Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo sexta, 28 de janeiro de 2022

O ASA NEGRA (CONTO DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)
 

O ASA-NEGRA

Arthur Azevedo

 

 

Quando, em 185..., poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara.

A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica. Só algumas horas mais tarde, pôde acudir ao chamado; mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara.

 

O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis consequências, não só da inépcia das mulheres que assistiram a sua mãe, como do falecimento desta. Era aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio.

 

* * *

 

Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível afastou-o logo desse causador involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço. Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não encontrava defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmatoadas estúpidas do mestre-escola. Isto acontecia diariamente.

 

O mestre, afinal, cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem instrução, não tendo achado no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da inteligência medíocre. Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comércio.

 

Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática faria o resto. Dentro de algum tempo, o menino, que já contava dezesseis anos, deveria entrar, corno ajudante de guarda-livros, para certo escritório de comissões; mas, oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor.

 

Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprazado, em casa do futuro patrão.

 

– Cá estou eu.

– Quem é você?

– O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.

– Ah! Sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa.

 

E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.

 

– Ah! Murmurou despeitado o infeliz alcantarense.

 

O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.

 

* * *

 

Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria pelas ruas de S. Luís. Andava maltrapilho e quase descalço. Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde.

Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra possível. Diariamente, lhe chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.

 

Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra.

 

* * *

 

Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina. Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napeias de Rubens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas dentadas de um gigante.

 

Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve, coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.

 

Infelizmente assim não sucedeu.

 

Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não lhe indagava das forças. As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara com a aurea mediocritas relativa do condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas.

 

De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte.

 

* * *

 

Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano. Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético, espumante; mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente. O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos.

 

Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido. Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho. Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até então de si.

 

O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido. Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda a família.

 

Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas da Baía de São Marcos.

 

* * *

 

Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela Baia de São Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha ermida solitária. Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina. No Maranhão, as paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio: têm também olhos.

 

* * *

 

Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente nas águas negras da baía, esperam-no os braços roliços da viúva do doido. Embarcou. Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu serviço.

 

* * *

 

Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até então se conservara plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em três minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique.

 

– Cada um cuide de si! Bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heroico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.

 

Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer... A embarcação submergiu-se. O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera. Debalde!

 

Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona d'água, chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua mão encontrou alguma coisa fria. Muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi arremessado à praia...

 

O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.


Escreva seu comentário

Busca


Leitores on-line

Carregando

Arquivos


Colunistas e assuntos


Parceiros