A VINGANÇA
Arthur Azevedo
Quando madame D’Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa troupe parisiense que fez as delícias dos frequentadores do Cassino Franco-Brésilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que madame D’Arbois resistia heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta fidelidade ao marido, um cabotin qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente que ela voltasse da América endinheirada feliz.
O jovem Comendador Cardoso, que não acreditava em Penélopes de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que, ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com madame D’Arbois.
Por esse tempo dissolveu-se a troupe, e o jovem Comendador Cardoso aproveitou o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro. Nada lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar, impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos.
Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem Comendador Cardoso e madame D’Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de trinta anos, pouco instruído é verdade, mas senhor desses hábitos sociais que até certo ponto dispensam a educação literária. Ela era uma mulher bonita alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa, econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam desejar?...
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Tudo cansa. Ao cabo de um ano, madame D’Arbois começou a sentir nostalgia dos bastidores. De mais a mais, aconteceu que o empresário da melhor companha brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu um vantajoso contrato convidando-a, nada mais nem menos, para substituir a estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa.
O jovem Comendador Cardos pôs os pés à parede. Que não, que não, que não! A Lolotte – madame D’Arbois chamava-se Charlotte – não precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!...
– Mas non, mas non! Il ne s’agite poin d’argent, mon pauvre chéri, obtemperava Lolotte; je sens que je ferais une grosse maladie si je ne rétourne pau au theathre! Eh bien... voyons... sois gentil... Il faut que tu y consentes...
Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem Comendador Cardoso, de quem era amigo íntimo e interveio com muito empenho:
– Que diabo! Consente, Cardosinho, consente! Se não lhe fazes a vontade, ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher contrariada. Depois, vê lá; não é nada, não é nada, mas sempre são seiscentos bagarotes que a pequena mete no Banco todos os meses! Não vá tu privá-la deste pecúlio.
Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois, madame d’Arbois estreava-se no papel de protagonista de uma opereta.
Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico, e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo público fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente. Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas coplas cuja letra ninguém percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um santo.
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Razão tinha o jovem Comendador Cardoso em não querer que a amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de esperá-la no saguão do teatro, penetrava até o camarim.
Uma vez, encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro ator cômico da companhia. Que logo se retirou, dizendo:
– Adeusinho, Comendador; vim cá restituir à colega o rouge que lhe pedira emprestado.
Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento, e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar de um homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadosa da sua roupa!
Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico encontravam-se quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista perto do teatro.
Um dia, o jovem Comendador Cardoso, depois de se haver posto em observação numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista, saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em ceroulas.
O primeiro ator cômico, ao ver o jovem Comendador Cardoso, não perdeu o sangue frio, e começou a fingir que estava a ensaiar:
– É como vos digo, princesa Briolanja; o rei, vosso pai, não acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar nos seus reinos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão Vermelho, e vos despose!...
Mas o jovem Comendador Cardoso não engoliu a pílula, e disse, dirigindo-se à princesa Briolanja, que continuava a fumar o seu cigarro turco:
– Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes, que realmente é digno da senhora!
E saiu arrebatadamente.
- E agora? perguntou o cômico.
– - Oh! Ele voltará! afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada de fumo.
E foram deitar-se.
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O jovem Comendador Cardoso não voltou, e madame d’Arbois ficou bastante contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa família – mulher e filhos – e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa fartou-se desses amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico, inteligente, simpático e generoso!
Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as trinta primeiras representações, já não atraía o público; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresário já devia um mês de ordenados à companhia...
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A primeira representação da peça que estava em ensaios, a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia ser dada em benefício do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes reclames à “festa artística”, anunciada também pelas esquinas em vistosos cartazes, onde esse nome – LOPES – se destacava em enormes caracteres vermelhos.
Chegou a noite do espetáculo. As sete horas e meia as torrinhas, os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora depois, a sala transbordava, e todo aquela gente abanava-se com leques, ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas batiam com os pés e as bengalas, e dirigiam chufas aos da plateia e dos camarotes, talvez com a ideia de se vingarem de os ver em lugares menos incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrível.
De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta, ao mesmo tempo em que uma campainha elétrica retinia longamente, e a sala, até então quase escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado O......o....oh!.... das torrinhas... Eram nove horas.
Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns músicos, bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a ouverture.
Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas não subiu.
Passaram-se alguns minutos.
Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés. A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu no proscênio e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram Psiu! psiu! – E o barulho cessou.
- Respeitável público, disse o primeiro ator cômico – o espetáculo não pode ter começo, porque a atriz madame d’Arbois, incumbida de um dos principais papéis, até agora não apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia à minha vontade.
Esse cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentado e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os comentários, os risos, as imprecações e os gracejos começaram num vozerio atroador.
De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas – empregados da contrarregra, costureiras, etc. –, mandadas à procura de madame d’Arbois.
Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela polícia, veio de novo ao proscênio declarar que, não se achando madame d’Arbois no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo transferido para quando se anunciasse.
Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator cômico.
A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão indescritível. Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e promoveram desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção da polícia. Só às onze horas, pôde ser restabelecida a ordem e fechado o teatro.
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Onde estava madame d’Arbois?
No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de princesa Briolanja que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem Comendador Cardoso.
– Ah! Ah! Pensou a francesa com um sorriso de triunfo, voltou ou não voltou?
E abriu a carta:
“Lolotte – Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdoo-te, mas sob uma condição: deixarás de
representar hoje no benefício do homem que foi o causador da nossa separação, ou, por outra, nunca mais representarás. Só assim serei para ti o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te no carro que aí te irá buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficarás em minha companhia. Se não, não. – Cardoso.”
A princesa Briolanla leu e releu este bilhete. Era o perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas letras. Deixando de comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação feia, provocava um escândalo inaudito, mas isso que lhe importava, se saía do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia?
Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto coupé que a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na ocasião em que o Lopes desesperado, apelava para a paciência do público.
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Ao entrar no hotel, madame d’Arbois perguntou a um criado:
– O Comendador Cardoso?
– Não está, mas deixou um bilhete para a madame d’Arbois. É a senhora?
- Sim, sou eu.
E a desgraçada leu o seguinte:
“Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite ainda. – Cardoso.”
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