Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo domingo, 05 de março de 2017

HISTÓRIA VULGAR

HISTÓRIA VULGAR

Arthur Azevedo

 

 

            Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de Janeiro. Conquanto filho do barão de Batatais, lavrador abastado, jamais se divertira. Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de São Paulo, voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.

         Aos vinte e oito anos, chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao barão de uma viagem à Europa. – Para quê Europa? – Disse o velho. – Vai ao Rio de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna de ser vista. A Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã se Deus nos der vida e saúde. – O bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro.

         Quando se despediu do filho, na plataforma da estação, o barão recomendou-lhe, pela centésima vez, que tivesse muito cuidado com as más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado, se entregasse confiadamente ao Alípio.

         É verdade que o Alípio tinha exterioridades que enganavam, e não vivia senão à custa delas. Delas e do próximo. Era um rapaz da moda, mas passou pelo serviço antropométrico e ainda hoje tem o retrato na polícia.

         Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados à mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor, e quando as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o Alípio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio, e disse-lhe:

         – Cavalheiro, creio que já nos encontramos.

         – É possível.

         – Mas onde? Não me posso lembrar!

         – Em São Paulo?

         – Não, não creio.

         – Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.

         – É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é paulista?

         – Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.

         – Tem gostado?

         – Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.

         – Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer, ofereço-lhe os meus fracos préstimos.

         – Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa senão passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de espairecer.

         – Ah! O cavalheiro é lavrador?

         – Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um simples fazendeiro, sócio de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barão de Batatais?

         – Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das primeiras fortunas de São Paulo!

         – Pois é meu pai.

         – Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair, razão de mais para aceitar os meus fracos préstimos. Sou carioca da gema, conheço toda a cidade como as palmas das minhas mãos, e posso mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.

         – Oh! Senhor! Não sei a que deva...

         – À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com a sua pessoa!

         – Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de cicerone.

         – Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida é esta - andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo, pelas alcovas –  enfim, pelo monde ou l'on s'amuse! Não sei o que é trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e por mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para que me não aconteça o mesmo.

         – Então é rico?

         – Tenho alguma coisinha, tenho...

         Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não consentiu que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista se divertiu a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada, na rua Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem juntos.

         Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título de curiosidade.

         – Só a título de curiosidade – repetiu o carioca. – Eu jogo, mas não te aconselho que jogues. (Já se tratavam por tu.) O jogo é estúpido: tira sempre o necessário e não dá nunca senão o supérfluo. Tu alguma vez jogaste?

         – Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria! Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso!

         – Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é uma das mais decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês aquele sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele sujeito magro? Tem o retrato na polícia!

         Depois do jantar, que foi magnífico, regado por excelentes vinhos, aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta do tapete verde.

         – Eu vou piabar - disse o Getúlio ao Alípio.

         – Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te trouxesse a esta casa para perderes dinheiro!

         Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o bacharel não resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.

         – O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo.

         – Não posso ver defunto sem chorar - respondeu o outro, que insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.

         – Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista, e fez a última parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto de um conto de réis.

         – O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de notas, e arrumá-las na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito.

         – Vou-me embora - disse-lhe o Getúlio. – Preciso recolher-me hoje um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.

         O Alípio deixou a sala do jogo para acompanhá-lo até o corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo:

         – Ganhaste?

         – Alguma coisa.

         – Pois sim, mas não tornes a jogar, vai com o que te digo! Aconselhou, abotoando-lhe o sobretudo. – Levanta a gola, agasalha-te bem, não brinques com este clima. Eu ainda fico.

         – Precisas de algum dinheiro?

         – Não.

         – Então até amanhã?

         – Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de hoje. Adeus!

         O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi para o hotel, que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar, antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira lá não estava... Escusado é dizer que o Alípio nunca mais o procurou.

 

(Do livro Contos Cariocas)

 

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