AS CEREJAS
Arthur Azevedo
– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?
– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me... Os cobres são tão curtos!
– Gostas realmente de cerejas?
– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.
– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruínam.
– Tens razão.
Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano. O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.
Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses. Acompanhou-a. Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:
– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.
Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.
– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!
O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa. Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.
A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.
– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!
– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão de Açúcar.
– Ao Pão de Açúcar?
– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.
– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!
– Por quê?
– Por causa das cerejas.
– Que cerejas?
– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido", com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?
– As cerejas?
– Sim, as cerejas!
– Mas como soubeste que eu...?
– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?
Já o Antunes tinha arranjado a mentira:
– Oh! Diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!
– Eu logo vi!...
No dia seguinte, esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:
– Estavam na Estação.
Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha...