Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo quinta, 05 de setembro de 2024

A POLÊMICA (CONTO DO MARANHENSE ARTHUR AZEDVEDO)
A POLÊMICA

Arthur Azevedo 

 

                        O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.

                        Felizmente era solteiro, e o dono da "pensão" onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.

                        Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.

                        Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no Colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontravam na rua.

                        O negociante ouviu-o, e disse-lhe:

                        – Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...

                        – Estou às tuas ordens

                        – Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do Commercio, um artigo contra o Saraiva.

                        – Que Saraiva?

                        – O da rua Direita.

                        – O João Fernandes Saraiva?

                        – Esse mesmo.

                        – E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?

                        – Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.

                        – A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeção de alegria; mas caiu em si:

                        – Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...

                        – Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?

                        – Mas...

                        – Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.

                        – Tenho escrúpulos...

                        – Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção.

                        – E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que não conhecessem o que a vida tem de áspero e difícil O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.

                        O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura de lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.

                        – Muito bem! - Exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.

                        – Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão!

                        –E, depois de um passeio â burra, meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:

                        – Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. – A época é difícil, mas há de se arranjar.

                        O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!

                        Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensão" que lhe emprestasse o Jornal do Commercio, e viu a sua prosa "Eu e o sr. João Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.

                        À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente".

                        Ele abriu-a e leu:

                        "Romualdo. – Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do – João Fernandes Saraiva."

                        Este bilhete inquietou o ex-jornalista.

                        Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamará ele?

                        O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!

                        – Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.

                        O menino foi-se.

                        O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.

                        Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:

                        – Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!

                        E levou-o para um compartimento reservado.

                        – Leste o Jornal do Commercio de hoje?

                        – Não –, mentiu prontamente o Romualdo. – Raramente leio o Jornal do Commercio.

                        – Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!

                        O Romualdo fingiu que leu.

                        – Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! – Bradou o Saraiva. –Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!

                        – O artigo não está mau... Tem até estilo...

                        – Preciso responder!

                        – Eu, no teu caso, não respondia...

                        – Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio Jornal ao Commercio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.

                        – Eu?...

                        – Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!...

                        – Bem sabes – gaguejou o Romualdo – que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...

                        – Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!

                        No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.

                        Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:

                        – Por amor de Deus, não te recuses a este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa...

                        O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.

                        Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: – Bravo! Não podia sair melhor! – E, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador.

                        – Oh! Isto é muito, Saraiva!

                        – Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pague bem!

                        – Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no jornal pode haver alguém que conheça a minha letra.

                        – Copiá-lo-ei eu mesmo.

                        – Adeus.

                        – Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!

                        – Está dito.

                        – No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o Jornal do Commercio na mão.

                        – O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!

                        E batendo com as costas da mão no jornal:

                        – Isto não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas ainda assim, quem escreveu por ele está longe deter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...

                        – E o Romualdo escreveu...

                        Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.

                        Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: – Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!

                        Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.

                        E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.

                        O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

 (Do livro Contos Cariocas)


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