OS TIMBIRAS
CANTO QUARTO
Gonçalves Dias
Bem-vindo seja o fausto mensageiro,
O melífluo Timbira, cujos lábios
Destilam sons mais doces do que os favos
Que errado caçador na brenha inculta
Por ventura topou! Hóspede amigo,
Ledo núcio de paz, que o território
Pisou de imigas hostes, quando a aurora
Despontava nos céus – bem vindo seja!
Não luz mas brando e grato o romper d’alva
Que o teu sereno aspecto; nem mais doce
A fresca brisa da manhã cicia
Pela selvosa encosta, que a mensagem
Que o chefe imigo e fero anseia ouvir-te.
Melífluo Jurecei, bem vindo sejas
Dos Gamelas ao chefe, Gurupema,
Senhor dos arcos, quebrador das setas,
Das selvas rei, filho de Icrá valente.
Assim consigo as hostes do Gamela:
Consigo só, que a usada gravidade
Já na garganta, a voz lhes retardava.
Não veio Jurucei? Posto de fronte,
Arco e flecha na mão feito pedaços,
Certo sinal do respeitoso encargo,
Por terra não lançou? – Que pois augura
Tal vinda, a não ser que o audaz Timbira
Melhor conselho toma: e por ventura
De Gurupema receiando as forcas,
Amiga paz lhe of1rece, e em sinal dela
So vencido Gamela o corpo entrega?!
Em bem! que a torva sombra vagarosa
Do outrora chefe seu há-de aplacar-se,
Ouvindo a mesma voz das carpideiras,
E vendo no sarcófago depostas
As armas, que no ibaque hão-de servi-lhe,
E junto ao corpo, que foi seu, as plumas,
Em quanto vivo, insígnias do mando.
Embora ostente o chefe dos Timbiras
O ganhado troféu; embora à cinta
Ufano prenda o gadelhudo crânio,
Aberto em croa, do infeliz Gamela.
Embora; mas porém amigas quedem
Do Timbira e Gamela as grandes tabas;
E largo em roda na floresta imperem,
Que o mundo em peso, unidas , afrontaram!
Nascia a aurora: do Gamela s hostes
Em pé, na praia, mensageiro aguardam
Sisudos, graves, Um caudal regato,
Cujo branco areial a prata imita,
Sereno ali volvia as mansas águas,
Como que triste de as levar ao rio,
Que ao mar conduz a rápida torrente
Por entre a selva umbrosa e brocas penhas.
Esta a praia! – em redor troncos gigantes,
Que a folhagem no rio debruçavam,
Onde beber frescor os galhos vinham,
Cuxuriando em viço! – penduradas
Trepadeiras gentis da coma excelsa,
Estrelando do bosque o verde manto
Aqui, ali, de flores cintilantes,
Meneiavam-se ao vento, como fitas,
De que se enastra a coma a virgem bela.
Era um prado, uma várzea, um tabuleiro
Com mimoso tapiz de várias flores,
Agrestes, sim, mas belas, Gênio amigo
Chegou-lhe só a mágica vergasta!
Ei-las a prumo ao logo da corrente
Com requebros louçãos a enamorá-la!
A nós de embira aos troncos amarradas
Quase igaras em conto figuravam
Ousada ponte no correr das águas
Por força mais qu1humana trabalhada.
Vê-as e pasma Jurecei, notando
O imigo poderio, e seu mau grado
Vai lá consigo mesmo discorrendo:
“Muitos, certo e as nossas tabas forte,
Itajubá invencível; mas da guerra
É sempre incerto o azar e sempre vário!
E... quem sabe? – talvez... mas nunca, oh! nunca!
Itajubá! Itajubá! – onde há no mundo
Posses que valham contrastar seu nome?
Onde a seta que valha derriba-lo,
E a tribo ou povo que os Timbiras vençam?!”
Entre as hostes que a si tinha fronteiras
Penetra! – tão galhardo era o seu gesto,
Que os Gamelas em si tão bem disseram:
– Missão de paz o traga, que se os outros
São tão feros assim, Tupã nos valha,
Sim, Tupã; que o não pode o rei das selvas!”
Hospedagem sincera entanto of’recem
A quem talvez não tardará busca-los
Com fina seta no leal combate.
Ás igaras o levam pressurosos,
Servem-lhe o piraquém na guerra usado,
E os loiros sons so colmeal agreste;
Servem-lhe amigos suculento pasto
/em banquete frugal; servem-lhe taças
(A ver se mais que a fome o instiga a sede)
Do espumoso cauim, – taças pesadas
Na funda noz da sapucaia abertas.
Sem temor o timbira vai provando
O mel, o piraquém, as iguarias;
Mas dos vinhos coíbe-se prudente.
Em remoto lugar forma conselho
O rei da selvas, Gurupema, em quanto
Restaura o mensageiro os lassos membros.
Chama primeiro Cab-oçu valente;
As ríspidas melenas corridias
Cortam-lhe o rosto, – Pendem-lhe nas costas,
Hirtas e lesas, como o junco em feixes
Acamados no leito ressequido
D’invernosa corrente, O rosto feio
Aqui, ali negreja manchas negras
Como da bananeira a larga folha,
Colhida ao romper d’alva, qu’uma virgem
Nas mãos lascivas machucou brincando.
Valente é Caba-oçu; mas sem piedade!
Como senta fera almeja sangue
E de malvada ação cruel se paga.
Apressou em combate um seu contrário,
Que mais imigo tinha entre os imigos:
Da guerra os duros vínculos lançou-lhe
E à terreiro o chamou, como é de usança
Para o triunfo bélico adornado.
Fizeram-lhe terreiro os mais d’entôrno:
Ele do sacrifício empunha a maça,
Impropérios assaca, vibra o golpe,
E antes que tombe o corpo, aferra os dentes
No crânio fulminado: jorra o sangue
No rosto, e em gorgulhões se expande o cérebro,
Que a fera humana rábida mastiga!
E em quanto limpa à desgrenhada coma
Do sevo pasto o esquálido sobejo,
Bárbaras hostes do Gamela torcem,
À tanto horror, o transtornado rosto.
Vem Jepiaba, o forte entre os mais fortes,
Taiatu, Taiatinga, Nupançaba,
Tucura o ágil, Cravatá sombrio,
Andira, o sonhador de agouros tristes,
Que ele é primeiro a desmentir co’as armas,
Pirera que jamais não foi vencido,
Itapeba, rival de Gurupema,
Oquena, que por si vale mil arcos,
Escudo e defensão dos seus que ampara;
E outros, e muitos outros, cuja morte
Não foi sem glória no cantar dos bardos.
Guerreiros! Gurupema assim começa,
“Antes de ouvir o mensageiro estranho,
Consultar-vos me é força; a nós incumbe
Vingar do rei da selva a morte indigna.
Do que morreu, em que lhe seja eu filho,
E a todos nós da gloriosa herança
Compete o desagravo. Se nos busca
O filho de Jaguar, é que nos teme;
A nossa fúria por ventura intenta
Voltar a mais amigo sentimento.
Talvez do vosso chefe o corpo e as armas
Com larga pompa nos envia agora:
Basta-vos isto?
Guerra! guerra! exclamam.
Notai porém quanto é pujante o chefe,
Que os Timbiras dirige. Sempre o segue
Fácil vitória, e mesmo antes da luta
As galas triunfais dispõe seguro.
Embora, dizem uns; outros murmuram,
Que de tão grande herói, qualquer que seja
A oferta expiatória, em bem, se aceite.
Vacilam no conselho. A injúria é grande,
Bem fundo a sentem, mas bem grande é o risco.
“Se o orgulho desce a ponto no Timbira,
Que pazes nos propõe, diz Itapeba
Com dura voz e cavernoso acento,
Já está vencido! – Alguém pensa o contrário
(E com despeito a Gurupema encara)
Alguém, não eu! Se havemos de barato
Dar-lhe a vitória, humildes aceitando
O triste câmbio (a idéia só me irrita)
De um morto por um arco tão valente,
Aqui as armas vis faço pedaços
Em breve trato, e vou-me a ter com esse,
Que sabe leis ditar, mesmo vencido!”
Como tormenta, que rouqueja ao longe
E som confuso espalha em surdos ecos;
Como rápida flecha corta os ares,
Já perto soa, já mais perto brame,
Já sobranceira enfim roncando estala;
Nasce fraco rumor que logo cresce,
Avulta, ruge, horríssono ribomba.
Oquena! Oquena! o herói nunca vencido,
Com voz troante e procelosa exclama,
Dominando o rumor, que longe Esaú:
“Fujam tímidas aves aos lampejos
Do raio abrasador, – medrosas fujam!
Mas não será que o herói se acanhe ao vê-los!
Itapeba, só nós somos guerreiros;
Só nos, que a olhos nus fitando o raio,
Da glória a senda estreita à par trilhamos.
Tens em mim quanto sou e quanto valho,
Armas e braço enfim!”
Eis rompe a densa
Turba que d’entôrno d’Itapeba
Formidável barreira alevantava.
Quadro pasmoso! os dois de mãos travadas,
Sereno o aspecto, plácido o semblante,
À fúria popular se apresentavam
De constância e valor somente armados.
Eram escolhos gêmeos, empinados,
Que a fúria de um vulcão ergueu nos mares.
Eterno ali serão co’os pés no abismo,
Com os negros cimos devassando as nuvens,
Se outra força maior os não afunda.
Ruge embalde o tufão, embalde as vagas
Do fundo pego à flor do mar borbulham!
Estranha a turba, e pasma o desusado
Arrojo, que jamais assim não viram!
Mas mais que todos Caba-oçu valente
Enleva-se da ação que o maravilha;
E de nobre furor tomado e cheio,
Clama altivo: “Eu também serei convosco,
Eu também, que a só mercê vos peço
De haver às mãos o pérfido Timbira.
Seja, o que mais lhe apraz invulnerável,
Que d’armas não careço por vence-lo.
Aqui o tenho, – aqui comigo o aperto,
Estreitamente o aperto nestes braços,
(E os braços mostra e os peitos musculosos)
Há-de medir a terra já vencido,
E orgulho e vida perderá co’o sangue,
Arrã soprada, que um menino espoca!”
E bate o chão, e o pé na areia enterra,
Orgulhoso e robusto: o vulgo aplaude,
De prazer rancor soltando gritos
Tão altos, tais, como se ali tivera
Aos pés, rendido e morto o herói Timbira.
Por entre os alvos dentes que branquejam,
Ri-se o prazer nos lábios do Gamela.
Aos rosto a cor lhe sobe, aos olhos chega
Fugaz clarão da raiva que aos Timbiras
Votou de há muito, e mais que tudo ao chefe,
Que o espolio paternal mostra vaidoso.
Com gesto senhoril silêncio impondo
Alegre aos três a mão calosa of’rece,
Rompendo nestas vozes: “Desde quando
Cabe ao soldado pleitear combates
E ao chefe em ócio viver seguro?
Guerreiros sois, que os atos bem no provam;
Mas se vos não apraz ter-me por chefe,
Guerreiro tão bem sou, e onde se ajuntam
Guerreiros, hão-de haver logar os bravos!
Serei convosco, disse. – E aos três se passa.
Soam batidos arcos, rompem gritos
Do festivo prazer, sobe de ponto
O ruidoso aplaudir, Só Itapeba,
Que ao seu rival deu azo de triunfo,
Mal satisfeito e quase irado rosna.
Um Tapuia, guerreiro adventício,
Filhado acaso à tribo dos Gamelas,
Pede atenção, – prestam-lhe ouvidos todos.
Estranho é certo; porém longa vida
A velhice robusta lhe autoriza.
Muito há visto, sofreu muitos reveses,
Longas terras correu, aprendeu muito;
Mas quem é, donde vem, qual é seu nome?
Ninguém o sabe: ele não o disse nunca.
Que vida teve, a que nação pertence,
Que azar o trouxe à tribo dos Gamelas?
Ignora-se também. Nem mesmo o chefe
Perguntar-lhe se atreve. É forte, é sábio,
È velho e experiente, o mais que importa?
Chamem-lhe o forasteiro, é quanto basta.
Se à caça os aconselha, a caça abunda;
Se à pesca, os rios cobrem-se de peixes;
Se à guerra, ai da nação que ele indigita!
Valem seus ditos mais que valem sonhos,
E acerta mais que os piagas nos conselhos.
Mancebo (assim diz ele a Gurupema)
“Já vi o que por vós não será visto,
Imensas tabas, bárbaros imigos,
como nunca os vereis; andei já tanto,
Que o não fareis, andando a vida inteira!
Estranhos casos vi, chefes pujantes!
Tabira, o rei dos bravos Tobajaras,
Alquíndar, que talvez já não exista,
Iperu, Jepipó de Mambucaba,
E Coniã, rei dos festins guerreiros;
E outros, e outros mais. Pois eu vos digo,
Ação, que eu saiba, de tão grandes Cabos,
Como a vossa não foi, – nem tal façanha
Fizeram nunca, e sei que foram grandes!
Itapeba entre os seus não encontraras,
Que não pagasse com seu sangue o arrojo
Se tanto as claras por-se-lhes contrário.
Mas quem do humano sangue derramado
Por ventura se peja? – em que logares
A glória da peleja horror infunde?
Ninguém, nenhures, ou somente aonde,
Ou só aquele que já viu infunde
Cruas vagas de sangue; e os turvos rios
Mortos por tributo ao mar volvendo.
Vi-as eu, inda novo; mas tal vista
do humano sangue saciou-me a sede.
Ouvi-me, Gurupema, ouvi-me todos:
Da sua tentativa o rei das selvas
Teve por prêmio o lacrimoso evento:
E era chefe brioso e bom soldado!
Só não pode sofrer que alguém dissesse
Haver outro maior tão perto dele!
A vaidade o cegou! hardida empresa
Cometeu, mas por si: de fora, e longe
Os seus o viram deslindas seu pleito.
Vencido foi... a vossa lei de guerra,
Bárbara, sim, mas lei, – dava ao Timbira
Usar, com ele usou, do seu triunfo.
A que pois fabricar novos combates?
Por que empreende-los nós, quando mais justos
Os Timbiras talvez mover poderam?
Que vos importa a vós vencer batalhas?
Tendes rios piscosos, fundas matas,
Inúmeros guerreiros, tabas fortes;
Que mais vos é mister? Tupã é grande:
De um lado o mar se estende sem limites,
Pingues florestas d’outro lado correm
Sem limites também. Quantas igaras
Quantos arcos houvermos, nas florestas,
No mar, nos rios caberão às largas:
Por que então batalhar? por que insensatos,
Buscando o inútil, necessário aos outros,
Sangue e vida arriscar em néscias lutas?
Se o filho de Jaguar trazer-nos manda
Do chefe desdidoto e frio corpo,
Aceite-se... se não... voltemos sempre,
Ou com ele, ou sem ele, às nossas tabas,
Às nossas tabas mudas, lacrimosas,
Que hão-de certo enlutar nossos guerreiros,
Quer vencedores voltem quer vencidos.”
Do forasteiro, que tão solto fala
E tão livre argumenta, Gurupema
Pesa a prudente voz, e alfim responde:
Tupã decidirá,” – Oh! não decide,
(Como consigo diz o forasteiro)
Não decide Tupã humanos casos,
Quando imprudente e cego o homem corre
D’encontro ao fado seu: não valem sonhos,
Nem da prudência meditado aviso
Do atalho infausto a desviar-lhe os passos!”
O chefe dos Gamelas não responde:
Vai pensativo demandando a praia,
Onde o Timbira mensageiro o aguarda.
Reina o silêncio, sentam-se na arena,
Jurucei, Gurupema e os mais com eles.
Amiga recepção, – ali não viras
Nem pompa oriental, nem galas ricas,
Nem armados salões, nem corte egrégia,
Nem régios passos, nem caçoilas fundas,
Onde a cheirosa goma se derrete.
Era tudo singelo, simples tudo,
Na carência do ornato – o grande, o belo.
Na própria singeleza a majestade
Era a terra o palácio, as nuvens teto,
Colunatas os troncos gigantescos,
Balcões os montes, pavimento a relva,
Candelabros a lua, o sol e os astros.
Lá estão na branca areia descansados.
Como festiva taça num banquete,
O cachimbo de paz, correndo em roda,
Se fumo adelgaçado cobre os ares.
Almejam,sim, ouvir o mensageiro,
E mudos são contudo: não dissera,
Quem quer que os visse ali tão descuidoso,
Que ardor inquieto e fundo os ansiava.
O forte Gurupema alfim começa
Após côngruo silêncio, em voz pausada:
Saúde ao núncio do Timbira! disse.
Tornou-lhe Jurucei: “Paz aos Gamelas,
Renome e glória ao chefe seu preclaro!
– A que vens pois? Nós te escutamos: fala
“Todos vós, que me ouvis, vistes boiantes,
À mercê da corrente, o arco e as setas
Feitas pedaços, por mim mesmo inúteis.”
“E de to ver folguei; mas quero eu mesmo
Ouvir dos lábios teus quanto imagino.
Acata-me Itajubá, e de medroso
Tenta poupar aos seus tristeza e luto?
A flor das Tabas suas, talvez manda
Trazer-me o corpo e as armas do Gamela,
Vencido, em mal, no desleal combate!
Pois seja, que talvez não queira eu sangue,
E do justo furor quebrando as setas...
Mas dize-o tu primeiro... Nada temas,
È sagrado entre nós guerreiro inerme,
E mais sagrado o mensageiro estranho.”
Treme de pasmo e cólera o Timbira,
Ao ouvir tal discurso. – Mais surpreso
Não fica o pescador, que mariscando
Vai na maré vazante, quando avista
Envolto em Iodo um tubarão na praia,
Que reputa sem vida, passa rente,
E co’as malas da rede acaso o açoita
E a desleixo; – feroz o monstro acorda
E escancarando as fauces mostra nelas
Em sete filas alinhada a morte!
Tal ficou Jurecei, – não de receio,
Mas de surpresa atônito, – o contrário,
Que de o ver merencório não se agasta,
A que proponha o seu encargo o anima.
“Não ignavo temor a voz me embarga,
Emudeço de ver quão mal conheces
Do filho de Jaguar os altos brios!
Esta a mensagem que por mim vos manda:
Três grandes tabas, onde heróis pululam,
Tantos e mais que nós, tanto e mais bravos,
Caídas a seus pés a voz lhe escutam.
Não quer dos vossos derramar mais sangue:
Tigre cevado em carnes palpitante,
Rejeita a fácil presa; nem o tenta
De perjuros haver troféus sem glória.
Em quanto pois a maça não sopesa,
Em quanto no carcaz dormem-lhe as setas
Imóveis – atendei! – cortai no bosque
Troncos robustos e frondosas palmas
E novas tabas construí no campo,
Onde o corpo caiu do rei das sevas,
Onde empastado inda enrubece a terra
Sangue daquele herói que vos infama!
Aquela briga enfim de dois, tamanhos,
Sinalai; porque estranho caminheiro
Amigas vendo e juntas nossas tabas
E a fé que usais guardar, sabendo, exclame:
Vejo um povo de heróis, e um grande chefe!”
Em quanto escuta o mensageiro estranho,
Gurupema, talvez sem que o sentisse,
Vai pouco e pouco erguendo o corpo inteiro.
A baça cor do rosto é sempre a mesma,
O mesmo o aspecto, – a válida postura
A quem de longe vê, somente indica
Vigor descomunal, e a gravidade
Que os próprios Índios por incrível notam.
Era uma estátua, exceto só nos olhos,
Que por entre as em vão caídas pálpebras
Clarão funéreo derramava entorno.
Quero ver que valor mostras nas armas,
(Diz ao Timbira, que a resposta agrada)
Tu que arrogante, em frases descorteses,
Guerra declaras, quando paz of’reces.
Quebraste o arco teu quando chegaste,
O meu te of’reço! O quebrador dos arcos
Nos dons por certo liberal se mostra,
Quando o seu arco of’rece: julga e pasma!”
Do pejado carcaz tira uma seta,
Na corda a ajeita, – o arco entesa e curva,
Atira, – soa a corda, a flecha voa
Com silvos de serpente. Sobre a copa
Duma arvore frondosa descansava
Há pouco um cenembi, – flechado agora
Despenha-se no rio, sopra iroso,
A cortante serrilha embora erriça,
Co’a dura cauda embora açoita as águas;
A corrente o conduz, e em breve trato
O hastil da flecha sobrenada a prumo.
Poderá Jurecei, alçando o braço,
Poupar ação tão baixa àqueles bosques,
Onde os guerreiros de Itajubá imperam.
Imóvel, mudo contemplou o rio
Se chôfre o cenembi cair flechado,
Lutar co’a morte, ensangüentando as águas,
Desaparecer, – a voz por fim levanta:
“Ó rei das selvas, Gurupema, escuta:
Tu, que medroso em face d’Itajuba
Não ousaras tocar o p´que o vento
Nas folhas dos seus bosques deposita;
Senhor das selvas, que de longe o insultas,
Por que me vês aqui cozinho e fraco,
Fraco e sem armas, onde armado imperas;
Senhor das selvas (que antes flecha acesa
Sobre os tetos houvesses arrojado,
Onde as mulheres tens e os filhos caros),
Nunca miraste um alvo mais funesto
Nem tiro mais fatal vibraste nunca.
Com lágrimas de sangue hás de chora-lo,
Maldizendo o lugar, o ensejo, o dia,
O braço, a força, o ânimo, o conselho
Do delito infeliz que vai perder-te!
Eu, sozinho entre os teus que me rodeiam,
Sem armas, entre as armas que descubro,
Sem medo, entre os medrosos que me cercam,
Em tanta solidão seguro e ousado,
Rosto a rosto contigo, e no teu campo.
Digo-te, ó Gurupema, , ó rei das selvas,
Que és vil, qu’és fraco!
Sibilante flecha
Rompe da turva-multa e crava o braço
Do ousado Jurecei, qu’inda falava.
“É seguro entre vós guerreiro inerme,
E mais seguro o mensageiro estranho!
Disse com riso mofador nos lábios.
Aceito o arco, ó chefe, e a treda flecha,
Que vos hei-de tornar, ultriz da ofensa
Infame, que Aimorés nunca sonharam!
Ide , correi, quem cós impede a marcha?
Vingai esta corrente, não mui longe
Os Timbiras estão! – Voltai da empresa
Com este feito heróico rematado;
Fugi, se vos apraz; fugi, cobarde!
Vida por gota pagareis meu sangue;
Por onde quer que fordes de fugida
Vai o fero Itajubá perseguir-vos
Por água ou terra, ou campos, ou florestas;
Tremei!...
E como o raio em noite escura
Cegou, desapareceu! De timorato
Procura Gurupema o autor do crime,
E autor lhe não descobre; inquire... embalde!
Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram.