O JAÓ
Arthur Azevedo
Numa noite em que estávamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram à baila os meus contos, e não houve na assistência quem se não gabasse de saber casos que forneceriam magníficos assuntos para este gênero de literatura amena.
– Pode ser – disse eu – mas devo confessar-lhes que até hoje não pude aproveitar para os meus trabalhos um único assunto oferecido nessas condições. Os contos inventaram-se, o que não quer dizer que não sejam também o produto do que se vê e observa na vida real, ou o renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais.
– Ora! Eu sei a história de um jaó, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou contá-la enquanto minha mulher apronta o chá!
– Conta, que ele há de gostar – disse D. Emília, desaparecendo da sala.
– Vamos à história do jaó! – Exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar ânimo ao dono da casa.
A cena passa-se em Cataguases, no Estado de Minas, ainda nos ominosos tempos da monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona.
Houve um movimento geral de atenção, e todos nós aproximamos as nossas cadeiras.
– A um quarto de légua da localidade, havia "um situante", como lá dizem, homem já maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com a filha.
Esta chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeição; morena, esbelta, cabelos negros, e ondeados, olhos de fogo, lábios rubros e magníficos dentes. De mais não era estúpida nem de todo ignorante: fazia as quatro operações; cosia admiravelmente e no governo da casa mostrava-se expedita e asseada.
Era agente da estação da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixão da caça, e, nos lazeres do seu emprego, não fazia outra coisa senão caçar.
Um dia em que as suas diligências cinegéticas o levaram lá para as bandas do sitio do velho Serrano, que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo.
Pelos modos, o efeito foi recíproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque na roça não se encontram duas pessoas que não se cumprimentem, embora não se conheçam; mas sorriam um para o outro, e isso já não estava nos usos e costumes indígenas.
Durante três dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou noutro lugar.
Afinal, chegaram à fala, e ele que talvez levasse más intenções, foi desarmado pela candura e pela ingenuidade de Mimi.
Amaram-se, amaram-se deveras; entretanto, aquelas entrevistas na estrada eram perigosas; podia passar alguém...
– Ficaremos à vontade – disse ela com uma adorável confiança no seu amado – à sombra de uma caneleira que há nos fundos lá de casa. Entra-se por aquele atalho, e vai-se dar mesmo lá.
– E teu pai?
– Meu pai está da outra banda, fazendo o roçado; só vai pros lados da caneleira uma vez na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Você dá um sinal, e eu vou ter com você.
– Qual há de ser o sinal?
– Você é caçador; deve saber piar.
– Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jaó...
– Jaó, prefiro jaó, é triste, mas é bonito.
O namorado piou, para dar uma amostra da sua habilidade; o pio não podia ser mais perfeito.
No dia seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e não quis sair de casa, o que bastante contrariou Mimi.
– Hoje nada de sol! – Disse ele; – tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com facilidade. Ontem se me não engano, ouvi cantar um jaó, e tomei a coisa como agouro, porque há muito tempo esse pássaro não aparecia por cá.
– Ora, papai, isso agora é tolice!
– Será, mas não vou ao roçado. Nada, que teu avô não faz outro!
E dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho Serrano tirou da parede a sua espingarda, dizendo:
– Para não ficar com as mãos vadias, vou limpar esta sujeita, que está criando ferrugem.
E, depois de descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a limpá-la.
O tiro foi um alívio para Mimi – em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mão do pai era um perigo iminente para o namorado.
Mas – oh! Contrariedade! – Concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e carregou de novo a espingarda.
No momento de pendurá-la, ouviu-se o pio do jaó.
– Ouviste, Mimi? – Perguntou Serrano, empalidecendo de súbito, com a arma ainda na mão; ouviste?
– Não, senhor; que foi?
– O jaó! – Não ouvi nada; vocem'cê enganou-se.
– Não! Estes ouvidos de velho caçador não se enganam... E aquilo é agouro!...
– Que agouro, que nada!
– Há dois anos piou um jaó no sitio do João Bernardo... lembras-te?... E três dias depois o João Bernardo esticou a canela...
– Coincidência.
– Eu nunca te quis dizer nada, mas quando tua mãe morreu, tinha piado um jaó na véspera, ali mesmo, do lado da caneleira. É um pássaro da morte, pior que a coruja!
Palavras não eram ditas, ouviu-se de novo o jaó.
Serrano estremeceu dos pés à cabeça:
– Ouviste agora? Vê, minha filha, vê como tenho as mãos frias! Vou matar aquele diabo!
– Ora, papai, deixe o pobre jaó! Ele não é o que vocem'cê pensa!
– Pois sim! Aquele não há de cá voltar! Vá agourar lá pro inferno.
O velho ia sair, mas a filha, desesperada agarrou-o pelo braço:
– Não! Não faça isso, papai! Pelo bem que me quer!
E vendo que o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pôs-se a gritar com toda a força dos seus pulmões:
– Jaó! Jaó! Vai te embora, que papai quer te matar!
– Espera que ele te entenda?
E, com um arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da caneleira.
Mimi continuou a gritar:
– Jaó! Meu jaozinho! Foge, foge que papai lá vai à tua procura para matar-te!...
O velho voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o pássaro.
–Que diabo, menina! Parece que ele te entendeu...
E pendurou tranquilamente a espingarda.
O Novais calou-se.
– Está terminado o conto? – Perguntei depois de uma pausa.
– Está; não o achas interessante?
– Não é mau, mas falta-lhe a conclusão. Que fim levou o jaó?
– Aqui o tens na tua presença, meu amigo; o jaó era eu.
– E a Mimi, esta sua criada – acrescentou D. Emília, que voltava com a bandeja do chá.
(Do livro Contos Cariocas)