TABIRA
POESIA AMERICANA
Gonçalves Dias
I
É Tabira guerreiro valente,
Cumpre as partes de chefe e soldado;
É caudilho de tribo potente,
- Tobajaras – o povo senhor!
Ninguém mais observa o tratado
Ninguém menos de p’rigos se aterra,
Ninguém corre aos acenos da guerra
Mais depressa que o bom lidador!
II
Seu viver é batalha aturada,
Dos contrários a traça aventando;
É dispor a cilada arriscada,
Onde o imigo se venha meter!
Levam noites com ele sonhado
Potiguares, que o viram de perto;
Potiguares, que asselam por certo
Que Tabira só sabe vencer!
III
Mil enganos lhe tem já tecido,
Mil ciladas lhe tem preparado;
Mas Tabira, fatal, destemido,
Tem feitiço, ou encanto, ou condão!
Sempre o plano da guerra é frustrado,
Sempre o bravo fronteiro aparece,
Que os enganos cruéis lhes destece,
Face a face, arco e setas na mão.
IV
Já dos Lusos o trôço apoucado,
Paz firmando com ele traidora,
Dorme ileso na fé do tratado,
Que Tabira é valente e leal.
Sem Tabira do Lusos que fora?
Sem Tabira que os guarda e defende,
Que das pazes talvez se arrepende
Já feridas outrora em seu mal!
V
Chefe stulto dum povo de bravos,
Mas que os piagas vitórias te fadem,
Hão de os teus, miserandos escravos,
Tais triunfos um dia chorar!
Caraíbas tais feitos aplaudem,
Mas sorrindo vos forjam cadeias,
E pesadas algemas, e peias,
Que traidores vos hão-de lançar!
VI
Chefe sólido, insano, imprudente,
Sangue e vida dos teus malbaratas?!
Míngua as forças da tribo potente,
Vencedora da raça Tupi!
Hão de os teus, acossados nas matas,
Não podendo viver como escravos,
Dar o resto do sangue por ti!
VII
Vivem homens de pel’ cor da noite
Neste solo, que a vida embeleza;
Podem, servos, debaixo do açoite,
Nênias tristes da pátria cantar!
Mas o índio que a vida só preza
Por amor dos combates, e festas
Dos triunfos sangrentos, e sestas
Resguardadas do sol no palmar;
VIII
Ociosa. Indolente, vadio,
Ou ativo, incansável, fragueiro;
Já nas matas, no bosque erradio,
Já disposto a lutar, a vencer;
Ama as selvas, e o vento palreiro,
Ama a glória, ama a vida; mas antes
Que viver amargados instante,
Quer e pode e bem sabe morrer!
IX
Eia, avante! Ó caudilho valente!
Potiguares lá vem denodados;
Tão cerrado concurso de gente
Ninguém viu nestas partes assim!
Poucos são, mas briosos soldados;
Não são homens de aspecto jocundo!
Restos são, mas são rstos dum mundo;
Poucos são, mas soldados por fim!
X
Os seus velhos disseram consigo,
Discutindo os motivos da guerra:
“É Tabira – cruel, inimigo,
Já nem crê, renegado, em Tupã!”
Pés robustos lá batem na terra,
Pó ligeiro se expande nos ares:
Era noite! Milhar de milhares
São armados, mal rompe a manhã.
XI
Vem soberbos, - o sol luz apenas!
Confiados, galardos, lustrosos,
Vem bizarros nas armas, nas penas,
Atrevidos no acento e na voz!
Um dentre eles, dos mais orgulhosos,
Sobe à pressa nas aspas dum monte,
Dali brada, postado defronte
De Tabira – com jeito feroz:
XII
“Ó Tabira, Tabira! aqui somos
A provar nossas forças contigo;
Dizes tu que vencidos já fomos!
Di0lo tu, não no diz mais ninguém.
Ora eu só a vós todos vos digo:
Sois cobardes, irmão de Tabira!
Propagastes solene mentira,
Que vencer não sabemos tão bem.
XIII
“Para o vosso terreiro vos chamo,
Contra mim vinde todos, - sou forte:
Acorrei ao meu nobre reclamo!
Aqui sou, nem me parto daqui!
Vinde todos em densa coorte:
Travaremos combate sangrento,
Mas por fim do triunfo cruento
Direis vós, se fui eu quem menti.”
XIV
Disse o arauto: eis a turba ufanosa
Lhe responde, arco e setas brandindo,
Pés batidos, voz alta e ruidosa:
- Bem falado, ó guerreiro, mui bem!
Assim é; mas Tabira rugindo,
Ressentindo de ofensas tamanhas,
O rancor mal encobre das sanhas,
Que não leva no sangue de alguém.
XV
Raso outeiro ali perto se of’rece:
Vinga-o prestes, hardido, açodado!...
Como leiva de pálida messe,
Já madura, tremendo no pé;
Todo o campo descobre ocupado
Por guerreiros, - no extremo horizonte
Não distingue nas faldas do monte,
O que é gente, o que gente não é.
XVI
Não se abala o preclaro guerreiro,
Do que vê seu valor não fraqueia;
Diz consigo: “Um só golpe certeiro
Vai de todo esta raça apagar!
Juntos são, mas são meus!” – Já vozeia;
Logo os seus lhe respondem gritando,
Tais rugidos, tais roncos soltando
Que aos seus próprios deveram turbar!
XVII
Diz a fama que então de assustadas
Muitas aves que o espaço cruzavam,
De pavor subitâneo tomadas,
Descaíam pasmadas no chão:
Já com silvos e atitos voavam
Muitas outras, que o triste gemido
No conflito, abafado e sumido,
Talvez deram, - mas fraco, mas vão!
XVIII
Eis que os arcos de longe se encurvam,
Eis que as setas aladas já voam,
Eis que os ares se cobrem, se turvam,
De flechados, de surdos que são.
Novos gritos mais altos reboam,
Entre as hostes se apaga o terreno,
Já tornado apoucado e pequeno,
Já coberto de mortos o chão!
XIX
Peito a peito encontrados afoutos,
Braço a braço travados briosos,
Fervem todos inquietos, revoltos,
Qu’indecisa a vitória inda está.
Todos movem tacapes pesados;
Qual resvala, qual todo se enterra
No imigo que morde na terra,
Que sepulcro talvez lhe será.
XX
“Mas Tabira! Tabira! Que é dele?
“Onde agora se esconde o pujante?”
- Não no vedes?! – Tabira é aquele
-Que sangrento, impiedoso lá vai!
-Vê-lo-eis andar sempre adiante,
-Larga esteira de mortos deixando
- Trás de si, como o raio cortando
- Ramos, troncos do bosque, onde cai. –
XXI
“Foge! Foge! Leal Tobajara;
“Quantos arcos que em ti fazem mira?!”
- Muitos são; porem medos encara
- Face a face, quem é como eu sou! –
Muitas setas cravejam Tabira:
Belo quadro! – mas vê-lo era horrível!
Porco-espim que sangrado e terrível
Duras cerdas raivando espetou!
XXII
Tem um olho dum tiro flechado!
Quebra as setas que os passos lh’impedem
E do rosto, em seu sangue lavado,
Flecha e olho arrebata sem dó!
E aos imigos que o campo não cedem,
Olho e flecha mostrando extorquidos,
Diz, em voz que mais eram rugidos:
- Basta, vis, por vencer-vos um só!
XXIII
E com fúria tão grande arremete,
Com despego tão nobre da vida;
Tantos golpes, tão fundos repete,
Que senhores do campo já são!
Potiguares lá vão de fugida,
Inda à fera mais torva e bravia
Disputando guarida dum dia
No mais fundo do vasto sertão!
XXIV
Potiguares, que a aurora risonha
Viu nação numerosa e potente,
Não já povo na tarde medonha,
Mas só restos dum povo infeliz!
Insepultos na terra inclemente
Muitos dormem; mas há quem lh’inveja
Essa morte do bravo em peleja,
Uem a vida do escravo maldiz!
XV
“Este o conto que os Índios contavam,
“A desoras, na triste senzala;
“Outros homens ali descansavam,
“Negra pel1; mas escravos tão bem.
“Não choravam; somente na fala
“Era um quê da tristeza que mora
“Dentro d’alma do homem que chora
“O passado e o presente que tem!"