POBRES LIBERAIS
(Arthur Azevedo)
Foi no tempo do Império.
O notável político Dr. Francelino Lopes, sendo presidente de uma província cujo nome não mencionarei para não ofender certas suscetibilidades, aliás mal entendidas, resolveu, aquiescendo ao desejo dos chefes mais importantes do partido conservador (era o que estava de cima), fazer uma grande excursão por todo o interior da província, visitando as principais localidades.
A notícia dessa resolução abalou necessariamente a população inteira, e por toda a parte, não só as câmaras municipais como os cidadãos mais importantes, correligionários do governo, se prepararam para receber condignamente o ilustre delegado do gabinete imperial.
Na primeira cidade visitada pelo Dr. Francelino, foi S. Exa. Recebido na estação da estrada de ferro, que se achava ricamente adornada, ao som do Hino Nacional, executado por uma indisciplinada charanga, e das bombas dos foguetes estourando no ar e das aclamações do povo, cujo entusiasmo, se não era real, era, pelo menos, espalhafatoso e turbulento.
Estavam presentes todas as autoridades locais. Houve três discursos, cada qual mais longo, a que S. Exa. respondeu com poucas, mas eloquentes palavras.
Da estação da estrada de ferro, seguiu o presidente, a carro, acompanhado sempre pelas autoridades e grande massa de povo, para a câmara municipal, onde o esperava opíparo banquete, a que fez honra o estômago de S. Exa., o qual estava a dar horas como se fosse o estômago de um simples mortal.
À mesa, defronte do presidente, sentou-se a Baronesa de Santana, esposa do chefe do partido dominante, abastado fazendeiro, que se reservara a honra e o prazer de hospedar o grande homem.
Este, que era bem parecido, que não tinha ainda 40 anos, e gozava na capital do império de uma reputação um tanto donjuanesca, sentia-se devorado pelos olhares ardentes da baronesa, de idade digna de um príncipe.
Eram 9 horas da noite quando terminou o banquete pelo brinde de honra, erguido por S. Exa. à Sua Majestade, o Imperador.
Como a charanga estivesse presente e as moças manifestassem o desejo de dançar, improvisou-se um baile, e o Dr. Francelino Lopes dançou uma quadrilha com a baronesa, apertando-lhe os dedos de um modo que nada tinha de presidencial. A essa inócua manifestação muscular limitou-se, entretanto, o esboçado namoro, que não prosseguiu por falta absoluta de ocasião.
Como o presidente se queixasse da fadiga produzida pela viagem, a festa foi interrompida, e as autoridades conduziram S. Exa. aos aposentos que lhe estavam reservados em casa do barão, na mesma praça onde se achava o edifício da Câmara.
Nessa casa que, apesar de baixa, era a melhor da cidade, haviam sido preparadas duas salas e uma alcova para o ilustre hóspede.
Qualquer dos três compartimentos estava luxuosamente mobiliado e o leito era magnífico.
Os donos da casa, o presidente da Câmara, o juiz de direito, o juiz municipal, o vigário, o delegado de polícia e outras pessoas gradas, mostraram a S. Exa. os seus cômodos, pedindo-lhe mil desculpas por não ter sido possível arranjar coisa melhor, e todos se retiraram fazendo intermináveis mesuras.
O último a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietário e redator principal d'A Opinião Pública, órgão do partido conservador.
– Peço permissão para oferecer a V. Exa. o número do meu jornal publicado hoje. Traz a biografia e o retrato de V. Exa. V. Exa. me desculpará, se não achar essa modesta manifestação de apreço à altura dos merecimentos de V. Exa.
O Dr. Francisco Lopes agradeceu, fechou a porta e soltou um longo suspiro de alívio.
* * *
Logo que se viu sozinho, o presidente lembrou-se do seu criado de quarto, que ali devia estar... Onde se meteria ele? Provavelmente adormecera noutro cômodo da casa.
Felizmente o dorminhoco tivera o cuidado de desarrumar a mala de S. Exa. e pusera à mão a sua roupa de cama e os seus chinelos.
O hóspede descalçou-se, despiu-se, envergou a camisola de dormir, deitou-se, e abriu A Opinião Pública, disposto a ler a sua biografia antes de apagar a vela.
Apenas acabara de examinar o retrato, detestavelmente xilografado, sentiu S. Exa. uma dolorosa contração no ventre, e logo em seguida a necessidade imperiosa de praticar certo ato fisiológico de que nenhum indivíduo se pode eximir, nem mesmo sendo presidente da província.
Ele saltou do leito e começou a procurar o receptáculo sem o qual não poderia obedecer à natureza; mas nem no criado-mudo nem debaixo da cama encontrou coisa alguma. Farejou todos os cantos: nada!
O barão, a baronesa, o presidente da Câmara, os juízes, o vigário, o delegado de polícia, o redator d’A Opinião Pública, ninguém se lembrara de que S. Exa. era um homem como os outros homens!
O Dr. Francelino Lopes quis bater palmas, chamar alguém, pedir que o socorressem; mas esbarrou num preconceito ridículo da nossa educação; envergonhou-se de confessar o que lhe parecia uma fraqueza e era, aliás, a coisa mais natural deste mundo; receou perder a sua linha de primeira autoridade da província, desabar do pedestal de semideus aonde o guindaram durante a festa da recepção.
Além disso, que diria a formosa provinciana, a bela baronesa cujos dedinhos apertara, e cujos olhos pecaminosos o haviam devorado? Como dona da casa seria ela a primeira a saber, e achá-lo-ia ridículo e grosseiro!
Entretanto, o momento era crítico. O delegado do governo imperial começava a suar frio...
Mas de repente olhou para A Opinião Pública e lembrou-se não sei de que aventura sucedida a outro hóspede, que se achava em semelhante emergência. Não refletiu nem mais um segundo: o jornal do Bacharel Pinheiro, desdobrado sobre o soalho, substituiu o receptáculo ausente.
Desobrigada a natureza, S. Exa. foi de mansinho, cautelosamente, abrir uma janela.
A praça estava deserta e silenciosa. Nas sacadas da Câmara Municipal morriam as últimas luminárias. A cidade inteira dormia.
Ele agarrou cuidadosamente A Opinião Pública pelas quatro pontas e atirou tudo fora. – Depois fechou a janela, lavou-se, perfumou-se, deitou-se, e, com muita pena de não poder ler a sua biografia, apagou a vela.
Pouco depois dormia o sono do justo, que tem igualmente desembaraçado o ventre e a consciência.
* * *
O Dr. Francelino Lopes despertou, ou antes, foi despertado de manhã, por um rumor confuso, que se fazia ouvir na praça, aumentando gradualmente.
Prestou o ouvido, e começou a distinguir, entre aquela estranha vozeira, frases de indignação, como:
– É uma infâmia! – Que pouca vergonha! – A vingança será terrível! etc.
E o barulho aumentava!
Não podia haver dúvida: tratava-se de uma perturbação da ordem pública.
O presidente vestiu-se à pressa, abriu a janela, e foi recebido por uma estrondosa ovação. Na praça estavam reunidas mais de quinhentas pessoas.
– Viva o Sr. Presidente da Província!
– Vivou!
E a charanga executou o Hino.
Terminado este, o Bacharel Pinheiro aproximou-se da janela presidencial, e pronunciou as seguintes palavras:
– Numerosos habitantes desta cidade, admiradores das altas virtudes e dos talentos de V. Exa., vieram hoje aqui, ao romper d'alva, no intuito de dar os bons dias a V. Exa., acompanhados de uma banda de música para tocar a alvorada; mas, aqui chegando, foram surpreendidos pelo espetáculo de uma injúria ignóbil, cometida contra a pessoa de V. Exa. e contra a imprensa livre!
– Apoiado! regougaram aquelas quinhentas gargantas como se fossem uma só.
– Deixamos a injúria no lugar em que foi encontrada, isto é, debaixo da janela de V. Exa., a fim de que V. Exa. veja a que desatinos pode levar nesta cidade o ódio político e do que são capazes os liberais!
– Apoiado! vociferou a turba.
– Sim, foram os liberais! Só essa gente imunda poderia encher de imundícies a respeitável efígie e a biografia de V. Exa.!
– Apoiado!
– Mas fique certo, excelentíssimo, de que, se foi grande a ofensa, maior será o desagravo!
O presidente respondeu assim:
– Meus senhores, o acaso tem mistérios impenetráveis... tudo pode ser obra do acaso, e não dos liberais. (À parte) Pobres liberais! (Alto) Todavia, se ofensa houve, foi uma ofensa anônima, tudo quanto pode haver de mais anônimo... E as ofensas anônimas desprezam-se! Viva sua majestade o imperador!
– Vivou!
–Viva a religião do Estado!
– Vivou!
– Viva a constituição do Império!
– Vivou!
E a charanga atacou o Hino.
(Do livro Contos Cariocas)
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