UM INGRATO
Arthur Azevedo
O Vieira havia levado a vida inteira remando contra a maré. Por fim conseguiu reunir algum dinheiro, não se sabe como, e abriu uma modestíssima loja de cigarros na Rua dos Ourives. Dava para viver, mas, como se sabe, não se precisa de muita coisa para viver. Morava com a mulher num quartinho ao lado da modesta loja, e Dona Maricota cozinhava, lavava e passava a roupa do marido e de alguns conhecidos, pois não tinham filhos.
Pensando na vida e esperando os clientes, Vieira estava certo dia encostado no balcão da loja enquanto a mulher preparava o almoço, como de costume, quando entrou apressadamente um velho, meio congestionado, quase sem poder falar. Sentou-se num banquinho que ali havia, queixando-se silenciosamente e apenas murmurando algumas palavras. O traje do recém-chegado indicava pessoa de boa posição social. Solícito, Vieira indagou:
— Que tem o senhor, cavalheiro? O que aconteceu?
O velho levantou os olhos e só conseguiu dizer, com voz apagada:
— Água!
Vieira foi imediatamente buscar um copo d’água, que o velho bebeu, reanimando-se um pouco. E perguntou de novo:
— O que aconteceu?
— Não sei... Uma coisa que me deu de repente... Mas felizmente não foi nada, como o Sr. pode ver. Bastou esse copo d’água para sentir-me bem.
— Não quer alguma outra coisa? Talvez um pouco de água com limão...
— Não, nada. Muito obrigado.
O velho permaneceu ainda ali uns vinte minutos, conversando amistosamente com Vieira, perguntando-lhe sobre seus negócios, sua família, sua vida. Quando saiu, apertou-lhe com vigor a mão, renovando seus agradecimentos.
Dois dias depois apareceu novamente, sentou-se no banquinho e fez novas demonstrações de agradecimento, conversando amigavelmente durante meia hora.
Voltou no dia seguinte, e Vieira lhe apresentou Dona Maricota, com quem simpatizou bastante. Inteiraram-se então de que o assíduo visitante era o Comendador Matos, negociante aposentado, solteiro e sem filhos, que vivia de rendas, sem outra ocupação além da cobrança dos aluguéis e da renda dos altos negócios. Quando o Comendador saiu, Vieira disse à esposa:
— Parece que esse sujeito está disposto a vir aqui todos os dias, para entreter-se em conversa.
— É uma amizade que não devemos desprezar — respondeu a mulher, de espírito prático.
— Por quê?
— Que pergunta! Pode ser que encontremos nesse homem um protetor...
— Que protetor coisíssima nenhuma! Um passatempo aborrecidíssimo, é o que você deve dizer. Não percebeu que ele nem sequer fuma? Não comprou até agora nem uma caixa de fósforos...
Entretanto, quando o Comendador voltou no dia seguinte, encontrou uma cadeira, no lugar do banquinho. Precisamente nesse dia ficaram estabelecidas definitivamente as relações de amizade. A partir desse momento o velho foi infalível, sempre chegava na mesma hora. Não se passou muito tempo, e começou a ser-lhe oferecida durante a visita uma xícara de café, que se tornou um hábito durante os seguintes cinco anos.
Quando não aparecia na hora de costume, Dona Maricota se inquietava:
— O Comendador não veio. Estará doente? Por que não vais à casa dele? Pode ser que esteja doente, não acha?
Afinal o velho entrava, e Vieira avisava à mulher:
— Já está aqui o Comendador, Maricota. Traga já o cafezinho...
As relações chegaram a ser tão estreitas, que uma vez Vieira queixou-se da falta de freguesia. O velho lhe disse:
— É natural, pois você tem uma casa que não inspira confiança. Isto aqui não é uma verdadeira loja, é apenas um cubículo.
— Mas muitos começaram como eu, e acabaram ficando ricos.
— Isso foi antigamente. Hoje em dia as lojas de cigarros têm que estar bem instaladas, com pelo menos duas portas, boas estantes, tudo bem ordenado e bem sortido.
— É bem verdade, mas tudo isso custa dinheiro, e não vejo como possa consegui-lo.
— Não se preocupe por questões de dinheiro. Procure uma casa melhor, em pleno centro, e deixe o resto por minha conta.
Com efeito, Vieira não demorou a encontrar um local apropriado. Alugou-o, tendo o próprio Comendador como fiador. Um mês depois o novo estabelecimento estava funcionando. Não faltava nada, havia até um acendedor de cigarros constantemente ligado, que os clientes podiam usar.
O casal mudou-se para o segundo andar do mesmo imóvel, e o Comendador emprestou o dinheiro para a compra dos móveis. Quando foi assinar os papéis, Vieira perguntou se o Comendador tinha interesse em ser seu sócio.
— Nada disso! Eu me aposentei por completo dos negócios, e não tenho o menor desejo de voltar a eles. Serei simplesmente seu credor. Basta você assinar umas quinze promissórias, com juros muito reduzidos e prazos folgados.
Assim foi. Vieira resgatou as letras uma por uma, nos prazos estipulados. Sem esforço, pois a loja prosperava de maneira satisfatória. Dona Maricota já se entregava aos afazeres domésticos com mais parcimônia. Um dia notou que ia ser mãe, portanto uma nova felicidade em perspectiva.
— Quero ser o padrinho! — Indicou o Comendador quando foi informado.
O excelente homem já era considerado pessoa da casa, seguindo sempre o seu próprio ritmo, tomando o cafezinho sentado no mesmo local, já agora numa cadeira estofada, para mais comodidade.
A pontualidade com que foram pagas as quinze promissórias fez aumentar a amizade do velho, pois colocava acima de tudo a probidade comercial, a honra da firma. Quando o menino foi batizado, o padrinho deu-lhe um bonito enxoval e fez para ele um seguro de vida. Desde então era raro a criança não receber todos os dias um presente ou um agrado. De vez em quando, Vieira e Maricota também eram obsequiados.
— Comendador, por que tantos cuidados? O senhor não deve incomodar-se tanto conosco.
— Não me incomodo, absolutamente. Vocês são minha única família. Não tenho ninguém mais no mundo, a não ser vocês.
— Bendito aquele copo de água! — Dizia Dona Maricota, sempre que o velho tinha algum rasgo de generosidade.
— Graças àquele copo d’água mudou nossa sorte — acentuava o marido, — e espero que com o tempo ainda viremos a ser ricos.
Não sabendo como manifestar seu reconhecimento por tão inverossímil proteção, Vieira mandou pintar a óleo um retrato do Comendador, que colocou na sala de visitas.
Mas tudo se acaba. Um dia o comendador deixou de aparecer na loja, que tão assiduamente visitava durante tantos anos. Vieira correu imediatamente à casa onde morava, e o encontrou seriamente doente. Quis levá-lo para sua casa, onde seria tratado com desvelo familiar, mas o comendador resistiu. Era seu propósito recolher-se a um asilo para idosos, e foi necessário respeitá-lo. A doença se agravou. Embora não lhe faltasse nenhum dos recursos da medicina, morreu depois de quinze dias.
Vieira e Dona Maricota imaginavam — era natural — que ambos e o pimpolho seriam os únicos herdeiros, já que o velho não tinha família. Enganaram-se. O testamento, o único que apareceu entre os papéis do velho, e que foi divulgado depois do enterro, só contemplava no benefício o afilhado, com dez contos de réis. O resto era dividido entre hospitais e asilos. Nem o próprio Vieira tinha um único centavo no testamento.
— Estranho! — Bramiu Dona Maricota. — Nunca imaginei que aquele homem não nos deixasse ricos. Por que nos dizia então que éramos os únicos membros de sua família? Que mal-empregados os oitenta mil réis da coroa que lhe mandamos!
— Tenho intenção de não aceitar os dez contos que deixou ao nosso filho — confessou Vieira —. Dez contos! Que miséria!
— Seria melhor não haver deixado nada! Nosso filho não precisa de esmolas!
— Tenho até vontade de destruir o retrato — disse indignado o marido.
— Não! Não vale a pena. Esse retrato pode ser comprado por alguma das instituições que herdarão o dinheiro desse velho tacanho.
Lançou um olhar severo sobre o retrato do Comendador, que sorria compassivamente, enquanto exclamava decepcionada:
— Este mundo está cheio de ingratos!...
(Do livro Contos Cariocas)