Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo domingo, 19 de novembro de 2017

TREZENOS E QUARENTA E CINCO

TREZENTOS E 45

Arthur Azevedo

 

 

– És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque decididamente não te sabes governar!

– Exageras, nhanhã!

– Não! Não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é cega: cego és tu!

– Já vês que a culpa não é minha...

– Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!

– Mas também não me desarranjei...

– Para seres promovido a 1º Oficial da tua Repartição, foi preciso que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.

– Fizeste mal.

– Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!

– Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que estás enganada, nhanhã.

– Deveras?

– Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la ao ministro, este disse-me: "Não era preciso que sua senhora se incomodasse: o decreto estava lavrado."

– Pois sim! Isso disse ele... E quando o decreto estivesse, efetivamente, lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se és tão caipora!

– Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim... Pelo menos tive uma grande felicidade na vida!

– Qual foi, não me dirás?

– A de ter casado contigo...

 

Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e, naquele dia, as suas impertinências habituais não foram mais longe.

 

* * *

 

O pobre Reginaldo – assim se chamava o marido – habituara-se, de muito, àquelas recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e paciência. Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, – não era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em ostentação: era isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.

 

* * *

 

Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava. Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à casa, e, no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto que, à viva força, lhe queria impingir um bilhete de loteria, – uma grande loteria de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.

 

Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava insistindo; mas, de repente, lhe acudiu a ideia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.

 

* * *

 

Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa extraorçamentária, não teria a sua aprovação; mas, que querem? – O pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a consciência quando não contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede. Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:

 

- Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso...! Aí está! Dez mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!... E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos. Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.

 

Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.

 

– Número 345! Exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinquenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?

 

Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.

 

– 345! Pois isto é lá número que se compre!

– Agora não há remédio.

– Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.

– Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra!

– Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!

– Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria não se trocam...

– Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e eu tenho muita sorte!

 

Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete. Desta vez, o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia ficar satisfeita. Não ficou:

 

– Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes.. – Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345...

 

* * *

 

Pois, senhores, no dia seguinte o nº 38788 saiu branco, e o nº 345 foi premiado com a sorte grande.

 

* * *

 

Imagine-se o desespero de nhanhã:

 

– Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?

– Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha...

– Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado grosso!

– Ora essa!

– Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!

– Olha que eu pego na palavra...

– Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!...

– Absurdo aconselhado por ti...

– Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!

– Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!...

 

A boas horas vêm esses protestos de energia! E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: "Cem contos de réis"! Nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.

 

* * *

 

Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e disse-lhe com muito carinho:

– Sossega. Eu fiz uma coisa... mas vê lá! Não ralhes comigo...

– Que foi?

– Não troquei o bilhete!

– Não trocaste o bilhete? – Gritou nhanhã, erguendo-se de um salto, com os olhos muito abertos.

– Não! Pois eu faria lá essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!

– Compraste então o outro bilhete?

– Comprei...

– Nesse caso... estamos ricos?

– Temos cem contos.

– Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!

– Qual! Eu continuo a ser o rei dos caiporas.

– Não digas isso!

– Digo, porque se o não fosse, o número 38788, teria apanhado a sorte imediata...

 


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