SEXTILHAS DE FREI ANTÃO
LOA DA PRINCESA SANTA
Gonçalves Dias
Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão
Quando nas guerras de mouros [ 1 ]
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devação.
Dava o rei uma batalha
Deus lhe acudia do céu;
Quantas terras que ganhava, [ 2 ]
Dava o Senhor que lhas deu,
E só em fazer mosteiros
Gastava muito do seu.
Se havia muitos Ifantes
Torneio não se fazia;
É esse o estilo de Frandres, [ 3 ]
Onde anda muita heregia:
Para os armar cavaleiros
A armada se apercebia.
Chamava el-rei seus vassalos
E em cortes logo os reunia:
Vinha o povo atencioso, [ 4 ]
Vinha muita cleregia,
Vinha a nobreza do reino,
Gente de muita valia.
Quando o rei tinha-los juntos
Começava a discursar:
“Os Ifantes já são homens,
Vou-me às terras de além-mar [ 5 ]
Armá-los lá cavaleiros;
Deus Senhor m’ há de ajudar.”
Não concluía o pujante rei
Rei – de assi lhes propor,
Clamavam todos em grita [ 6 ]
Com vozes de muito ardor:
“Seremos nessa folgança,
Honra de nosso Senhor!”
E logo todos em sembra,
Todos gente mui de bem,
Na armada se agazalhavam, [ 7 ]
Sem se pesar de ninguém;
E os Padres de Sam Domingos
Iam com eles também.
Iam, si, os bentos Padres:
E que assim fosse, é rezão,
Que o santo em guerras d’Igreja [ 8 ]
Foi um bom santo cristão:
Queimou a muitos hereges
No fogo da expiação!
Quando depois se tornava
Toda a frota pêra cá,
Primeiro se perguntava, [ 9 ]
“Que terra temos por lá?”
Quem em Deus tanto confia,
Sempre Deus por si terá.
El-rei tornava benino,
Como coisa natural:
“Temos Ceuta, Arzila ou Tângere, [10]
Conquistas de Portugal!”
E todos, a voz em grita,
Clamavam : real! real!
Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão;
Os moços davão-se à guerra, [11]
As moças à devação:
Aquela terra de mouros
Vivia em muita aflição.
Deu-nos Deus tantas vitórias,
E tanto pêra louvar,
Que os padres de Sam Domingos [12]
Já não sabiam rezar;
Todo-lo tempo era pouco
Pêra louvores cantar!
Sendo tantas as batalhas,
Nem recontro se perdeu!
Aqueles Padres coitados [13]
Não tinham tempo de seu:
Levavam todo cantando
Louvores ao pai do céu.
Louvores ao pai do céu,
Que eu inda possa trovar,
Quando não vejo nos mares [14]
Nossas quinas tremolar;
Mas somente o templo mudo,
Sem guarnimentos o altar!
Vejo os sinos apeados
Dos campanários subtis,
E a prata das sacristias, [15]
Servidas em misteres vis,
E ante os leões de Castela
Dobrada a Lusa cerviz!
Cant’eu, em bem que sou Padre,
Digo que sou Português:
Arço de ver nossas coisas [16]
Irem todas ao revés,
Arço de ver nossa gente
Andar conosco ao envés
Mercê de Deus! Minha vida
É vida de muito dura!
Vivo esquecido dos vivos [17]
Na terra da desventura;
Vivo escrevendo e penando
Num canto de cela escura.
Do meu velho breviário
Só deixarei a leitura
Para escrever estes carmes, [18]
Remédio à nossa amargura;
O corpo tenho alquebrado,
Vive minha alma em tristura.
Que armada de tantas velas,
Que armada é essa qu’ i vem?
Vem subindo Tejo acima, [19]
Que fermosura que tem!
Nas praias se apinha o povo,
E as cobre todas porém.
Dão sinais as fortalezas,
Respondem sinais de lá:
Vem el-rei vitorioso [20]
Quem de gáudio se terá?
O mar é todo bonança,
O céu muito sereno está!
Oco bronze fumo e fogo
Já começa a despejar;
Acordam alegres ecos [21]
Os sinos a repicar;
Grita e folgança na terra,
Celeuma e grita no mar!
Vinde embora muito depressa,
Senhores da capital!
Vinde ver Afonso quinto, [22]
Rei, senhor de Portugal;
Vem das terras africanas
Dar-vos festança real.
Nossos reis foram outrora
Fragueiros de condição
Dormiam quase vestidos, [23]
Espada nua na mão;
Nem repoisavam de noite
Sem fazer sua oração.
Empresa não cometiam
Sem primeiro comungar
Sem fazer voto a algum santo [24]
De tenção particular;
Porém vitórias houveram,
Que são muito de espantar!
Os vindouros esquecidos
Da benção divinal,
Conheceram os poderes [25]
Da bênção celestial,
Se contarem os mosteiros
Das Terras de Portugal!
Nossas capelas que temos,
Nossos mosteiros custosos,
São obras santas de Santos, [26]
Obras de rei mui piedosos;
São brados de pedra viva,
Que pregam feitos briosos.
Alguns já agora escarnecem
Dos templos edificados;
Dizem que foram mal gastos [27]
Os bens com eles gastados:
Eu creio (Deus me perdoe)
Que são incréus disfarçados!
E mais prasmam dos feitios
De pedra, que Mênfis tem,
Sem ter olhos para Mafra, [28]
Pera Batalha ou Belém!
Oh! Se a estes conheceras,
Meu frei Gil de Santarém!
Naquela vila deserta
Ainda se me afigura
Ver elevar-se nas sombras [29]
Tua válida estatura,
E ouvir a voz que intimava
Ao rei a sentença dura!
E mais a tacha que tinha
Era ser fraco, e não mais!
Tu, meu Santo, que fizeras, [30]
Se ouviras a estes tais,
Que nos assacam motejos
Às nossas obras reais!
Mas vós, quem quer qu’isto lerdes,
Relevai-me esta tardança;
São achaques da velhice: [31]
Vivemos de remembrança
E em longas falas fazemos
De tudo comemorança.”
Já el-rei Affonso quinto
Nas sua terras pojou:
Alegre o povo o recebe, [32]
Alegre el-rei se mostrou;
Abrio-se em alas vistosas,
El-rei entre elas passou.
Vêm os músicos troando
Nos atabales guerreiros,
Tangem outros intromentos [33]
Desses climas forasteiros,
E trás ele vêm marchando,
Passo a passo, os prisioneiros.
São eles mouros gigantes
De bigodes retorcidos,
Caminham a passos lentos, [34]
Com sembrantes atrevidos.
Causa medo vê-los tantos,
Tam membrudos, tam crescidos!
São homens de fero aspeito,
Homens de má condição,
Que vivem na lei nojenta [35]
Do seu nojento alcorão,
Que – vinho? Nem querem vê-lo,
Só por que o bebe um cristão!
Vêm as moiras depois deles,
Rostos cobertos com véus;
Bem que filhas d”Agarenos, [36]
São também filhas de Deus;
Se foram cristãs ou freiras,
Seriam anjos dos céus.
Luziam os olhos delas,
Como pedras muito finas;
Deviam ser finas bruxas, [37]
Inda qu’eram bem meninas,
Que essas moiras da mourama
Nascem já bruxas cadinas!
Uma delas que lá vinha
Olhou-me à través do véu!…
Foi aquilo obra do demo, [38]
Quase, quase me rendeu!
Pensei nela muitas vezes,
Valeram-me anjos do céu!
Vi as largas pantalonas,
E o pezinho delicado…
Como pode pensar nisto [39]
Um pobre frade cansado,
Um padre da Observância,
Que sempre come pescado?!
Enfim, dizer quanto vimos
Não cabe neste papel;
Vinham muitas alimárias, [40]
Como achadas a granel;
Vinha o ifante brioso,
Montado no seu corcel.
Vinham pajens e varletes,
Vinham muitos escudeiros,
Vinham do sol abrasados [41]
Nossos robustos guerreiros;
Vinha muita e boa gente,
Muitos e bons cavaleiros!
A Princesa Dona Joana
Saiu dos Paços reais;
Era moça, e muito airosa, [42]
E dona de partes tais,
Que todos lhe qu’riam muito.
Estranhos e naturais!
Foi requerida de muitos
E muito grandes senhores,
Por fama que dela tinham, [43]
E por cópia de pintores,
Que muitos vinham de fora
Ao cheiro de seus louvores.
E diz-se dum rei de França,
Ludovico, creio eu:
Um pobre frade mesquinho [44]
Só trata em coisas do céu;
Sabe ele que muito sabe,
Se a bem morrer aprendeu.
Pois diz-se do rei de França,
O onzeno do nome seu,
Que vendo um retrato destes [45]
Pêra si logo entendeu,
Qu’era prodígio na terra
Quem tanto tinha de céu.
E logo sem mais tardança
Caiu, giolhos no chão,
No feltro traz arrelíquias, [46]
Assi usa um rei cristão;
O seu feltro pôs diante,
E fez sua oração!
Saiu a real Princesa,
Saiu dos Paços reais
Nos pulsos ricas pulseiras, [47]
Na fronte finos ramais;
De longe seguem-lhe a trilha
Muitos bons homens segrais.
Traçava um mantéu vistoso
Sôbolas suas espaldas,
E as largas roupas na cinta [48]
Prendia em muitas laçadas;
Seus olhos valiam tanto
Como duas esmeraldas.
Tinha elevada estatura
E meneio concertado,
Solto o cabelo em madeixas, [49]
Pelas costas debruçado:
Cadeixo de fios d’oiro,
Franjas de templo sagrado.
Vinha assi a régia Dona,
Vinha muito para ver:
O povo em si não cabia, [50]
Quando a via, de prazer;
Era ela santa às ocultas
E anjo no parecer!
Debaixo das telas finas
E dos brocados luzidos,
Trazia à raiz das carnes [51]
Duros cilício cosidos
E umas crinas mui agras,
Tudo extremos mui subidos.
Passava noites inteiras
No oratório a rezar,
Dormia despois na pedra [52]
Sem ninguém o suspeitar:
Extremos tais em princesa
Quem nos há de acreditar?
No dia de lava-pés
Ordenava seu Vedor
Trazer-lhe doze mulheres; [53]
E depois, com muita dor,
Chorando os pés lhes lavava,
Honra de nosso Senhor!
E depois de os ter lavado,
Não perdia a ocasião,
Despedia a todas juntas [54]
Com sua esmola na mão:
Dizia que era humildade
E obra de devação.
E as mendigas prasmadas
Sabiam de tal saber,
E perguntavam, quem era [55]
Aquela santa mulher?!
Maus pecados que ela tinha
Só pêra assi proceder!
O mesmo Vedor foi quem
Isto despois revelou,
Quando aquela humanidade [56]
E o Senhor descansou;
Dona Joana era já morta,
Ele porém mo contou.
Mas sendo tanto o resguardo
Que guardava em coisas tais,
Sabiam algo os estranhos [57]
Por muitos certos sinais,
Que o ar é todo perfume,
Se a terra é toda rosais.
É coisa de maravilha
Que me faz cismar a mi,
Que as donas d’hoje pareçam [58]
Uns camafeus d’ alfini,
Nas donas de carne e osso;
As donas de outrora – si.
Hoje leigos de nonada
(É-lhes o demo caudel)
Praguejam a mesa escassa [59]
E as arestas do burel;
Querem mimos e regalos,
E jejuns a leite e mel.
Lá caminha Dona Joana,
Regente de Portugal;
Trás sobre si muitas jóias [60]
Do tesouro paternal;
Deus lhe pôs graça divina
Sobre a graça natural.
Acostou-se a comitiva,
Muito senhora de si:
Perante el-rei se agiolha, [61]
Disse-lhe el-rei: não assi!
E ao peito a cinge dizendo:
Não a meus pés, mas aqui!
“Sois um bom pai, Senhor rei.
Tornou-lhe a santa Princesa:
Eu que sou vassala vossa [62]
E filha por natureza,
Peço mercê como aquela,
Como esta peço fineza.”
Ficaram logo suspensos,
Todolos os que eram ali,
Ficaram como enleiados, [63]
Enleio tal nunca vi!
Eis que a Princesa medrosa
Começa a propor assi.
El-rei não lhe respondera;
Que lhe havia responder?
Boa filha Deus lhe dera. [64]
Que lhe havia defender?
Sorriu-se, o bom rei quisera
Muito por ela fazer.
A Princesa disse entonces:
“De alguns capitães antigos
Tenho lido, Senhor rei, [65]
Que, vencidos os imigos,
Tornavam, a Deus fazendo
Sacrifícios mui subidos.
“Viam as coisas melhores
Que dos seus reinos haviam,
E logo lhas ofertavam; [66]
E mercês também faziam,
No dia de seu triunfo
A los que justas pediam.
“Deslembrar a usança antiga
Fora de grande estranheza;
Agora sobre maneira, [67]
Perfeita tamanha empresa,
De tanto lustre aos do reino,
De tal honra a vossa Alteza.
“Digo pois a vossa Alteza,
E digo com muita fé,
Deve a oferta ser tamanha [68]
Quamanha foi a mercê,
Não do nobre rei pujante,
Mas do santo rei qual é.
“A oferta que vós fizerdes,
Será mercê paternal:
Se quereis que corresponda [69]
Ao favor celestial,
Deve ser coisa mui alta,
Deve ser coisa real.
“Ao Deus que vence as batalhas
Dai-lhe a filha muito amada;
Dai-lhe a filha só que tendes [70]
Em tantos mimos criada:
Será oferta bem quista
E do Senhor aceitada.
“E eu a quem mais custou
De medos, esta jornada,
Que muitas noites orando [71]
Passei em pranto banhada,
Sou eu, Senhor, quem vos peço
Ser a hóstia a Deus votada.”
Que santa que era a Princesa,
Que extremos de devação!
Nos sembrantes dos presentes [72]
Viu-se, e não era razão,
Que a nenhum deles prazia
Deferir tal petição.
Sobr’esteve um pouco mudo,
El-rei por que muito a amava:
Aquele dizer da filha [73]
Todo prazer lhe aguava,
Aquele pedir sem dó
Todo o ser lhe transtornava.
Encostou-se ao ombro dela
O pobre velho cansado,
Chorou o triunfo breve, [74]
E o prazer mal rematado,
Não como rei valeroso,
Mas como pai anojado.
El-rei despois mais tranqüilo
Rompeu o silêncio alfi’;
E entre aflito e satisfeito [75]
Disse à filha: Seja assi!…
Velhos guerreiros vi eu
Choraram também ali.
Cant’eu perdido entre o vulgo
Não sei que tempo gastei,
Nem sei de mim que fizeram, [76]
Nem tam pouco se chorei;
Foi traça da providência:
Nisto comigo assentei.
Foi Jefté corajoso,
O forte rei de Judá;
Volta coberto de loiros, [77]
Quem primeiro encontrará?
Sente a filha, torce o rosto…
Nada ao triste valerá.
Qual destes dois sacrifícios
Soube a Deus mais agradar?
Vai a Hebrea constrangida [78]
Depor o colo no altar,
Vai a cristã jubilosa!
São ambas pera prasmar.
Depois num dia formoso,
Era no mês de janeiro,
Houve uma cena vistosa [79]
Dentro de um pobre mosteiro;
Fundou-o Brites Leitoa,
Dona mui nobre d’Aveiro.
Uma princesa jurada,
Sobrinha d’altos Ifantes,
Filha de reis soberanos, [80]
Senhora das mais pujantes,
Era a primeira figura,
Espantava os circunstantes.
Ali humilde e curvada,
Pesar de todos os seus,
Giolhos sobre o ladrilho [81]
E as mãos erguidas aos céus,
Ouvi – exígua mortalha
Pedir polo amor de Deus.
Cantemos todos louvores,
Louvores ao Senhor Deus:
Os anjos digam o seu nome, [82]
Rostos cobertos com véus;
Leiam-no os homens escrito
No liso campo dos céus.
Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão,
Quando as guerras mouriscas [83]
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devação.