a vela.

 

Apenas   acabara   de   examinar   o   retrato, detestavelmente   xilografado, sentiu   S.   Exa.   uma dolorosa contração no ventre, e logo em seguida a necessidade imperiosa de praticar certo ato fisiológico de que nenhum indivíduo se pode eximir, nem mesmo sendo presidente da província.

 

Ele saltou do leito e começou a procurar o receptáculo sem o qual não poderia obedecer à natureza; mas nem no criado-mudo nem debaixo da cama encontrou coisa alguma. Farejou todos os cantos: nada!

 

O barão, a baronesa, o presidente da Câmara, os juízes, o vigário, o delegado de polícia, o redator d’A Opinião Pública, ninguém se lembrara de que S. Exa. era um homem como os outros homens!

 

O   Dr.   Francelino   Lopes   quis   bater   palmas, chamar   alguém, pedir   que   o   socorressem; mas esbarrou num preconceito ridículo da nossa educação; envergonhou-se de confessar o que lhe parecia uma fraqueza e era, aliás, a coisa mais natural deste mundo; receou perder a sua linha de   primeira   autoridade   da   província, desabar   do   pedestal   de   semideus aonde   o   guindaram durante a festa da recepção.

 

Além disso, que diria a formosa provinciana, a bela baronesa cujos dedinhos apertara, e cujos olhos pecaminosos o haviam devorado? Como dona da casa seria ela a primeira a saber, e achá-lo-ia ridículo e grosseiro!

 

Entretanto, o momento era crítico. O delegado do governo imperial começava a suar frio...

 

Mas de repente olhou para A Opinião Pública e lembrou-se não sei de que aventura sucedida a outro hóspede, que se achava em semelhante emergência. Não refletiu nem mais um segundo: o jornal do Bacharel Pinheiro, desdobrado sobre o soalho, substituiu o receptáculo ausente.

 

Desobrigada a natureza, S. Exa. foi de mansinho, cautelosamente, abrir uma janela.

 

A praça estava deserta e silenciosa. Nas sacadas da Câmara Municipal morriam as últimas luminárias. A cidade inteira dormia.

 

Ele agarrou cuidadosamente A Opinião Pública pelas quatro pontas e atirou tudo fora. – Depois fechou a janela, lavou-se, perfumou-se, deitou-se, e, com muita pena de não poder ler a sua biografia, apagou a vela.

 

Pouco   depois   dormia   o   sono   do   justo, que   tem   igualmente   desembaraçado   o   ventre   e   a consciência.

 

* * *

 

O Dr. Francelino Lopes despertou, ou antes, foi despertado de manhã, por um rumor confuso, que se fazia ouvir na praça, aumentando gradualmente.

 

Prestou o ouvido, e começou a distinguir, entre aquela estranha vozeira, frases de indignação, como:

– É uma infâmia! – Que pouca vergonha! – A vingança será terrível! etc.

 

E o barulho aumentava!

 

Não podia haver dúvida: tratava-se de uma perturbação da ordem pública.

 

O presidente vestiu-se à pressa, abriu a janela, e foi recebido por uma estrondosa ovação. Na praça estavam reunidas mais de quinhentas pessoas.

 

– Viva o Sr. Presidente da Província!

 

– Vivou!

 

E a charanga executou o Hino.

 

Terminado   este, o   Bacharel   Pinheiro   aproximou-se   da   janela   presidencial, e   pronunciou   as seguintes palavras:

 

– Numerosos habitantes desta cidade, admiradores das altas virtudes e dos talentos de V. Exa., vieram hoje aqui, ao romper d'alva, no intuito de dar os bons dias a V. Exa., acompanhados de uma banda de música para tocar a alvorada; mas, aqui chegando, foram surpreendidos pelo espetáculo de uma injúria ignóbil, cometida contra a pessoa de V. Exa. e contra a imprensa livre!

 

– Apoiado! regougaram aquelas quinhentas gargantas como se fossem uma só.

 

– Deixamos a injúria no lugar em que foi encontrada, isto é, debaixo da janela de V. Exa., a fim de que V. Exa. veja a que desatinos pode levar nesta cidade o ódio político e do que são capazes os liberais!

 

– Apoiado! vociferou a turba.

 

– Sim, foram os liberais! Só essa gente imunda poderia encher de imundícies a respeitável efígie e a biografia de V. Exa.!

 

– Apoiado!

 

– Mas fique certo, excelentíssimo, de que, se foi grande a ofensa, maior será o desagravo!

 

O presidente respondeu assim:

 

– Meus senhores, o acaso tem mistérios impenetráveis... tudo pode ser obra do acaso, e não dos liberais. (À parte) Pobres liberais! (Alto) Todavia, se ofensa houve, foi uma ofensa anônima, tudo quanto   pode   haver   de   mais   anônimo...   E   as   ofensas   anônimas   desprezam-se!   Viva   sua majestade o imperador!

 

– Vivou!

 

–Viva a religião do Estado!

 

– Vivou!

 

– Viva a constituição do Império!

 

– Vivou!

 

E a charanga atacou o Hino.

 

(Do livro Contos Cariocas)

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Arthur Azevedo domingo, 05 de março de 2017

HISTÓRIA VULGAR

HISTÓRIA VULGAR

Arthur Azevedo

 

 

            Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de Janeiro. Conquanto filho do barão de Batatais, lavrador abastado, jamais se divertira. Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de São Paulo, voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.

         Aos vinte e oito anos, chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao barão de uma viagem à Europa. – Para quê Europa? – Disse o velho. – Vai ao Rio de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna de ser vista. A Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã se Deus nos der vida e saúde. – O bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro.

         Quando se despediu do filho, na plataforma da estação, o barão recomendou-lhe, pela centésima vez, que tivesse muito cuidado com as más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado, se entregasse confiadamente ao Alípio.

         É verdade que o Alípio tinha exterioridades que enganavam, e não vivia senão à custa delas. Delas e do próximo. Era um rapaz da moda, mas passou pelo serviço antropométrico e ainda hoje tem o retrato na polícia.

         Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados à mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor, e quando as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o Alípio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio, e disse-lhe:

         – Cavalheiro, creio que já nos encontramos.

         – É possível.

         – Mas onde? Não me posso lembrar!

         – Em São Paulo?

         – Não, não creio.

         – Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.

         – É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é paulista?

         – Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.

         – Tem gostado?

         – Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.

         – Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer, ofereço-lhe os meus fracos préstimos.

         – Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa senão passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de espairecer.

         – Ah! O cavalheiro é lavrador?

         – Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um simples fazendeiro, sócio de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barão de Batatais?

         – Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das primeiras fortunas de São Paulo!

         – Pois é meu pai.

         – Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair, razão de mais para aceitar os meus fracos préstimos. Sou carioca da gema, conheço toda a cidade como as palmas das minhas mãos, e posso mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.

         – Oh! Senhor! Não sei a que deva...

         – À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com a sua pessoa!

         – Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de cicerone.

         – Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida é esta - andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo, pelas alcovas –  enfim, pelo monde ou l'on s'amuse! Não sei o que é trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e por mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para que me não aconteça o mesmo.

         – Então é rico?

         – Tenho alguma coisinha, tenho...

         Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não consentiu que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista se divertiu a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada, na rua Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem juntos.

         Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título de curiosidade.

         – Só a título de curiosidade – repetiu o carioca. – Eu jogo, mas não te aconselho que jogues. (Já se tratavam por tu.) O jogo é estúpido: tira sempre o necessário e não dá nunca senão o supérfluo. Tu alguma vez jogaste?

         – Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria! Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso!

         – Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é uma das mais decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês aquele sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele sujeito magro? Tem o retrato na polícia!

         Depois do jantar, que foi magnífico, regado por excelentes vinhos, aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta do tapete verde.

         – Eu vou piabar - disse o Getúlio ao Alípio.

         – Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te trouxesse a esta casa para perderes dinheiro!

         Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o bacharel não resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.

         – O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo.

         – Não posso ver defunto sem chorar - respondeu o outro, que insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.

         – Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista, e fez a última parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto de um conto de réis.

         – O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de notas, e arrumá-las na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito.

         – Vou-me embora - disse-lhe o Getúlio. – Preciso recolher-me hoje um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.

         O Alípio deixou a sala do jogo para acompanhá-lo até o corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo:

         – Ganhaste?

         – Alguma coisa.

         – Pois sim, mas não tornes a jogar, vai com o que te digo! Aconselhou, abotoando-lhe o sobretudo. – Levanta a gola, agasalha-te bem, não brinques com este clima. Eu ainda fico.

         – Precisas de algum dinheiro?

         – Não.

         – Então até amanhã?

         – Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de hoje. Adeus!

         O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi para o hotel, que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar, antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira lá não estava... Escusado é dizer que o Alípio nunca mais o procurou.

 

(Do livro Contos Cariocas)

 

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Arthur Azevedo domingo, 26 de fevereiro de 2017

AS ASNEIRAS DO GUEDES

AS ASNEIRAS DO GUEDES

Arthur Azevedo

 

            Não é precisamente um conto o que hoje vou escrever.

 

******

            Voltou do seu passeio a São Paulo o Guedes – o Guedes, sabem? – O maior asneirão que o sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui há tempos quando numa roda lhe perguntaram se tinha filhos:

            – Tenho uma filha já adúltera.

            – Adúltera?!

            – Sim, senhor, adúltera; vai fazer 17 anos.

            – Adulta quer o senhor dizer...

            – Ou isso. E uma boa menina; só tem um defeito: é muito luxuriosa.

            – Luxuriosa?!

            – Sim, senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar.

            – Ah!

            – Mas lá está minha mulher para lhe dar bons conselhos... sim, porque minha mulher é muito sensual.

            – Sensual?!

            – Sim, senhor, sensual: tem muito bom senso.

******

            Pois é como lhes digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso Guedes, cujas asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas páginas, ou mais.

            Eu estava num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrava para cumprimentar a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo compras, enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui e ali:

                        O Guedes, mal que me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo:

                        – Li no "O País" a notícia do seu aniversário...

                        E recuando dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as pálpebras, e acrescentou:

            – Faço votos para que você tenha um futuro tão brilhante como o que passou.

            Agradeci comovido essa manifestação de apreço envolvida num disparate, e apresentei o Guedes à minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que mordia os lábios para não rir.

            – Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinário reformador da língua portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de São Paulo, onde esteve a passeio.

            – Era tempo de fazer uma viagem! – Explicou ele. – Foi a primeira vez que saí do Rio de Janeiro.

            – Eu também não saí ainda desta cidade senão para ir uma vez a Petrópolis e duas a Niterói – disse D. Henriqueta.

            – Vejo então que a senhora é cortesã... – acudiu o Guedes curvando os lábios no mais amável dos seus sorrisos.

            – - Cortesã?!

            – Cortesã, sim... filha da Corte...

            – Oh! Guedes! - Observei baixinho. – Pois você não vê que está dizendo uma inconveniência?

            – Tem razão... Atualmente não se deve falar em Corte...

            – E emendou:

            – Vejo então que a senhora é capitalista federalista.

  1. Henriqueta desta vez riu-se a perder. É provável que ao leitor não aconteça o mesmo. Paciência.

******

            – Ó Guedes! Vamos lá! Diga-me! Que impressões trouxe de São Paulo?

            – Muito boas! Aquilo é uma grande terra!

            – Dizem que há lá muita sociabilidade.

            – Como?

            – Muita convivência...

            – Isso há... As famílias visitam-se... Ou moços coabitam com as moças.

            – Ora essa!

            – Que entende você por "coabitar"?

            – É... é...

            – É uma indecência... uma inconveniência... uma coisa que não se diz!...

            O Guedes inflamou-se:

            – Está você muito enganado... "Coabitar" é...

            E voltando-se para um dos caixeiros do armarinho:

            –  O senhor tem aí um dicionário que me empreste?

            – Pois não!

            E daí a dois minutos o Guedes tinha nas mãos os dois volumes do Aulete.

            – Muito bem! - Disse eu. – Procure "coabitar".

            Depois de folhear em vão o dicionário durante um ror de tempo, o teimoso exclamou:

            – Não dá! Não dá! Vejam...

            – Perdão: você está procurando com u: deve ser com o!

            – Tem razão, tem razão... Onde estava eu com a cabeça?

            E o Guedes pôs-se de novo a folhear o Aulete.

            – Não dá! Também não dá com o! Veja: de coa para coação! Não dá com nem com o!

            Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Você está procurando sem h? Dê cá o dicionário!

            E com um sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significação da palavra.

            – Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver conjuntamente".

            – Mas isso...

            – Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parênteses:

            "Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo".

            – Perdão! – Bradou o Guedes furioso. –  Perdão! Eu não disse particularmente, mas alto e bom som, e só não me ouviu quem não me quis ouvir!

            E batendo com a mão espalmada sobre o balcão:

            – Eu não sou homem que diga as coisas particularmente!

 

(Do Livro Contos Cariocas)

 


Arthur Azevedo domingo, 19 de fevereiro de 2017

A POLÊMICA

A POLÊMICA

Arthur Azevedo 

 

                        O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.

                        Felizmente era solteiro, e o dono da "pensão" onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.

                        Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.

                        Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no Colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontravam na rua.

                        O negociante ouviu-o, e disse-lhe:

                        – Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...

                        – Estou às tuas ordens

                        – Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do Commercio, um artigo contra o Saraiva.

                        – Que Saraiva?

                        – O da rua Direita.

                        – O João Fernandes Saraiva?

                        – Esse mesmo.

                        – E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?

                        – Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.

                        – A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeção de alegria; mas caiu em si:

                        – Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...

                        – Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?

                        – Mas...

                        – Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.

                        – Tenho escrúpulos...

                        – Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção.

                        – E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que não conhecessem o que a vida tem de áspero e difícil O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.

                        O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura de lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.

                        – Muito bem! - Exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.

                        – Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão!

                        –E, depois de um passeio â burra, meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:

                        – Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. – A época é difícil, mas há de se arranjar.

                        O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!

                        Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensão" que lhe emprestasse o Jornal do Commercio, e viu a sua prosa "Eu e o sr. João Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.

                        À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente".

                        Ele abriu-a e leu:

                        "Romualdo. – Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do – João Fernandes Saraiva."

                        Este bilhete inquietou o ex-jornalista.

                        Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamará ele?

                        O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!

                        – Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.

                        O menino foi-se.

                        O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.

                        Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:

                        – Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!

                        E levou-o para um compartimento reservado.

                        – Leste o Jornal do Commercio de hoje?

                        – Não –, mentiu prontamente o Romualdo. – Raramente leio o Jornal do Commercio.

                        – Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!

                        O Romualdo fingiu que leu.

                        – Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! – Bradou o Saraiva. –Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!

                        – O artigo não está mau... Tem até estilo...

                        – Preciso responder!

                        – Eu, no teu caso, não respondia...

                        – Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio Jornal ao Commercio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.

                        – Eu?...

                        – Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!...

                        – Bem sabes – gaguejou o Romualdo – que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...

                        – Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!

                        No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.

                        Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:

                        – Por amor de Deus, não te recuses a este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa...

                        O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.

                        Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: – Bravo! Não podia sair melhor! – E, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador.

                        – Oh! Isto é muito, Saraiva!

                        – Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pague bem!

                        – Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no jornal pode haver alguém que conheça a minha letra.

                        – Copiá-lo-ei eu mesmo.

                        – Adeus.

                        – Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!

                        – Está dito.

                        – No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o Jornal do Commercio na mão.

                        – O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!

                        E batendo com as costas da mão no jornal:

                        – Isto não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas ainda assim, quem escreveu por ele está longe deter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...

                        – E o Romualdo escreveu...

                        Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.

                        Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: – Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!

                        Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.

                        E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.

                        O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

 (Do livro Contos Cariocas)


Arthur Azevedo domingo, 12 de fevereiro de 2017

A MARCELINA

A MARCELINA

Arthur Azevedo

 

I

 

                        Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigatórias da Rua do Ouvidor.  Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, — mas como janota – força é confessá-lo – não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.

                        Rapaz? Rapaz, sim: o doutor Pires de Aguiar pertencia a essa privilegiada classe de solteirões que se conservam rapazes durante trinta anos.

                        Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente: — Orço pelos quarenta, — e durante muito tempo não deu outra resposta.  Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinquenta, e bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.

                        Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz.  Não fazia questão de espírito nem de beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público. Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Cítera dos bastidores.

                        Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar-se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso – muito mais generosos que inteligente, — nunca ficava mal com o astro caído.

                        Algumas vezes o rompimento era provocado por elas – pelas de mais espírito – que facilmente se enfaravam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidoso das suas roupas.

 

II

 

                        No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a nova conquista do doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas da réclame, e cuja estreia num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.

                        Uma hora antes de começar o espetáculo de estreia, entrou o advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba capa de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.

                        Ela ficou encantadíssima, e agradeceu com beijos quentes e sonoros a dedicada solicitude do amante.

                        Que belo tapete felpudo! Que bonitos quadros! Que papel bem escolhido!  Que delicioso divã! Que magnífico espelho de três faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro!  E que profusão de perfumarias! E que precioso serviço de toilette!…

                        Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, intensamente iluminada por dois bicos de gás.

                        O doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários ao camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.

                        Dali a nada ouviu-se um – Dá licença? — E o diretor de cena entrou no camarim acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada.

                        — Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.

                        A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.

                        — É doente? Perguntou Clorinda à costureira.

                        — Não, senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Saí há dois dias da Santa Casa.

                        Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, resfestelando-se no divã:

                        — Ma chère, il faut se contenter de cette habilleuse; nous ne sommes pas en Europe.

                        Ele impingiu a frase em francês, para que na a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: — Oui.

                        Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se dizendo: — Vamos a isto!

                        E dirigindo-se à costureira:

                        — Sente-se. Porque está de pé?

                        A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita.

                        — Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? Perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.

                        — Deveras?

                        — Ao que me parece, você tem sido um gajo!

                        O doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível.  Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade a dentro como uma grã-cruz.

                        — Com que então a sua especialidade são as atrizes?

                        — Sou doido pelo teatro.

                        — E há quanto tempo dura essa doidice?

                        — Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta.

                        — Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.

                        — São os seus olhos.

                        — Qual foi a sua primeira paixão no teatro?

                        — Ah, isso…

                        O advogado levantou o braço e estalou os dedos.

                        — … isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.

                        — Como se chamava essa colega?

                        — Chamava-se Marcelina.

                        — Que fim levou?

                        Ele encolheu os ombros.

                        — Sei lá! Provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados:  ninguém lhes vê os cadáveres.

                        — Gostou dela?

                        – Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.

                        — Nunca mais a procurou?

                        — Para quê?

                        — Tinha talento?

                        — Talento? Não. Tinha habilidade.

                        E depois de uma pausa:

                        — Tinha habilidade e era muito boa rapariga.

                        — Brasileira?

                        — Sim. Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia – eu já a tinha deixado – um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace!

                        Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando um interminável rosário das suas mancebias.

                        Clorinda, a costureira e o cabeleireiro, ouviam sem dizer palavra.

                        Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:

                        — Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me.

                        — Até logo, disse o advogado.  O seu penteado ficou esplêndido! Vou aplaudi-la. Bonne chance!

 

                        Deu-lhe um beijo – na testa para não desmanchar a pintura, — e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.

 

III

 

                        —Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.

                        — A senhora é muito bem-feita de corpo – disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.

                        — Acha? Perguntou desdenhosamente a atriz.

                        — Ah! Eu também já fui bem-feita de corpo, mas… não tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses … gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais.  Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.

                        — Ora esta! Exclamou Clorinda. Quem é você mulher, para me falar assim?

                        — Eu sou … a Marcelina.

 

(Do livro Contos Fora da Moda)


Arthur Azevedo domingo, 05 de fevereiro de 2017

A ÁGUA DE JANOS

A ÁGUA DE JANOS

Artur Azevedo 

                         O tenente de cavalaria Remígio Soares teve a infelicidade de ver uma noite dona Andréa num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

                        A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles belos olhos negros e rasgados.

                        Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão que se representava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

                        Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa distância o casal até o largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele –um bonde do Bispo, — sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andreia.

                        Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda — seria faltar à verdade que devo aos meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca rua Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

                         Ele ficou sabendo onde ela morava... 

II 

                        O tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

                        Mas — que contrariedade! — As janelas de Dona Andréa estavam fechadas...

                        O cavaleiro foi até a rua de santa Alexandrina e voltou — patati, patatá, patati, patatá! — E as janelas não se tinham aberto...

                        O passeio foi renovado à tarde, — o tenente passou, tornou a passar, — continuavam fechadas as janelas...

                        Malditas janelas!

                        Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

                        Mas ao quinto dia — oh, ventura! — Ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

                         Soube nessa ocasião que ela se chamava Andreia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento! Proibia expressamente a senhora de sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérberos: uma tia do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrão.

                        Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona Andreia uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta — digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada — a resposta não se fez esperar por muito tempo:

                        “Pede-me uma entrevista, e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?... Onde?... Quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós... Como há um Deus para os

que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

                        Na esperança que o grande dia chegasse, o tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andreia: procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar uma cartinha. 

III 

                        Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela. Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

                        Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas. 

IV 

                        Os leitores — e principalmente as leitoras — me desculparão de não pôr no final deste conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral não é sacrificada.

                        O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

                        Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

                        — Que tens tu?

                         — Ainda mo perguntas...

                        — Tem paciência: Jacob esperou quatorze anos.

                        — Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava de uma saúde de ferro... Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!...

                        — Isso é calor: a tua Andreia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um conselho? Mandas buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para aliviar a cabeça.

                        O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo da benemérita água.

                        Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andreia, anunciando-lhe uma carta.

                        Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

                        “A velha amanheceu hoje com febre e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico de confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

                        O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de dona Andreia! Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento: nenhum namorado faria confissões dessa ordem...

                        O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

                        “Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir... Quando algum dia haja certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza que me perdoarás.”

                        Dona Adélia não perdoou. O tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

                        Quando, no dia seguinte, ele contou a Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

                        — Vê tu que grande remédio é a água de Janos: um só copo bastou para aliviar três cabeças!

(Do livro Contos Fora da Moda)

 

 


Arthur Azevedo domingo, 29 de janeiro de 2017

A RÉCLAME

A RÉCLAME

Arthur Azevedo

 

 I

                        Era um domingo. O Comendador Viana acabou de almoçar, sentou-se numa cadeira de balanço, cruzou as mãos sobre o ventre, atirou o olhar pela janela escancarada que enchia de ar e luz a sala de jantar, e viu, no jardim vizinho, um homem a escrever, sentado à sombra de um caramanchão.

                        – Ó menina, dá cá o binóculo.

                        Laura, a esposa do Comendador Viana, trouxe-lhe o binóculo, que ele assestou contra o homem do caramanchão.

                        – Não me enganava: é ele... é o tal Passos Nogueira!...

                        – Que Passos Nogueira? Perguntou Laura.

                        O Comendador não respondeu; voltou-se para a criada, que levantava a mesa, e interpelou-a:

                        – Aquele sujeito mora ali há muito tempo? Você deve saber...

                        – Que sujeito?

                        – Aquele que está escrevendo acolá, no jardim da casa de pensão, – não vê?

                        – Ah! O poeta?

                        – Quem lhe disse a você que ele é poeta?

                        – É como o ouço tratar na vizinhança. Já ali morava quando viemos para esta casa.

                        – Entretanto, observou Laura, estamos aqui há oito meses e é a primeira vez que o vejo.

                        – Deveras? Perguntou dentre dentes o Comendador, com um olhar de desconfiança.

                        – Ora esta! Murmurou Laura, muito admirada da inflexão e do olhar do marido.

                        – Parece impossível que minha ama não tenha reparado, acudiu a criada, porque o poeta vai todas as manhãs e todas as tardes escrever naquele lugar.

                        – Todas as manhãs? Indagou o dono da casa levantando-se.

                        – E todas as tardes, repetiu ingenuamente a criada.

                        E foi par a cozinha.

                        – Viana, obtemperou Laura, aproveitando a ausência da criada, você faz umas coisas esquisitas! Esta mulher vai ficar convencida de que meu marido tem ciúmes de um homem que nem sequer conheço!

                        – Aquilo é um bandido! Regougou o Comendador.

                        – Pois deixe-o ser! Que temos nós com isso? Ele está na sua casa e nós na nossa.

                        – Se eu soubesse que aquele patife morava ali, não tínhamos vindo para cá!

                        – Mas que importa que ele more ali?

                        – Importa muito! Aquilo é sujeitinho capaz de manchar a reputação de uma senhora com um simples cumprimento. Ele algum dia já te cumprimentou?

                        – Pois eu já lhe disse que nunca reparei nesse homem?

                        – Ali onde o vês tem causado a desgraça de umas poucas de senhoras! Por causa dele a mulher de um negociante deixou o marido, a filha de um despachante da Alfândega saiu da casa do pai, e a viúva de um coronel tentou suicidar-se!

                        – Com efeito! Exclamou Laura, agarrando rapidamente no binóculo, – deve ser um homem excepcional!...

                        – Não! É melhor que não o vejas! Ponderou o marido, tomando-lhe o binóculo das mãos. Que interesse tens tu...?

                        – Apenas o interesse que você mesmo me despertou, contando-me as conquistas deste Napoleão do amor.

                        – Mulheres doentias e malucas... pobrezinhas que se deixaram levar por cantigas, ora aí tens!... Aquele peralta faz versos, e os jornais levam a dizer todos os dias que ele tem muito talento... e que é muito inspirado...

                        – Lembra-me agora que já tenho lido esse nome de Passos Nogueira.

                        – Oh, menina, vê lá se também tu...

                        – Descanse: já não estou em idade de me deixar levar por poesias.

                        – Pois sim. Peço-te que não te debruces nesta janela quando o tal poetaço estiver no seu caramanchão.

                        – Por quê? Receias que eu caia? Ora deixe-se de ciúmes!

                        – Não são ciúmes, são zelos. Não receio pelo que possas fazer... mas tenho medo que a vizinhança murmure.

II

                        Laura, que até então ignorava a existência do poeta Passos Nogueira, começou a interessar-se muito por ele, graças à réclame feita pelo Comendador. Sentia-se atraída pela figura daquele horrendo sedutor de solteiras, casadas e viúvas, e duas vezes ao dia, reclinada à janela, olhava longamente para o poeta.

                        Este acabou por notar a insistência com que era contemplado pela vizinha, e prontamente correspondeu aos seus olhares lânguidos e prometedores.

                        Estabeleceu-se logo entre eles um desses namoros saborosos e terríveis, ridículos e absorventes, que monopolizam duas existências.

                        Para justificar a precipitação dos fatos, digamos que Laura, mulher de vinte e seis anos, romântica e nervosa, casara-se, muito nova ainda, com o Comendador Viana, homem quinze anos mais velho que ela, curto e positivo, que não correspondia absolutamente ao seu ideal de moça.

                        Digamos ainda que o poeta Passos Nogueira, rapaz de talento vantajosamente apreciado, atordoou-se quando se viu provocado pelos bonitos olhos de uma bela mulher casada. Apesar da reputação que gozava e da qual se fizera eco o próprio Comendador, Passos Nogueira jamais inscrevera ao seu canhenho de conquistas fáceis

aventuras tão interessante tão considerável como essa que agora lhe desassossegava o espírito e lhe espantava as rimas.

                        Digamos ainda que o Comendador continuava todos os dias a fazer réclame ao namorado, referindo-se à sua pessoa em termos desabridos, insultando-o de modo que ele não ouvisse, e, finalmente, exprobrando a Laura, por mera presunção, que ela o animasse e lhe desse corda.

                        Não tardou que o poeta escrevesse à vizinha um bilhete, lançado por cima do muro que separava as duas casas. Perguntava-lhe pelo seu nome e pedia uma entrevista. Ela respondeu: “Não! Não é possível! Não me persiga! Esqueça-se de mim! Bem vê que não sou livre! Um encontro poderia causar a nossa desgraça!”

                        Mas, não obstante desengano tão decisivo e formal, no dia seguinte os olhos da moça encontraram-se com os do poeta. Ela sentia a necessidade, o dever de fugir daquele homem, mas não tinha forças para fazê-lo. E o namoro continuou.

 

            Dois dias depois, novo bilhete. Ela abriu-o sôfrega e palpitante, – e leu estes versos:

“Eu não sou livre”, escreveste;

Porém, se livre não era,

Por que com tantas quimeras

Encheste um cérebro nu?

Pedes que não te persiga...

Mas, por teus olhos ferido,

Reflete que o perseguido

Sou eu, meu anjo, e não tu!

Quando da tua janela

Atiras aos meus desejos

Olhares que valem beijos,

Por que tens beijos no olhar;

Quando esses ternos olhares

Com meus olhares se cruzam,

Teus lindos olhos abusam

Do seu condão de encantar!

Não te compreendo, vizinha;

Tu mesma não te compreendes:

Fazes-te amar, e pretendes

Que eu fuja e te deixe em paz!

Mas não vês que é negativo

Este sistema que empregas?

Tudo, escrevendo, me negas,

- E, olhando, tudo me dás!

Vizinha, bela vizinha,

Vizinha por quem padeço,

Pois tais palavras mereço

Que me fizeram chorar?

O prometido é devido...

Para que o peito me aquietes,

Ou dá-me quanto prometes,

Ou não prometas em dar!"

III 

                        Para encurtar razões: Passos Nogueira e Laura foram por muito tempo, e não sei se continuam a ser, os amantes mais apaixonados que ainda houve.

                        Ela nunca perdoou ao marido o mau passo que deu. Seria ainda hoje o modelo das esposas, se o Comendador não se lembrasse de fazer réclame ao poeta.

                        Este, por expressa recomendação da amante, nunca mais apareceu no caramanchão fatídico.

                        Isto fez com que o marido tornasse às boas. Uma tarde perguntou:

                        – Ó menina, então o poeta já ali não mora?

                        – Não sei, respondeu Laura com uma deliciosa indiferença. Se se mudou, melhor! Um libertino daqueles!

                        – Deixa-o lá, coitado! Muitas vezes são mais as vozes do que as nozes.

                        – Que diabo! Foi você mesmo quem falou da filha do despachante, da mulher do negociante e da viúva do coronel!...

                        – Disseram-me. Este Rio de Janeiro, menina, é a terra da maledicência. Deus me livre de que alguém se lembre de espalhar por aí que eu roubei o sino de São Francisco.

(Do livro Contos Fora da Mora)

 


Arthur Azevedo domingo, 22 de janeiro de 2017

VELHO LIMA

O VELHO LIMA

Arthur Azevedo

 

                        O velho Lima, que era empregado – empregado antigo – numa das nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil.

                        O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.

                        O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais, e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.

                        No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras:

                        – Bom dia, cidadão.

                        O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder:

                        – Bom dia, comendador.

                        – Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!

                        – Ora essa! Então por quê?

                        – A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!

                        O velho Lima encarou o comendador, e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.

                        Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:

                        – Como vai você com o Aristides?

                        – Que Aristides?

                        – O Silveira Lobo.

                        –Eu! Onde? Como?

                        – Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior?

                        Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.

                        –Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? Perguntou Vidal passados alguns momentos. Sonetos, naturalmente, que é o que mais se ocupa aquele tipo!

                        – Ora vejam, refletiu o velho Lima, ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador!

                        Entretanto, o velho Lima indignou-se vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.

                        – Uma autoridade policial! Murmurou o velho Lima.

                        E o comendador acrescentou:

                        – Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês.

                        O velho Lima comovia-se:

                        – Não diz coisa com coisa, coitado!

                        – E a bandeira? Que me diz você da bandeira?

                        – Ah, sim... a bandeira... sim... repetiu o velho Lima para o não contrariar.

                        – Como a prefere: com ou sem lema?

                        – Sem lema, respondeu o bom homem num tom de profundo pesar; sem lema.

                        – Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.

                        Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado, e disse-lhe:

                        – Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço da Pedro II!

                        – Qual Pedro II! Bradou o comendador. Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos!

                        – E vá para casa do diabo! Acrescentou o subdelegado.

                        O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.

                        Chegado à praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até à sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.

                        Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação...

                        Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:

                        – Cidadão!

                        – Deram hoje para me chamar cidadão! Pensou o velho Lima.

                        Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.

                        – Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!

                        O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente:

                        – Querem ver que já é alguém! Refletiu o velho Lima.

                        – Amanhã parto para a Paraíba, disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos; como sabe, vou exercer o cargo de chefe da polícia. Lá estou ao seu dispor.

                        E desceu.

                        – Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!

                        Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.

                        – Muito bem! Disse consigo; foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.

                        Sentou-se, e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe:

                        – Por que tiraram da parede o retrato de Sua Majestade?

                        O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso:

                        – Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?

                        E, sentando-se, pensou com tristeza:

                        – Não dou três anos para que isto seja república! 

(Do livro Contos Fora da Moda)

 


Arthur Azevedo domingo, 15 de janeiro de 2017

A DONA BRANCA

A DONA BRANCA

Arthur Azevedo 

 

                        No dia 6 de outubro de 1891, quando o senhor Vieira, ás sete horas da manhã, pôs o chapéu para sair, dona Catarina, sua esposa, disse, consertando-lhe o laço da gravata:

                        — Sabes de uma coisa? Mana Adelaide mandou convidar-me para ir hoje com ela ao Teatro Lírico.

                        — Que ideia!

                        — Aí vens tu! Vai-se embora a companhia e eu não assisto a um único espetáculo, podendo ouvir a Dona Branca de graça!

                        — Mas, filha, não te lembras que dia é hoje?

                        — É terça-feira.

                        — E então?

                        — E então?

                        — Pois não sabe que às terças-feiras não dispenso o meu voltaretezinho em casa do compadre?

                        — Quem te diz que não vás ao teu voltaretezinho? Mana Adelaide conhece os teus hábitos e as tuas impertinências; foi a mim e não a ti que convidou.

                        — Mas...

                        — Olha, eu vou jantar com ela nas Laranjeiras e de lá vamos juntas para o teatro; acabado o espetáculo, ela traz-me no seu carro, e deixa-me ficar em casa. Não gastas um vintém, nem te incomodas.

                        — Bem sei, mas não é bonito uma senhora casada ir ao teatro sem seu marido.

                        — Mas com sua irmã... e com o marido de sua irmã...

                        — Bom, bom, vai; não quero que me chamem desmancha-prazeres. Jantarei sozinho.

                        O senhor Vieira saiu, foi tratar da vida, e quando, às quatro horas, voltou à casa, já dona Catarina tinha ido ter com a irmã.

                        O pobre homem ficou muito aborrecido naquela solidão. Toda sua família era essa bela senhora com quem se casara em 1885 e contava dez anos menos que ele.

                        Tinha quarenta e quatro invernos o senhor Vieira, e inteligência bastante para perceber que dona Catarina o não amava; entretanto, contentava-se da respeitosa amizade com que ela se impunha serenamente à sua estima, e preferia mesmo esse discreto sentimento ao amor desordenado e doentio, que produz ciúmes e dispepsias, maus humores e lesões cardíacas. Depositava uma confiança cega em sua mulher e estimava-a deveras. Sentia-se feliz.

                        Mais feliz seria, entretanto, se houvesse uma criança naquela casa. Dona Catarina sofria por vezes longos acessos de melancolia; algumas noites deixava o esposo sozinho na larga cama de casados, e ia revolver-se num sofá, suspirando, irrequieta, nervosa, sem poder dormir. Mas esses fenômenos eram passageiros, e o marido, atribuía-os à ausência da prole.

                        — Decididamente, falta uma criança nesta casa!

                        Depois daquele jantar de solteirão, o senhor Vieira dormiu a sesta, e às sete horas foi para casa do compadre, em São Cristóvão. O senhor Vieira morava no Catete.

                        — Bravos! cá está o nosso homem! Exclamou o compadre e exclamaram mais dois amigos da vizinhança, que se achavam à espera do parceiro. Vamos ao vício!

                        Os quatro companheiros sentaram-se às oito horas e jogaram até perto da meia-noite. O senhor Vieira ganhou dezenove mil e quinhentos. Nunca estivera com tanta sorte.

 

******

 

                        À meia noite, depois do chá com torradas, o nosso homem saiu, e foi esperar a condução na esquina. Passados uns vinte minutos, apareceu um bonde, mas em sentido contrário, e parou para fazer saltar o Lamenha, que era vizinho paredes-meias do compadre.

                        — Olá! A estas horas, seu Lamenha? Perguntou o senhor Vieira. Já sei que vem do Lírico; foi ouvir a Dona Branca.

                        — Ora deixe-me com a Dona Branca! Se soubesse...

                        — Então a ópera não presta?

                        — Não sei; o espetáculo não passou do começo!

                        — Ora essa! Por quê?

                        — No fim do primeiro ato o público das torrinhas chamou à cena o empresário para ferrar-lhe uma pateada, não sei por que motivo. O empresário não quis ouvir. O público zangou-se. A polícia interveio, e agora é que são elas! Ah, seu Vieira, que rolo!...

                        — Deveras? Perguntou o outro empalidecendo.

                        — Os soldados da polícia acutilavam a torto e a direito, os bancos voavam, os globos dos candeeiros partiam-se, as famílias separavam-se numa confusão medonha, as senhoras tinham chiliques e soltavam gritos...

                        — As senhoras?... Meu Deus!... E a minha!...

                        — Há muita gente ferida, e não será para admirar que houvesse mortes! Eu escapei por milagre!

                        — E minha mulher que foi a este espetáculo!... 

                        — Sua senhora? Não a vi. Só vi sua cunhada, a Dona Adelaide, sozinha, correndo e gritando que parecia uma louca!

                        — Pois estavam juntas!... Felizmente aí vem o bonde... Quem sabe se não vou encontrá-la morta? Eu bem que queria que não fosse à tal Dona Branca! Ora esta!...

                        E o senhor Vieira tomou o bonde, sem mesmo se despedir de Lamenha.

 

******

 

                        Imaginem o desassossego com que o pobre diabo fez a viagem de São Cristóvão ao largo de São Francisco. Aí tomou um tílburi. O cocheiro confirmou a informação do Lamenha, acrescentando que tinham morrido duas senhoras, sendo uma de susto.

                        Ao passar pela Guarda Velha, o senhor Vieira notou que o Lírico estava imerso nas trevas e no silêncio. Chegou à casa, e expectorou um grande suspiro de alívio ao entrar na alcova: dona Catarina dormia tranquilamente, envolvida no seu lençol.

                        O marido despiu-se em silêncio e deitou-se ao lado da senhora.

                        Ela despertou:

                        — Ah! És tu?

                        Ele, completamente serenado, resolveu gracejar e perguntou-lhe sorrindo:

                        — Então, minha senhora, que me diz de Dona Branca?

                        — É uma ópera muito bonita.

                        — Hein?

                        — O último ato principalmente, acrescentou dona Catarina com muita convicção.

                        O senhor Vieira sentiu o sangue lhe subir à cabeça, mas conseguiu dissimular, e perguntou se a ópera tinha sido bem cantada.

                        — Perfeitamente cantada, respondeu ela, mentindo como só as mulheres sabem mentir.

                        — E não houve novidade durante o espetáculo?

                        — Nenhuma. O Gabrielesco esteve sublime!

                        — O Gabrielesco? No último ato?

                        — Em todos os atos. É um tenorão!

                        — Está bem.

                        O senhor Vieira apagou a vela e fingiu que se aninhava para dormir.

                        — Aí está você amuado! Eu por seu gosto não saía de casa, não me divertia, vivia metida entre quatro paredes! Que homem!...

                        Ele resmungou uns sons inarticulados; não respondeu.

                        — Será possível que o Lamenha me enganasse? – Pensava o marido. – Não; e o cocheiro do tílburi?...

                        O senhor Vieira passou, talvez pela primeira em sua vida, uma noite completamente em claro. Ergueu-se logo ao amanhecer, saiu, convenceu-se de uma verdade terrível, e nesse mesmo dia separou-se para sempre de dona Catarina.

 

******

 

                        Na terça feira seguinte, o senhor Vieira não faltou ao voltaretezinho do compadre.

                        Quando este lhe perguntou: — Então?... Que foi isso?... A comadre? — Ele respondeu melancolicamente:

                        — A comadre ouvia-me dizer que em nossa casa faltava uma criança e quis arranjá-la fora... Deixa lá! — Vamos ao vício!

                        Nessa noite perdeu quinze mil e oitocentos.

(Do livro Contos Fora da Moda)

 

 

 


Arthur Azevedo domingo, 08 de janeiro de 2017

A VINGANÇA

A VINGANÇA

Arthur Azevedo

 

                        Quando madame D’Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa troupe parisiense que fez as delícias dos frequentadores do Cassino Franco-Brésilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que madame D’Arbois resistia heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta fidelidade ao marido, um cabotin qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente que ela voltasse da América endinheirada feliz.

 

                        O jovem Comendador Cardoso, que não acreditava em Penélopes de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que, ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com madame D’Arbois.

 

                        Por esse tempo dissolveu-se a troupe, e o jovem Comendador Cardoso aproveitou o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro. Nada lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar, impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos.

 

                        Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem Comendador Cardoso e madame D’Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de trinta anos, pouco instruído é verdade, mas senhor desses hábitos sociais que até certo ponto dispensam a educação literária. Ela era uma mulher bonita alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa, econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam desejar?...

 

******

 

                        Tudo cansa. Ao cabo de um ano, madame D’Arbois começou a sentir nostalgia dos bastidores. De mais a mais, aconteceu que o empresário da melhor companha brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu um vantajoso contrato convidando-a, nada mais nem menos, para substituir a estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa.

 

                        O jovem Comendador Cardos pôs os pés à parede. Que não, que não, que não! A Lolotte  – madame D’Arbois chamava-se Charlotte – não precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!...

 

                        – Mas non, mas non! Il ne s’agite poin d’argent, mon pauvre chéri, obtemperava Lolotte; je sens que je ferais une grosse maladie si je ne rétourne pau au theathre! Eh bien... voyons... sois gentil... Il faut que tu y consentes...

 

                        Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem Comendador Cardoso, de quem era amigo íntimo e interveio com muito empenho:

 

                        – Que diabo! Consente, Cardosinho, consente! Se não lhe fazes a vontade, ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher contrariada. Depois, vê lá; não é nada, não é nada, mas sempre são seiscentos bagarotes que a pequena mete no Banco todos os meses! Não vá tu privá-la deste pecúlio.

 

                        Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois, madame d’Arbois estreava-se no papel de protagonista de uma opereta.

 

                        Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico, e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo público fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente. Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas coplas cuja letra ninguém percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um santo.

 

****** 

 

                        Razão tinha o jovem Comendador Cardoso em não querer que a amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de esperá-la no saguão do teatro, penetrava até o camarim.

 

                        Uma vez, encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro ator cômico da companhia. Que logo se retirou, dizendo:

 

                        – Adeusinho, Comendador; vim cá restituir à colega o rouge que lhe pedira emprestado.

 

                        Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento, e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar de um homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadosa da sua roupa!

 

                        Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico encontravam-se quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista perto do teatro.

 

                        Um dia, o jovem Comendador Cardoso, depois de se haver posto em observação numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista, saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em ceroulas.

 

                        O primeiro ator cômico, ao ver o jovem Comendador Cardoso, não perdeu o sangue frio, e começou a fingir que estava a ensaiar:

 

                        –  É como vos digo, princesa Briolanja; o rei, vosso pai, não acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar nos seus reinos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão Vermelho, e vos despose!...

 

                        Mas o jovem Comendador Cardoso não engoliu a pílula, e disse, dirigindo-se à princesa Briolanja, que continuava a fumar o seu cigarro turco:

 

                        – Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes, que realmente é digno da senhora!

 

            E saiu arrebatadamente.

 

                        - E agora? perguntou o cômico.

                        – - Oh! Ele voltará! afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada de fumo.

 

                        E foram deitar-se.

 

******

 

                        O jovem Comendador Cardoso não voltou, e madame d’Arbois ficou bastante contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa família –  mulher e filhos – e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa fartou-se desses amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico, inteligente, simpático e generoso!

 

                        Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as trinta primeiras representações, já não atraía o público; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresário já devia um mês de ordenados à companhia...

 

******

 

                        A primeira representação da peça que estava em ensaios, a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia ser dada em benefício do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes reclames à “festa artística”, anunciada também pelas esquinas em vistosos cartazes, onde esse nome – LOPES – se destacava em enormes caracteres vermelhos.

 

                        Chegou a noite do espetáculo. As sete horas e meia as torrinhas, os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora depois, a sala transbordava, e todo aquela gente abanava-se com leques, ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas batiam com os pés e as bengalas, e dirigiam chufas aos da plateia e dos camarotes, talvez com a ideia de se vingarem de os ver em lugares menos incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrível.

 

                        De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta, ao mesmo tempo em que uma campainha elétrica retinia longamente, e a sala, até então quase escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado O......o....oh!.... das torrinhas... Eram nove horas.

 

                        Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns músicos, bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a ouverture.

 

            Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas não subiu.

 

                        Passaram-se alguns minutos.

 

                        Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés. A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu no proscênio e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram Psiu! psiu! – E o barulho cessou.

 

                        - Respeitável público, disse o primeiro ator cômico – o espetáculo não pode ter começo, porque a atriz madame d’Arbois, incumbida de um dos principais papéis, até agora não apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia à minha vontade.

 

                        Esse cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentado e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os comentários, os risos, as imprecações e os gracejos começaram num vozerio atroador.

 

                        De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas – empregados da contrarregra, costureiras, etc. –, mandadas à procura de madame d’Arbois.

 

                        Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela polícia, veio de novo ao proscênio declarar que, não se achando madame d’Arbois no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo transferido para quando se anunciasse.

 

                        Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator cômico.

 

                        A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão indescritível. Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e promoveram desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção da polícia. Só às onze horas, pôde ser restabelecida a ordem e fechado o teatro.

 

****** 

                        Onde estava madame d’Arbois?

 

                        No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de princesa Briolanja que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem Comendador Cardoso.

 

                        –  Ah! Ah! Pensou a francesa com um sorriso de triunfo, voltou ou não voltou?

 

                        E abriu a carta:

 

 

“Lolotte – Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdoo-te, mas sob uma condição: deixarás de

representar hoje no benefício do homem que foi o causador da nossa separação, ou, por outra, nunca mais representarás. Só assim serei para ti o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te no carro que aí te irá buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficarás em minha companhia. Se não, não. – Cardoso.”

 

                        A princesa Briolanla leu e releu este bilhete. Era o perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas letras. Deixando de comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação feia, provocava um escândalo inaudito, mas isso que lhe importava, se saía do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia?

 

                        Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto coupé que a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na ocasião em que o Lopes desesperado, apelava para a paciência do público.

 

****** 

 

                        Ao entrar no hotel, madame d’Arbois perguntou a um criado:

 

                        – O Comendador Cardoso?

                        – Não está, mas deixou um bilhete para a madame d’Arbois. É a senhora?

                        - Sim, sou eu.

                        E a desgraçada leu o seguinte:

 

“Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite ainda. – Cardoso.”

 

 


Arthur Azevedo domingo, 01 de janeiro de 2017

UMA EMBAIXADA

UMA EMBAIXADA

Arthur Azevedo

 

 

                        Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema

                        – Entra. Estava ansioso.

                        – Vim, mal recebi o teu bilhete. Que desejas de mim?

                        – Um grande serviço!

                        – - Oh, diabo! Trata-se de algum duelo?

                        – Trata-se simplesmente de amor. Senta-te.

                        Sentaram-se ambos.

*

                        Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opiniões ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.

*

                        – Mandei-te chamar, continuou Minervino, porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há se der hoje por força.

                        – Estou às tuas ordens.

                        – Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?

                        –  Sim, lembro-me... um namoro...

                        – Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!

                        – Quê? Tu estás apaixonado?!...

                        – Apaixonadíssimo... e é preciso acabar com isto!

                        – De que modo?

                        – Casando-me; e tu que hás de pedi-la!

                        –  Eu?!...

                        – Sim, meu amigo. Bem sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: - Vá descansado, hei de fazer justiça, - eu respondi-lhe: - Vossa Excelência, se me nomear, não chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que dirá com as viúvas!

                        – Mas tu a conheces?

                        – Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido de minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem-sucedido. Dize-lhe de mimo melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.

                        – Mas que diabo! Observou Salema, – isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!

                        – Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.

                        – Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?

                        – Ah! Como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa.

                        E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre:

                        – Vai! Vai! Não te demores!

                        Salema saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.

                        No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.

                        – Que diabo! Refletiu ele; não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.

                        Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de reps, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.

                        Salema esperou uns dez minutos.

                        Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os movimentos, e não pode reter uma exclamação de surpresa.

*

                        Era ela! Ela!.. A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.

                        Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!...

*

                        – Oh!, disse a viúva, estendendo-lhe a mão, muito naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o senhor?

                        – Conhece-me? Balbuciou Salema.

                        – Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e, não sei por que... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem.... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Por que nunca mais tornei a vê-lo?

                        Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se mais tímido que Minervino, - mas cobrou ânimo, e respondeu:

                        – Não foi porque não a procurasse por toda a parte...

                        – Não sabia onde eu morava?

                        – Não; supus que nas Laranjeiras. Via-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.

                        – Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só se abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo de sua visita.

                        De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.

                        – O motivo da minha visita é muito delicado; eu...

                        – - Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...

                        E apontou para o retrato.

                        – Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...

                        – Minha senhora, eu sou...

                        Ela interrompeu...

                        – É o senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.

                        Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.

                        – É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações e quase rica. Não tenho filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo!

                        Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou falar.

                        – Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.

                        Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.

                        – Mano, apresento-lhe o senhor Nuno Salema, o meu noivo.

                        O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:

                        – - All right!...

                        Depois inclinou-se, de novo e saiu da sala, sempre apressado.

                        – Mas, minha senhora, tartamudeou o noivo muito confundido, imagine que o meu colega Minervino que mora ali defronte...

                        A viúva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que viu, deu um pulo para trás e sumiu-se.

                        – Ah! Aquele moço?... Coitado! Não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...

                        – Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...

                        – Deveras?! Exclamou a viúva Perkins.

                        E ei-la acometida de um ataque de riso:

                        – Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

                        – E deixou-se cair no divã.

                        – Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

                        Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou:

                        – Que hei de dizer ao meu amigo?

                        Ela ficou muito séria, e respondeu:

                        – Diga-lhe que quem tem boca não manda assoprar.

******

(Do livro Contos Fora da Moda)

 


Arthur Azevedo domingo, 25 de dezembro de 2016

A FILHA DO PATRÃO, CONTO DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO

A FILHA DO PATRÃO

Arthur Azevedo

 

I

 

            O comendador Ferreira esteve quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo pela escada abaixo com um pontapé bem aplicado. Pois não! Um biltre, um farroupilha, um pobre-diabo sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era o que faltava! Que ele estivesse durante tantos anos a ajuntar dinheiro para encher os bolsos a um valdevinos daquela espécie, dando-lhe a filha ainda por cima, a filha, que era a rapariga mais bonita e mais bem-educada de toda a rua de S. Clemente! Boas!

 

            O comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um “Não, meu caro senhor” capaz de desanimar o namorado mais decidido ao emprego de todas as astúcias do coração.

 

            O pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxão de orelhas e o pontapé, que felizmente não passaram de tímido projeto.

 

            Na rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões: — Pois há de ser minha, custe o que custar! — Voltou-se, viu numa janela Adosinda, a filha do comendador, que desesperadamente lhe fazia com a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do polegar, o que muito claramente queria dizer: — Babau! — E, como eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Club. Era domingo e havia corridas.

 

            O comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela não apanhou o puxão de orelhas destinado ao moço, seria faltar à verdade que devo aos pacientes leitores; apanhou-o, coitadinha! E naturalmente, a julgar pelo grito estrídulo que deu, exagerou a dor física produzida por aquela grosseira manifestação da cólera paterna.

 

            Seguiu-se um diálogo terrível:

 

            — Quem é aquele pelintra?

            — Chama-se Borges.

            — De onde você o conhece?

            — Do Clube Guanabarense... daquela noite em que papai me levou...

            — Ele em que se emprega? Que faz ele?...

            — Faz versos.

            — E você não tem vergonha de gostar de um homem que faz versos?

            — Não tenho culpa; culpado é o meu coração.

            — Esse vagabundo algum dia lhe escreveu?

            — Escreveu-me uma carta.

            — Quem lhe trouxe?

            — Ninguém. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela.

            — Que lhe dizia ele nessa carta?

            — Nada que me ofendesse; queria a minha autorização para pedir-me em casamento.

            — Onde está ela?

            — Ela quem?

            — A carta!

 

            Adosinda, sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O comendador abriu-a, leu-a, e guardou-a no bolso. Depois continuou:

 

            — Você respondeu a isto?

            A moça gaguejou.

            — Não minta!

            — Respondi, sim, senhor.

            — Em que termos?

            — Respondi que sim, que me pedisse.

            — Pois olhe: proíbo-lhe, percebe? pro-í-bo-lhe que de hoje em diante dê trela a esse peralvilho! Se me contar que ele anda a rondar-me a casa, ou que se corresponde com você, mando desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do comendador Ferreira), e a você, minha sirigaita... a você... Não lhe digo nada!...

 

II

 

            Três dias depois desse diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia do seu Borges, e o rapto foi auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um dinheiro ganho nas corridas do Derby. Até hoje ignora o comendador que o seu fiel cozinheiro contribuísse para tão lastimoso incidente.

 

            O pai ficou possesso, mas não fez escândalo, não foi à polícia, não disse nada nem mesmo aos amigos íntimos; não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer o seu profundo desgosto.

 

            E teve razão, porque, passados quatro dias, Adosinda e o Borges vinham, à noite, ajoelhar-se aos seus pés e pedir-lhe a bênção, como nos dramalhões e novelas sentimentais.

 

III

 

            Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o comendador Ferreira deveria perdoar os dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de tempo; mas infelizmente as coisas não se passarão assim, e a moral, como vão ver, foi sacrificada pelo egoísmo.

 

            Com a resolução de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando:

 

            — Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça saltar os miolos!...

 

            A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor à pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis.

 

            O pai foi fechar a porta, guardou o revólver, e, aproximando-se de Adosinda, que, encostada ao piano tremia como varas verdes, abraçou-a e beijou-a com um carinho que nunca manifestara em ocasiões menos inoportunas.

 

            A moça estava assombrada: esperava, pelo menos, a maldição paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe, e habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço afetuosos encheram-na de confusão e pasmo.

 

            O comendador foi o primeiro a falar:

 

            — Vês? — disse ele, apontando para a porta — vês? O homem por quem abandonaste teu pai é um covarde, um miserável, que foge diante do cano de um revólver! Não é um homem!...

            — Isso é ele — murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto.

 

            O pai sentou-se no sofá, chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos seus joelhos, e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que se esquecesse do homem que a raptara, um troca-tintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada mais; pintou-lhe um futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai, que a desprezaria se semelhante casamento se realizasse; desse pai, que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhoso dos pais.

 

            No fim dessa catequese, a moça parecia convencida de que nos braços do Borges não encontraria realmente toda a felicidade possível; mas...

 

            — Mas agora... é tarde — balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas de ainda há pouco.

            — Não; não é tarde — disse o comendador. — Conheces o Manuel, o meu primeiro caixeiro do armazém?

            — Conheço: é um enjoado.

            — Qual enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um homem de conta, peso e medida! Não descobriu a pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio, uma perspicácia que o levará longe, hás de ver!

 

E durante um quarto de hora o comendador Ferreira gabou as excelências do seu caixeiro Manuel.

 

            Adosinda ficou vencida.

 

            A conferência terminou por estas palavras:

— Falo-lhe?

            — Fale, papai.

 

IV

 

            No dia seguinte o comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:

 

            — Seu Manuel, estou muito contente com os seus serviços.

            — Oh! patrão!

            — Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.

            — Oh! patrão!

            — Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento além do ordenado.

            — Oh! patrão! isso não faz um pai ao filho!...

            — Ainda não é tudo. Quero que você se case com minha filha. Doto-a com cinquenta contos.

 

            O pobre-diabo sentiu-se engasgado pela comoção: não pôde articular uma palavra.

 

            — Mas eu sou um homem sério — continuou o patrão. — A minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha... não é virgem.

 

            O noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras, ajustou os lábios em bico, e respondeu com um sorriso resignado e humilde:

 

            — Oh! patrão! ainda mesmo que fosse, não fazia mal!

 

(Do livro Contos Fora da Moda)

 


Arthur Azevedo domingo, 18 de dezembro de 2016

BLACK

 

 

BLACK

Arthur Azevedo

 

 

                        Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do bairro de São Cristóvão, frequentava a casa do senhor Martins, que era casado com a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro.

 

                        Mas, por uma singularidade notável, tão notável que a vizinhança logo notou, Leandrinho só ia à casa do senhor Martins quando o senhor Martins não estava em casa.

 

                        Esperava que ele saísse e tomasse o bonde que o transportava à cidade, quase à porta da sua repartição; entrava no corredor com a petulância do guerreiro em terreno conquistado, e dona Candinha (assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o na sala de visitas, e de lá passavam ambos para a alcova, onde os esperava o tálamo aviltado pelos seus amores ignóbeis.

 

                        A ventura de Leandrinho tinha um único senão: havia na casa um cãozinho de raça, um bull-terrier, chamado Black, que latia desesperadamente sempre que farejava a presença daquele estranho.

 

                        Dir-se-ia que o inteligente animal compreendia tudo e daquele modo exprimia a indignação que tamanha patifaria lhe causava.

 

                        Entretanto, o inconveniente foi remediado. A poder de carícias e pão-de-ló, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho captar a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebê-lo à porta da rua, e acompanhava-o no corredor, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.

 

                        As mulheres viciosas e apaixonadas comprazem-se na aproximação do perigo; por isso, dona Candinha desejava ardentemente que Leandrinho travasse relações de amizade com o senhor Martins.

 

                        Tudo se combinou, e uma bela noite os dois amantes se encontraram, como por acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela. Depois de dançar com ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de apresentá-lo ao marido.

 

                        Sucedeu o que invariavelmente sucede. A manifestação de simpatia do senhor Martins não se demorou tanto como a Black: foi fulminante.

 

                        Os maridos são por via de regra, menos desconfiados que os bull-terriers.

 

                        O pobre homem nunca tivera diante de si cavalheiro tão simpático, tão bem-educado, tão insinuante. Ao terminar o sarau, pareciam dois velhos amigos.

 

                        À saída do clube, Leandrinho deu o braço a dona Candinha, e, como, “também morava para aqueles lados”, acompanhou o casal até a rua do Pau-Ferro.

 

                        Separam-se à porta da casa.

 

                        O marido insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer em receber a sua visita. Jantavam ás cinco. Aos domingos um pouco mais cedo, pois nesses dias a cozinheira ia passear.

 

                        — Hei de aparecer, prometeu Leandrinho.

                        — Olhe, venha quarta-feira – disse o senhor Martins. – Minha mulher faz anos nesse dia. Mata-se um peru e há mais alguns amigos à mesa, poucos, muito poucos, e de nenhuma cerimônia. Venha. Dar-nos-á muito prazer.

                        — Não faltarei, protestou Leandrinho.

 

                        E despediu-se.

 

                        — É muito simpático, observou o senhor Martins metendo a chave no trinco.

                        — É, murmurou secamente dona Candinha.

 

                        Black, que os farejara, esperava-os lá dentro, no corredor, grunhindo, arranhando a porta, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.

 

******

 

                        Na quarta-feira aprazada Leandrinho embonecou-se todo e foi à casa do senhor Martins., levando consigo um soberbo ramo de violetas.

 

                        O dono da casa, que estava na sala de visitas com alguns amigos, encaminhou-se para ele de braços abertos, e dispunha-se a apresentá-lo às pessoas presentes, quando Black veio a correr lá de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recém-chegado, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.

 

******

 

 

                        O senhor Martins, que conhecia o cão e sabia-o incapaz de tanta familiaridade com pessoas estranhas, teve uma ideia sinistra, e como os dois amantes enfiassem, a situação ficou para ele perfeitamente esclarecida.

 

                        Não se descreve o escândalo produzido pela inocente indiscrição de Black. Basta dizer que, a despeito da intervenção dos parentes e amigos ali reunidos, dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapés valentemente aplicados.

 

******

 

 

                        O senhor Martins, que não tinha filhos, a princípio sofreu muito, mas afinal habituou-se à solidão.

 

                        Nem era esta assim tão grande, pois todas as vezes que ele entrava em casa, vinha recebê-lo o seu bom amigo, o indiscreto Black saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.

 

(Do livro Contos Fora da Moda)

 


Arthur Azevedo domingo, 11 de dezembro de 2016

A PRAIA DE SANTA LUZIA, CONTO DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO

A PRAIA DE SANTA LUZIA

Arthur Azevedo

 

                        Maurício casara-se muito cedo, aos dezenove anos, e era feliz, porque ia completar os vinte e quatro sem ter o menor motivo de queixa contra vida conjugal.

                        Justiça se lhe faça: era marido exemplaríssimo em terra tão perigosa para os rapazes de sua idade. Tinha essa virtude burguesa, que as mulheres amantes colocam acima dos sentimentos mais elevados: era caseiro. Ia para a repartição às nove horas, e, às quatro, estava em casa, invariavelmente. Só por exceção saía à noite, mas acompanhado por sua mulher. Adorava-a.

                        Adorava-a, mas, um dia...

                        Não! Não precipitemos o conto; procedamos com método.

 

                        Maurício exercia na Alfândega um modesto emprego de escriturário, e, como residisse nas proximidades do Passeio Público, e era por natureza comodista e ordenado, tomava sistematicamente, às nove horas, o bondinho que contornava parte do morro do castelo, e ia despejá-lo no Carceler, perto da repartição.

                        Habitou-se a atravessar todas as manhãs dos dias úteis a praia de Santa Luzia, e, afinal, tanto se apaixonara por esse sítio, realmente belo, que por coisa alguma renunciaria ao inocente prazer de contemplá-lo com tão rigorosa pontualidade.

                        Num dia, as montanhas da outra banda pareciam desfazerem-se em nuvens tênues e azuladas, confundindo-se com o horizonte longínquo; noutro, violentamente batidas pelo sol, tinham contornos enérgicos e destacavam-se no fundo cerúleo da tela maravilhosa. O outeiro da Glória, a fortaleza de Villegaignon, a ponte pedregosa do Arsenal de Guerra, – tudo isso encantava o nosso Maurício pelos seus diversos e sucessivos aspectos de coloração. Era ali e só ali que notava e lhe comprazia a volubilidade característica da natureza fluminense – moça faceira que cada dia inventa novos enfeites e arrebiques.

                        E o belo e opulento arvoredo defronte da Santa Casa? Como era agradável atravessar a sombra daquelas árvores frondosas e venerandas, cuja seiva parece alimentada por tantas vidas que se extinguem no hospital fronteiro!

 

                        A praia de Santa Luzia de tal modo o extasiava, que, ao passar pelo Necrotério, Maurício descobria-se, mas desviava os olhos para que o espetáculo da morte não lhe desfizesse a boa e consoladora impressão do espetáculo da vida.

                        Notava com desgosto que outros passageiros do bondinho estendiam o pescoço, voltando-se para inspecionar a lúgubre capelinha. Pela expressão de curiosidade satisfeita, ou de contrariedade, que ele claramente lia no rosto desses passageiros, adivinhava se havia ou não cadáveres lá dentro.

                        Um velhote, com quem se encontrava assiduamente no bondinho, e já o cumprimentava, de uma feita o aborreceu bastante, dizendo-lhe, depois de olhar para o Necrotério:

                        – Três hóspedes!

 

                        Foi morar para a rua de Santa Luzia, numa casinha baixa, de porta e janela, certa família pobre, de que fazia parte uma lindíssima rapariga dos seus dezoito anos, morena, desse moreno purpúreo, que deve ser a cor dos anjos do céu.

                        Maurício via-a todas as manhãs, e não desviava os olhos, como defronte do Necrotério; pelo contrário, incluiu-a na lista dos prodígios naturais que o deslumbravam todos os dias. A morena ficou fazendo parte integrante do panorama, em concorrência com a serra dos Órgãos, o outeiro da Glória, o ilhote de Villegaignon e as árvores da Misericórdia.

                        Aquele olhar cronométrico, infalível, à mesma hora, no mesmíssimo instante, acabou por impressionar a morena.

                        Pouco tardou para que entre o bondinho e a janela se estabelecesse ligeira familiaridade. Um dia, a moça teve um gesto de cabeça, quase imperceptível, e Maurício instintivamente levou a mão ao chapéu. Daí por diante, nunca mais deixou de cumprimentá-la.

                        Quinze dias depois, ela acompanhou o cumprimento por um sorriso enfeitado pelos mais belos dentes do mundo, e isso lhe revelou, a ele, que a beleza de tão importante acessório do seu panorama também variava de aspecto.

                        Maurício correspondeu ao sorriso, maquinalmente, com os dois lábios curvados por uma simpatia irresistível – e se os dois jovens já se não viam sem se cumprimentar, de então em diante não se cumprimentavam sem sorrir um para o outro.

 

                        Um dia, o cumprimento mudou inesperadamente de forma; ela disse adeus com a mãozinha, agitando os dedos, com muita sem cerimônia, como o faria a algum amigo íntimo. Ele imitou-a, num movimento natural, espontâneo, quase inconsciente.

                        Estavam as coisas neste ponto – o fogo ao pé da pólvora –, quando um dia, depois do cumprimento e do sorriso habitual, um moleque saltou levípede à plataforma do bondinho, e entregou uma carta à Maurício.

                        – Está que Sinhazinha mandou.

                        O moço, muito surpreso e um pouco vexado, pois percebeu que o velhote, o tal da pilhéria dos três hóspedes, e dois estudantes de medicina riam à socapa, guardou a carta no bolso, e só foi abri-la Alfândega.

 

                        “Me escreva e me diga como chama-se em que anno está e cuando se fórma, e quero saber se gostas de mim por paçatempo ou se pedes a minha mão a minha família, que é meu Pay, minha Mây e um irmão. Desta que lhe ama. – Adélia.”

 

                        Maurício caiu das nuvens, e só então reparou que cometera uma monstruosidade. Nunca lhe passara pela cabeça ideias de namoro, amava muito sua mulher, a mãe do seu filho, e era incapaz de traí-la, desencaminhando uma pobre menina que o supunha solteiro e estudante, e era para ele apenas um acessório do seu panorama.

                        Aquela carta surpreendera-o tanto, como se a própria fortaleza de Villegaignon lhe perguntasse: – Quando te casas comigo? – Ou a ermida da Glória lhe dissesse: – Pede-me a papai!...

 

                        Nas ocasiões difíceis Maurício consultava o seu chefe de seção, que o apreciava muito.

Expôs-lhe francamente o caso, e perguntou-lhe:

                        – Que devo fazer?

                        – Uma coisa muito simples: nunca mais passar pela praia de Santa Luzia. Olhe que o menos que pode arranjar é uma tunda de pau!

                        – Mas o senhor não imagina o sacrifício que me aconselha! A praia de Santa Luzia entrou de tal forma nos meus hábitos, que hoje até me parece indispensável à existência. Por amor de Deus, não me prive da praia de Santa Luzia!...

                        – Nesse caso, diga-lhe francamente que é casado.

                        – Dizer-lhe... Mas como?

                        –Amanhã, quando passar, em vez de cumprimentá-la, mostre-lhe o seu anel de casamento. Ela compreenderá.

                        Maurício cumpriu a recomendação à risca, e Adélia viu perfeitamente a grossa aliança de ouro.

                        Mas, no dia seguinte, a moça esperou-o ainda mais satisfeita e risonha que na véspera – e o moleque, trepando pela segunda vez à plataforma do carro, entregou a Maurício outra cartinha.

                        – Que diabo! – Pensou ele, guardando a epístola. Ela sorria. Vaidade feminina, não é outra coisa... Sorria para que eu não a supusesse despeitada. As mulheres são assim. Faço ideia da descompostura que aqui está escrita!

                        Enganava-se:

                        “Meu amor – Vejo que você já comprou sua aliansa e eu também ontem mesmo incomendei a minha, amanhã paça a pé e me diz cuando formas-te e cuando pedes-me a meu Pay. Nem çei o teu nome. Tua até morrer – Adélia.”

 

                        Maurício tomou – pudera! – a heroica e sublime resolução de se privar da praia e Santa Luzia.

(Do  livro Contos Fora da Moda)

 

 


Arthur Azevedo domingo, 04 de dezembro de 2016

CAIPORISMO - CONTO DO ESCRITOR MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO

CAIPORISMO

Arthur Azevedo

 

I

 

                        – Oh! Secundino!

                        – Oh! Borges!

                        – Tu no Rio de Janeiro!

                        – Há oito dias.

                        – Vieste a passeio?

                        – Não, meu amigo; vim tocado pela desgraça.

                        – Pela desgraça?

                        – “Desgraça” é talvez forte demais. Pelo caiporismo, se quiseres.

                        – E és tão caipora assim?

                        – Pertenço ao número dos tais que caem de costas e quebram o nariz!

                        – Oh, diabo! Entremos neste café, e, enquanto tomamos alguma coisa, conta-me qual tem sido a tua vida nestes doze anos de ausência.

                        Passava-se isto na rua do Ouvidor, em frente ao Pascoal. Os dois amigos e comprovincianos entraram no Café do Rio, e sentaram-se a uma das mesas.

 

II

 

                        – A minha vida, principiou Secundino, resume-se numa palavra: miséria. Quando vieste da Vitória e lá me deixaste, eu era ainda, por bem dizer, uma criança. Vivia em casa de minha família, onde nada me faltava. Morreu meu pai, morreu minha mãe, minhas irmãs casaram-se, e eu fiz-me sócio de uma loja de fazendas. Ao fim de seis meses, abriram-me falência. Saí com uma mão atrás e outra adiante, e fui ser caixeiro de um bruto, um ingrato, que, ao fim de oito anos, em vez de me dar sociedade, passou a casa a um sujeito meu desafeto. Desgostoso, abandonei o comércio e quis ser empregado público. Apresentei-me em quatro concursos, e, apesar de bem classificado, não consegui que me nomeassem. Fundei uma folha, que acabou logo por falta de assinantes. Contratei casamento com a filha de um fazendeiro rico de S. Mateus, e a minha querida noiva, que me estimava muito, morreu um mês antes do dia marcado para o casamento. Afinal, desesperado, baldo inteiramente de recursos, aceitei um lugar de contínuo na Tesouraria da Fazenda...

                        -Tu?! Com as tuas habilitações?!

                        – É para que vejas, respondeu Secundino com lágrimas na voz. Mas isso mesmo foi considerado muito para mim. Demitiram-me acintosamente por não ter votado no candidato oficial nas últimas eleições. Resolvi então vir para o Rio de Janeiro, ao Deus dará... Arranjei duzentos e tantos mil réis, vendendo tudo o quanto possuía, e aqui estou sem emprego, sem esperanças, sem promessa, sem relações, e com sessenta mil réis no bolso. É tudo quanto me resta da minha fortuna.

                        – Pois bem, ofereço-te um emprego.

                        – Deveras?

                        – Oh! Não é coisa para arregalares desse modo os olhos. É um biscate, que te pode servir enquanto não arranjar coisa melhor.

                        – Tudo me serve, meu amigo: a minha situação é desesperadora.

                        – Pois bem. Conheces a viúva Salgado?

                        – Não conheço aqui ninguém.

                        – Tens razão. A viúva Salgado é uma senhora riquíssima. Tem duas filhas. Quer que elas saibam francês, inglês, e me incumbiu de contratar um professor que lhe dê lições em casa, duas vezes por semana, ganhando cento e vinte mil réis mensais.

                        – Mas é uma pechincha!

                        – Não tens que perder tempo. Aqui está um cartão meu para te apresentares hoje mesmo, agora mesmo, se quiseres, em casa da viúva Salgado.

                        – Onde é?

                        – - Rua do Catete.

                        – Número?

                        – Não sei o número, mas o condutor te indicará a casa. Não há quem não conheça a viúva Salgado. Olha, toma-se o bonde ali defronte e para-se mesmo na porta. Sabes onde é o Ministério dos Estrangeiros?

                        – Não.

                        – Conheces o Palácio de Nova Friburgo? Deves conhecer, que diabo! Já tens oito dias de Rio de Janeiro!

                        – Conheço.

                        – Pois é nessas imediações; quase defronte.

                        – Já sei pouco mais ou menos onde deve ser.

                        – Pois vai tomar o bonde, e sê feliz.

                        Daí a dois minutos, Secundino partia para a rua do Catete.

 

III

 

                        O bonde parou no largo da Carioca.

                        Uma senhora de meia idade, muito gorda, muito feia, mas luxuosamente vestida, aproximou-se para entrar no carro. Havia um único lugar desocupado ao pé de Secundino. Este encolheu-se todo para deixar entrar a senhora, que só a muito custo conseguiu abrir caminho entre os joelhos do provinciano e o banco da frente. Depois de sentada, a senhora gorda encarou o seu vizinho com um olhar cheio de ódio, e disse bem alto, para que todos ouvissem:

                        – Com efeito! Sempre há sujeitinhos muito malcriados!

                        E repetiu, depois de alguns segundos:

                        – Sujeitinhos muito malcriados!

                        – Isso é comigo, minha senhora? – Perguntou Secundino timidamente.

                        – Pois com quem há de ser? Se fazia tanto empenho em ficar na ponta do banco, devia levantar-se um instantinho para deixar-me passar sem me magoar as pernas nem amarrotar o vestido! Ora vejam como ficou esta saia!

                        – Minha senhora, quem não quer se sujeitar a estas contrariedades não anda de bonde: aluga um carro.

                        – Cale-se! Não seja insolente! Você responde assim por ver que não tenho um homem a meu lado.

                        E a senhora gorda percorreu com os olhos todos os passageiros do bonde, na esperança de que algum tomasse as dores por ela.

                        – O meu caiporismo! – Refletiu Secundino. E, enfiado, apeou-se no largo da Mãe do Bispo.

 

IV

 

                        Veio outro bonde. O provinciano entrou nele, e um quarto e hora depois, subia a escada da viúva Salgado. Calcou o botão de uma campainha elétrica. Veio um copeiro encasacado. Secundino entregou o cartão do seu amigo Borges, e esperou.

                        Daí a cinco minutos abriram-lhe a porta da sala, uma sala opulenta, atapetada com luxo, mobiliada suntuosamente, cheia de quadros e quinquilharias.

                        Esperou meia hora. Rasgou-se afinal, um reposteiro de seda, e apareceu a dona da casa.

A viúva, mal encarou Secundino, gritou, cheia de surpresa e de cólera:

                        – Pois é você, seu malcriado?! E eu que supunha ser o senhor Borges! Ponha-se já, já no olho da rua! Já!...

                        Secundino reconheceu na viúva Salgado a senhora gorda do bonde. Saiu da sala precipitadamente e desceu a escada aos pulos. Só respirou na rua.

                        Foi, realmente, muito caiporismo!

(Do livro Contos Fora da Moda)

 

 

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Arthur Azevedo domingo, 27 de novembro de 2016

A COZINHEIRA - CONTO DO ESCRITOR MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO

A COZINHEIRA

Arthur Azevedo

 

I

 

                        Araújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o relógio: era cinco e meia.

                        – Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste estado! - Maricas! – Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de seda. Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava todo dia à mesma hora, invariavelmente, e interpelou-a:

                        – Então, o jantar?

                        – Pois sim, espera por ele!

                        – Alguma novidade?

                        – A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao menos deitar as panelas no fogo!

                        Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava! A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado nem oito dias!

                        – Diabo! – Dizia ele irritadíssimo – Diabo!

                        E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir cinquenta escadas à procura de uma cozinheira! Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! – Papapá! – Quem bate? – Foi aqui que anunciaram uma

cozinheira? – Foi, mas já está alugada. – Repetiu-se esta cena um ror de vezes!

                        – Vai a uma agência – aconselhou Maricas.

                        – Ora muito obrigado! Bem sabes o que temos sofrido com as tais agências. Não há nada pior.

                        E, enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que ele ao entrar deixara sobre o aparador.

                        – Oh! Como é lindo! – Exclamou, extasiada diante de um magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. – Há de me ficar muito bem. Decididamente és um homem de gosto!

                        E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos e carícias o inesperado mimo. Ele deixava-se beijar friamente, repetindo sempre:

                        – Diabo! Diabo!...

                        – Não te amofines assim por causa de uma cozinheira.

                        – Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra à procura de outra.

                        – Se queres, irei; não me custa.

                        – Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo.

                        Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e disse:

                        – Ora, adeus! Vamos jantar num hotel!

                        – Apoiado! Em qual há de ser?

                        – No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade seria uma grande maçada.

                        – Está dito: vamos ao Daury.

                        – Vai te vestir

 

                        Às oito horas da noite, Araújo e Maricas voltaram do Daury, perfeitamente jantados e puseram-se à fresca. Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado num soberbo divã estofado, saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso.

                        Às dez horas, recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas, oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas.

 

                        À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil cuidados para não despertá-la.

                        A uns cinquenta passos de distância, dissimulado na sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou, à medida que o dono da casa se afastava...

                        Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no silêncio, e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do bolso, abriu a porta do chalé, e entrou...

                        Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte, veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos.

                        Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a de São Cristóvão, e um quarto de hora depois, entrava numa casinha de aparência pobre.

 

II

 

                        Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda estava acordada. O esposo deu-lhe o beijo convencional, um beijo apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa.

                        – Venho achar-te acordada: isso é novidade!

                        – É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se, e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças.

                        – Oh, senhor! É sina minha andar atrás de cozinheiras!

                        – Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra.

                        – Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou para maçadas!

                        Depois que o marido se deitou, dona Ernestina, timidamente:

                        – E o meu chapéu? – Perguntou – compraste-o?

                        – Que chapéu?

                        –  O chapéu que te pedi.

                        – Ah? Já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito arrebentado...

                        – É que o outro já está tão velho...

                        – Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois, depois...

                        – Bom... quando puderes.

                        E adormeceram.

                        Logo pela manhã, a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de cozinheira.

                        Os pequenos ficaram na escola.

 

                        Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico. A amante vivia num bonito chalé; a família morava numa velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o conforto, o bem-estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia. Ali, os guardanapos eram de linho; aqui, os lençóis, de algodão. Na rua do Matoso, havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão, muitas vezes, faltava o necessário.

 

                        Araújo, prontamente, arranjou cozinheira para a rua do Matoso, e, à meia noite, encontrou a esposa muito satisfeita:

                        – Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente cozinheira!

                        – Sério?

                        – Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem! Esta não me sai mais de casa.

 

                        Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a Gazeta. A senhora estava no banho; os meninos tinham ido para a escola.

                        – Eh! Eh! Meu amo, é vossuncê que é dono da casa?

                        Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que tinha estado em casa de Maricas!

                        – Cala-te, diabo! Não digas que me conheces!

                        – Sim, sinhô.

                        – Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos deixaste sem jantar, hein?

                        – Mentira só, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha ama foi que me botou pra fora!

                        – Ora essa! Por quê?

                        – Ela me xingou pru via das compras, e eu ameaçou ela de dizê tudo a vossuncê.

                        – Tudo, o quê?

                        – A história do estudante que entra em casa à meia-noite quando vossuncê sai.

                        – Cala-te! – disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de dona Ernestina, que voltava do banho.

 

                        O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe havia dito a verdade. Em poucos dias, desembaraçou-se da amante, deu melhor casa à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não saí à noite sem dona Ernestina. Tomou juízo e vergonha.

 

(Do livro Contos Fora da Moda)

 

 


Arthur Azevedo domingo, 20 de novembro de 2016

QUESTÃO DE HONRA - CONTO DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO

QUESTÃO DE HONRA

Arthur Azevedo

 

                        Eram sete horas da manhã. Braga Lopes, sentado numa deliciosa chaise-longue, brunia as unhas e contemplava, pela janela do gabinete, o Pão de Açúcar, que por um belo efeito de luz, parecia de madrepérola.

                        Angélica entrou no gabinete, e bateu de leve no ombro do marido.

                        — Preciso de quinhentos mil-réis.

                        — Já?

                        — Já.

                        Por única resposta, Braga Lopes apontou para uma carta aberta sobre a secretária de pau-rosa.

                        Angélica leu: o senhorio reclamava, em termos violentos, não sei quantos meses atrasados do aluguel do prédio nobre.

                        A moça encolheu os ombros, saiu arrebatadamente e mandou atrelar. Fez ligeira, mas elegante toilette de passeio, e, calçando as luvas de pele da Suécia, recomendou ao engravatado copeiro que não a esperasse para almoçar.

                        O marido ouviu rodar o coupé e chegou à janela. Acompanhou com a vista o trajeto do carro em quase toda a curva da praia de Botafogo, até que o viu desaparecer na rua Marquês de Abrantes.

                        — Aonde irá ela arranjar quinhentos mil-réis a esta hora? – Pensou, e, sentando-se e novo, recomeçou a sua ocupação predileta – brunir as unhas.

                        Ao entrar no coupé, Angélica dissera ao boleeiro:

                        — Vamos à baronesa.

                        A baronesa ainda estava no leito. Angélica foi introduzida no dormitório.

                        — Preciso e quinhentos mil-réis.

                        — Já?

                        — Já.

                        — Impossível, minha amiga; o barão está em Petrópolis.

                        — Petrópolis em junho!

                        — Foi a negócio e não a passeio. O dinheiro está com ele, bem sabes. Sinto não te poder servir nesse momento, como noutras ocasiões o tenho feito. Não é a primeira vez que tu...

                        — Bem... desculpe... adeus, baronesa.

                        Angélica a sair, e o barão a entrar.

                        — Oh! Madame Braga Lopes! A que feliz acaso devemos tão matinal visita?

                        — Não tinha ido para Petrópolis, barão?

                        — Petrópolis em junho! Jamais de la vie! Seria ridículo! Saí muito cedo por necessidade e só contava estar de volta ao meio-dia. Esteve com a baronesa?

                        — Sim, senhor barão; passe bem.

                        E Angélica, mordendo os beiços de raiva, entrou rapidamente no coupé, cuja portinhola o barão abriu pressuroso com a mão esquerda, enquanto a direita fazia o chapéu descrever uma pequena reta, muito graciosa, à inglesa. O boleeiro voltou-se para receber as ordens da patroa.

                        — Vamos às Guedes.

                        O barão fechou a portinhola, e o carro pôs-se em movimento. As Guedes eram três irmãs solteironas. Moravam na rua do Conde, perto do Catumbi.

                        Angélica esperou por elas durante quarenta minutos. Empregou todo esse tempo a passear de um lado para o outro, muito contrariada por se ver ali, numa rua tão burguesa, naquela velha sala sem tapeçarias, nem reposteiros, nem bibelôs, fastidiosa com sua esmagadora mobília de jacarandá e os seus venerandos castiçais de prata, resguardados em monstruosas mangas de vidro. Numa velhíssima tela, o pai das Guedes, pintado a óleo, muito sério, inteiramente barbeado, de óculos, o pescoço escondido numa abundante gravata de cinco voltar, as mangas da casaca muito apertadas, as mãos a emergirem das rendas dos manguitos, olhava fixamente para Angélica, e parecia dizer-lhe:

                        — Que vens aqui fazer? Não arranjas nada!

                        Afinal, apareceram as Guedes. Entraram as três ao mesmo tempo, com pequeninos gritos de surpresa alegre, fazendo um gasto enorme de beijos, abraços, pancadinhas de amor e frases candongueiras: – Mas que milagre é este? Por isso é que o dia está tão bonito! Vou mandar repicar os sinos!

                        — Sente-se, dona Angélica.

                        — Não; a demora é pequena. Vinha pedir-lhes um grande obséquio. Preciso de quinhentos mil-réis.

                        As Guedes entreolharam-se estupefatas.

                        A recusa foi categórica e formal. Não podiam naquela ocasião dispor nem de quinhentos réis, quanto mais de quinhentos mil-réis. A “pouca vergonha” de 13 de Maio deixara-as quase na miséria. Se não possuíssem aquela “humilde choupana” e mais dois sobrados na rua dos Pescadores, estariam reduzidas à miséria. Angélica saiu despeitadíssima; entretanto, não desanimou. O passivo e solícito cocheiro levou-a ainda à presença de seis amigas ricas, e todas lhe disseram não! Em toda parte, a mísera encontrava esse monossílabo terrível!

***

                        Ao meio-dia, humilhada, indisposta, em jejum, com os nervos excitados por aquela violenta caçada, por aquele perseguir uma quantia miserável, que lhe fugia das mãos obstinadamente, a pobre Angélica teve um gesto expressivo e supremo de resolução e coragem.

 

                        Alguns minutos depois, o coupé deixava-a no largo de S. Francisco. Ela tomou a pé a rua do Rosário, atravessou a da Quitanda, dobrou a da Alfândega, e, sobressaltada, palpitante, com    muito medo de que a vissem, entrou precipitadamente num casarão de dois andares.

                        No corredor, hesitou alguns segundos, antes de subir; mas, enchendo-se de ânimo, galgou ligeiramente as escadas até o segundo andar. Abriram-lhe logo a porta, e ela, trêmula, ofegante, com as mãos muito frias, sem poder proferir uma palavra, caiu nos braços de um homem, que a recebeu com um beijo, e lhe disse:

                        — Estava escrito que mais dia menos dia a senhora se compadeceria dos meus tormentos...

                        — O que me traz à sua casa é uma questão de honra; conto com sua discrição e seu cavalheirismo. Preciso de...

                        Angélica envergonhou-se de se vender por tão pouco, e quadruplicou a quantia:

                        — Preciso de dous contos de réis.

                        — Já?

                        — Já.

***

                        O relógio da Candelária batia duas horas, quando madame Braga Lopes, perfeitamente almoçada, desceu as escadas da casa da rua da Alfândega. Pode ser que o arrependimento aparecesse mais tarde; naquele momento ela era toda satisfação e triunfo.

                        A gentil pecadora entrou radiante na rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal.

                        — Ainda aí está? – Perguntou a um dos caixeiros da loja com receio de que mais uma vez lhe dissessem não.

                        — Ainda, e às suas ordens.

                        — Bom – acrescentou ela, depois de um prolongado suspiro – aqui estão os quinhentos mil-réis. Mande-lo à casa.

***

                        — Com efeito! – Exclamou Braga Lopes quando Angélica lhe apareceu às três horas. – Com efeito! Passaste o dia inteiro na rua!...

                        — Sim, vê lá se achas que uma mulher, que só tem brilhantes falsos e joias de pechisbeque, possa facilmente arranjar quinhentos mil-réis...

                        — Mas para que precisavas tu desse dinheiro? – Perguntou indiferentemente o extraordinário marido.

                        — Uma questão de honra, meu amigo. Imagina que me apaixonei por um vestido que vi ontem na vitrine do Palais-Royal; imagina que a Laurita Lobo queria por força ficar com ele; imagina que o dono da loja declarou que o entregaria à primeira das duas que lhe levasse quinhentos mil-réis!...

                        — Ah! Bom! Assim, sim –, obtemperou Braga Lopes, que recomeçou fleumaticamente a sua ocupação predileta — brunir unhas.

(Do livro Contos Fora da Moda)

 


Arthur Azevedo domingo, 13 de novembro de 2016

O VIÚVO

O VIÚVO

Arthur Azevedo

 

                        Na véspera de partir para a Europa, o doutor Claudino, sem prever o fúnebre espetáculo de eu ia ser testemunha, foi despedir-se de seu velho camarada Tertuliano.

                        Ao aproximar-se da casa, ouviu berreiro de crianças e mulheres, e a voz de Tertuliano, que dominava de vez em quando o alarido geral, soltando, num tom estrídulo e angustioso, esta palavra: Xandoca.

                        O doutor Claudino apressou o passo e entrou aflito em casa do amigo.

                        Havia, efetivamente, motivo para toda aquela manifestação de desespero. Tertuliano acabava de enviuvar. Havia meia hora que dona Xandoca, vítima de febre puerperal, fechar aos olhos para nunca mais abri-los.

                        O corpo, vestido de seda preta, as mãos cruzadas sobre o peito, estava colocado num canapé, na sala de visitas. À cabeceira, sobre uma pequena mesa coberta por uma toalha de rendas, duas velas de ceras substituíam, aos dous lados de um crucifixo, o bom e o mau ladrão.

                        Tertuliano, abraçado ao cadáver, soluçava convulsamente, e todo o seu corpo tremia como tocado por uma pilha elétrica. Os filhos, quatro crianças, a mais velha das quais teria oito anos, rodeavam-no aos gritos.

                        Na sala havia um contínuo fluxo e refluxo de gente que entrava e saí, pessoas da vizinhança, chorando muito, e indivíduos que, passando na rua, ouviram gritar e entravam por mera curiosidade.

                        O doutor Claudino estava impressionadíssimo. Caíra de supetão no meio daquele espetáculo comovedor, e contemplava atônito o cadáver da pobre senhora que, havia quatro dias, encontrara na rua da Carioca, muito alegre, levando um filho pela mão e outro no ventre, arrastando vaidosa sua maternidade feliz.

                        Tertuliano, mal que o viu, atirou-se-lhe nos braços, inundando-lhe de lágrimas a gola do casco; o doutor Claudino estava atordoado, cego, com os vidros do pince-nez embaciados pelo pranto, que tardou, mas veio discreta, reservadamente, como um pranto que não era da família.

                        – Isto foi uma surpresa... uma dolorosa surpresa para mim – conseguiu dizer com a voz embargada pela emoção. – Parto amanhã parra a Europa, no Níger... vinha despedir-me de ti... e dela... de dona Xandoca e... vejo que... que...

                        E o doutor Claudino fez uma careta medonha para não soluçar.

                        – Dispõe de mim, meu velho; estou às tuas ordens, bem sabes.

                        – Obrigado – disse Tertuliano numa dessas intermitências que se notam nos maiores desabafos – o Rodrigo, aquele meu primo empregado no foro, já tratou do enterro, que é amanhã às dez horas.

                        Fazendo grande esforço para reprimir a explosão de lágrimas, o viúvo contou ao doutor Claudino todos os incidentes da rápida moléstia e da morte da Xandoca.

                        – Uma coisa inexplicável! Nunca a pobre criatura teve um parto tão feliz... A parteira não esperou cinco minutos... Uma criança gorda, bonita... Está lá em cima, no sótão... hás de vê-la. De repente, uma pontinha de febre que foi aumentando, aumentando... até vir o delírio... Mandei chamar o médico... Quando o médico chegou... já ela agoniz... a... va!...

                        E Tertuliano, prorrompendo em soluços, abraçou-se no novo ao doutor Claudino.

                        No dia seguinte, a cena foi dolorosíssima. Antes de se fechar o caixão, Tertuliano quis que os filhos beijassem o cadáver, medonhamente intumescido. Ninguém reconhecia dona Xandoca, tão simpática, tão graciosa, naquele montão informe de carne pútrida.

                        Fecharam o caixão, mas Tertuliano agarrou-se a ele e não queria deixar sair, gritando – Não consinto que a levem daqui! – Foi preciso arrancá-lo à força e empurrá-lo para longe. Ele caiu e começou a escabujar no chão, soltando grande gritos nervosos. Três senhoras caíram também com espetaculosos ataques. As crianças berravam. Choravam todos.

                        De volta do enterro, o doutor Claudino muito tarefado com a viagem, não quis deixar de fazer uma última visita a Tertuliano.

                        Encontrou-o num estado lastimoso, sentado numa cadeira da sala de jantar, sem dar acordo de si, rodeado pelos filhos, o olhar fixo no mísero recém-nascido, que a um canto da casa mamava sofregamente numa preta gorda.

                        – Tertuliano, adeus. Daqui a meia hora devo estar embarcando. Crê que, se pudesse, adiava a viagem para fazer-te companhia... Adeus!

                        O viúvo lançou-lhe um olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:

                        – Adeus!

                        Às sete horas da noite o doutor Claudino, sentado na coberta do Níger, contemplando as ondas, esplendidamente iluminadas pelo luar, pensava naquele olhar vago de Tertuliano, naquele adeus terrível, e pedia aos céus que o seu velho camarada não houvesse enlouquecido.

                        Meses depois, a exposição de Paris atordoava-o; Mas de vez em quando, lá mesmo, na Galeria das Máquinas, no Palácio das Artes, ou na Torre Eiffel, voltava-lhe ao espírito a lembrança daquela cena desolador do viúvo rodeado pelos orfãozinhos, e repercutia-lhe dentro d’alma o som daquele adeus pungente e indefinível.

                        Interessava-se muito por Tertuliano. Escreveu-lhe um dia, mas não obteve resposta. Pobre rapaz! viveria ainda? a sua razão teria resistido àquele embate violento?

                        Depois de um ano e quatro meses de ausência, o doutor Claudino voltou da Europa, e sua primeira visita foi para o Tertuliano, que morava ainda na mesma casa.

                        Mandaram-no entrar para a sala de jantar. Tertuliano estava sentado numa cadeira, sem dar acordo de si, rodeado pelos filhos, o olhar no mais pequenito, que estava muito esperto, brincando no colo da preta gorda.

                        – Tertuliano? – balbuciou o doutor Claudino.

                        O viúvo lançou-lhe um olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão e murmurou:

                        – Adeus.

                        Depois, dir-se-ia que se fizera subitamente a luz no seu espírito embrutecido. Ele ergueu-se de um saldo gritando:

                        – Claudino! – e atirou-se nos braços do velho camarada, exclamando entre lágrimas – Ah! meu amigo! perdi minha mulher!...

                        – Sim, eu sei, mas já tinhas tempo de estar mais consolado... Que diabo! Sê homem! Já lá se vão quatorze meses!...

                        – Como quatorze meses? seis dias...

                        – Ora essa! pois não te lembras que acompanhei o enterro de dona Xandoca?

                        – Ah! tu falas da Xandoca... mas há três meses casei-me com outra... filha do major Seabra, e há seis dias estou vi... ú... vo!

                        E Tertuliano, prorrompendo em soluços, abraçou-se de novo ao doutor Claudino.

(Do livro Contos Fora da Moda)

 


Arthur Azevedo quarta, 09 de novembro de 2016

PLEBISCITO - ARTHUR AZEVEDO, ESCRITOR MARANHENSE

PLEBISCITO - ARTHUR AZEVEDO

Raimundo Floriano

 

 

                        Arthur Azevedo é o maior vulto do Teatro Brasileiro!

 

                        Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo, nascido em São Luís do Maranhão, a 7 de julho de 1855, e falecido no Rio de Janeiro a 22 de outubro de 1908, com apenas 53 anos, dramaturgo, contista, poeta comediógrafo e jornalista, irmão mais velho de Aluísio Azevedo, este autor de O Cortiço e O Mulato, é uma das grandes figuras da Literatura Brasileira, em cuja obra campeia um fino e gracioso humorismo.

 

                        Seguiu para o Rio de Janeiro em 1873, aos 18 anos de idade, onde foi tradutor de folhetins e revisor de A Reforma, tornando-se conhecido por seus versos humorísticos. Escrevendo para o teatro, alcançou enorme sucesso com as peças Véspera de Reis e A Capital Federal, esta musical.

 

                        Dentre seus trabalhos, destacam-se Contos Possíveis, Contos Efêmeros, Contos Fora de Moda, Contos em Verso, Contos Cariocas e Vida Alheia. Espalhou também sua verve em dezenas de revistas teatrais e de esfuziantes comédias, entre as quais sobressaem O Dote, A Almanjarra, O Oráculo, Vida e Morte, Entre a Missa e o Almoço, Entre o Vermute e a Sopa, Retrato a Óleo e O, Amor por Anexins. Trabalhou nos principais jornais da época, no Rio de Janeiro, tendo fundado e dirigido A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum.

 

                        Foi Fundador da Academia Brasileira de Letras e titular da Cadeira número 29, para a qual tomou Martins Penna como patrono.

 

                        No final dos Anos 1960, foi apresentada aqui em Brasília a peça musical de sua autoria, A Capital Federal, com produção de Cleyde Yaconis e grande elenco de 27 artistas, dentre os quais Etty Fraser, Suely Franco, Neuza Borges, Tamara Taxman e Carlos Alberto Riccelli, além de excelente orquestra, que considero o melhor espetáculo musical a que assisti em toda minha vida. A peça causou tal impressão em mim que, ao fundar a primeira banda carnavalesca brasiliense, em 1972, dei-lhe o nome de Banda da Capital Federal.

 

                        Possuo em meu acervo literário toda a obra desse grande gênio intelectual conterrâneo e, para fazê-la um pouco conhecida por todos vocês, meus diletos leitores, estarei, vez em quando, aqui neste Almanaque, trazendo à baila uma de suas magistrais criações, começando a partir de agora, com tema muito em voga nos tempos atuais.

 

                        O texto a seguir foi extraído do livro Contos Fora da Moda, encontrável hoje em sebos virtuais, assim como diversas itens de sua vasta produção literária.

 

 

PLEBISCITO

 

                        A cena passa-se em 1890.

 

                        A família está toda reunida na sala de jantar.

 

                        O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

 

                        Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

 

                        Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

 

                        Silêncio!

 

                        De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

 

                        – Papai, que é plebiscito?

 

                        O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

 

            ‘           O pequeno insiste:

 

                        – Papai?

 

                        Pausa!

 

                        – Papai?

 

                        Dona Bernardina intervém:

 

                        – Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.

 

                        O Senhor Rodrigues não tem remédio, senão abrir os olhos.

 

                        – Que é? Que desejam vocês?

 

                        – Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

 

                        – Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

 

                        – Se soubesse, não perguntava.

 

                        O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

 

                        – Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

 

                        – Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

 

                        – Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

 

                        – Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.

 

                        – Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

 

                        – A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

 

                        – A senhora o que quer é enfezar-me!

 

                        – Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!

 

                        – Proletário – acudiu o Senhor Rodrigues – é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

 

                        – Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

 

                        – Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!           

 

                        – Oh! Ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: – Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho!

 

                        O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

 

                        – Mas se eu sei!

 

                        – Pois se sabe, diga!

 

                        – Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

 

                        E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

 

                        No quarto, havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

 

 

                        A menina toma a palavra:

 

                        – Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

 

                        – Não fosse tolo – observa Dona Bernardina – e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

 

                        – Pois sim – acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão – pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

 

                        – Sim! Sim! façam as pazes! – diz a menina em tom meigo e suplicante. – Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!

 

                        Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

 

                        – Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

 

                        O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.

 

                        Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

 

                        – É boa! – brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio – é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...

 

                        A mulher e os filhos aproximam-se dele.

 

                        O homem continua num tom profundamente dogmático:

 

                        – Plebiscito...

 

                        E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

 

                        – Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

 

                        – Ah! – suspiram todos, aliviados.

 

                        – Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...

 

 

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