A COZINHEIRA
Arthur Azevedo
I
Araújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o relógio: era cinco e meia.
– Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste estado! - Maricas! – Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de seda. Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava todo dia à mesma hora, invariavelmente, e interpelou-a:
– Então, o jantar?
– Pois sim, espera por ele!
– Alguma novidade?
– A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao menos deitar as panelas no fogo!
Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava! A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado nem oito dias!
– Diabo! – Dizia ele irritadíssimo – Diabo!
E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir cinquenta escadas à procura de uma cozinheira! Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! – Papapá! – Quem bate? – Foi aqui que anunciaram uma
cozinheira? – Foi, mas já está alugada. – Repetiu-se esta cena um ror de vezes!
– Vai a uma agência – aconselhou Maricas.
– Ora muito obrigado! Bem sabes o que temos sofrido com as tais agências. Não há nada pior.
E, enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que ele ao entrar deixara sobre o aparador.
– Oh! Como é lindo! – Exclamou, extasiada diante de um magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. – Há de me ficar muito bem. Decididamente és um homem de gosto!
E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos e carícias o inesperado mimo. Ele deixava-se beijar friamente, repetindo sempre:
– Diabo! Diabo!...
– Não te amofines assim por causa de uma cozinheira.
– Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra à procura de outra.
– Se queres, irei; não me custa.
– Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo.
Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e disse:
– Ora, adeus! Vamos jantar num hotel!
– Apoiado! Em qual há de ser?
– No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade seria uma grande maçada.
– Está dito: vamos ao Daury.
– Vai te vestir
Às oito horas da noite, Araújo e Maricas voltaram do Daury, perfeitamente jantados e puseram-se à fresca. Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado num soberbo divã estofado, saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso.
Às dez horas, recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas, oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas.
À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil cuidados para não despertá-la.
A uns cinquenta passos de distância, dissimulado na sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou, à medida que o dono da casa se afastava...
Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no silêncio, e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do bolso, abriu a porta do chalé, e entrou...
Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte, veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos.
Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a de São Cristóvão, e um quarto de hora depois, entrava numa casinha de aparência pobre.
II
Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda estava acordada. O esposo deu-lhe o beijo convencional, um beijo apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa.
– Venho achar-te acordada: isso é novidade!
– É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se, e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças.
– Oh, senhor! É sina minha andar atrás de cozinheiras!
– Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra.
– Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou para maçadas!
Depois que o marido se deitou, dona Ernestina, timidamente:
– E o meu chapéu? – Perguntou – compraste-o?
– Que chapéu?
– O chapéu que te pedi.
– Ah? Já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito arrebentado...
– É que o outro já está tão velho...
– Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois, depois...
– Bom... quando puderes.
E adormeceram.
Logo pela manhã, a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de cozinheira.
Os pequenos ficaram na escola.
Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico. A amante vivia num bonito chalé; a família morava numa velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o conforto, o bem-estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia. Ali, os guardanapos eram de linho; aqui, os lençóis, de algodão. Na rua do Matoso, havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão, muitas vezes, faltava o necessário.
Araújo, prontamente, arranjou cozinheira para a rua do Matoso, e, à meia noite, encontrou a esposa muito satisfeita:
– Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente cozinheira!
– Sério?
– Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem! Esta não me sai mais de casa.
Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a Gazeta. A senhora estava no banho; os meninos tinham ido para a escola.
– Eh! Eh! Meu amo, é vossuncê que é dono da casa?
Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que tinha estado em casa de Maricas!
– Cala-te, diabo! Não digas que me conheces!
– Sim, sinhô.
– Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos deixaste sem jantar, hein?
– Mentira só, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha ama foi que me botou pra fora!
– Ora essa! Por quê?
– Ela me xingou pru via das compras, e eu ameaçou ela de dizê tudo a vossuncê.
– Tudo, o quê?
– A história do estudante que entra em casa à meia-noite quando vossuncê sai.
– Cala-te! – disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de dona Ernestina, que voltava do banho.
O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe havia dito a verdade. Em poucos dias, desembaraçou-se da amante, deu melhor casa à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não saí à noite sem dona Ernestina. Tomou juízo e vergonha.
(Do livro Contos Fora da Moda)