Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo domingo, 30 de abril de 2017

A TIA ANINHA

A TIA ANINHA

Arthur Azevedo 

 

Ainda há poucos anos, havia, numa das capitais do Norte, uma velhinha pobre, paupérrima que não mendigava, mas aceitava o agasalho que lhe davam algumas famílias compassivas, passando um mês aqui, outro ali, quinze dias acolá. Uma bela manhã chegava com sua lata de folha (tudo quanto possuía) e aboletava-se entre afagos e sorrisos de boa-vinda.

– Seja bem aparecida, tia Aninha! O seu quarto lá está, tem sua cama preparada! Mas desta vez demore-se mais tempo: você a ninguém incomoda nesta casa, nem aumenta a despesa: fique o tempo que quiser.

Mas a tia Aninha, quando suspeitava que a sua presença ia se tornando aborrecida, levantava o voo e partia, com a sua lata de folha, para alojar-se noutra parte.

Era uma velhinha alegre, mas de uma alegria que nenhum observador experimentado acharia natural e sincera.

As crianças adoravam-na, porque ela sabia contar-lhes muitas histórias bonitas de fadas e lobisomens – e aí está um dos motivos por que a tia Aninha, depois de prolongada ausência, era sempre bem recebida, com a sua lata de folha.

*

Foi numa dessas casas hospitaleiras que a encontrei um dia (antes a não encontrasse!), rodeada de fedelhos boquiabertos e ofegantes. Interessou-me aquele rosto enrugado e macilento, em que julguei descobrir vestígios de um passado cheio de peripécias e vicissitudes.

A velha boêmia simpatizou comigo, pelo que, aliás nenhum merecimento me atribui, porque ela – coitadinha! – simpatizava com toda a gente. Nas suas palavras, nos seus gestos e nos seus olhares, que brilhavam ainda através de duas pequeninas frestas esquecidas entre as pálpebras, nunca ninguém descobriu a menor prevenção contra pessoa alguma.

Não pertencia ao tipo, muito comum no Brasil e creio que em toda a parte, da velha parasita, que anda de lar em lar, de alcova a alcova, trazendo e levando enredos, novidades e mexericos, dando fé do que se passa em casa de Fulano para chalrar em casa de Beltrano, adulando as donas e seduzindo as donzelas, embiocada e devotada.

Como lhe mentissem, dizendo que eu era romancista, a tia Aninha me declarou, sorrindo, que a sua vida tinha sido um verdadeiro romance, e essa declaração me levou (antes não levasse!) a revolver aquelas cinzas, curioso de se embaixo delas crepitavam ainda as derradeiras brasas.

Crepitavam; mas a história da tia Aninha era vulgaríssima, sem incidentes excepcionais nem grandes lances e surpresas do acaso. Se ela imaginava que aquilo daria um romance, não fazia mais do que fazem todos os indivíduos para quem o mundo não foi um mar de rosas. Não há criatura infeliz que não esteja persuadida que da sua existência se faria a mais interessante das novelas.

Nascera a tia Aninha pouco depois da Independência. Era filha única de um negociante português, sofrivelmente apatacado. A sua vida correu pacifica e serena até os vinte anos. Foi nessa idade que o seu coração falou: ela apaixonou-se por um caixeiro do pai.

A mãe que desejava ser sogra de um príncipe, descobrindo um dia esses amores, que aliás duravam, havia já dois anos, foi ter com o marido e disse-lhe tudo.

O negociante enfureceu-se; pôs imediatamente no andar da rua o mísero subalterno que se atrevia a levantar os olhos tão alto, e andou por o todo bairro comercial a pedir de porta em porta que ninguém o arrumasse. O rapaz ficou, portanto, incompatibilizado com a praça, e resolveu partir para o Rio de Janeiro, procurando no Sul a fortuna que lhe fugia no Norte. Partiu.

Partiu, mas antes disso, prometeu, por intermédio de uma boa amiga da moça, guardar-lhe fidelidade, e voltar um dia, quando melhorasse de posição, e de haveres, para casar-se com ela.

Prometeu igualmente escrever-lhe por todos os correios, promessa que cumpriu, graças ainda ao gracioso intermédio da amiga, que recebia as cartas, embora endereçadas à tia Aninha.

Isto passava-se em 1844. Durante dois anos vieram cartas por todos os correios. Nas penúltimas, o moço queixava-se, em caracteres trêmulos, de que se sentia muito enfermo, e nas últimas que eram lacônicas, escritas sob um esforço violento e visível já não falava um doente, mas um moribundo. "Talvez seja esta a minha última carta", escreveu ele um dia – e a moça não recebeu mais nenhuma.

Dois ou três meses depois, o pai friamente, à mesa do jantar, deu-lhe a notícia da morte do noivo.

A pobrezinha contava já vinte e seis anos. Se até então repelira todas as propostas de casamento que lhe foram feitas pelo pai, dali por diante não admitiu que lhe falassem mais nisso.

O velho, depois de se meter imprudentemente numa arriscada especulação de açúcares, faliu em 1850, e alguns meses depois desaparecia, fulminado por uma congestão.

Mãe e filha ficaram reduzidas à pobreza extrema. Os amigos de outrora, sumiram-se, afugentados pelo aspecto da miséria.

Em 1855, redobraram ainda os infortúnios de Aninha, com a morte da mãe, vítima do cólera-morbo.

Datavam dessa época a sua vida de boêmia e a sua lata de folha. Tinha então apenas trinta e três anos, mas não lhe davam menos de cinquenta tais foram os estragos causados pelo sofrimento.

*

Quando a tia Aninha acabou de me contar todas essas coisas, uma tarde em que por acaso nos achamos sozinhos, num dos seus asilos habituais, no jardim, à sombra de uma latada, não me atrevi a dizer-lhe que na sua existência de viúva-virgem não havia matéria para um romance, a menos que o talento e a imaginação do romancista suprissem o que lhe faltava. Entretanto, proferi esta frase, que continha uma fórmula de consolação:

– A sua vida é, na realidade, um verdadeiro romance, tia Aninha; mas creia que esse mesmo tem sido o romance de muitas mulheres.

– Oh! Se o senhor lesse as cartas que ele me escreveu! Só elas dariam páginas e páginas. Era um simples caixeiro, mas muito inteligente. Quer vê-las?

– O quê?

– As cartas!

– Ainda as conserva?

– Se ainda as conservo? São a minha fortuna. Vou buscá-las.

A velha ergueu-se, foi ao seu quarto, e pouco depois voltou trazendo a sua inseparável lata de folha.

*

Li algumas das cartas: nada havia nelas de extraordinário, mas tinham, relativamente, muito valor material, porque estavam todas seladas com os selos das nossas primeiras emissões postais: o "olho de boi", o "trezentos réis inclinados" e outros.

– Diz a senhora muito bem; a sua fortuna está nestas cartas! Saiba, tia Aninha, que cada um destes selos vale centenas de mil réis!

A pobre velha, que ignorava a mania filatélica, não compreendeu: foi preciso que eu lho explicasse.

Ela protestou:

– Desfazer-me das minhas cartas? Nunca!

– Não se desfaça das cartas; desfaça-se dos selos.

– Estes selos podem valer milhões! Não os venderei! Para que preciso de dinheiro?

Deveria calar-me. Tenho remorsos de haver revelado ao dono da casa onde me achava a existência dos selos da tia Aninha. Ele foi o primeiro a querer comprá-los para negócio.

Pouco tardou que se espalhasse em toda a cidade a notícia de que a velha possuía uma riqueza encerrada na sua lata de folha. Por fim, já não se dizia que eram selos do correio, mas velhas moedas de ouro, joias raras e preciosíssimas, o diabo!

E era o seu tesouro tão cobiçado, tanta gente lhe falava nele e manifestava o desejo de examiná-lo, que a tia Aninha, mais ciosa da sua lata de folha que Harpagon do seu cofre, tinha pesadelos e alucinações terríveis, vivia num contínuo sobressalto, não podia dormir duas horas que hão despertasse aos gritos, sonhando que lhe roubavam a sua querida lata, o seu travesseiro.

Agora havia empenhos para hospedá-la; aconselhavam-na a fazer testamento, adulavam-na, perseguiam-na com uma solicitude que a desvairou, que lhe tirou lentamente o raciocínio e a saúde.

Mais do que nunca não esquentava lugar, aparecia e logo desaparecia; já não contava às crianças as suas bonitas histórias de fadas e lobisomens; já não falava a ninguém no seu romance, sem perceber, coitada! que o seu romance começava agora.

Os pequeninos, que dantes a adoravam, tinham medo dela, e os garotos apupavam-na quando a mísera passava, com a desconfiança no olhar, desgrenhada, andrajosa, descalça, faminta, apertando nos braços esqueléticos a sua lata de folha, o seu travesseiro, o seu tesouro.

*

Uma noite em que a tia Aninha, vagabundeando à-toa, atravessava uma praça deserta e silenciosa, foi assaltada por um malfeitor que a roubou, depois de atordoá-la com uma paulada. Conduzida, algumas horas depois, para um hospital, expirou pronunciando o nome do noivo, martirizada menos pela paulada assassina que pela ideia de haver perdido as suas cartas de amor. 

(Do livro Contos Cariocas)

 


Escreva seu comentário

Busca


Leitores on-line

Carregando

Arquivos


Colunistas e assuntos


Parceiros