Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo domingo, 27 de novembro de 2016

A COZINHEIRA - CONTO DO ESCRITOR MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO

A COZINHEIRA

Arthur Azevedo

 

I

 

                        Araújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o relógio: era cinco e meia.

                        – Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste estado! - Maricas! – Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de seda. Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava todo dia à mesma hora, invariavelmente, e interpelou-a:

                        – Então, o jantar?

                        – Pois sim, espera por ele!

                        – Alguma novidade?

                        – A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao menos deitar as panelas no fogo!

                        Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava! A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado nem oito dias!

                        – Diabo! – Dizia ele irritadíssimo – Diabo!

                        E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir cinquenta escadas à procura de uma cozinheira! Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! – Papapá! – Quem bate? – Foi aqui que anunciaram uma

cozinheira? – Foi, mas já está alugada. – Repetiu-se esta cena um ror de vezes!

                        – Vai a uma agência – aconselhou Maricas.

                        – Ora muito obrigado! Bem sabes o que temos sofrido com as tais agências. Não há nada pior.

                        E, enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que ele ao entrar deixara sobre o aparador.

                        – Oh! Como é lindo! – Exclamou, extasiada diante de um magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. – Há de me ficar muito bem. Decididamente és um homem de gosto!

                        E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos e carícias o inesperado mimo. Ele deixava-se beijar friamente, repetindo sempre:

                        – Diabo! Diabo!...

                        – Não te amofines assim por causa de uma cozinheira.

                        – Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra à procura de outra.

                        – Se queres, irei; não me custa.

                        – Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo.

                        Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e disse:

                        – Ora, adeus! Vamos jantar num hotel!

                        – Apoiado! Em qual há de ser?

                        – No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade seria uma grande maçada.

                        – Está dito: vamos ao Daury.

                        – Vai te vestir

 

                        Às oito horas da noite, Araújo e Maricas voltaram do Daury, perfeitamente jantados e puseram-se à fresca. Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado num soberbo divã estofado, saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso.

                        Às dez horas, recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas, oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas.

 

                        À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil cuidados para não despertá-la.

                        A uns cinquenta passos de distância, dissimulado na sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou, à medida que o dono da casa se afastava...

                        Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no silêncio, e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do bolso, abriu a porta do chalé, e entrou...

                        Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte, veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos.

                        Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a de São Cristóvão, e um quarto de hora depois, entrava numa casinha de aparência pobre.

 

II

 

                        Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda estava acordada. O esposo deu-lhe o beijo convencional, um beijo apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa.

                        – Venho achar-te acordada: isso é novidade!

                        – É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se, e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças.

                        – Oh, senhor! É sina minha andar atrás de cozinheiras!

                        – Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra.

                        – Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou para maçadas!

                        Depois que o marido se deitou, dona Ernestina, timidamente:

                        – E o meu chapéu? – Perguntou – compraste-o?

                        – Que chapéu?

                        –  O chapéu que te pedi.

                        – Ah? Já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito arrebentado...

                        – É que o outro já está tão velho...

                        – Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois, depois...

                        – Bom... quando puderes.

                        E adormeceram.

                        Logo pela manhã, a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de cozinheira.

                        Os pequenos ficaram na escola.

 

                        Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico. A amante vivia num bonito chalé; a família morava numa velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o conforto, o bem-estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia. Ali, os guardanapos eram de linho; aqui, os lençóis, de algodão. Na rua do Matoso, havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão, muitas vezes, faltava o necessário.

 

                        Araújo, prontamente, arranjou cozinheira para a rua do Matoso, e, à meia noite, encontrou a esposa muito satisfeita:

                        – Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente cozinheira!

                        – Sério?

                        – Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem! Esta não me sai mais de casa.

 

                        Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a Gazeta. A senhora estava no banho; os meninos tinham ido para a escola.

                        – Eh! Eh! Meu amo, é vossuncê que é dono da casa?

                        Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que tinha estado em casa de Maricas!

                        – Cala-te, diabo! Não digas que me conheces!

                        – Sim, sinhô.

                        – Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos deixaste sem jantar, hein?

                        – Mentira só, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha ama foi que me botou pra fora!

                        – Ora essa! Por quê?

                        – Ela me xingou pru via das compras, e eu ameaçou ela de dizê tudo a vossuncê.

                        – Tudo, o quê?

                        – A história do estudante que entra em casa à meia-noite quando vossuncê sai.

                        – Cala-te! – disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de dona Ernestina, que voltava do banho.

 

                        O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe havia dito a verdade. Em poucos dias, desembaraçou-se da amante, deu melhor casa à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não saí à noite sem dona Ernestina. Tomou juízo e vergonha.

 

(Do livro Contos Fora da Moda)

 

 


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