Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 15 de dezembro de 2019

O ORGULHOSO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O ORGULHOSO

Gonçalves Dias

 

 Eu o vi! - tremendo era no gesto,
Terrível seu olhar;
E o cenho carregado pretendia
O globo dominar.

Tremendo era na voz, quando no peito
Fervia-lhe o rancor!
E aos demais homens, como um cedro à relva,
Se cria sup'rior.

E o pobre agricultor, junto a seus filhos,
Dentro do humilde lar,
Quisera, antes que os dele, ver um Tigre
Os olhos fuzilar:

Que a um filho seu talvez quisera o nobre
Para um Executor;
Ou para o leito infesto alguma filha
Do triste agricultor.

Quem ousaria resistir-lhe? - Apenas
Algum pobre ancião
Já sobre o seu sepulcro, desejando
A morte e a salvação.

Alguns dias apenas decorreram;
E eis que ele se sumiu!
E a laje dos sepulcros fria e muda
Sobre ele já caiu.

E o bárbaro tropel dos que o serviam
Exulta com seu fim!
E a turba aplaude; e ninguém chora a morte
De homem tão ruim.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 08 de dezembro de 2019

O DESTERRO DE UM POBRE VELHO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O DESTERRO DE UM  POBRE VELHO

Gonçalves Dias

 

A aurora vem despontando,
Não tarda o sol a raiar:
Cantam aves, - a natura
Já começa a respirar.

Bem mansa na branca areia
Onda queixosa murmura,
Bem mansa aragem fagueira
Entre a folhagem sussurra.

É hora cheia de encantos,
E hora cheia de amor;
A relva brilha enfeitada,
Mais fresca se mostra a flor.

Esbelta joga a fragata,
Como um corcel a nitrir;
Suspensa a amarra tem presa,
Suspensa, que vai partir.

Em demanda da fragata,
Leve barco vem vogando;
Nele um velho cujas faces
Mudo choro está cortando.

Quem era o velho tão nobre,
Que chorava,
Por assim deixar seus lares,
Que deixava?

"Ancião, por que te ausentas?
Corres tu trás de ventura?
Louco! a morte já vem perto.
Tens aberta a sepultura.

"Louco velho, já não sentes
Bater frouxo o coração? .
Oh! que o sente! - É lei d'exílio
A que o leva em tal sazão!

"Não ver mais a cara pátria,
Não ver mais o que deixava,
Não ver nem filhos, nem filhas,
Nem o casal, que habitava!...

"Oh! que é má pena de morte,
A pena de proscrição;
Traz dores que martirizam,
Negra dor de coração!

"Pobre velho! - longe, longe
Vás sustento mendigar;
Tens de sofrer novas dores,
Novos males que penar.

"Não t'há de valer a idade,
Nem a dor tamanho e nobre;
Tens de tragar vis afrontas,
- Insultos que sofre o pobre!

"Nada acharás no degredo,
Que fale dos filhos teus;
Ninguém sente a dor do pobre,,,
Só te fica a mão de Deus.

"O sol, que além vês raiando
Entre nuvens de carmim,
Noutros climas, noutras terras
Não verás raiar assim.

"Não verás a rocha erguida,
Onde t'ias assentar;
Nem o som bem conhecido
Do teu sino hás de escutar.

"Há de cair sobre as ondas
O pranto do teu sofrer,
E nesse abismo salgado,
Salgado se há de perder."

Já chegou junto à fragata,
Já na escada de apoiou,
Já com voz intercortada
Último adeus soluçou.

Canta o nauta, e solta as velas
Ao vento que o vai guiar;
E a fragata mui veleira
Vai fugindo sobre o mar.

E o velho sempre em silêncio
A calva testa dobrou,
E pranto mais abundante
O rosto senil cortou.

Inda se vê branca a vela
Do navio, que partiu;
Mais além - inda se avista!
Mais além - já se sumiu!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 01 de dezembro de 2019

AO DR. JOÃO DUARTE LISBOA SERRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

AO DR. JOÃO DUARTE LISBOA SERRA

Gonçalves Dias

 

Mais um pungir de acérrima saudade,
Mais um canto de lágrimas ardentes,
Oh! minha Harpa, - oh! minha Harpa desditosa.

Escuta, ó meu amigo: da minha alma
Foi uma lira outrora o instrumento;
Cantava nela amor, prazer, venturas,
Até que um dia a morte inexorável
Triste pranto de irmão veio arrancar-te!

As lágrimas dos olhos me caíram,
E a minha lira emudeceu de mágoa!
Então aventei eu que a vida inteira
Do bardo, era um perene sacerdócio
De lágrimas e dor; - tomei uma Harpa:
Na corda da aflição gemeu minha alma,
Foi meu primeiro canto um epicédio!
Minha alma batizou-se em pranto amargo,
Na frágua do sofrer purificou-se!

Lancei depois meus olhos sobre o mundo,
Cantor do sofrimento e da amargura;
E vi que a dor aos homens circundava,
Como em roda da terra o mar se estreita;
Que apenas desfrutamos, - miserandos!
Desbotado prazer entre mil dores,
- Uma rosa entre espinhos aguçados,
Um ramo entre mil vagas combatido.

Voltou-se então p'ra Deus o meu esp'rito,
E a minha voz queixosa perguntou-lhe:
- Senhor, porque do nada me tiraste,
Ou por que a tua voz onipotente
Não fez secar da minha vida a sebe,
Quando eu era principio e feto - apenas?

Outra voz respondeu-me dentro d'alma:
- Ardam teus dias como o feno, - ou durem
Como o fogo de tocha resinosa,
- Como rosa em jardim sejam brilhantes,
Ou baços como o cardo montesinho.
Não deixes de cantar, ó triste bardo. -
E as cordas da minha harpa - da primeira
À extrema - da maior à mais pequena,
Nas asas do tufão - entre perfumes,
Um cântico de amores exaltaram
Ao trono do Senhor; - e eu disse às turbas:
- Ele nos faz gemer porque nos ama;
Vem o perdão nas lágrimas contritas,

Nas asas do sofrer desce a demência;
Sobre quem chora mais ele mais vela!
Seu amor divinal é como a lâmpada,
Na abóbada dum templo pendurada,
Mais luz filtrando em mais opacas trevas.
Eu o conheço: - o cântico do bardo
É bálsamo ao que morre, - é lenitivo,
Mas doloroso, mas funéreo e triste
A quem lhe carpe infausto a morte crua.
Mas quando a alma do justo, espedaçando
O invólucro de lodo, aos céus remonta,
Como estrada de luz correndo os astros,
Seguindo o som dos cânticos dos anjos
Que na presença do Senhor se elevam;
Choro... tão bem Jesus chorou a Lázaro!
Mas na excelsa visão que se me antolha
Bebo consolações, - minha alma anseia
A hora em que também há de asilar-se
No seio imenso do perdão do Eterno.

Chora, amigo: porém quando sentires
O pranto nos teus olhos condensar-se,
Que já não pode mais banhar-te as faces,
Ergue os olhos ao céu, onde a luz mora,
Onde o orvalho se cria, onde parece
Que a tímida esperança nasce e habita.
E se eu - feliz! - puder inda algum dia
Ferir por teu respeito na minha harpa
A leda corda onde o prazer palpita,
A corda do prazer que ainda inteira,
Que virgem de emoção inda conservo,
Suspenderei minha harpa dalgum tronco
Em of'renda à fortuna; - ali sozinha,
Tangida pelo sopro só do vento,
Há de mistérios conversar co'a noite.
De acorde estreme perfumando as brisas:
Qual Harpa de Sião presa aos salgueiros
Que não há de cantar a desventura,
Tendo cantos gentis vibrado nela.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 24 de novembro de 2019

A ESCRAVA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A ESCRAVA

Goçalves Dias

 

O biem qu’aucun bien ne peut rendre,
O Patrie, ó doux nom que l’exil fait comprendre!
Marino Faliero

Oh! doce país de Congo,
Doces terras d’além-mar!
Oh! dias de sol formoso!
Oh! noites d’almo luar!

Desertos de branca areia
De vasta, imensa extensão,
Onde livre corre a mente,
Livre bate o coração!

Onde a Ieda caravana
Rasga o caminho passando,
Onde bem longe se escuta
As vozes que vão cantando!

Onde longe inda se avista
O turbante muçulmano,
O Iatagã recurvado,
Preso à cinta do Africano!

Onde o sol na areia ardente
Se espelha, como no mar;
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além-mar!

Quando a noite sobre a terra
Desenrolava o seu véu,
Quando sequer uma estrela
Não se pintava no céu;

Quando só se ouvia o sopro
De mansa brisa fagueira,
Eu o aguardava — sentada
Debaixo da bananeira.

Um rochedo ao pé se erguia,
Dele à base uma corrente
Despenhada sobre pedras,
Murmurava docemente.

E ele às vezes me dizia:
— “Minha Alsgá, não tenhas medo:
Vem comigo, vem sentar-te
Sobre o cimo do rochedo.”

E eu respondia animosa:
— “Irei contigo, onde fores!”
E tremendo e palpitando
Me cingia aos meus amores.

Ele depois me tornava
Sobre o rochedo — sorrindo:
— “As águas desta corrente
Não vês como vão fugindo?

“Tão depressa corre a vida,
Minha Alsgá; depois morrer
Só nos resta!… — Pois a vida
Seja instantes de prazer.

“Os olhos em torno volves
Espantados — Ah! também
Arfa o teu peito ansiado!…
Acaso temes alguém?

“Não receies de ser vista,
Tudo agora jaz dormente;
Minha voz mesmo se perde
No fragor desta corrente.

“Minha Alsgá, por que estremeces?
Por que me foges assim?
Não te partas, não me fujas,
Que a vida me foge a mim!

“Outro beijo acaso temes,
Expressão de amor ardente?
Quem o ouviu? — o som perdeu-se
No fragor desta corrente.”

Assim praticando amigos
A aurora nos vinha achar!
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além-mar!

———

Do ríspido Senhor a voz irada
Rábida soa,
Sem o pranto enxugar a triste escrava
Pávida voa.

Mas era em mora por cismar na terra,
Onde nascera,
Onde vivera tão ditosa, e onde
Morrer devera!

Sofreu tormentos, porque tinha um peito,
Qu’inda sentia;
Mísera escrava! no sofrer cruento,
“Congo!” dizia.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 17 de novembro de 2019

A MENDIGA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A MENDIGA

Gonçalves Dias


 
I

Eu sonhei durante a noite...
Que triste foi meu sonhar!
Era uma noite medonha,
Sem estrelas, sem luar.

E ao través do manto escuro
Das trevas, meus olhos viam
Triste mendiga formosa,
Qu'infortúnios consumiam.

Era uma pobre mendiga,
Porém, cândida donzela;
Pudibunda, afável, doce,
Amorosa, e casta, e bela.

Vestia rotos andrajos,
Que o seu corpo mal cobriam;
Por vergonha os olhos dela
Sobre ela se não volviam.

Pelas costas descobertas
Cortador o frio entrava;
Tinha fome e sede, - e o pranto
Nos seus olhos borbulhava.

E qual vemos dos céus descendo rápido
Um fugaz meteoro, vi descendo
Um anjo do Senhor; - Parou sobre ela,
E mudo a contemplava. - Uma tristeza
Simpática, indizível pouco e pouco
Do anjo nas feições se foi pintando:
Qual tristeza de irmão que a irmã mais nova
Conhece enferrna e chora. - Ela no peito
Menor sentiu a dor, e humilde orava.

 

II

De um vasto edifício nas frias escadas
Eu vi-a sentada; - era um templo, diziam,
Secreto concílio de sócios piedosos,
Que o bem tinha juntos, que bem só faziam.

Defronte um palácio soberbo se erguia,
E dele partia confuso rumor:
- A dança girava, e a orquestra sonora
Cantava alegria, prazeres e amor.

E quando ao palácio um conviva chegava,
Rugindo se abria o ruidoso portão;
Eflúvios de incenso nos ares corriam
Da rua esteirada com vivo clarão.

E a triste mendiga ali 'stava ao relento,
Com fome, com frio, com sede e com dor;
E eu vi o seu anjo, mais triste no aspecto,
Mais baço, mais turvo da glória o fulgor.

E à porta do vasto sombrio edifício
Um vulto chegou.
- Senhor, uma esmola! bradou-lhe a mendiga
E o vulto parou.

E rude no acento, no aspecto severo,
Lhe disse: - O teu nome?
Tornou-lhe a mendiga: - Senhor, uma esmola,
Que eu morro de fome.

- Não, dizes teu nome? lhe torna o soberbo
- Sou órfã, sozinha;
Meu nome qu'importa, se eu sofro, se eu gemo,
Se eu choro mesquinha!"

- Em vis meretrizes não cabe esse orgulho,
Tornou-lhe o Senhor,
Que à noite, nas trevas, contratam no crime,
Vendendo o pudor.

E a porta do templo - erguido à piedade
Com força batia;
Co'o peso do insulto acrescido à crueza,
A triste gemia.

 

III

Ouvi depois um rodar que a todo o instante
Mais distinto se ouvia; e logo um forte,
Fascinador clarão por toda a rua
Se derramou soberbo. - Infindos pajens
Ricas librés trajando, mil archotes
Nos ares revolviam; - fortes, rápidos,
Fumegantes corcéis, sorvendo a terra,
Tiravam rica sege melindrosa.
Sobre a terra saltou airosa e bela
A dona, em frente do festivo paço;
E a mendiga bradou: - Senhora minha,
Dai uma esmola, dai! - À voz dorida
Volveu-se o rosto d'anjo, porém d'anjo
Não era o coração; - foi-lhe importuno,
Mais que importuno... da mesquinha o grito!
E da mendiga o protetor celeste
Parecia falar em favor dela;
E a rica dona o escutava, como
Se ouvisse a interna voz que dentro mora.

E eu dizia também - Ó bela Dona,
Dai-lhe uma esmola, daí; - de que vos serve
Um óbolo mesquinha, que não pode
Sequer um dixe sem valor comprar-vos?
Ah! bela como sois, que vos importam
Custosas flores, com que ornais a fronte?
Para a salvar do vórtice do crime,
O preço delas, uma só, da coisa,
Que sem valor julgardes, é bastante.
Sabeis? - Além da vida, além da morte,
Quando deixardes o ouropel na campa,
Quando subirdes do Senhor ao trono,
Sem andrajos sequer, também mendiga,
Ali tereis as lágrimas do pobre,
A bênção do afligido, a prece ardente
Do que sofrendo vos bendisse, - ó Dona.

Fechou-se a porta festival sobre ela!
E a donzela se ergueu, corou de pejo,
Lançando os olhos pela rua escusa,
E segura no andar, e firme, à porta
Do palácio bateu - entrou - sumiu-se.

E o anjo, como aflito sob um peso,
Um gemido soltou; era uma nota
Melancólica e triste, - era um suspiro
Mavioso de virgem, - um soído
Subtil, mimoso, como d'Harpa Eólia,
Que a brisa da manhã roçou medrosa.

 

IV

Dos muros ao través meus olhos viram
Soberba roda de convivas, - todos
Veludos, sedas, e custosas galas
Trajavam senhoris. - Reinava o jogo
Avaro e grave, leda e viva a dança
Em vórtices girava, a orquestra doce
Cantava oculta; condensados, bastos,
Em redor do banquete estavam muitos.
A mendiga ali estava, - não trajando
Sujos farrapos, mas delgadas telas.
Choviam brindes e canções e vivas

À Deusa airosa do banquete; todos
Um volver dos seus olhos, um sorriso,
Uma voz de ternura, um mimo, um gesto
Cobiçavam rivais; - e ali com ela,
Como um raio do sol por entre as nuvens
Lá na quadra hibernal penetra a custo
Quase sem vida, sem calor, sem força,
Menos brilhante vi seu anjo belo.
Nos curtos lábios da feliz mendiga
Passava rápido um sorriso às vezes;
Outras chorava, no volver do rosto,
Na taça do prazer sorvendo o pranto.
Encontradas paixões sentia o anjo:
Parecia chorar co'o seu sorriso,
Parecia sorrir co'o choro dela.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 10 de novembro de 2019

A MORTE PREMATURA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A MORTE PREMATURA

Gonçalves Dias

 

Lá, bem longe daqui, em tarde amena,
Gozando a viração das frescas auras,
Que do Brasil os bosques brandamente
Faziam balançar, – e que espalhavam
No éter encantado odor, pureza –
Do que a rosa mais bela, – meiga e casta,
Como as virgens do sol,
Que de vezes não foi ela pendente
Dos braços fraternais em meigo abraço;
Como mimosa flor presa, enlaçada
A tenro arbusto que a vergôntea débil
Lhe ampara docemente. . .
E o Irmão que só nela se revia,
O Irmão que a adorava, qual se adora
Um mimo do Senhor;
Que a tinha por farol, conforto e guia,
Os seus dias contava por encantos;
E as virtudes co’os dias pleiteavam.
E ela morreu no viço de seus anos!…
E a laje fria e muda dos sepulcros
Se fechou sobre o ente esmorecido
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças!… _
Campal campa! que de terror incutes!
Quanto esse teu silêncio me horroriza!
E quanto se assemelha a tua calma
À do cruel malvado que impassível
Contempla a sua vítima torcer-se
Em convulsões horríveis, desesp’radas;
Cruas vascas da morte!…
Quem tão má fé te criou?
Tu que tragas o ente que esmorece
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças?!
O farol se apagou? a luz sumiu-se!
Como o fugaz clarão do meteoro,
Extinguiu-se a esperança; e o malfadado
Sobre a terra deserta em vão procura
Traços dessa que amou, que tanto o amara,
Da jovem companheira de seus brincos,
Pesares e alegrias.
Ele a procurai… o viajor pasmado
Nos campos de Pompéia, alonga a vista
Pela amplidão do plano,
Destroços e ruínas encontrando,
Onde esperava movimento e vida.
Não poder eu a troco de meu sangue
Poupar-te dessas lágrimas metade!
Oh! poder que eu pudesse! – e almo sorriso.
Que tanto me compraz ver-te nos lábios,
Inda uma vez brilhasse!
E essa existência,
Que tão cara me é, ta visse eu leda,
E feliz como a vida dos Arcanjos!
Infeliz é quem chora: ela finou-se,
Porque os anjos à terra não pertencem:
Mas lá dos imortais sobre os teus dias
A suspirada irmã vela incessante.
Vinde, cândidas rosas, açucenas,
Vinde, roxas saudades;
Orvalhai, tristes lágrimas, as c’roas,
Que hão de a campa adornar por mim depostas
Em holocausto à vítima da morte.
Inocência, pudor, beleza e graça
Com ela nessa campa adormeceram.
Anjo no coração, anjo no rosto,
Devera o amor chorar sobre o teu seio,
Que não grinaldas fúnebres tecer-te;
Devera voz d’esposo acalentar-te
O sono da inocência, – não grosseira
Canção de trovador não conhecido.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 03 de novembro de 2019

O VATE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O VATE

Gonçalves Dias

No Álbum de um Poeta

 

Moi... j’aimerai ta victoire;

Pour mon coeur, ami de toute gloire,

Les triomphes d’autrui ne sont pas un affront.

Poète, j’eus toujours un chant pour les poètes,

Et jamais le laurier qui pare d’autres têtes

Ne jeta d’ombre sur mon front

V. Hugo

 

Vate! Vate! Que és tu? – Nos seus extremos

Fadou-te Deus um coração de amores,

Fadou-te uma alma acesa borbulhando

Ardidos pensamentos, como a lava

Que o gigante Vesúvio arroja às nuvens.

 

Vate! Vate! Que és tu? – Foste ao princípio

Sacerdote e profeta;

Eram nos céus teus cantos uma prece,

Na terra um vaticínio.

E ele cantava então: – Jeová me disse,

Majestoso e terrível.

 

“Vês tu Jerusalém como orgulhosa

Campeã entre as nações, como no Líbano

Um cedro a cuja sombra a hissope cresce?

Breve a minha ira transformada em raios

Sobre ela cairá;

Um fero vencedor dentro em seus muros

Tributária a fará;

E quando escravo seus filhos, sobre pedra

Pedra não ficará.”

 

E os réprobos de saco se vestiam;

Em pó, em cinza envoltos;

E colando co’a terra os torpes lábios,

E açoitando co’as mãos o peito imbele,

Senhor! Senhor! – clamavam.

 

E o vate entanto o pálido semblante

Meditabundo sobre as mãos firmava,

Suplicando ao Senhor do interno d’alma.

Foram santos então. – Homero o mundo

Criou segunda vez, – o inferno o Dante, –

Milton o paraíso, – foram grandes!

 

E hoje!... em nosso exílio erramos tristes,

Mimosa esp’rança ao infeliz legando,

Maldizendo a soberba, o crime, os vícios;

E o infeliz se consola, e o grande treme.

Damos ao infante aqui do pão que temos,

E o manto além ao mísero raquítico;

Somos hoje Cristãos.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 27 de outubro de 2019

A TEMPESTADE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A TEMPESTADE

Gonçalves Dias

 

Quem porfiar contigo... ousara
Da glória o poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?
A. HERCULANO

Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva
Rutila,
Seduz!

Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,
Que eram belas,
Tem desmaios,
Já por fim.

O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar.

Um ponto aparece,
Que o dia entristece,
O céu, onde cresce,
De negro a tingir;
Oh! vede a procela
Infrene, mas bela,
No ar s’encapela
Já pronta a rugir!
Não solta a voz canora
No bosque o vate alado,
Que um canto d’inspirado
Tem sempre a cada aurora;
É mudo quanto habita
Da terra n’amplidão.
A coma então luzente
Se agita do arvoredo,
E o vate um canto a medo
Desfere lentamente,
Sentindo opresso o peito
De tanta inspiração.

Fogem do vento que ruge
As nuvens aurinevadas,
Como ovelhas assustadas
Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Que no alto mar apanha,
Ardendo na usada sanha,
Subitâneo vendaval.

Bem como serpentes que o frio
Em nós emaranha, — salgadas
As ondas s’estanham, pesadas
Batendo no frouxo areal.
Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas
Que mudas fuzilam, — incertas
Fantasmas do gênio do mal!

E no túrgido ocaso se avista
Entre a cinza que o céu apolvilha,
Um clarão momentâneo que brilha,
Sem das nuvens o seio rasgar;
Logo um raio cintila e mais outro,
Ainda outro veloz, fascinante,
Qual centelha que em rápido instante
Se converte d’incêndios em mar.

Um som longínquo cavernoso e ouco
Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre;
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre:
Devorador incêndio alastra os ares,
Enquanto a noite pesa sobre os mares.

Nos últimos cimos dos montes erguidos
Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão.

Remexe-se a copa dos troncos altivos,
Transtorna-se, tolda, baqueia também;
E o vento, que as rochas abala no cerro,
Os troncos enlaça nas asas de ferro,
E atira-os raivoso dos montes além.

Da nuvem densa, que no espaço ondeia,
Rasga-se o negro bojo carregado,
E enquanto a luz do raio o sol roxeia,
Onde parece à terra estar colado,
Da chuva, que os sentidos nos enleia,
O forte peso em turbilhão mudado,
Das ruínas completa o grande estrago,
Parecendo mudar a terra em lago.

Inda ronca o trovão retumbante,
Inda o raio fuzila no espaço,
E o corisco num rápido instante
Brilha, fulge, rutila, e fugiu.
Mas se à terra desceu, mirra o tronco,
Cega o triste que iroso ameaça,
E o penedo, que as nuvens devassa,
Como tronco sem viço partiu.

Deixando a palhoça singela,
Humilde labor da pobreza,
Da nossa vaidosa grandeza,
Nivela os fastígios sem dó;
E os templos e as grimpas soberbas,
Palácio ou mesquita preclara,
Que a foice do tempo poupara,
Em breves momentos é pó.

Cresce a chuva, os rios crescem,
Pobres regatos s’empolam,
E nas turvam ondas rolam
Grossos troncos a boiar!
O córrego, qu’inda há pouco
No torrado leito ardia,
É já torrente bravia,
Que da praia arreda o mar.

Mas ai do desditoso,
Que viu crescer a enchente
E desce descuidoso
Ao vale, quando sente
Crescer dum lado e d’outro
O mar da aluvião!
Os troncos arrancados
Sem rumo vão boiantes;
E os tetos arrasados,
Inteiros, flutuantes,
Dão antes crua morte,
Que asilo e proteção!

Porém no ocidente
S’ergue de repente
O arco luzente,
De Deus o farol;
Sucedem-se as cores,
Qu’imitam as flores
Que lembram primores
Dum novo arrebol.

Nas águas pousa;
E a base viva
De luz esquiva,
E a curva altiva
Sublima ao céu;
Inda outro arqueia,
Mais desbotado,
Quase apagado,
Como embotado
De tênue véu.

Tal a chuva
Transparece,
Quando desce
E ainda vê-se
O sol luzir;
Como a virgem,
Que numa hora
Ri-se e cora,
Depois chora
E torna a rir.

A folha
Luzente
Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai:
Vacila,
Palpita;
Mais grossa
Hesita,
E treme
E cai. 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 20 de outubro de 2019

A NOITE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A NOITE 

Gonçalves Dias

 


Noite, melhor que o  dia, quem não ama,
Quem não vive mais brando em teu regaço!
Filinto.



Eu amo a noite solitaria e muda,
Quando no vasto céo fitando os ollios,
Alem do escuro, que lhe tinge a face,
       Alcanço deslumbrado
Milhões de sóes a divagar no espaço,
Como em salas de esplendido banquete
Mil tochas aromaticas ardendo
       Entre nuvens d’incenso!

Eu amo a noite taciturna e quêda!
Amo a doce mudez que ella derrama,
E a fraca aragem pelas densas folhas
       Do bosque murmurando:
Então, máo grado o véo que involve a terra,
A vista do que vela enxerga mundos,
E apezar do silencio, o ouvido escuta
       Notas de ethereas harpas.

Eu amo a noite taciturna e quêda!
Então parece que da vida as fontes
Mais faceis correm, mais sonoras soão,
       Mais fundas se abrem;
Então parece que mais pura a brisa
Corre, — que então mais funda e leve a fonte
Mana, — e que os sons então mais doce e triste
       Da musica se espargem.
 

O peito aspira sofrego ar de vida,
Que da terra não é, qual flôr nocturna,
Que bebe orvalho, elle se embebe e ensópa
       Em extasis de amor:
Mais direitas então, mais puras devem,
Calada a natureza, a terra e os homens,
Subir as orações aos pés do Eterno
       Para afagar-lhe o throno!

Assim é que no templo magestoso
Rebôa pela nave o som mais alto,
Quando o sacro instrumento quebra a augusta
       Mudez do sanctuario:
Assim é que o incenso mais direito
Se eleva na capella que o resguarda,
E na chave da abobada topando,
       Como um docél, se expraia.

Eu amo a noite solitaria e muda;
Como formosa dona em regios paços,
Trajando ao mesmo tempo luto e galas
       Magestosa e sentida;
Se no dó attentais, de que se enluta,
Certo sentis pezar de a ver tão triste;
Se o rosto lhe fitais, sentis deleite
       De a ver tão bella e grave!

Considerai porêm o nobre aspecto,
E o pórte, e o garbo senhoril e altivo,
E as fallas poucas, e o olhar sob’rano,
       E a fronte levantada:
No silencio que a véste, adorna e honra,
Conhecendo por fim quanto ella é grande,
Com voz humilde a saudareis rainha,
       Curvado e respeitoso.

Eu amo a noite solitaria e muda,
Quando, bem como em salas de banquete
Mil tochas aromaticas ardendo,
       Girão fúlgidos astros!

Eu amo o leve odor que ella diffunde,
E o rorante frescor cahindo em per’las,
E a magica mudez que tanto falla,
       E as sombras transparentes!

Oh! quando sobre a terra ella se estende,
Como em praia arenosa mansa vaga;
Ou quando, como a flôr d’entre o seo musgo,
       A aurora desabrocha;
Mais forte e pura a voz humana sôa,
E mais se accórda ao hymno harmonioso,
Que a natureza sem cessar repete,
       E Deos gostoso escuta.

(Grafia original)


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 13 de outubro de 2019

A LUA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

A LUA

Gonçalves  Dias

 

 

Salve, ó Lua cândida,

Que trás dos altos montes

Erguendo a fronte pálida,

Dos negros horizontes

As sombras melancólicas

Vens ora afugentar

Salve, ó astro fúlgido,

Que brilhas docemente,

Melhor que o lume trêmulo

D’estrela inquieta, ardente,

Melhor que o brilho esplêndido

Do sol ferindo o mar!

 

Salve, ó reflexo tênue

Da eterna luz preclara

Nas nossas noites hórridas;

Qual sol que em linfa clara

Desponta os raios vívidos,

Em tarja multicor;

És como a virgem pudica.

Que amor no peito encerra;

Mas só, mas solitária,

Vagando aqui na terra

Triplica o selo místico

Do não sabido amor!

Eu te amo, ó Lua cândida,

No giro sonolento.

E o teu cortejo mádido

De estrelas, e do vento

O sopro merencório,

Que à noite dá frescor.

Por teus influxos mágicos

Minha alma aos sons do canto

Revive; e os olhos úmidos

Gotejam triste pranto,

Que orvalha a chaga tépido,

Que míngua a antiga dor!

 

Em gélido sudário

De neve alvinitente,

Por terras vi longínquas,

Durante a noite algente,

A tua luz benéfica

Luzir meiga do céu.

Nos mares solitários

Tão bem a vi! – nas vagas

Brincava o lume argênteo,

Cantava o nauta as magas

Canções, no voluntário,

Cansado exílio seu!

 

Tão bem a vi na límpida

Corrente vagarosa;

Tão bem nas densas árvores

De selva majestosa,

Coando os raios lúbricos

No lôbrego palmar.

E eu só e melancólico

Sentado ao pé da veia,

Que a deslizar-se tímida

Beijava a branca areia;

Ou já na sombra tétrica

Da mata secular;

 

Em devaneio plácido

Velava, em quanto via

Ao longe – os altos píncaros

Da negra serrania,

- Disformes atalaias,

Que sempre ali serão!

No rórido silêncio

Minha alma se exaltava;

E das visões fantásticas,

Que a lua desenhava,

Seguia os traços áureos,

Tremendo em negro chão!

 

Pensava ledo, impróvido,

Até que de repente

Da minha vida mísera

Se me antolhava à mente

A quadra breve e rápida

Do malfadado amor.

Então fugia atônito

O bosque, a selva, a fonte,

E as sombras, e o silêncio;

Bem como o cervo insonte,

Que às setas foge pávido

Do fero caçador!

 

Salve, ó astro fúlgido,

Que brilhas docemente.

Melhor que o lume trêmulo

D’estrela inquieta, ardente,

Melhor que o brilho esplêndido

Do sol ferindo o mar.

Eu te amo, ó Lua pálida,

Vagando em noite bela,

Rompendo as nuvens túrdidas

Da ríspida procela;

Eu te amo até nas lágrimas

Que fazes derramar.

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 06 de outubro de 2019

ADEUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

ADEUS

Gonçalves Dias

 

Aos meus amigos do Maranhão

 
Meus amigos, Adeus! Já no horizonte
O fulgor da manhã se empurpurece:
É puro e branco o céu, - as ondas mansas,
- Favorável a brisa; - irei de novo
Sorver o ar puríssimo das ondas,
E na vasta amplidão dos céus e mares
De vago imaginar embriagar-me!
Meus Amigos, Adeus! - Verei fulgindo
A lua em campo azul, e o sol no ocaso
Tingir de fogo a implacidez das águas;
Verei hórridas trevas lento e lento
Desceram, como um crepe funerário
Em negro esquife, onde repoisa a morte;
Verei a tempestade quando alarga
As negras asas de bulcões, e as vagas
Soberbas encastela, esporeando
O curto bojo de ligeiro barco,
Que geme, e ruge, e empina-se insofrido
Galgando os escarcéus, - bem larga esteira
De fósforo e de luz trás si deixando:
Generoso corcel, que sente as cruzes
Agudas de teimosos acicates
Lacerarem-lhe rábidas o ventre.

Inda uma vez, Adeus! Curtos instantes
De inefável prazer - horas bem curtas
De ventura e de paz frui convosco:
Oásis que encontrei no meu deserto,
Tépido vale entre fragosas serras
Virente derramado, foi a quadra
Da minha vida, que passei convosco.
Aqui de quanto amei, do que hei sofrido,
De tudo quanto almejo, espero, ou temo
Deslembrado vivi! - Oh! quem me dera
Que entre vós outros me alvejasse a fronte,
E que eu morresse entre vós! Mas força oculta,
lrresistível, me persegue e impele.
Qual folha instável em ventoso estio
Do vento ao sopro a esvoaçar sem custo;
Assim vou eu sem tino, - aqui pegadas
Mal firmes assentando - além pedaços
De mim mesmo deixando. Na floresta
O lasso viandante extraviado
Por todo o verde bosque estende os olhos,
E cansado esmorece, - cai, medita,
Respira mais de espaço, cobra alento,
E nas solidões de novo ei-lo se entranha.
Vestígios mal seguros sopra o vento,
Ou nivela-os a chuva, ou relva os cobre:
Talvez que folhas ásperas de arbusto
Mordam velos da túnica, e denotem
(Duvida o viajor, que os vê com pasmo)
Que errante caminheiro ali passasse.
E eu parti! - Não chorei, que do meu pranto
A larga fonte jaz de há muito exausta;
Há muito que os meus olhos não gotejam
O repassado fel d'acre amargura;
E o pranto no meu peito represado
Em cinza o coração me há convertido.
É assim que um vulcão se torna fonte
De linfa amarga e quente; e a fonte em ermo,
Onde não crescem perfumadas flores,
Nem tenras aves seus gorjeios soltam,
Nem triste viajor encontra abrigo.

Rasgado o coração de pena acerba,
Transido de aflições, cheio de mágoa,
Miserando parti! tal quando réprobo,
Adão, cobrindo os olhos co'as mãos ambas,
Em meio a sua dor só descobria
Do Arcanjo os candidíssimos vestidos,
E os lampejos da espada fulminante,
Que o Éden tão mimoso lhe vedava.
Porém quando algum dia o colorido
Das vivas ilusões, que inda conservo,
Sem força esmorecer, - e as tão viçosas
Esp'ranças, que eu educo, se afundarem
Em mar de desenganos; - a desgraça
Do naufrágio da vida há de arrojar-me
A praia tão querida, que ora deixo,
Tal parte o desterrado: um dia as vagas
Hão de os seus restos rejeitar na praia,
Donde tão novo se partira, e onde
Procura a cinza fria achar jazigo.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 29 de setembro de 2019

TE DEUM (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 
 
TE DEUM
Gonçalves Dias
Nós, Senhor, nós te louvamos,
Nós, Senhor, te confessamos.



Senhor Deus Sabaó, três vezes santo,
Imenso é o teu poder, tua força imensa,
Teus prodígios sem conta; — e os céus e a terra
Teu ser e nome e glória preconizam.

E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita — a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes santo.

Na inocência do infante és tu quem falas;
A beleza, o pudor — és tu que as gravas
Nas faces da mulher, — és tu que ao velho
Prudência dás, — e o que verdade e força
Nos puros lábios, do que é justo, imprimes.

És tu quem dás rumor à quieta noite,
És tu quem dás frescor à mansa brisa,
Quem dás fulgor ao raio, asas ao vento,
Quem na voz do trovão longe rouquejas.

És tu que do oceano à fúria insana
Pões limites e cobro, — és tu que a terra
No seu vôo equilibras, — quem dos astros
Governas a harmonia, como notas

Acordes, simultâneas, palpitando
Nas cordas d'Harpa do teu Rei Profeta,
Quando ele em teu furor hinos soltava,
Qu'iam, cheios de amor, beijar teu sólio.
Santo! Santo! Santo! — teus prodígios
São grandes, como os astros, — são imensos,
Como areia delgada em quadra estiva.

E o arcanjo forte e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita — a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes grande.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 22 de setembro de 2019

O TEMPLO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O TEMPLO

Gonçalves Dias

-- Turquety

 

I

Estou só neste mudo santuário,

Eu só, com minha dor, com minhas penas!

E o pranto nos meus olhos represado,

Que nunca viu correr humana vista,

Livremente o derramo aos pés de Cristo,

Que tão bem suspirou, gemeu sozinho,

Que tão bem padeceu sem ter conforto,

Como eu padeço, e sofro, e gemo, e choro.

 

Remorso não me punge a consciência,

Vergonha não me tinge a cor do rosto,

Nem crimes perpetrei; - porque assim choro?

E direi eu por quê? - Antes meu berço,

Que vagidos de infante vividouro,

Os sons finais de um moribundo ouvisse!

Que esperanças que eu tinha tão formosas,

Que mimosos enlevos de ternura,

Não continha minha alma toda amores!

Esperanças e amor, que é feito delas?

Um dia me roubava uma esperança,

E sozinho, uma e uma, me deixaram.

Morreram todas, como folhas verdes

Que em princípios do inverno o vento arranca.

 

E o amor! - podia eu senti-lo ao menos;

Quando eu via a desdita de bem perto

Co'um sorriso infernal no rosto esquálido,

Com fome e frio a tiritar demente,

Acenando-me infausta? - quando vinda

Minha honra já sentia, em que os meus lábios,

Tremendo de vergonha, soluçassem

Ao f'liz com que eu na rua deparasse,

De mãos erguidas: Meu Senhor, piedade!

Eis por que sofro assim, por que assim gemo,

Por que meu rosto pálido se encova,

Por que somente a dor me ri nos lábios,

Por que meu coração já todo é cinzas.

 

Menti, Senhor, menti! - porque te adoro.

No altar profano de beleza esquiva

Não queimo incenso vão; - tu só me ocupas

O coração, que eu fiz hóstia sagrada,

Apuro de elevados sentimentos,

Que o teu amor somente asilam, nutrem.

Quando ao sopé da cruz me chego aflito,

Sinto que o meu sofrer se vai minguando,

Sinto minha ama que de novo existe,

Sinto meu coração arder em chamas,

Arder meus lábios ao dizer teu nome.

Assim a cada aurora, a cada noite.

Virei consolações beber sedento

Aos pés do meu Senhor; - virei meu peito

Encher de religião, de amor, de fogo,

Que além de infindos céus minha alma exalte.

 

II

Quem me dera nas asas deste vento,

Que agora tão saudoso aqui murmura,

Agitando as cortinas, que me encobrem

Do teu rosto o fulgor, que me não cegue,

Subir além dos sois, além das nuvens

Ao teu trono, ó meu Deus; ou quem me desse

Ser este incenso que se arroja em ondas

A subir, a crescer, em rolo, em fumo,

Até perder-se na amplidão dos ares!

Não qu'ria aqui viver! - Quando eu padeço,

Surdez fingida a minha voz responde;

Não tenho voz de amor, que me console,

Corre o meu pranto sobre terra ingrata,

E dor mortal meu coração fragoa.

Só tu, Senhor, só tu, no meu deserto

Escutas minha voz que te suplica;

Só tu nutres minha alma de esperança;

Só tu, ó meu Senhor, em mim derramas

Torrentes de harmonia, que me abrasam.

 

Qual órgão, que ressoa mavioso,

Quando segura mão lhe oprime as teclas,

Assim minha alma, quando a ti se achega,

Hinos de ardente amor disfere grata:

E, quando mais serena, inda conserva

Eflúvios desse canto, que me guia

No caminho da vida áspero e duro.

Assim por muito tempo reboando

Vão no recinto do sagrado templo

Sons, que o órgão soltou, que o ouvido escuta.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 15 de setembro de 2019

A TARDE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS

A TARDE

Gonçalves Dias

 


Ó tarde, oh bela tarde, oh meus amores,
Mãe da meditação, meu doce encanto!
Os rogos da minha alma enfim ouviste,
E grato refrigério vens trazer-lhe
No teu remansear prenhe de enlevos!
Em quanto de te ver gostam meus olhos,
Enquanto sinto a minha voz nos lábios,
Enquanto a morte me não rouba à vida,
Um hino em teu louvor minha alma exale,
Oh tarde, oh bela tarde, oh meus amores!

I
É bela a noite, quando grave estende
Sobre a terra dormente o negro manto
De brilhantes estrelas recamado;
Mas nessa escuridão, nesse silêncio
Que ela consigo traz, há um quê de horrível
Que espanta e desespera e geme n'alma;
Um quê de triste que nos lembra a morte!
No romper d'alva há tanto amor, tal vida,
Há tantas cores, brilhantismo e pompa,
Que fascina, que atrai, que a amar convida;
Não pode suportá-la homem que sofre,
Órfãos de coração não podem vê-la.

Só tu, feliz, só tu, a todos prendes!
A mente, o coração, sentidos, olhos,
A ledice e a dor, o pranto e o riso,
Folgam de te avistar; - são teus, - és deles
Homem que sente dor folga contigo,
Homem que tem prazer folga de ver-te!
Contigo simpatizam, porque és bela,
Qu'és mãe de merencórios pensamentos,
Entre os céus e a terra êxtasis doce,
Entre dor e prazer celeste arroubo.

II
A brisa que murmura na folhagem,
As aves que pipilam docemente,
A estrela que desponta, que rutila,
Com duvidosa luz ferindo os mares,
O sol que vai nas águas sepultar-se
Tingindo o azul dos céus de branco e d'oiro;
Perfumes, murmurar, vapores, brisa,
Estrelas, céus e mar, e sol e terra,
Tudo existe contigo, e tu és tudo.

III
Homem que vivo agro viver de corte,
lndiferente olhar derrama a custo
Sobre os fulgores teus; - homem do mundo
Mal pode o desbotado pensamento
Revolver sobre o pó; mas nunca, oh nunca!
Há de elevar-se a Deus, e nunca há de ele
Na abóbada celeste ir pendurar-se,
Como de rósea flor pendente abelha.
Homem da natureza, esse contemple
De púrpura tingir a luz que morre
As nuvens lá no ocaso vacilantes!
Há de vida melhor sentir no peito,
Sentir doce prazer sorrir-lhe n'alma,
E fonte de ternura inesgotável
Do fundo coração brotar-lhe em ondas.

Hora do pôr do sol? - hora fagueira,
Qu'encerras tanto amor, tristeza tanta!
Quem há que de te ver não sinta enlevos,
Quem há na terra que não sinta as fibras
Todas do coração pulsar-lhe amigas,
Quando desse teu manto as pardas franjas
Soltas, roçando a habitação dos homens?
Há i prazer tamanho que embriaga,
Há i prazer tão puro, que parece
Haver anjos dos céus com seus acordes
A mísera existência acalentado!

IV
Sócia do forasteiro, tu, saudade,
Nesta hora os teus espinhos mais pungentes
Cravas no coração do que anda errante.
Só ele, o peregrino, onde acolher-se,
Não tem tugúrio seu, nem pai, nem 'spôsa,
Ninguém que o espere com sorrir nos lábios
E paz no coração, - ninguém que estranhe,
Que anseie aflito de o não ver consigo!
Cravas então, saudade, os teus espinhos;
E eles, tão pungentes, tão agudos,
Varando o coração de um lado a outro,
Nem trazem dor, nem desespero incitam;
Mas remanso de dor, mas um suave
Recordar do passado, - um quê de triste
Que ri ao coração, chamando aos olhos
Tão espontâneo, tão fagueiro pranto,
Que não fora prazer não derramá-lo.
E quem - ah tão feliz! -- quem peregrino
Sobre a terra não foi? Quem sempre há vista
Sereno e brando deslizar-se o fumo
Sobre o teto dos seus; e sobre os cumes
Que os seus olhos hão visto à luz primeira
Crescer branca neblina que se enrola,
Como incenso que aos céus a terra envia?
Tão feliz! quando a morte envolta em pranto
Com gelado suor lh'enerva os membros,
Procura inda outra mão co'a mão sem vida,
E o extremo cintilar dos olhos baços,
De um ente amado procurando os olhos,
Sem prazer, mas sem dor, ali se apaga.
O exilado! esse não; tão só na vida,
Como no passamento ermo e sozinho,
Sente dores cruéis, torvos pesares
Do leito aflito esvoaçar-lhe em torno,
Roçar-lhe o frio, o pálido semblante,
E o instante derradeiro amargurar-lhe.
Porém, no meu passar da vida à morte,
Possa co'a extrema luz destes meus olhos
Trocar último adeus com os teus fulgores!
Ah! possa o teu alento perfumado,
Do que na terra estimo, docemente
Minha alma separar, e derramá-la
Como um vago perfume aos pés do Eterno.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 08 de setembro de 2019

O ROMPER D,ALVA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O ROMPER D'ALVA

Gonçalves Dias

 


Do vento o rijo sopro as mansas ondas
Varreu do imenso pego, - e o mar rugindo
As nuvens se elevou com fúria insana;
Enoveladas vagas se arrojaram
Ao céu co'a branca espuma!
Raivando em vão se encontram soluçando
Na base d'erma rocha descalvada;
Em vão de fúrias crescem, que se quebra
A força enorme do impotente orgulho
Na rocha altiva ou na arenosa praia. _
Da tormenta o furor lhe acende os brios,
Da tormenta o furor lh'enfreia as iras,
Que em teimosos gemidos se descerram,
Da quieta noite despertando os ecos
Além, no vale humilde, onde não chega
Seu sanhudo gemer, que o dia abafa.

Mas a brisa sussurrando
A face do céu varreu,
Tristes nuvens espalhando,
Que a noite em ondas verteu.

Além, atrás da montanha,
Branda luz se patenteia,
Que d'alma a dor afugenta,
Se dentro sentida anseia.

Branda luz, que afaga a vista,
De que se ama o céu tingir,
Quando entre o azul transparente
Parece alegre sorrir;

Como és linda! - Como dobras
Da vida a força e do amor!
- Que tão bem luz dentro d'alma
Teu luzir encantador!

No teu ameno silêncio
A tormenta se perdeu,
E do mar a forte vida
Nos abismos se escondeu!

Porque assim de novo agora
Que o vento o não vem toldar,
Parece que vai queixoso
Mansamente a soluçar?

Porque as ramas do arvoredo,
Bem como as ondas do mar,
Sem correr sopro de vento,
Começam de murmurar?

Sobre o tapiz d'alva relva,
- Rocio da madrugada -
Destila gotas de orvalho
A verde folha inclinada.

Renascida a natureza
Parece sentir amor;
Mais brilhante, mais viçosa
O cálix levanta a flor.

Por entre as ramas ocultas,
Docemente a gorjear,
Acordam trinando as aves,
Alegres, no seu trinar.

O arvoredo nessa língua
Que diz, por que assim sussurra?
Que diz o cantar das aves?
Que diz o mar que murmura?

- Dizem um nome sublime,
O nome do que é Senhor,
Um nome que os anjos dizem,
O nome do Criador.

Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.

Quando a dor meu peito acanha,
Quando me rala a aflição.
Quando nem tenho na terra
Mesquinha consolação;

Tu, Senhor, do peso insano
Livras meu peito arquejante,
Secas-me o pranto que os olhos
Vertendo estão abundante.

Tu pacificas minha alma,
Quando se rasga com pena,
Como a noite que se esconde
Na luz da manhã serena.

Tu és a luz do universo,
Tu és o ser criador,
Tu és o amor, és a vida,
Tu és meu Deus, meu Senhor.

Direi nas sombras da noite,
Direi ao romper da aurora:
- Tu és o Deus do universo,
O Deus que minha alma adora.

Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 01 de setembro de 2019

IDEIA DE DEUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

IDEIA DE DEUS

Gonçalves Dias

 

 

Gross ist der Herr! Die Himmel ohne Zahl

Sind seine Wohnungen!

Seine Wagen die donnernden Gewolke,

Und Blitze sein Gespann.

- Kleist

I

À voz de Jeová infindos mundos

Se formaram do nada;

Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,

E a noite foi criada,

Luziu no espaço a lua! Sobre a terra

Rouqueja o mar raivoso,

E as esferas nos céus ergueram hinos

Ao Deus prodigioso.

Hino de amar a criação, que soa

Eternal, incessante,

Da noite no remanso, no ruído

Do dia cintilante!

A morte, as aflições, o espaço, o tempo,

O que é para o Senhor?

Eterno, imenso, que lh’importa a sanha

Do tempo roedor?

Como um raio de luz, percorre o espaço,

E tudo nota e vê –

O argueiro, os mundos, o universo, o justo;

E o homem que não crê.

E Ele que pode aniquilar os mundos,

Tão forte como Ele é,

E vê e passa, e não castiga o crime,

Nem o ímpio sem fé!

51

Porém quando corrupto um povo inteiro

O Nome seu maldiz,

Quando só vive de vingança e roubos,

Julgando-se feliz;

Quando o ímpio comanda, quando o justo

Sofre as penas do mal,

E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.

E a justiça venal;

Ai da perversa, da nação maldita,

Cheia de ingratidão,

Que há de ela mesma sujeitar seu colo

A justa punição.

Ou já terrível peste expande as asas,

Bem lenta a esvoaçar;

Vai de uns a outros, dos festins conviva,

Hóspede em todo o lar!

Ou já torvo rugir da guerra acesa

Espalha a confusão;

E a esposa, e a filha, de tenor opresso,

Não sente o coração.

E o pai, e o esposo, no morrer cruento,

Vomita o fel raivoso;

- Milhões de insetos vis que um pé gigante

Enterra em chão lodoso.

E do povo corrupto um povo nasce

Esperançoso e crente.

Como do podre e carunchoso tronco

Hástea forte e virente.

II

Oh! Como é grande o Senhor Deus, que os mundos

Equilibra nos ares;

Que vai do abismo aos céus, que susta as iras

52

Do pélago fremente,

A cujo sopro a máquina estrelada

Vacila nos seus eixos,

A cujo aceno os querubins se movem

Humildes, respeitosos,

Cujo poder, que é sem igual, excede

A hipérbole arrojada!

Oh! Como é grande o Senhor Deus dos mundos,

O Senhor dos prodígios.

III

Ele mandou que o sol fosse princípio,

E razão de existência,

Que fosse a luz dos homens – olho eterno

Da sua providência.

Mandou que a chuva refrescasse os membros,

Refizesse o vigor

Da terra hiante, do animal cansado

Em praino abrasador.

Mandou que a brisa sussurrasse amiga,

Roubando aroma à flor;

Que os rochedos tivessem longa vida,

E os homens grato amor!

Oh! Como é grande e bom o Deus que manda

Um sonho ao desgraçado,

Que vive agro viver entre misérias,

De ferros rodeado;

O Deus que manda ao infeliz que espere

Na sua providência;

Que o justo durma, descansado e forte

Na sua consciência!

Que o assassino de contínuo vele,

Que trema de morrer;

Enquanto lá nos céus, o que foi morto,

Desfruta outro viver!

53

Oh! Como é grande o Senhor Deus, que rege

A máquina estrelada,

Que ao triste dá prazer; descanso e vida

À mente atribulada!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 25 de agosto de 2019

O MAR (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O MAR

Gonçalves Dias


Oceano terrível, mar imenso
De vagas procelosas que se enrolam
Floridas rebentando em branca espuma
Num pólo e noutro pólo,
Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos
Na indômita cerviz trêmulos cravo,
E esse rugido teu sanhudo e forte
Enfim medroso escuto!

Donde houveste, ó pélago revolto,
Esse rugido teu? Em vão dos ventos
Corre o insano pegão lascando os troncos,

E do profundo abismo
Chamando à superficie infindas vagas,
Que avaro encerras no teu seio undoso;
Ao insano rugir dos ventos bravos
Sobressai teu rugido.
Em vão troveja horríssona tormenta;
Essa voz do trovão, que os céus abala,
Não cobre a tua voz. — Ah! donde a houveste,
Majestoso oceano?

Ó mar, o teu rugido é um eco incerto
Da criadora voz, de que surgiste:
Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas
As vagas compeliste.
E à noite, quando o céu é puro e limpo,
Teu chão tinges de azul, — tuas ondas correm
Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos
Entre dois céus brilhantes.

Da voz de Jeová um eco incerto
Julgo ser teu rugir; mas só, perene,
Imagem do infinito, retratando
As feituras de Deus.
Por isto, a sós contigo, a mente livre
Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,
E deste lodo terreal se apura,
Bem como o bronze ao fogo.
Férvida a Musa, co'os teus sons casada,
Glorifica o Senhor de sobre os astros
Co'a fronte além dos céus, além das nuvens,
E co'os pés sobre ti.

O que há mais forte do que tu? Se erriças
A coma perigosa, a nau possante,
Extremo de artificio, em breve tempo
Se afunda e se aniquila.
És poderoso sem rival na terra;
Mas lá te vás quebrar num grão d'areia,
Tão forte contra os homens, tão sem força
Contra coisa tão fraca!

Mas nesse instante que me está marcado,
Em que hei de esta prisão fugir p'ra sempre,
Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue
Teu sonoro rugido.
Então mais forte do que tu, minha alma,
Desconhecendo o temor, o espaço, o tempo,
Quebrará num relance o círc'lo estreito
Do finito e dos céus!

Então, entre miríadas de estrelas,
Cantando hinos d'amor nas harpas d'anjos,
Mais forte soará que as tuas vagas,
Mordendo a fulva areia;
Inda mais doce que o singelo canto
De merencória virgem, quando a noite
Ocupa a terra, — e do que a mansa brisa,
Que entre flores suspira.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 18 de agosto de 2019

SONETO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SONETO

Gonçalves Dias

 

Baixel veloz, que ao  túmido elemento
a voz do nauta experto afoito entrega,
demora o corso teu, perto navega
da terra de onde me fica o pensamento!

Enquanto vais cortando o vasto argento,
desta praia feliz não se desprega
(meus olhos, não, que amrgo pranto os rega)
minha alma, sim, e o amor que é meu tormento.

Baixel, qua vais fugindo despiedado
sem temor dos contrastes da procela,
volta ao menos, qual vais tão apressado.

Encontre-a eu aqui, mimosa e bela!
E o pranto que ora verto amargurado
possa eu verter então nos lábios dela!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 11 de agosto de 2019

CANÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

CANÇÃO

Gonçalves Dias

 


Tenho uma harpa religiosa,
Toda inteira fabricada
De madeira preciosa
Sobre o Líbano cortada.
Foi o Senhor quem me deu,
De santas palmas coberta,
Que as notas suas concerta
Aos sons do saltério hebreu!

Tenho alaúde polido
Em que antigos Trovadores,
Em tom de guerra atrevido,
Cantavam trovas de amores.
Mas chegando a Santa Cruz,
De volta do meu desterro,
Cortei-lhe as cordas de ferro,
Cordas de prata lhe pus.

Tenho também uma lira
De festões engrinaldada,
Onde minha alma afinada
Melindres d'amor suspira.
Nas grinaldas, nos festões,
Nas rosas com que s'enflora,
Goteja o orvalho da aurora
Dictamo dos corações.

Eis o que tenho, ó Donzela,
Só harpa, alaúde e lira;
Nem vejo sorte mais bela,
Nem coisa que lhe eu prefira.
Votei assim ao meu Deus
A minha harpa religiosa,
A ti a lira mimosa,
O grave alaúde aos meus!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 04 de agosto de 2019

SE SE MORRE DE AMOR (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SE SE MORRE DE AMOR

Gonçalves Dias

 


Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!

Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebentar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro

Clarão, que as luzes ao morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo, é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!

Compreender o infinito, a imensidade
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores,murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar é não saber, não ter coragem
Pra dizer que o amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis d’lusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora,
Compreender, sem lhe ouvir, seus pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 28 de julho de 2019

SE EU FOSSE QUERIDO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SE EU FOSSE QUERIDO

Gonçalves Dias

 

Se eu fosse querido dum rosto formoso,
Se um peito extremoso - pudesse encontrar,
E uns lábios macios, que expiram amores
E abrandam as dores - pudesse beijar;
 
A tantos encantos minh'alma rendida,
Votara-lhe a vida - que Deus me quis dar;
Constante a seu lado, seus sonhos divinos
Aos sons dos meus hinos - quisera embalar.
 
Depois, quando a morte viesse impiedosa
Da amante extremosa - meus dias privar,
De funda saudade minha alma rendida
Votara-lhe a vida - que Deus me quis dar.

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 21 de julho de 2019

O SONO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS

O SONO

Gonçalves Dias

 

.
Nas horas da noite, se junto a meu leito
Houvesse acaso, meu bem, de chegar, 
Verás de repente que aspecto risonho
Que toma o meu sonho, 
Se o vens bafejar! 
.
O anjo, que ao sono preside tranquilo, 
Ao anjo da terra não ceda o lugar; 
Mas deixe-o amoroso chegar-se ao meu leito, 
Unir-me a seu peito, 
D'amor ofegar. 
.
As notas que exaltam as harpas celestes, 
Os gozos, que os anjos só podem gozar, 
Talvez também frua, se ao meu peito unida
T'encontro, ó querida, 
No meu acordar! 

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 14 de julho de 2019

AINDA UMA VEZ, ADEUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

 

AINDA UMA VEZ, ADEUS

Gonçalves Dias

                      I 
Enfim te vejo! - enfim posso, 
Curvado a teus pés, dizer-te, 
Que não cessei de querer-te, 
Pesar de quanto sofri. 
Muito penei! Cruas ânsias, 
Dos teus olhos afastado, 
Houveram-me acabrunhado 
A não lembrar-me de ti! 
                      II 
Dum mundo a outro impelido, 
Derramei os meus lamentos 
Nas surdas asas dos ventos, 
Do mar na crespa cerviz! 
Baldão, ludíbrio da sorte 
Em terra estranha, entre gente, 
Que alheios males não sente, 
Nem se condói do infeliz! 
                      III 
Louco, aflito, a saciar-me 
D'agravar minha ferida, 
Tomou-me tédio da vida, 
Passos da morte senti; 
Mas quase no passo extremo, 
No último arcar da esperança, 
Tu me vieste à lembrança: 
Quis viver mais e vivi! 
                      IV 
Vivi; pois Deus me guardava 
Para este lugar e hora! 
Depois de tanto, senhora, 
Ver-te e falar-te outra vez; 
Rever-me em teu rosto amigo, 
Pensar em quanto hei perdido, 
E este pranto dolorido 
Deixar correr a teus pés. 
                      V 
Mas que tens? Não me conheces? 
De mim afastas teu rosto? 
Pois tanto pôde o desgosto 
Transformar o rosto meu? 
Sei a aflição quanto pode, 
Sei quanto ela desfigura, 
E eu não vivi na ventura... 
Olha-me bem, que sou eu! 
                      VI 
Nenhuma voz me diriges!... 
Julgas-te acaso ofendida? 
Deste-me amor, e a vida 
Que me darias - bem sei; 
Mas lembrem-te aqueles feros 
Corações, que se meteram 
Entre nós; e se venceram, 
Mal sabes quanto lutei! 
                      VII 
Oh! se lutei!... mas devera 
Expor-te em pública praça, 
Como um alvo à populaça, 
Um alvo aos dictérios seus! 
Devera, podia acaso 
Tal sacrifício aceitar-te 
Para no cabo pagar-te, 
Meus dias unindo aos teus? 
                      VIII 
Devera, sim; mas pensava, 
Que de mim t'esquecerias, 
Que, sem mim, alegres dias 
T'esperavam; e em favor 
De minhas preces, contava 
Que o bom Deus me aceitaria 
O meu quinhão de alegria 
Pelo teu, quinhão de dor! 
                      IX 
Que me enganei, ora o vejo; 
Nadam-te os olhos em pranto, 
Arfa-te o peito, e no entanto 
Nem me podes encarar; 
Erro foi, mas não foi crime, 
Não te esqueci, eu to juro: 
Sacrifiquei meu futuro, 
Vida e glória por te amar! 
                      X 
Tudo, tudo; e na miséria 
Dum martírio prolongado, 
Lento, cruel, disfarçado, 
Que eu nem a ti confiei; 
"Ela é feliz (me dizia) 
"Seu descanso é obra minha." 
Negou-me a sorte mesquinha... 
Perdoa, que me enganei! 
                      XI 
Tantos encantos me tinham, 
Tanta ilusão me afagava 
De noite, quando acordava, 
De dia em sonhos talvez! 
Tudo isso agora onde pára? 
Onde a ilusão dos meus sonhos? 
Tantos projetos risonhos, 
Tudo esse engano desfez! 
                      XII 
Enganei-me!... - Horrendo caos 
Nessas palavras se encerra, 
Quando do engano, quem erra. 
Não pode voltar atrás! 
Amarga irrisão! reflete: 
Quando eu gozar-te pudera, 
Mártir quis ser, cuidei qu'era... 
E um louco fui, nada mais! 
                      XIII 
Louco, julguei adornar-me 
Com palmas d'alta virtude! 
Que tinha eu bronco e rude 
C'o que se chama ideal? 
O meu eras tu, não outro; 
Stava em deixar minha vida 
Correr por ti conduzida, 
Pura, na ausência do mal. 
                      XIV 
Pensar eu que o teu destino 
Ligado ao meu, outro fora, 
Pensar que te vejo agora, 
Por culpa minha, infeliz; 
Pensar que a tua ventura 
Deus ab eterno a fizera, 
No meu caminho a pusera... 
E eu! eu fui que a não quis! 
                      XV 
És doutro agora, e pr'a sempre! 
Eu a mísero desterro 
Volto, chorando o meu erro, 
Quase descrendo dos céus! 
Dói-te de mim, pois me encontras 
Em tanta miséria posto, 
Que a expressão deste desgosto 
Será um crime ante Deus! 
                      XVI 
Dói-te de mim, que t'imploro 
Perdão, a teus pés curvado; 
Perdão!... de não ter ousado 
Viver contente e feliz! 
Perdão da minha miséria, 
Da dor que me rala o peito, 
E se do mal que te hei feito, 
Também do mal que me fiz! 
                      XVII 
Adeus qu'eu parto, senhora; 
Negou-me o fado inimigo 
Passar a vida contigo, 
Ter sepultura entre os meus; 
Negou-me nesta hora extrema, 
Por extrema despedida, 
Ouvir-te a voz comovida 
Soluçar um breve Adeus! 
                      XVIII 
Lerás porém algum dia 
Meus versos d'alma arrancados, 
D'amargo pranto banhados, 
Com sangue escritos; - e então 
Confio que te comovas, 
Que a minha dor te apiade 
Que chores, não de saudade, 
Nem de amor, - de compaixão. 

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 07 de julho de 2019

ROLA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

ROLA

Gonçales Dias

 

 

Dês que amor me deu que eu lesse
Nos teus olhos minha sina,
Ando, como a peregrina
Rola, que o esposo perdeu!
Seja noite ou seja dia,
Eu te procuro constante:
Vem, oh! vem, ó meu amante,
Tua sou e tu és meu!

Vem, oh! vem, que por ti clamo;
Vem contentar meus desejos,
Vem fartar-me com teus beijos,
Vem saciar-me de amor!
Amo-te, quero-te, adoro-te,
Abraso-me quando em ti penso,
E em fogo voraz, intenso,
Anseio louca de amor!

Vem, que te chamo e te aguardo,
Vem apertar-me em teus braços,
Estreitar-me em doces laços,
Vem pousar no peito meu!
Que, se amor me deu que eu lesse
Nos teus olhos minha sina,
Ando, como a peregrina
Rola, que o esposo perdeu.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 30 de junho de 2019

ZULMIRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

ZULMIRA

Gonçalves Dias

 

Sonhara-te eu na veiga de Granada,
Tapetada de flores e verdura,
Onde o Darro e Xenil no lento giro
Volvem a linfa pura.

Ali te vejo em leda comitiva
Dos gentis cavaleiros do oriente,
Quando, deposta a malha do combate,
Vestem da paz a seda reluzente.

Ali te vejo num balcão sentada,
Grande preço da maura arquitetura,
Pejando as asas das noturnas brisas
Dum canto de ternura.

Ali te vejo, sim; mas mais me agrada
O que se m'afigura noutro instante,
Ver-te em vistosa tenda d'ouro e sedas,
Levantada no dorso do elefante.

E em roda, ao largo, o séquito pomposo
D'eunucos a teu gesto vacilantes
Em cestas frontes negras se destacam
Alvíssimos turbantes.

E pergunto quem és? — Então me dizem
Ciosos de guardar o seu tesouro,
Nome tão doce aos lábios, que parece
Escrever-se em cetim com letras d'ouro.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 23 de junho de 2019

NÃO ME DEIXES (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

NÃO ME DEIXES

Gonçalves Dias

 

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!

"Comigo fica ou leva-me contigo
"Dos mares à amplidão;
"Límpido ou turvo, te amarei constante;
"Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!"


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 16 de junho de 2019

A SAUDADE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A SAUDADE

Gonçalves Dias

 

Saudade, ó bela flor, quando te faltem
Coração ou jardim, onde tu cresças;
Vem, vem ter comigo;
         Deixa os que te não seguem,
         Terás em peito amigo
         Lágrimas, que te reguem,
         Espaços, em que floresças.
 
Das pegadas da ausência tu despontas,
Entre as memórias cresces do passado,
         Quando um objeto amado,
         Quando um lugar distante,
         Noite e dia,
Nos enluta e apouquenta a fantasia.
         Vem, ó Saudade, vem
         A mim também
Consolar de gemidos suspirosos
         E de partidos ais!
Oh! seja a punição dos insensíveis
         Não te sentir jamais!
 
Propícia Deusa, e se não fosse a esperança,
Deusa melhor da vida; qu’insensato,
A quem mitigas túrbidos pesares
         Haverá tão ingrato
Que te não queime incenso em teus altares?
O presente o que é? – Breve momento
         D’incômodo ou desgraça
         Ou de prazer, que passa
Mais veloz que o ligeiro pensamento.
 
         Véu escuro,
Que nem sempre a ilusão nos adelgaça,
Nos encobre os caminhos do futuro.
O que nos resta pois? – Resta a saudade,
         Que dos passados dias
         De mágoas e alegrias
Bálsamo santo extrai consolador!
Resta a saudade, que alimenta a vida
À luz do facho qu adormenta a dor!
 
Hera do coração, memória dele,
Ò Saudade, ó rainha do passado,
Simelhas a romântica donzela
         De roupas alvejantes
Nas ruínas de castelo levantado:
         Grinaldas flutuantes,
         Que das fendas brotaram,
         Movem-se do nordeste
         Ao sopro agudo e frio;
Em quanto vendo-o ao longe o senhorio,
         De posses decaído,
         D’invernos alquebrado,
Recorda triste os anos que passaram!
 
Em que plagas inóspitas e duras
Não me tens sido companheira e amiga?
         Em que hora, em que instante
         De folga ou de fadiga
Já deixei de sentir o penetrante
Espinho teu, a repassar-me todo
Dum prazer melancólico e suave?
 
Pois nasces nos desertos da tristeza,
Ó Saudade, ó rainha do passado!
Quando te falte gleba, onde tu cresças,
         Vem, vem ter comigo;
         Deixa os que te não seguem,
         Terás em peito amigo
         Lágrimas, que te reguem,
         Espaço, em que floresças!
 
Entra em meu coração, ocupa-o todo,
Fibra por fibra enlaça-te com ele,
Desce com ele à sepultura; e quando
         Jazer eu na eternidade,
         Minha flor, minha saudade,
         Tu procura a aura celeste,
Rompe a terra, transforma-te em cipreste.
         Qu’enlute o meu jazigo;
E ao meneio das ramas funerárias,
         Meu derradeiro amigo,
Descanse morto quem viveu contigo.

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 09 de junho de 2019

ESPERA! (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

ESPERA!

Gonçalves Dias

Quem há no mundo que aflições não passe,
Que dores não suporte?
Mais ou menos d’angústias cabe a todos,
A todos cabe a morte.

A vida é um longo fio negro d’amarguras
E de longo sofrer;
Semelha a noite; mas fagueiros sonhos
Podem de noite haver.

Por que então maldiremos este mundo
E a vida que vivemos,
Se nos tornarmos do Senhor mais dignos,
Quanto mais dor sofremos?

Quantos cabelos temos, ele o sabe;
Ele pode contar
As folhas que há no bosque, os grãos d’areia
Que sustentam o mar.

Como pois não será ele conosco
No dia da aflição?
Como não há de computar
As dores do nosso coração?

Como há de ver-nos, sem piedade, o rosto
Coberto d’amargura;
Ele, senhor e pai, conforto e guia
Da humana criatura?

Se o vento sopra, se se move a terra
Se iroso o mar flutua;
Se o sol rutila, se as estrelas brilham,
Se gira a branca lua;

Deus o quis, Deus que mede a intensidade
Da dor e da alegria,
Que cada ser comporta – num momento
D’arroubo ou d’agonia!

Embora pois a nossa vida corra
Alheia da ventura,
Além da terra há os céus,e Deus protege
Toda criatura!

Viajor perdido na floresta à noite,
Assim vago na vida;
Mas sinto a voz que me dirige os passos
E a luz que me convida.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 02 de junho de 2019

MISERRIMUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

MISERRIMUS

Gonçalves Dias

 

Quando o inverno chegou, - por sobre a terra
O robe secular espalha a coma,
Que o rábido tufão cortou de morte.
Despida e nua jaz a flor mimosa,
Agora hástea somente; e o sol brilhante
Despede a custo a luz que mal penetra
As nuvens trovejadas que o circundam.

Mas o inverno passou! - De novo assume
Virente rama o robe gigantesco,
A flor formosa e bela vem brotando,
E o sol, rei do horizonte, já rutila
Em céu de puro azul-brilhante.

Mas quando o desengano, qual tormenta
Que por desertos só valente reina,
Do quente coração arranca, esmaga
Esp'ranças, que o amor enfeitiçava,
Em vão a natureza ufana brilha,
Em vão de puro orvalho a flor se arreia,
Em vão dardeja o sol seus quentes raios,
Em vão!... que o coração jaz frio e murcho.
E não mais viverá! - que a alma sentida
Conhece que o amor é só mentira,
Que é mentira o prazer, mentira tudo!

Um dia apareceu um recém-nado,
Como a concha que o mar à praia arroja,
Cresceu; - qual cresce a planta em terra inculta
Que ninguém educou; - a chuva apenas.
Infante - viu de roda sepulturas,
Em que não atentou; - sonhos mimosos,
Acordado ou dormindo, lhe doiravam
A infância leve, d'inocência rica.
Viu belo o ar, e terra, e céus, e mares,
Viu bela a natureza, como a noiva
Sorrindo em breve dia de noivado!
Então sentiu brotarem na sua alma
Sonhos de puro amor, sonhos de glória;
Sentiu no peito um mundo de esperanças,
Sentiu a força em si - patente o mundo.

Forte se levantou! correu fogoso,
E qual águia que nas asas se equilibra,
Começou a trilhar da vida a senda.
Um monte além topou; mais vagaroso
Subiu, - vingou mais lento! - Inda mais outro
Colossal - descalvado - íngreme e liso,
Costeou, mas cansou, que era sozinho!
Sentou-se, e mudo, e fraco, é pensativo,
À borda do caminho; e sobre o peito
A cabeça inclinou, cruzando os braços.
Minha mãe! - soluçou; e um eco ao longe
Minha mãe! - respondeu. - Sentiu que a fome
Dolorosa as entranhas lhe apertava,
E sede intensa a ressequir-lhe as fauces;
Fome e sede curtiu como num sonho.
Do rosto nas maçãs descoloridas
- Filtro do coração - sentiu que o pranto
Ardente escorregava a tez queimando.
Muda era a sua dor, - d'homem que sofre,
Que chora isento de vergonha ou crime.

Encontrou mais além no seu caminho,
Bela na sua dor, sozinha e fraca,
Figura virginal que ali jazia.
Esqueceu-se de si pensando nela;
Nova força criou, - novo incentivo,
Coragem nova o seu amor criou-lhe.
Lavou-lhe os curtos pés, contra o seu peito
Do frio a protegeu, - tomou nos braços
A carga tão mimosa! - E ela co'os olhos,
Que o amor vendava um pouco, agradecia.
E ela pôde viver; - disse que o amava,
Que era o seu coração dele - e só dele: -
Disse, e mais que uma vez, com peito e lábios
No peito e lábios dele; - era mentira!

E ele o conheceu! por precipícios
Descrido se arrojou, sentindo a morte,
Seu berço entre sepulcros procurando.

Aqui - ali - além - eram sepulcros;
E o nome de sua mãe, sequer não pode
Dos nomes conhecer de tantos mortos.
E só no seu morrer, qual só na vida,
Na terra se estendeu; nem dor, nem pranto
Tinha no coração que era já morto!

E alguém, que ali passou, vendo um cadáver
De sânie e podridão comido e sujo,
Co'o pé num fosso o revolveu; - e terra
Caída acaso o sepultou p'ra sempre.

Amizade! - ilusão que os anos somem;
Amor! - um nome só, bem como o nada,
A dor no coração, delícias n'alma,
Nos lábios o prazer, nos olhos pranto
- Tudo é vão, tudo é vão, exceto a morte.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 26 de maio de 2019

SE QUERES QUE EU SONHE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

 

SE QUERES QUE  EU SONHE

Gonçalves Dias

 

Tu queres que eu sonhe ! – que ao menos dormido

Conheça alegrias, desfrute prazeres,

     Que nunca provei.

Que ao menos nas asas de um sonho mentido

Perdido – arroubado, também diga: amei !

 

Tu queres que eu sonhe ! – não sabes que a vida

Me corre penosa, – que amarga por vezes

     A própria ilusão !

No pálido riso duma alma afligida,

Qu’ invida –  ser leda, que dores não vão !

 

Se o pranto, que os olhos cansados inflama,

Nos olhos de estranhos simpático brilha,

     Mais agro penar

Do triste o sorriso nos peitos derrama,

Se a chama – revela, que almeja ocultar.

 

Sonhando, percebo na mente agitada

Um mar sem limites, areias fundidas

     Aos raios do sol;

E um marco não vejo perdido na estrada

Cansada, – não vejo longínquo farol !

 

E queres qu’ eu sonhe ! – Nas águas revoltas

O nauta, ludíbrio d’ horrenda procela,

     Se pode dormir,

As vagas cruzadas, em sustos envoltas,

Às soltas – escuta raivosas bramir.

 

Talvez porém sonha que as ondas mendaces

O levam domadas à terra querida,

     Qu’ entrou em seus lares ! ...

E triste desperta, que os ventos fugaces

Nas faces –  a espuma lhe atiram dos mares.

 

Se queres que eu sonhe, – que alguma alegria

Dormindo conheça, – que frua prazeres

     Dum plácido amor;

Vem tu como estrela da noite sombria,

Que enfia – seus raios das selvas no horror,

 

Brilhar nos meus sonhos.— Então, sossegado,

Cismando prazeres, que n’ alma s’ entranham,

    Dum riso dos teus

Coberto o meu rosto, — fugira o meu fado

Quebrado — aos encantos de um anjo dos céus.

 

Vem junto ao meu leito, quando eu for dormido,

Que eu sinta os perfumes que exalas passando;

    Não sofro — direi:

E ao menos nas asas de um sonho mentido,

Perdido — arroubado, talvez diga— amei 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 19 de maio de 2019

MEU ANJO, ESCUTA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

MEU ANJO, ESCUTA

Gonçaoves Dias

Meu anjo, escuta: quando junto à noite
Perpassa a brisa pelo rosto teu,
Como suspiro que um menino exala;
Na voz da brisa quem murmura e fala
Brando queixume, que tão triste cala
No peito teu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Quando tu sentes lutuosa imagem
D’aflito pranto com sombrio véu,
Rasgado o peito por acerbas dores;
Quem murcha as flores
Do brando sonho? — Quem te pinta amores
Dum puro céu?
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se alguém te acorda do celeste arroubo,
Na amenidade do silêncio teu,
Quando tua alma noutros mundos erra,
Se alguém descerra
Ao lado teu
Fraco suspiro que no peito encerra;
Sou eu, sou eu, sou eu!

Se alguém se aflige de te ver chorosa,
Se alguém se alegra co’um sorriso teu,
Se alguém suspira de te ver formosa
O mar e a terra a enamorar e o céu;
Se alguém definha
Por amor teu,
Sou eu, sou eu, sou eu!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 12 de maio de 2019

QUE ME PEDES? (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

QUE ME PEDES?

Gonçalves Dias

 

Tu pedes-me um canto na lira de amores,
Um canto singelo de meigo trovar?!
Um canto fagueiro já — triste — não pode
Na lira do triste fazer-se escutar.

Outrora, coberto meu leito de flores,
Um canto singelo já soube trovar;
Mas hoje na lira, que o pranto umedece,
As notas d'outrora não posso encontrar!

Outrora os ardores que eu tinha no peito
Em cantos singelos podia trovar;
Mas hoje, sofrendo, como hei de sorrir-me,
Mas hoje, traído, como hei de cantar?

Não peças ao bardo, que aflito suspira,
Uns cantos alegres de meigo trovar;
À lira quebrada só restam gemidos,
Ao bardo traído só resta chorar.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 05 de maio de 2019

RETRATAÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

RETRATAÇÃO

Gonçalves Dias


Perdoa as duras frases que me ouviste:
Vê que inda sangra o coração ferido,
Vê que inda luta moribundo em ánsias
Entre as garras da morte.

Sim, eu devera moderar meu pranto,
Sofrear minhas iras vingativas,
Deixar que as minhas lágrimas corressem
Dentro do peito em chaga.

Sim, eu devera confranger meus lábios,
Mordê-los té que o sangue espadanasse,
Afogar na garganta a ultriz sentença,
Apagá-la em meu sangue.

Sim, eu devera comprimir meu peito,
Conter meu coração, que não pulsasse,
Apagado vulcão, que inda fumega,
Que faz, que jorra cinzas?

Que m'importava a mim teu fingimento,
Se uma hora fui feliz quando te amava,
Se ideei breve sonho de venturas,
Dormindo em teu regaço;

Luz mimosa de amor, que te apagaste,
Ou gota pura de cristal luzente
Filtrando os poros de uma rocha a custo,
Caída em negro abismo!

Devera pois meu pranto borrifar-te
Amigo e benfazejo, como aljôfar
De branco orvalho em pérolas tornado
Num cálice de flor;

Não converter-se em pedras de saraiva,
Em chuva de granizo fulminante,
Que em chão de morte as pétalas viçosas
Desfolhasse entreabertas.

—————

Feliz o doce poeta,
Cuja lira sonora
Ressoa como a queixosa,
Trépida fonte a correr;
Que só tem palavras meigas,
Brandos ais, brandos acentos,
Cuja dor, cestos tormentos
Sabe-os no peito esconder!

Feliz o doce poeta,
Que não andou em procura
De terrena formosura,
Nem as graças lhe notou!
Que lhe não deu sua lira,
Que lhe não deu seus cantares,
Que lhe não deu seus pesares,
Nem junto dela quedou!

Antes na mente escaldada
Forma um composto divino
De algum ente peregrino,
De algum dos filhos dos céus;
E ante essa imagem criada,
Que vê sempre noite e dia,
Dobra as leis da fantasia,
Acurva os desejos seus.

É dela quando se carpe,
É dela quando suspira,
É dela quando na lira
Entoa um canto feliz:
Dela acordado ou dormindo,
Dela na vida ou na morte,
Tenha alegre ou triste sorte,
Seja Laura ou Beatriz!

Que talvez a doce imagem,
A cismada fantasia
Há de o poeta algum dia
Junto de Deus encontrar;
E que havendo-a produzido
Antes do mundo formado,
Dê-lhe um sonhar acordado
Por um viver a sonhar!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 28 de abril de 2019

AMANHÃ (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

AMANHÃ

Gonçalves Dias

Amanhã! — é o sol que desponta,
É a aurora de róseo fulgor,
É a pomba que passa e que estampa
Leve sombra de um lago na flor.


Amanhã! — é a folha orvalhada,
É a rola a carpir-se de dor,
É da brisa o suspiro, — é das aves
Ledo canto, — é da fonte — o frescor.


Amanhã! — são acasos da sorte;
O queixume, o prazer, o amor,
O triunfo que a vida nos doura,
Ou a morte de baço palor.


Amanhã! — é o vento que ruge,
A procela d'horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dor.


Amanhã! — é a folha pendida.
É a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.


Amanhã! — são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã! — o triunfo, ou a morte;
Amanhã! — o prazer, ou a dor!


Amanhã! — o que val', se hoje existes!
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é Senhor!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 21 de abril de 2019

O QUE MAIS DÓI NA VIDA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O QUE MAIS DÓI NA VIDA

Gonçalves Dias

 

I cannot but remember such things were,

And were most dear to me.

William Shakespeare

 

O que mais dói na vida não é ver-se

Mal pago um benefício,

Nem ouvir dura voz dos que nos devem

Agradecidos votos,

Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,

Que as devera beijar!

 

Não! o que mais dói não é do mundo

A sangrenta calúnia,

Nem ver como s'infama a ação mais nobre,

Os motivos mais justos,

Nem como se deslustra o melhor feito,

A mais alta façanha!

 

Não! o que mais dói não é sentir-se

As mãos dum ente amado

Nos espasmos da morte resfriadas,

E os olhos que se turvam,

E os membros que entorpecem pouco e pouco,

E o rosto que descora!

 

Não! não é ouvir daqueles lábios,

Doces, tristes, compassivas,

Sobre o funéreo leito soluçadas

As palavras amigas,

Que tanto custa ouvir, que lembram tanto,

Que não s'esquecem nunca!

 

Não! não são as queixas amargadas

No triunfar da morte;

Que, se se apaga a luz da vida escassa,

Mais viva a luz rutila;

Luz da fé que não morre, luz que espanca

As trevas do sepulcro.

 

O que dói, mas de dor que não tem cura,

O que aflige, o que mata,

Mas de aflição cruel, de morte amara,

É morrermos em vida

No peito da mulher que idolatramos,

No coração do amigo!

 

Amizade e amor! — laço de flores,

Que prende um breve instante

O ligeiro batel à curva margem

De terra hospitaleira;

Com tanto amor se enastra, e tão depressa,

E tão fácil se rompe!

 

À mais ligeira ondulação dos mares,

Ao mais ligeiro sopro

Da viração — destrançam-se as grinaldas;

O baixel se afasta,

Veleja, foge, até que em plaga estranha

Naufragado soçobre!

 

Talvez permite Deus que tão depressa

Estes laços se rompam,

Por que nos pese o mundo, e os seus enganos

Mais sem custo deixemos:

Sem custo assim a brisa arrasta a planta,

Que jaz solta na terra!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 14 de abril de 2019

HARPEJOS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

HARPEJOS (Grafia original)

Gonçalves Dias

 

            Sweetest Music!...

                                   Shakespeare

 

Da noite no remanso

Minha alma se extasia,

E praz-me a sós comigo

Pensar na solidão;

Deixar arrebatar-me

De vaga fantasia,

Deixar correr o pranto

Do fundo coração.

 

Tudo é silêncio harmônico

E doce amenidade,

E uma expansão suave

Do mais fino sentir;

Existo! E no passado

Só tenho uma saudade,

Desejos no presente,

Receios no porvir!

 

Como licor que mana

De cava, úmida rocha,

Que o sol nunca evapora,

Nem limpa amiga mão;

A dor que dentro sinto

Minha alma desabrocha;

Que livre o pranto corre

Da noite na solidão!

 

Atendo! ao longe escuto

Duma harpa os sons queixosos,

Atendo! e logo sinto

Minha alma se alegrar!

Atendo! são suspiros

De seres vaporosos,

Que mil imagens vagas

Me fazem recordar!

 

Tu que eras minha vida,

Que foste os meus amores,

Imagem grata e bela

Dum tempo mais feliz

Que tens, que assim chorosa

Suspiras entre as flores?

Teu sou – do juramento

Me lembro, que te fiz.

 

Te vejo, te procuro,

Teus mudos passos sigo,

Enquanto, leve sombra,

Fugindo vais de mi!

Unido às notas da harpa

Percebo um som amigo,

Que me recorda o timbre

Da voz que já te ouvi!

 

Na brisa que soluça,

Na fonte que murmura,

Nas folhas que se movem

Da noite à viração,

Ainda escuto os ecos

Duma fugaz ventura,

Que assim me deixou triste

Em mesta solidão.

 

Prossegue, harpa ditosa,

Nas doces harmonias,

Que da minha alma sabes

A mágoa adormecer;

Prossegue! e a doce imagem

Dos meus primeiros dias

Veja eu ante os meus olhos

De novo aparecer!

 

Ai, foram como a virgem

Que em sítio solitário

Acaso um dia vimos

Sozinha a divagar!

Memória, benfazeja,

Que o gélido sudário,

Que a morte em nós estende,

Só vale desbotar.

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 07 de abril de 2019

AS DUAS COROAS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

AS DUAS COROAS

Gonçalves Dias

 

 


Há duas c'roas na terra,
Uma d'ouro cintilante
Com esmalte de diamante,
Na fronte do que é senhor;
Outra modesta e singela,
C'roa de meiga poesia,
Que a fronte ao vate alumia
Com a luz dum resplendor.

Ante a primeira se curvam
Os potentados da terra:
No bojo, que a morte encerra,
Sobre a líquida extensão,
Levam naus os seus ditames
Da peleja entre os horrores;
Vis escravos, crus senhores,
Preito e menagem lhe dão.

E quando o vate suspira
Sobre esta terra maldita,
Ninguém a voz lhe acredita,
Mas riem dos cantos seus:
Os anjos, não; porque sabem
Que essa voz é verdadeira,
Que é dos homens a primeira,
Enquanto a outra é de Deus!

Se eu fora rei, não te dera
Quinhão na régia amargura;
Nem te qu'ria, virgem pura,
Sentada sob o dossel,
Onde a dor tão viva anseia,
Tão cruel, tão funda late,
Como no peito que bate
Sob as dobras do burel.

Não te quisera no trono,
Onde a máscara do rosto,
Cobrindo o interno desgosto,
Ser alegre tem por lei;
Manda Deus, sim, que o rei chore;
Mas que chore ocultamente,
Porque, se o soubera a gente,
Ninguém quisera ser rei!

Mas o vate, quando sofre,
Modula em meigos acentos,
Seus doridos pensamentos,
A sua interna aflição;
E das lágrimas choradas
Extrai um bálsamo santo,
Que vale estancar o pranto
Nos olhos do seu irmão.

Mas o vate, quando sofre,
Modula em meigos acentos,
Seus doridos pensamentos,
A sua interna aflição;
E das lágrimas choradas
Extrai um bálsamo santo,
Que vale estancar o pranto
Nos olhos do seu irmão.

(...)


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 31 de março de 2019

COMO EU TE AMO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

COMO EU TE AMO

Gonçalves Dias


Como se ama o silêncio, a luz, o aroma,
O orvalho numa flor, nos céus a estrela,
No largo mar a sombra de uma vela,
Que lá na extrema do horizonte assoma;

Como se ama o clarão da branca lua,
Da noite na mudez os sons da flauta,
As canções saudosíssimas do nauta,
Quando em mole vaivém a nau flutua,

Como se ama das aves o gemido,
Da noite as sombras e do dia as cores,
Um céu com luzes, um jardim com flores,
Um canto quase em lágrimas sumido;

Como se ama o crepúsculo da aurora,
A mansa viração que o bosque ondeia,
O sussurro da fonte que serpeia,
Uma imagem risonha e sedutora;

Como se ama o calor e a luz querida,
A harmonia, o frescor, os sons, os céus,
Silêncio, e cores, e perfume, e vida,
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus:

Assim eu te amo, assim; mais do que podem
Dizer-to os lábios meus, — mais do que vale
Cantar a voz do trovador cansada:
O que é belo, o que é justo, santo e grande
Amo em ti. — Por tudo quanto sofro,
Por quanto já sofri, por quanto ainda
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 24 de março de 2019

SOBRE O TÚMULO DE UM MENINO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SOBRE O TÚMULO DE UM MENINO

Gonçalve Dias

 

O invólucro de um anjo aqui descansa, 
Alma do céu nascida entre amargores, 
Como flor entre espinhos! — tu, que passas,
Não perguntes quem foi. — Nuvem risonha
Que um instante correu no mar da vida;
Romper da aurora que não teve ocaso, 
Realidade no céu, na terra um sonho!
Fresca rosa nas ondas da existência, 
Levada à plaga eterna do infinito, 
Como of’renda de amor ao Deus que o rege;
Não perguntes quem foi, não chores: passa.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 17 de março de 2019

URGE O TEMPO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

URGE O TEMPO

Gnonçalves Dias

 

URGE O TEMPO, E OS ANOS VÃO CORRENDO,

MUDANÇA ETERNA OS SERES AFADIGA!

O TRONO, O ARBUSTO, A FOLHA, A FLOR, O ESPINHO,

QUEM VIVE, O QUE VEGETA, VAI TOMANDO

ASPECTOS NOVOS, NOVA FORMA, ENQUANTO

 GIRA NO ESPAÇO E SE EQUILIBRA A TERRA.

 

TUDO SE MUDA, TUDO SE TRANSFORMA;

O ESPÍRITO, PORÉM, COMO CENTELHA,

QUE VAI LAVRANDO SOLAPADA E OCULTA,

 ATÉ QUE ENFIM SE TORNA INCÊNDIO E CHAMAS,

QUANDO ROMPE OS ANDRAJOS MORREDOUROS,

MAIS CLARO BRILHA, E AOS CÉUS CONSIGO ARRASTA

 QUANTO SENTIU, QUANTO SOFREU NA TERRA.

 

TUDO SE MUDA AQUI! SOMENTE O AFETO,

 QUE SE GERA E SE NUTRE EM ALMAS GRANDES,

NÃO ACABA, NEM MUDA; VAI CRESCENDO,

CO’O TEMPO AVULTA, MAIS AUMENTA EM FORÇAS,

E A PRÓPRIA MORTE O PURIFICA E ALINDA.

SEMELHA ESTÁTUA ERGUIDA ENTRE RUÍNAS,

FIRME NA BASE, INTACTA, INDA MAIS BELA

DEPOIS QUE O TEMPO A RODEOU DE ESTRAGOS.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 10 de março de 2019

LIRA QUEBRADA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS) DECLAMAÇÃO


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 03 de março de 2019

OLHOS VERDES (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS )

OLHOS VERDES

Gonçalves Dias

 

Eles verdes são
E têm por usança
Na cor esperança,
E nas obras não.
CAMÕES, Rimas

 

São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
 Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
 Depois que os vi!

 

Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte,
Diz uma – vida, outra – morte;
Uma – loucura, outra – amor.
 Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
 Depois que os vi!

 

São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz no coração;
 Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
 Depois que os vi!

 

São uns olhos verdes, verdes,
Que podem também brilhar;
Não são de um verde embaçado,
Mas verdes da cor do prado,
Mas verdes da cor do mar.
 Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!

 

Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
 Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
 Depois que os vi!

 

Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos cor de esperança,
De uns olhos verdes que vi!
 Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
 Depois que os vi!

 

Dizei vós: “Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar:
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!”
Dizei-o vós, meus amigos,
 Que ai de mi!
Não pertenço mais à vida
 Depois que os vi!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 24 de fevereiro de 2019

OS SUSPIROS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

OS SUSPIROS

Gonçalves Dias

 

Muitas vezes tenho ouvido,
Como lânguidos gemidos,
Frouxos suspiros partidos
Dentre uns lábios de coral:
A fina tez lhes deslustram,
Bem como o alento que passa
Sobre o candor duma taça
De transparente cristal.

Ouvido os tenho mil vezes
Do coração arrancados,
Sobre lábios desmaiados
Sussurrando esvoaçar!
Como flor submarinha
Da funda gleba arrancada,
De vaga em vaga arrastada, 
Correndo de mar em mar!

Ouvido os tenho mil vezes, 
Em quanto a lua fulgura, 
Quando a virgem d’alma pura
Feita seus olhos no céu:
Notas de mundo longínquo
Repassadas de harmonia, 
Diamante que alumia 
A tela de um fino véu!

Tu, virgem, por que suspiras?
Quando suspiras que cismas?
Em que reflexões te abismas, 
– Do passado ou do porvir;
Mas não tens passado ainda,
Tudo é flores no presente, 
Brilha o porvir docemente,
Como do infante o sorrir.

Tu, virgem, por que suspiras?
– Murmura trepida a fronte,
De relva se cobre o monte,
As aves sabem cantar;
O ditoso tem sorrisos, 
O desgraçado tem pranto, 
A virgem tem mais encanto
No seu vago suspirar!

Suspirar, ó doce virgem,
É da alma a voz primeira, 
A expressão mais verdadeira
Da sina e do fado teu!
Vago, incerto, indefinido,
Tem um quê de inexplicável,
Como um desejo insondável,
Como um reflexo do céu.

Eu amo ouvir teus suspiros, 
Ó doce virgem mimosa,
Como nota harmoniosa,
Como um cântico de amor;
Mais do que a flor entre as vagas
Sem destino flutuando,
Folgo de os ver expirando 
Em lábios de rubra cor.

Mais que a longínqua harmonia,
Que o alento fraco, incerto, 
Que o diamante coberto, 
Cintilando almo fulgor;
Folgo de ouvir teus suspiros,
Ó doce virgem mimosa,
Como nota harmoniosa,
Como um cântico de amor!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 17 de fevereiro de 2019

PALINÓDIA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

PALINÓDIA

Gonçalves Dias

 

Se só por vós, Senhora, corpo e alma,
Apesar da aversão que tenho ao crime,
Inteiro me embucei nos seus andrajos,
Em tremedal de vícios;

Se só por vós descri do que era nobre,
Porque envolto em torpeza imunda e feia,
As vestes da virtude imaculada
Rebolquei-as no lodo;

Se só por vós persegue-me o remorso,
Que os dias da existência me consome,
E entre angústias cruéis minha alma anseia,
— Ludíbrio dos meus erros:

Consenti que a moral os seus direitos
Reivindique uma vez, e que a minha alma
Das lições que bebeu na pura infância
Uma hora se recorde!

Agora, agro censor, hão de os meus lábios,
Duras verdades trovejando em verso,
Fazer de vós, o que a razão não pôde,
— Mulher ou estátua!

Mentistes quando amor tínheis nos lábios.
Mentistes a compor meigos sorrisos,
Mentistes no olhar, na voz, no gesto...
Fostes bem falsa!...

Falsa, como a mulher que em bruta orgia
Finge extremos de amor que ela não sente,
E o rosto of’rece a ósculos vendidos,
Ao sigilo de infâmia.

Quantas vezes, Senhora, não caístes
Humilhada, a meus pés, desfeita em pranto,
Chorando — e que choráveis? — a jurar-me...
— Que juráveis então?

Se pois sentisses compaixão amiga
A cair gota a gota dos meus lábios
No que eu supunha cicatriz recente,
e que era úlcera funda;

Se me vistes os olhos incendidos,
Sangrar-me o coração no peito aflito
Ao fel das vossas dores, que azedáveis
Co'o pranto refalsado:

Ouvi! — não éreis bela, — nem minha alma
Vos amou, que um modelo de virtudes,
— Um sublime ideal — amou somente;
Vós o não fostes nunca.

Que uma alma como a vossa, já manchada,
Aos negros vícios mais que muito afeita,
Já feia, já corrupta, já sem brilho...
Amá-la eu, Senhora!

Deitar-me sob a copa traiçoeira,
Que ao longe espalha a sombra, o engano, a morte;
Recostar-me no seio onde outros dormem,
Que por ninguém palpita!

Beijar faces sem vida, onde se enxerga
Visgo nojento d'ósculos comprados;
Crer no que dizem olhos mentirosos,
Em prantos de loureira!

Antes curvar o colo envilecido
Ao jugo vil da escravidão nefanda;
Beijar humilde a mão que nos ofende,
Que nos cobre de opróbio!

Antes, possesso d'imprudência estúpida,
Brincando remexer no açafate,
Onde por baixo de mimosas flores,
O áspide se esconde!

Mas eu, nos meus acessos de delírio,
Voz importuna de contínuo ouvia,
Cá dentro em mim, a repr'ender-me sempre
De vos amar... tão pouco!

Assim o cego idólatra se culpa,
Nos espasmos d'ascética virtude,
De não amar assaz o vão fantasma,
De suas mãos feitura.

Porém se luz melhor de cima o aclara,
Cospe afronte e desdém, e à chama entrega
O cepo vil, que não merece altares,
Nem d'ofrendas é digno!

Releva-se a imprudência feminina,
Inda um erro, uma culpa se perdoa,
Se a desvaira a paixão, se amor a cega
No mar de escolhos cheio.

O Deus, que mais perdoa a quem mais ama,
Talvez da vida a negra mancha apaga
A quem as asas de algum anjo orvalha
De lágrimas contritas.

Mas não àquela, em cesto peito mora
Torpeza só, — onde o amor se cobre
De vícios — a nutrir-se d'impurezas,
Como vermes de lodo.

Se porém te aproveita o meu conselho,
A quem, mais do que a mim, tens ofendido,
Que entre os risos do mundo, vê tua alma
E lê teus pensamentos;

Se não crês noutra vida além da morte,
Roga sequer a Deus, que te rompa
A luz do sol divino da Justiça
A máscara d'enganos!

Que a rainha da terra inamolgável,
— A dura opinião — te não entregue,
Sozinha, e nua, e d'irrisão coberta,
À popular vindita!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 10 de fevereiro de 2019

MIMOSA E BELA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

MIMOSA E BELA

Gonçalves Dias

 

   I

 

Tão bela és, tão mimosa,

 Qual viçosa

 Fresca rosa,

Que em serena madrugada

 Despontada,

 Rorejada

Foi pelo orvalho do céu;

E a aurora que tudo esmalta,

Brilha reflexos de prata

No orvalho que ali prendeu.

 

   II

 

Quando um penar aflitivo,

 Sem motivo,

 D’improviso

Tua alma ocupa e entristece,

 Que padece,

 Que esmorece

Com aquele imaginar;

Aumenta a tua beleza

Lânguido véu de tristeza,

Palor de quem sabe amar.

 

   III

 

Assim murcha a sensitiva,

 Sempre viva,

 Sempre esquiva;

Assim perde o colorido

Por um toque irrefletido

 Mal sentido:

Assim vai o nenúfar,

Como que sofre e tem mágoas,

Esconder-se em fundas águas,

Te que o sol torne a brilhar.

 

   IV

 

Mas também a flor brincada,

 Perfumada,

 Debruçada

Sobre a tranqüila corrente,

 Logo sente

 Vir a enchente

Longe, longe a rouquejar,

Que a pobrezinha desfolha,

Sem lhe deixar uma folha,

Sem deixa-la em seu lugar.

 

   V

 

Não consintas pois que as mágoas,

 Como as águas,

 Que das fragas

Furiosas vêm tombando,

 Vão tomando,

 Vão levando

A flor do teu coração!

Há na vida u’amor somente,

Um só amor inocente,

Uma só firme paixão.

 

   VI

 

Sê antes flor, bem-fadada,

 Suspirada,

 Bafejada

Pela brisa que a namora,

Pela frescura da aurora,

 Que a colora:

À luz do sol se recreia.

E de noite se retrata

Da fonte na lisa prata,

Quando o céu de luz se arreia.

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 03 de fevereiro de 2019

SEMPRE ELA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SEMPRE ELA

Gonçalves Dias


Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujo rosto a palidez se pinta,
Como nos céus a matutina estrela!
A dor lhe há desbotado a cor das faces,
E o sorriso que lhe roça os lábios
Murcha ledo sorrir nos lábios doutrem.

Tem um timbre de voz que n'alma ecoa,
Tem expressões d'angélica doçura,
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor profundo e de piedade santa,
E exala eflúvios dum odor suave
De aloés, de mirra ou de mais grato incenso.

E nessas horas, quando a mente aflita,
De dor oculta remordida, anseia
Desabrochar-se em confidência amiga,
"Neste mundo o que sou? — triste clamava;
"Pérsica envolta em pó, entre ruínas,
"Erma e sozinha a resolver-me em pranto!

"Flor desbotada em hástea já roída,
"De cujo tronco as outras amarelas
"Já rojam sobre o pó, já murchas pendem!
"É sentir e sofrer a minha vida!"
Merencória dizia, erguendo os olhos
Aos céus dum claro azul, que lhes sorriam.

Nada o mudo alcion por sobre os mares,
E próximo a seu fim desata o canto;
A rosa do Sarão lá se despenha
Nas águas do Jordão: e como a rosa,
Como o cisne, do mar entre os perfumes,
Aos sons duma Harpa interna ela morria!

E como o partor que avista a linda rosa
Nas águas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cisne ir-se embalado
Sobre as águas do mar, cantando a morte;
Eu também a segui — a rosa, o cisne,
Que lá se foi sumir por clima estranho.

E depois que os meus olhos a perderam,
Como se perde a estrela em céus infindos,
Errei por sobre as ondas do oceano,
Sentei-me à sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem dela,
Que tão inteira me ficara n'alma!

Embalde aos céus erguendo os olhos turvos
Meu astro procurei entre os mais astros,
Qu'outrora amiga sina me fadara!
Com brilho embaciado e lua incerta
Nos ares se perdeu antes do ocaso,
Deixando-me sem norte em mar d'angústias.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 27 de janeiro de 2019

O AMOR (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O AMOR

Gonçalves Dias

 

Amor! enlevo d'alma, arroubo, encanto
Desta existência mísera, onde existes?
Fino sentir ou mágico transporte,
(O quer que seja que nos leva a extremos,
Aos quais não basta a natureza humana;)
Simpática atração d'almas sinceras
Que unidas pelo amor, no amor se apuram,
Por quem suspiro, serás nome apenas?

A inútil chama ressecou meus lábios,
Mirrou-me o coração da vida em meio,
E à terra fez baixar a mente errada
Que entre nuvens, amor, por ti bradava!
Não te pude encontrar! — em vão meus anos
No louco intento esperdicei; gelados,
Uns após outros a cair precípites
Na urna do passado os vi; eu triste,
Amor, por ti clamava; — e o meu deserto
Aos meus acentos reboava embalde.

Em vão meu coração por ti se fina,
Em vão minha alma te compreende e busca,
Em vão meus lábios sôfregos cobiçam
Libar a taça que aos mortais of’reces!
Dizem-na funda, inesgotável, meiga;
Enquanto a vejo rasa, amarga e dura!
Dizem-na bálsamo, eu veneno a sorvo:
Prazer, doçura, — eu dor e fel encontro!

Dobrei-me às duras leis que me impuseste,
Curvei ao jugo teu meu colo humilde,
Feri-me aos teus ardentes passadores,
Prendi-me aos teus grilhões, rojei por terra...
E o lucro?... foram lágrimas perdidas,
Foi roxa cicatriz qu'inda conservo,
Desbotada a ilusão e a vida exausta!

Celeste emanação, gratos eflúvios
Das roseiras do céu; bater macio
Das asas auribrancas dalgum anjo,
Que roça em noite amiga a nossa esfera,
Centelha e luz do sol que nunca morre;
És tudo, e mais qu'isto: — és luz e vida,
Perfume, e vôo d'anjo mal sentido,
Peregrinas essências trescalando!...
Também passas veloz, — breve te apagas,
Como duma ave a sombra fugitiva,
Desgarrada voando à flor de um lago!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 20 de janeiro de 2019

ROSA DO MAR (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

ROSA DO MAR

Gonçalves Dias

 


Por uma praia arenosa,
Vagarosa
Divagava uma Donzela;
Dá largas ao pensamento.
Brinca o vento
Nos soltos cabelos dela.

Leve ruga no semblante 
Vem num instante,
Que noutro instante se alisa; 
Mais veloz que a sua idéia 
Não volteia,
Não gira, não foge a brisa.

No virginal devaneio
Arfa o seio,
Pranto ao riso se mistura; 
Doce rir dos céus encanto,
Leve pranto,
Que amargo não é, nem dura.

Nesse lugar solitário, 
— Seu fadário. —
De ver o mar se recreia;
De o ver, à tarde, dormente,
Docemente
Suspirar na branca areia.

Agora, qual sempre usava,
Divagava
Em seu pensar embebida;
Tinha no seio uma rosa
Melindrosa,
De verde musgo vestida.

Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cai: 
Vem um'onda bonançosa,
Qu’impiedosa
A flor consigo retrai.

A meiga flor sobrenada;
De agastada,
A virge' a não quer deixar! 
Bóia a flor; a virgem bela,
Vai trás ela,
Rente, rente — à beira-mar.

Vem a onda bonançosa,
Vem a rosa;
Foge a onda, a flor também. 
Se a onda foge, a donzela 
Vai sobre ela!
Mas foge, se a onda vem.

Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir.

Nisto o mar que se encapela
A virgem bela
Recolhe e leva consigo;
Tão falaz em calmaria,
Como a fria
Polidez de um falso amigo.

Nas águas alguns instantes,
Flutuantes
Nadaram brancos vestidos:
Logo o mar todo bonança,
A praia cansa
Com monótonos latidos.

Um doce nome querido
Foi ouvido,
Ia a noite em mais de meia:
Toda a praia perlustraram,
Nem acharam
Mais que a flor na branca areia.
 

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 13 de janeiro de 2019

A CONCHA E A VIRGEM (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A CONCHA E A VIRGEM

Gonçalves Dias

 

Linda concha que passava,
Boiando por sobre o mar,
Junto a uma rocha, onde estava
Triste donzela a pensar,

Perguntou-lhe: — "Virgem bela,
Que fazes no teu cismar?"
— "E tu", pergunta a donzela,
"Que fazes no teu vagar?"

Responde a concha: — "Formada
Por estas águas do mar,
Sou pelas águas levada,
Nem sei onde vou parar!"

Responde a virgem sentida,
Que estava triste a pensar:
— "Eu também vago na vida,
Como tu vagas no mar!

"Vais duma a outra das vagas,
Eu dum a outro cismar;
Tu indolente divagas,
Eu sofro triste a cantar.

"Vais aonde te leva a sorte,
Eu, aonde me leva Deus:
Buscas a vida, — eu a morte;
Buscas a terra, — eu os céus!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 06 de janeiro de 2019

AGORA E SEMPRE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS, EM VÍDEO)


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 30 de dezembro de 2018

LIRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

LIRA

Gonçalves Dias

Se me queres a teus pés ajoelhado,
Ufano de me ver por ti rendido,
Ou já em mudas lágrimas banhado;
Volve, impiedosa,
Volve-me os olhos;
Basta uma vez!

Se me queres de rojo sobre a terra,
Beijando a fímbria dos vestidos teus,
Calando as queixas que meu peito encerra,
Dize-me, ingrata,
Dize-me: eu quero!
Basta uma vez!

Mas se antes folgas de me ouvir na lira
Louvor singelo dos amores meus,
Por que minha alma há tanto em vão suspira;
Dize-me, ó bela
Dize-me: eu te amo!
Basta uma vez!


 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 23 de dezembro de 2018

CANÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS GONÇALVES DIAS)

CANÇÃO

Gonçalves Dias

 

Tenho uma harpa religiosa,
Toda inteira fabricada
De madeira preciosa
Sobre o Líbano cortada.
Foi o Senhor quem me deu,
De santas palmas coberta,
Que as notas suas concerta
Aos sons do saltério hebreu!

Tenho alaúde polido
Em que antigos Trovadores,
Em tom de guerra atrevido,
Cantavam trovas de amores.
Mas chegando a Santa Cruz,
De volta do meu desterro,
Cortei-lhe as cordas de ferro,
Cordas de prata lhe pus.

Tenho também uma lira
De festões engrinaldada,
Onde minha alma afinada
Melindres d'amor suspira.
Nas grinaldas, nos festões,
Nas rosas com que s'enflora,
Goteja o orvalho da aurora
Dictamo dos corações.

Eis o que tenho, ó Donzela,
Só harpa, alaúde e lira;
Nem vejo sorte mais bela,
Nem coisa que lhe eu prefira.
Votei assim ao meu Deus
A minha harpa religiosa,
A ti a lira mimosa,
O grave alaúde aos meus!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 16 de dezembro de 2018

CONSOLAÇÃO NAS LÁGRIMAS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

CONSOLAÇÃO NAS LÁGRIMAS

Gonçalves Dias

 

 

Como é belo à meia noite
O azul do céu transparente,
Quando a esfera d’alva lua
Vagueia mui docemente,
Quando a terra não ruidosa
Toda se cala dormente,
Quando o mar tranquilo e brando
Na areia chora fremente!

Como é belo este silêncio
Da terra todo harmonia,
Que aos céus a mente arrebata
Cheia de meiga poesia!
Como é bela a luz que brilha
Do mar na viva ardentia!
Este pranto como é doce,
Que entorna a melancolia!

Esta aragem como é branda
Que enruga a face do mar,
Que na terra passa e morre
Sem nas folhas sussurrar!
Os sons d’aéreo instrumento
Quisera agora escutar,
Quisera mágoas pungentes
Neste silêncio olvidar!

O azul do céu, nem da lua
A doce luz refletida,
Nem o mar beijando a praia,
Nem a terra adormecida,
Nem meigos sons, nem perfumes,
Nem a brisa mal sentida,
Nem quanto agrada e deleita,
Nem quanto embeleza a vida;

Nada é melhor que este pranto
Em silêncio gotejado,
Meigo e doce, e pouco e pouco
Do coração despegado;
Não soro de fel, mas santo
Frescor em peito chagado;
Não espremido entre dores,
Mas quase em prazer coado!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 09 de dezembro de 2018

SOFRIMENTO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SOFRIMENTO

Gonçalves Dias

Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!

A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.

É breve o romper d'alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!

Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alivio
Sequer no pranto achar!

Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.

O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!

E agora o que sou eu? — Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu...

Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, — sinto, escuto
Bater-me o coração.

Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.

E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.

Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 02 de dezembro de 2018

EPICÉDIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

EPICÉDIO

Gonçalves Dias

Seu rosto pálido e belo
Já não tem vida nem cor!
Sobre ele a morte descansa,
Envolta em baço palor.

Cerraram-se olhos tão puros,
Que tinham tanto fulgor;
Coração que tanto amava
Já hoje não sente amor;

Que o anjo belo da morte
A par desse anjo baixou!
Trocaram brandas palavras,
Que Deus somente escutou.

Ventura, prazer, ledice
Duma outra vida contou;
E o anjo puro da terra
Prazer da terra enjeitou.

Depois co'as asas candentes
O formoso anjo do céu
Roçou-lhe a face mimosa,
Cobriu-lhe o rosto co'um véu.

Depois o corpo engraçado
Deixou à terra sem vida,
De tênue palor coberto,
- Verniz de estátua esquecida.

E bela assim, como um lírio
Murcho da sesta ao ardor,
Teve a inocência dos anjos,
Tendo o viver duma flor.

Foi breve! - mas a desgraça
A testa não lhe enrugou,
E aos pés do Deus que a crIara
Alma inda virgem levou.

Sai da larva a borboleta,
Sai da rocha o diamante,
De um cadáver mudo e frio
Sai uma alma radiante.

Não choremos essa morte,
Não choremos casos tais;
Quando a terra perde um justo,
Conta um anjo o céu de mais.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 25 de novembro de 2018

DELÍRIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

DELÍRIO

Ronçalves Dias

A noite quando durmo, esclarecendo
As trevas do meu sono,
Uma etérea visão vem assentar-se
Junto ao meu leito aflito!
Anjo ou mulher? não sei. - Ah! se não fosse
Um qual véu transparente,
Como que a alma pura ali se pinta
Ao través do semblante,
Eu a crera mulher... - E tentas, louco,
Recordar o passado,
Transformando o prazer, que desfrutaste,
Em lentas agonias?!

Visão, fatal visão, por que derramas
Sobre o meu rosto pálido
A luz de um longo olhar, que amor exprime
E pede compaixão?
Por que teu coração exala uns fundos,
Magoados suspiros,
Que eu não escuto, mas que vejo e sinto
Nos teus lábios morrer?
Por que esse gesto e mórbida postura
De macerado espírito,
Que vive entre aflições, que já nem sabe
Desfrutar um prazer?

Tu falas! tu que dizes? este acento,
Esta voz melindrosa,
Noutros tempos ouvi, porém mais leda;
Era um hino d'amor.
A voz, que escuto, é magoada e triste,
- Harmonia celeste,
Que à noite vem nas asas do silêncio
Umedecer as faces
Do que enxerga outra vida além das nuvens.
Esta voz não é sua;
É acorde talvez d'harpa celeste,
Caído sobre a terra!

Balbucias uns sons, que eu mal percebo,
Doridos, compassados,
Fracos, mais fracos; - lágrimas despontam
Nos teus olhos brilhantes...
Choras! tu choras!... Para mim teus braços
Por força irresistível
Estendem-se, procuram-me; procuro-te
Em delírio afanoso.
Fatídico poder entre nós ambos
Ergueu alta barreira;
Ele te enlaça e prende... mal resistes...
Cedes enfim. . . acordo!

Acordo do meu sonho tormentoso,
E choro o meu sonhar!
E fecho os olhos, e de novo intento
O sonho reatar.
Embalde! porque a vida me tem preso;
E eu sou escravo seu!
Acordado ou dormindo, é triste a vida
Dês que o amor se perdeu.
Há contudo prazer em nos lembrarmos
Da passada ventura,
Como o que educa flores vicejantes
Em triste sepultura.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 18 de novembro de 2018

AMOR! DELÍRIO – ENGANO... (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

AMOR! DELÍRIO – ENGANO...

Gonçalves Dias

 

Amor! delirio — engano... Sobre a terra
Amor tão bem fruí; a vida inteira
Concentrei n’um só ponto — ama-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Scismou meo coração, scismou minha alma,
— Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d’amor sorveo gostosa.
Eu e ella, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraiso, eden ou templo
Habitámos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricára.

E eu sempre a via!.. quer nas nuvens d’oiro,
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava
O circulo da lua, — quer no manto
D’alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cahir; nos céos, na terra,
A ella, a ella só, vião meos olhos.

Seo nome, sua voz — ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trepido correr da veia argentea,
No respirar da brisa, no susurro.
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros ineffavel; — o seo nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silencio realçavão,
Os ares e a amplidão divinisando,
Ouvião meos ouvidos; e de ouvil-o
Arfava de prazer meo peito ardente.

 

Ah! quantas vezes, quantas; junto d’ella
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um languido suspiro,
Que vinha lá do peito á flor dos labios
Deslisar-se e morrer?! Dos seos cabellos
A magica fragrancia respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos labios d’ella,
Que instantes de prazer me futuravão.
Cada sorriso seo era uma esp’rança,
E cada esp’rança enlouquecer de amores.
E eu amei tanto! — Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, á ingrata, havia eu dado;
Que affectos melindrosos, que em meo peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! não, — morra commigo o meo segredo;
Rebelde o coração murmure embora.

Que de vezes, pensando a sós commigo,
Não disse eu entre mim: — Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teo amor um só instante;
— Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas crueis â praia inhóspita
Exanime arrojado? — Eu, que isto disse,
Existo e penso — e não morri, — não morro
Do que outr’ora senti, do que ora sinto,
De pensar nella, de a revêr em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!

Existo; e ella de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez n’outros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seos labios
Tantas vezes ouvi, — que tantas vezes
Em extasis divino aos céos me alçárão,

— Que dando á terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportárão.
Existo! como outr’ora, no meo peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em molles versos.
E ella!... ella talvez nos braços d’outrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seo coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, inferno! a goza.
Ella, que eu respeitei, que eu venerava
Como a reliquia sancta! — a quem meus olhos,
Receiando offendel-a, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixárão!
Ella, perante quem sentia eu presa
A voz nos labios e a paixão no peito!
Ella, idolo meo, a quem o orgulho,
A força d’homem, o sentir, vontade
Propria e minha dediquei, — sugeita
Á voz de alguem que não sou eu, — desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um osculo frio, por caricias
Devidas d’um esposo!...
                     Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciume,
Tua funda raiz e a imagem d’ella
No peito em sangue espedaçar raivoso!

Mas tu, cruel, que es meo rival, n’uma hora,
Em que ella só julgar-se, has de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d’éras ja passadas se recorda.
Has de escutal-o, e ver-lhe a côr do rosto
Enrubecer-se ao deparar comtigo!
Preza serás tambem d’atros cuidados,
Terás ciume, e soffrerás qual soffro:
Nem menor que o meo mal quero a vingança.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil quarta, 07 de novembro de 2018

O TROVADOR (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O TROVADOR

Gonçalves Dias

 

Numa terra antigamente
Existia um Trovador;
Na Lira sua inocente
Só cantava o seu amor.

Nenhum sarau se acabava
Sem a Lira de marfim,
Pois cantar tão alto e doce
Nunca alguém ouvira assim.

E quer donzela, quer dona,
Que sentira comoção
Pular-lhe n'alma, escutando
Do Trovador a canção;

De jasmins e de açucenas
A fronte sua adornou;
Mas só a rosa da amada
Na Lira amante poisou.

E o Trovador conheceu
Que era traído - por fim;
Pôs-se a andar, e só se ouvia
Nos seus lábios: ai de mim!

Enlutou de negro fumo
A rosa de seu amor,
Que meia oculta se via
Na gorra do Trovador;

Como virgem bela, morta
Da idade na linda flor,
Que parece, o dó trajando,
Inda sorrir-se de amor.

No meio do seu caminho
Gentil donzela encontrou:
Canta - disse; e as cordas d'oiro
Vibrando, o triste cantou.

"Teu rosto engraçado e belo
"Tem a lindeza da flor;
"Mas é risonho o teu rosto:.
"Não tens de sentir amor!

"Mas tão bem por esse dia
"Que viverás, como a flor,
"Mimosa, engraçada e bela,
"Não tens de sentir amor!

"Oh! não queiras, por Deus, homem que tenha
"Tingida a larga testa de palor;
"Sente fundo a paixão, - e tu no mundo
"Não tens de sentir amor!

"Sorriso jovial te enfeita os lábios,
"Nas faces de jasmim tens rósea cor;
"Fundo amor não se ri, não é corado...
"Não tens de sentir amor;

"Mas se queres amar, eu te aconselho,
"Que não guerreiro, escolhe um trovador,
"Que não tem um punhal, quando é traído,
"Que vingue o seu amor."

Do Trovador pelo rosto
Torva raiva se espalhou,
E a Lira sua, tremendo,
Sem cordas d'oiro ficou.

Mais além no seu caminho
Donzel garboso encontrou:
Canta - disse: e argênteas cordas
Pulsando, o triste cantou.

"Aos homens da mulher enganam sempre
"O sorriso, o amor;
"É este breve, como é breve aquele
"Sorriso enganador.

"Teu peito por amor, Donzel, suspira,
"Que é de jovens amar a formosura;
"Mas sabe que a mulher, que amor te jura,
"Dos lindos lábios seus cospe a mentira!

"Já frenético amor cantei na lira,
"Delícias já sorvi num seu sorriso,
"Já venturas fruí do paraíso,
"Em terna voz de amor, que era mentira!

"O amor é como a aragem que murmura
"Da tarde no cair - pela folhagem;
"Não volta o mesmo amor à formosura
"Bem como nunca volta a mesma - aragem.

"Não queiras amar, não; pois que a'sperança
"Se arroja além do amor por largo espaço.
"Tens, brilhando ao sol, a forte lança,
"Tens longa espada cintilante d'aço.

"Tens a fina armadura de Milão,
"Tens luzente e brilhante capacete,
"Tens adaga e punhal e bracelete
"E, qual lúcido espelho, o morrião.
"Tens fogoso corcel todo arreiado,
"Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
"Tens duelos, tens justas, tens torneios,
"Que os fracos corações de medo cerro;
"'tens pajens, tens valetes e escudeiros
"E a marcha afoita, apercebida em guerra
"Do luzido esquadrão de mil guerreiros.
"Oh! não queiras amar! - Como entre a neve
"O gigante vulcão borbulha e ferve
"E sulfúrea chama pelos ares lança,
"Que após o seu cair torna-se fria;
"Assim tu acharás petrificada,
"Bem como a lava ardente do vulcão,
"A lava que teu peito consumia
"No peito da mulher - ou cinza ou nada -
"Não frio, mas gelado o coração!"

E o Trovador despeitoso
De prata as cordas quebrou,
E nas de chumbo seu fado
A lastimar começou.

"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador! ,
"Que triste que é! - bem que tenha ,
"Sua Lira e seu amor,

"Quando em festejos descanta,
"Rasgado o peito com dor,
"Mimoso tem de cantar
"Na sua Lira - o amor!

"Como a um servo vil ordena
"Um orgulhoso Senhor,
"Canta, diz-lhe; quero ouvir-te:
"Quero descantes de amor!

"Diz-lhe o guerreiro, que apenas
"Lidou em justas de amor:
"- Minha dama quer ouvir-te,
"Canta, truão trovador! -

"Manda a mulher que nos deixa
"De beijos murchada flor:
"- Canta, truão, quero ouvir-te,
"Um terno canto de amor!

"Mas se a mulher, que ele adora
"Atraiçoa o seu amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!

Se escuta palavras dela, -
"Que a outros juram amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!

"Se vê luzir de alguns lábios
"Um sorriso mofador;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!

"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador!
"Pesar lhe dá sua Lira,
"Dá-lhe pesar seu amor!"

E o Trovador neste ponto
A corda extrema arrancou;
E num marco do caminho
A Lira sua quebrou:
Ninguém mais a voz sentida
Do Trovador escutou!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil terça, 23 de outubro de 2018

TRISTEZA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

TRISTEZA

Gonçalves Dias

 

Que leda noite! - Este ar embalsamado,
Este silêncio harmônico da terra
Que sereno prazer n'alma cansada
Não espreme, não filtra, não difunde?
A brisa lá sussurra na folhagem
D'espessas matas, d'árvores robustas,
Que velam sempre e sós, que a Deus elevam
Misterioso coro, que do Bardo
A crença quase morta inda alimenta.
É esta a hora mágica de encantos,
Hora d'inspirações dos céus descidas,
Que em delírio de amor aos céus remontam.

Aqui da vida as lástimas infindas,
Do mirrado egoísmo a voz ruidosa
Não chegam; nem soluços, risos, festas,
- Hilaridade vã de turba incauta,
Néscia de ruim futuro; ou queixa amarga
De decrépito velho, enfermo, exangue,
Nem do mancebo os ais doidos, preso
Ao leito do sofrer na flor da vida.

Aqui reina o silêncio, o religioso,
Morno sossego, que povoa as ruínas,
E o mausoléu soberbo, carcomido,
E o templo majestoso, em cuja nave
Suspira ainda a nota maviosa,
O derradeiro arfar d'órgão solene.

Em puro céu a lua resplandece,
Melancólica e pura, simelhando
Gentil viúva que pranteia o extinto,
O belo esposo amado, e vem de noite,
Vivendo pelo amor, mau grado a morte,
Ferventes orações chorar sobre ele.

Eu amo o céu assim, sem uma estrela,
Azul sem mancha, - a lua equilibrada
Num céu de nuvens, e o frescor da tarde,
E o silêncio da noite adormecida,
Que imagens vagas de prazer desenha.

Amo tudo o que dá no peito e n'alma
Tréguas ao recordar, tréguas ao pranto,
À v'emência da dor, à pertinácia
Tenaz e acerba de cruéis lembranças;
Amo estar só com Deus, porque nos homens
Achar não pude amor, nem pude ao menos
Sinal de compaixão achar entre eles.

Menti - um inda achei; mas este em ócio
Feliz descansa agora, enquanto aos ventos
E ao cru furor das verde-negras ondas
Da minha vida a barca aventureira
Insano confiei; em céu diverso
Luzem com luz diversa estrelas d'ambos.
Ai! triste, que houve tempo em que eu julgava
As duas uma só, - c'o mesmo brilho
Uma e outra nos céus meigas brilhavam!
Hoje cintila a dele, enquanto a minha
Entre nuvens, sem luz, se perde agora.
Meu Deus, foi bom assim! No imenso pego
Mais uma gota d'amargor que importa?
Que importa o fel na taça do absinto,
Ou uma dor de mais onde outras reinam?


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil segunda, 08 de outubro de 2018

RECORDAÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

RECORDAÇÃO

Gonçalves Dias

 

Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada,
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor, piedade; — e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d'angústias que meu peito oprime:

Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, — nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
por que de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. — Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 23 de setembro de 2018

MINHA VIDA E MEUS AMORES (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

MINHA VIDA E MEUS AMORES

Gonçalves Dias

 

Mon Dieu, fais que je puisse aimer!
S. Beuve


Quando, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
— Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce,
Quanto é bela esta vida assim vivida! —
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma líndeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
À beira-mar colhida!


Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: — amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; — julguei-o ao menos.

Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
—- Eu morrera feliz, dizia eu d'alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.


A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui com ela,
Inconstante vagando em mar de amores.


O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; — somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi'nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! — Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais


Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Toma-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.

Um dia, em qu'eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
— Eu te amo! — ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos... — mas não posso crê-la.


Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixao;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.


Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: — Sonhei contigo! —
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei — talvez! — e já não pude crê-Ia.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela ...
Amar-me! — Eu que sou?
Meus olhos enxergam, enquanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.


Malgrado meu, crer não posso,
Malgrado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?

Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.


Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil sábado, 08 de setembro de 2018

PEDIDO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS

PEDIDO

Gonçalves Dias

 

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.

De mim bem longe
Teu pensamento!
Teu pensamento,
Bem longe errava.

Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.

Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.

Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu'rias
Exp'rimentar-me.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 19 de agosto de 2018

INOCÊNCIA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

INOCÊNCIA

Gonçalves Dias

 

Ó meu anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meus;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teus.

Do teu rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a cor mimosa;
É belo o pudor, mas choro,
E deploro
Que assim sejas medrosa.

Por inocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabes que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flor.

Corre a vida pressurosa,
Como a rosa,
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flor,
Como a flor fenece a gente.

Hoje ainda és tu donzela
Pura e bela,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meu amor.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil sábado, 04 de agosto de 2018

SEUS OLHOS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SEUS OLHOS

Gonçalves Dias

 

Seus olhos, tão negros, tão belos, tão puros, 
 de vivo luzir, 
estrelas incertas, que as águas dormentes 
 do mar vão ferir;

seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 
 de meiga expressão 
mais doce que a brisa, — mais doce que a frauta 
 quebrando a soidão.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 
 de vivo luzir, 
são meigos infantes, gentis, engraçados 
 brincando a sorrir.

São meigos infantes, brincando, saltando 
 em jogo infantil, 
inquietos, travessos; - causando tormento, 
com beijos nos pagam a dor de um momento, 
 com modo gentil.

Seus olhos são negros, tão belos, tão puros, 
 assim é que são; 
às vezes luzindo, serenos, tranqüilos, 
 às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco, 
 tão frouxo brilhar, 
que a mim parece que o ar lhes falece 
e os olhos tão meigos, que o pranto umedece, 
 me fazem chorar.

Assim lindo infante, que dorme tranqüilo, 
 desperta a chorar; 
e mudo, sisudo, cismando mil coisas, 
 não pensa — a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante, 
 às vezes do céu 
cai doce harmonia duma harpa celeste, 
um vago desejo; e a mente se veste 
 de pranto co'um véu.

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros, 
 de vivo fulgor; 
seus olhos que exprimem tão doce harmonia, 
que falam de amores com tanta poesia, 
 com tanto pudor.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 
 assim é que são; 
eu amo esses olhos que falam de amores 
 com tanta paixão.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil segunda, 23 de julho de 2018

DESEJO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

DESEJO

Gonçalves Dias

Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;

Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil terça, 10 de julho de 2018

A MINHA MUSA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A MINHA MUSA

Gonçalves Dias

 

Gratia, Musa, tibi; nam tu solattia praebes. 
— Ovídio


Minha Musa não é como ninfa 
Que se eleva das águas — gentil — 
Co′um sorriso nos lábios mimosos, 
Com requebros, com ar senhoril. 

Nem lhe pousa nas faces redondas 
Dos fagueiros anelos a cor; 
Nesta terra não tem uma esp′rança, 
Nesta terra não tem um amor. 

Como fada de meigos encantos, 
Não habita um palácio encantado, 
Quer em meio de matas sombrias, 
Quer à beira do mar levantado. 

Não tem ela uma senda florida, 
De perfumes, de flores bem cheia, 
Onde vague com passos incertos, 
Quando o céu de luzeiros se arreia. 
___________ 

Não é como a de Horácio a minha Musa; 
Nos soberbos alpendres dos Senhores 
Não é que ela reside; 
Ao banquete do grande em lauta mesa, 
Onde gira o falerno em taças d′oiro, 
Não é que ela preside. 

Ela ama a solidão, ama o silêncio, 
Ama o prado florido, a selva umbrosa 
E da rola o carpir. 
Ela ama a viração da tarde amena, 
O sussurro das águas, os acentos 
De profundo sentir. 

D′Anacreonte o gênio prazenteiro, 
Que de flores cingia a fronte calva 
Em brilhante festim, 
Tomando inspirações à doce amada, 
Que leda lh′enflorava a ebúrnea lira; 
De que me serve, a mim? 

Canções que a turba nutre, inspira, exalta 
Nas cordas magoadas me não pousam 
Da lira de marfim. 
Correm meus dias, lacrimosos, tristes, 
Como a noite que estende as negras asas 
Por céu negro e sem fim. 

É triste a minha Musa, como é triste 
O sincero verter d′amargo pranto 
D′órfã singela; 
E triste como o som que a brisa espalha, 
Que cicia nas folhas do arvoredo 
Por noite bela. 

É triste como o som que o sino ao longe 
Vai perder na extensão d′ameno prado 
Da tarde no cair, 
Quando nasce o silêncio involto em trevas, 
Quando os astros derramam sobre a terra 
Merencório luzir. 

Ela então, sem destino, erra por vales, 
Erra por altos montes, onde a enxada 
Fundo e fundo cavou; 
E pára; perto, jovial pastora 
Cantando passa — e ela cisma ainda 
Depois que esta passou. 

Além — da choça humilde s′ergue o fumo 
Que em risonha espiral se eleva às nuvens 
Da noite entre os vapores; 
Muge solto o rebanho; e lento o passo, 
Cantando em voz sonora, porém baixa, 
Vêm andando os pastores. 

Outras vezes também, no cemitério, 
Incerta volve o passo, soletrando 
Recordações da vida; 
Roça o negro cipreste, calca o musgo, 
Que o tempo fez brotar por entre as fendas 
Da pedra carcomida. 

Então corre o meu pranto muito e muito 
Sobre as úmidas cordas da minha Harpa, 
Que não ressoam; 
Não choro os mortos, não; choro os meus dias 
Tão sentidos, tão longos, tão amargos, 
Que em vão se escoam. 

Nesse pobre cemitério 
Quem já me dera um lugar! 
Esta vida mal vivida 
Quem já ma dera acabar! 

Tenho inveja ao pegureiro, 
Da pastora invejo a vida, 
Invejo o sono dos mortos 
Sob a laje carcomida. 

Se qual pegão tormentoso, 
O sopro da desventura 
Vai bater potente à porta 
De sumida sepultura: 

Uma voz não lhe responde, 
Não lhe responde um gemido, 
Não lhe responde urna prece, 
Um ai — do peito sentido. 

Já não têm voz com que falem, 
Já não têm que padecer; 
No passar da vida à morte 
Foi seu extremo sofrer. 

Que lh′importa a desventura? 
Ela passou, qual gemido 
Da brisa em meio da mata 
De verde alecrim florido. 

Quem me dera ser como eles! 
Quem me dera descansar! 
Nesse pobre cemitério 
Quem me dera o meu lugar, 
E co′os sons das Harpas d′anjos 
Da minha Harpa os sons casar! 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil quinta, 28 de junho de 2018

A LEVIANA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A LEVIANA

Gonçalves Dias

 

És engraçada e formosa 
Como a rosa, 
Como a rosa em mês d′Abril; 
És como a nuvem doirada 
Deslizada, 
Deslizada em céus d′anil. 

Tu és vária e melindrosa, 
Qual formosa 
Borboleta num jardim, 
Que as flores todas afaga, 
E divaga 
Em devaneio sem fim. 

És pura, como uma estrela 
Doce e bela, 
Que treme incerta no mar: 
Mostras nos olhos tua alma 
Terna e calma, 
Como a luz d′almo luar. 

Tuas formas tão donosas, 
Tão airosas, 
Formas da terra não são; 
Pareces anjo formoso, 
Vaporoso, 
Vindo da etérea mansão. 

Assim, beijar-te receio, 
Contra o seio 
Eu tremo de te apertar: 
Pois me parece que um beijo 
É sobejo 
Para o teu corpo quebrar. 

Mas não digas que és só minha! 
Passa asinha 
A vida, como a ventura; 
Que te não vejam brincando, 
E folgando 
Sobre a minha sepultura. 

Tal os sepulcros colora 
Bela aurora 
De fulgores radiante; 
Tal a vaga mariposa 
Brinca e pousa 
Dum cadáver no semblante. 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil sábado, 16 de junho de 2018

O SOLDADO ESPANHOL (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

O SOLDADO ESPANHOL

Gonçalves Dias

 

I

 

O céu era azul, tão meigo e tão brando,

E a terra era a noiva que bem se arreava

Que a mente exultava, mais longe escutando

O mar a quebrar-se na praia arenosa.

O céu era azul, e na cor semelhava

Vestido sem nódoa de pura donzela;

E a terra era a noiva que bem se arreava

De flores, matizes; mas vária, mas bela.

Ela era brilhante,

Qual raio do sol; E ele arrogante,

De sangue espanhol.

E o espanhol muito amava

A virgem mimosa e bela;

Ela amante, ele zeloso

Dos amores da donzela;

Ele tão nobre e folgando

De chamar-se escravo dela!

E ele disse: - Vês o céu? -

E ela disse: - Vejo, sim;

Mais polido que o polido

Do meu véu azul cetim. - Torna-lhe ele... (Oh! Quanto é doce

Passar-se uma noite assim!)

- Por entre os vidros pintados

D'igreja antiga, a luzir

Não vês luz? - Vejo. - E não sentes

De a veres, meigo sentir?

- É doce ver entre as sombras

A luz do templo a luzir!

- E o mar, além, preguiçoso

Não vês tu em calmaria?

- É belo o mar; porém sinto,

Só de o ver, melancolia.

- Que mais o teu rosto enfeita

Que um sorriso de alegria.

- E eu também acho em ser triste

Do que alegre, mais prazer;

Sou triste, quando em ti penso,

Que só me falta morrer;

Mesmo a tua voz saudosa

Vem minha alma entristecer.

- E eu sou feliz, como agora,

Quando me falas assim;

Sou feliz quando se riem

Os lábios teus de carmim;

Quando dizes que me adoras,

Eu sinto o céu dentro em mim.

- És tu só meu Deus, meu tudo.

És tu só meu puro amar,

És tu só que o pranto podes

Dos meus olhos enxugar. -

Com ela repete o amante:

- És tu só meu puro amar! -

E o céu era azul, tão meigo e tão brando

E a terra tão erma, tão só, tão saudosa

Que a mente exultava, mais longe escutando

O mar a quebrar-se na praia arenosa!

 

II

 

E o espanhol viril, nobre e formoso,

No bandolim

Seus amores dizia mavioso,

Cantando assim:

"Já me vou por mar em fora

Daqui longe a mover guerra,

Já me vou, deixando tudo,

Meus amores, minha terra.

"Já me vou lidar em guerras,

Vou-me à índia Ocidental;

Hei de ter novos amores...

De guerras... não temas, ai.

"Não chores, não, tão coitada,

Não chores por t'eu deixar;

Não chores que assim me custa

O pranto meu sofrear.

"Não chores! - Sou como o Cid

Partindo para a campanha;

Não ceifarei tantos louros,

Mas terei pena tamanha."

E a amante que assim o via

Partir-se tão desditoso,

- Vai, mas volta; lhe dizia:

Volta, sim, vitorioso.

"Como o Cid, oh! Crua sorte!

Não me vou nesta campanha

Guerrear contra o crescente,

Porém sim contra os d'Espanha!

"Não me aterram; porém sinto

Cerrar-se o meu coração,

Sinto deixar-te, meu anjo,

Meu prazer, minha afeição.

"Como é doce o romper d'alva,

É-me doce o teu sorrir,

Doce e puro, qual d'estrela

De noite - o meigo luzir.

"Eram meus teus pensamentos,

Teu prazer minha alegria,

Doirada fonte d'encantos,

Fonte da minha poesia.

"Vou-me longe, e o peito levo

Rasgado de acerba dor,

Mas comigo vão teus votos,

Teus encantos, teu amor!

"Já me vou lidar em guerras,

Vou-me à índia Ocidental;

Hei de ter novos amores...

De guerras... não temas, ai."

Esta era a canção que acompanhava

No bandolim,

Tão triste, que triste não chorava

Dizendo assim.

 

III

 

"Quero, pajens, selado o ginete,

Quero em punho nebris e falcão,

Qu'é promessa de grande caçada

Fresca aurora d'amigo verão.

"Quero tudo luzindo, brilhante

- Curta espada e venáb'lo e punhal,

Cães e galgos farejem diante

Leve odor de sanhudo animal.

"E ai do gamo que eu vir na coutada,

Corça, onagro, que eu primo avistar!

Que o venáb'lo nos ares voando

Lhe há de o salto no meio quebrar.

"Eia, avante! – Dizia folgando

O fidalgo mancebo, loução:

– Eia, avante! – E já todos galopam

Trás do moço, soberbo infanção.

E partem, qual do arco arranca e voa

Nos amplos ares, mais veloz que a vista,

A plúmea seta da entesada corda.

Longe o eco reboa; - já mais fraco,

Mais fraco ainda, pelos ares voa.

Dos cães dúbios o latir se escuta apenas,

Dos ginetes tropel, rinchar distante

Que em lufadas o vento traz por vezes.

Já som nenhum se escuta... Quê! – Latido

De cães, incerto, ao longe? Não, foi vento

Na torre castelã batendo acaso,

Nas seteiras acaso sibilando

Do castelo feudal, deserto agora.

 

IV

 

Já o sol se escondeu; cobre a terra

Belo manto de frouxo luar;

E o ginete, que esporas atracam,

Nitre e corre sem nunca parar.

Da coutada nas ínvias ramagens

Vai sozinho o mancebo infanção;

Vai sozinho, afanoso trotando

Sem temores, sem pajens, sem cão.

Companheiros da caça há perdido,

Há perdido no aceso caçar;

Há perdido, e não sente receio

De sozinho, nas sombras trotar.

Corno ebúrneo embocou muitas vezes,

Muitas vezes de si deu sinal;

Bebe atento a resposta, e não ouve

Outro som responder-lhe; – Inda mal!

E o ginete que esporas atracam,

Nitre e corre sem nunca parar;

Já o sol se escondeu, cobre a terra

Belo manto de frouxo luar.

 

V

 

Silêncio grato da noite

Quebram sons duma canção,

Que vai dos lábios de um anjo

Do que escuta ao coração.

Dizia a letra mimosa

Saudades de muito amar;

E o infanção enleado,

Atento, pôs-se a escutar.

Era encantos voz tão doce,

Incentivo essa ternura,

Gerava delícias n'alma

Sonhar d'havê-la a ventura.

Queixosa cantava a esposa

Do guerreiro que partiu,

Largos anos são passados,

Missiva dele não viu...

Parou!... Escutando ao perto

Responder-lhe outra canção!...

Era terna a voz que ouvia,

Lisonjeira – do infanção:

"Tenho castelo soberbo

Num monte, que beija um rio,

De terra tenho no Doiro

Jeiras cem de lavradio;

"Tenho lindas haqueneias,

Tenho pajens e matilha,

Tenho os melhores ginetes

Dos ginetes de Sevilha;

"Tenho punhal, tenho espada

D'alfageme alta feitura,

Tenho lança, tenho adaga,

Tenho completa armadura.

"Tenho fragatas que cingem

Dos mares a linfa clara,

Que vão preando piratas

Pelas rochas de Megara.

"Dou-te o castelo soberbo

E as terras do fértil Doiro,

Dou-te ginetes e pajens

E a espada de pomo d'oiro.

"Dera a completa armadura

E os meus barcos d'alto-mar,

Que nas rochas de Megara

Vão piratas cativar.

"Fala de amores teu canto,

Fala de acesa paixão...

Ah! Senhora, quem tivera

Dos agrados teus condão!

"Eu sou mancebo, sou Nobre,

Sou nobre moço infanção;

Assim pudesse o meu canto

Algemar-te o coração,

Ó Dona, que eu dera tudo

Por vencer-te essa isenção!"

Atenta escutava a esposa

Do guerreiro que partiu,

Largos anos são passados,

Missiva dele não viu;

Mas da letra que escutava

Delícias n'alma sentiu.

 

VI

 

E noutra noite saudosa

Bem junto dela sentado,

Cantava brandas endechas

O gardingo namorado.

"Careço de ti, meu anjo,

Careço do teu amor,

Como da gota d'orvalho

Carece no prado a flor.

"Prazeres que eu nem sonhava

Teu amor me fez gozar;

Ah! Que não queiras, senhora,

Minha dita rematar.

O teu marido é já morto,

Notícia dele não soa;

Pois desta gente guerreira

Bastos ceifa a morte à toa.

"Ventura me fora ver-te

Nos lábios teus um sorriso,

Delícias me fora amar-te,

Gozar-te meu paraíso.

"Sinto aflição, quando choras;

Se te ris, sinto prazer;

Se te ausentas, fico triste,

Que só me falta morrer.

"Careço de ti, meu ardo,

Careço do teu amor,

Como da gota d'orvalho

Carece no prado a flor."

 

VII

 

Era noite hibernal; girava dentro

Da casa do guerreiro o riso, a dança,

E reflexos de luz, e sons, e vozes,

E deleite, e prazer: e fora a chuva,

A escuridão, a tempestade, e o vento,

Rugindo solto, indómito e terrível

Entre o negror do céu e o horror da terra.

Na geral confusão os céus e a terra

Horrenda simpatia alimentavam.

Ferve dentro o prazer, reina o sorriso,

E fora a tiritar, fria, medonha,

Marcha a vingança pressurosa e torva:

Traz na destra o punhal, no peito a raiva,

Nas faces palidez, nos olhos morte.

O infanção extremoso enchia rasa

A taça de licor mimoso e velho,

Da usança ao brinde convidando a todos

Em honra da esposada: – À noiva! Exclama

E a porta range e cede, e franca e livre

Introduz o tufão, e um vulto assoma

Altivo e colossal. - Em honra, brada,

Do esposo deslembrado! – E a taça empunha

Mas antes que o licor chegasse aos lábios,

Desmaiada e por terra jaz a esposa,

E a destra do infanção maneja o ferro,

Por que tão grande afronta lave o sangue,

Pouco, bem pouco para injúria tanta.

Debalde o fez, que lhe golfeja o sangue

D'ampla ferida no sinistro lado,

E ao pé da esposa o assassino surge

Co'o sangrento punhal na destra alçado.

A flor purpúrea que matiza o prado,

Se o vento da manhã lhe entorna o cálix,

Perde aroma talvez; porém mais belo

Colorido lhe vem do sol nos raios,

As fagueiras feições daquele rosto

Assim foram também; não foi do tempo

Fatal o perpassar às faces lindas.

Nota-lhe ele as feições, nota-lhe os lábios,

Os curtos lábios que lhe deram vida,

Longa vida de amor em longos beijos,

Qual jamais não provou; e as iras todas

Dos zelos vingadores descansaram

No peito de sofrer cansado e cheio,

Cheio qual na praia fica a esponja,

Quando a vaga do mar passou sobre ela.

Num relance fugiu, minaz no vulto:

Como o raio que luz um breve instante,

Sobre a terra baixou, deixando a morte.


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