Arthur Azevedo
Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema
– Entra. Estava ansioso.
– Vim, mal recebi o teu bilhete. Que desejas de mim?
– Um grande serviço!
– - Oh, diabo! Trata-se de algum duelo?
– Trata-se simplesmente de amor. Senta-te.
Sentaram-se ambos.
*
Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opiniões ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.
*
– Mandei-te chamar, continuou Minervino, porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há se der hoje por força.
– Estou às tuas ordens.
– Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?
– Sim, lembro-me... um namoro...
– Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!
– Quê? Tu estás apaixonado?!...
– Apaixonadíssimo... e é preciso acabar com isto!
– De que modo?
– Casando-me; e tu que hás de pedi-la!
– Eu?!...
– Sim, meu amigo. Bem sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: - Vá descansado, hei de fazer justiça, - eu respondi-lhe: - Vossa Excelência, se me nomear, não chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que dirá com as viúvas!
– Mas tu a conheces?
– Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido de minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem-sucedido. Dize-lhe de mimo melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.
– Mas que diabo! Observou Salema, – isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!
– Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.
– Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?
– Ah! Como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa.
E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre:
– Vai! Vai! Não te demores!
Salema saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.
No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.
– Que diabo! Refletiu ele; não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.
Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de reps, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.
Salema esperou uns dez minutos.
Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os movimentos, e não pode reter uma exclamação de surpresa.
*
Era ela! Ela!.. A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.
Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!...
*
– Oh!, disse a viúva, estendendo-lhe a mão, muito naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o senhor?
– Conhece-me? Balbuciou Salema.
– Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e, não sei por que... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem.... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Por que nunca mais tornei a vê-lo?
Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se mais tímido que Minervino, - mas cobrou ânimo, e respondeu:
– Não foi porque não a procurasse por toda a parte...
– Não sabia onde eu morava?
– Não; supus que nas Laranjeiras. Via-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.
– Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só se abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo de sua visita.
De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.
– O motivo da minha visita é muito delicado; eu...
– - Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...
E apontou para o retrato.
– Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...
– Minha senhora, eu sou...
Ela interrompeu...
– É o senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.
Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.
– É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações e quase rica. Não tenho filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo!
Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou falar.
– Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.
Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.
– Mano, apresento-lhe o senhor Nuno Salema, o meu noivo.
O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:
– - All right!...
Depois inclinou-se, de novo e saiu da sala, sempre apressado.
– Mas, minha senhora, tartamudeou o noivo muito confundido, imagine que o meu colega Minervino que mora ali defronte...
A viúva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que viu, deu um pulo para trás e sumiu-se.
– Ah! Aquele moço?... Coitado! Não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...
– Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...
– Deveras?! Exclamou a viúva Perkins.
E ei-la acometida de um ataque de riso:
– Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
– E deixou-se cair no divã.
– Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou:
– Que hei de dizer ao meu amigo?
Ela ficou muito séria, e respondeu:
– Diga-lhe que quem tem boca não manda assoprar.
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(Do livro Contos Fora da Moda)