O PIRATA
Gonçalves Dias
Nas asas breves do tempo
Um ano e outro passou,
E Lia sempre formosa
Novos amores tomou.
Novo amante mão de esposo,
De mimos cheia, lh'of'rece;
E bela, apesar de ingrata,
Do que a amou Lia se esquece.
Do que a amou que longe pára,
Do que a amou, que pensa nela,
Pensando encontrar firmeza
Em Lia, que era tão bela!
Nesse palácio deserto
Já luzes se vêm luzir,
Que vem nas sedas, nos vidros
Cambiantes refletir.
Os ecos alegres soam,
Soa ruidosa harmonia,
Soam vozes de ternura,
Sons de festa e d'alegria.
E qual ave que em silêncio
A face do mar desflora,
À noite bela fragata
Chega ao porto, amaina, ancora.
Cai da popa e fere as ondas
Inquieta, esguia falua,
Que resvala sobre as águas
Na esteira que traça a lua.
Já na vácua praia toca;
Um vulto em terra saltou,
Que na longa escadaria
Presago e torvo enfiou..
Malfadado! por que aportas
A este sítio fatal!
Queres o brilho aumentar
Das bodas do teu rival?
Não, que a vingança lhe range
Nos duros dentes cerrados,
Não, que a cabeça referve
Em maus projetos danados!
Não, que os seus olhos bem dizem
O que diz seu coração;
Terríveis, como um espelho,
Que retratasse um vulcão.
Não, que os lábios descorados
Vociferam seu rival;
Não, que a mão no peito aperta
Seu pontiagudo punhal.
Não, por Deus, que tais afrontas
Não as sói deixar impunes,
Quem tem ao lado um punhal,
Quem tem no peito ciúmes!
Subiu! - e viu com seus olhos
Ela a rir-se que dançava,
Folgando, infame! nos braços
Porque assim o assassinava.
E ele avançou mais avante,
E viu. . . o leito fatal!
E viu. . . e cheio de raiva
Cravou no meio o punhal.
E avançou... e à janela
Sozinha a viu suspirar,
- Saudosa e bela encarando
A imensidade do mar.
Como se vira um espectro,
De repente ela fugiu!
Tal foge a corça nos bosques
Se leve rumor sentiu.
Que foi? - Quem sabe dizê-lo?
Foram vislumbres de dor:
Coração, que tem remorsos,
Sente contínuo terror!
Ele à janela chegou-se,
Horrível nada encontrou. . .
Somente, ao longe, nas sombras,
Sua fragata avistou.
Então pensou que no mundo
Nada mais de seu contava!
Nada mais que essa fragata!
Nada mais de quanto amava!
Nada mais!... - que lh'importava
De no mundo só se achar?
Inda muito lhe ficava -
Água e céus e vento e mar.
Assim pensava, mas nisto
Descortina o seu rival,
Não visto; - a mão na cintura
Cingiu raivoso o punhal!
Mas pensou. . . - não, seja dela,
E tenha zelos como eu? -
Larga o punhal, e um retrato
Na destra mão estendeu.
Porém sentiu que inda tinha
Mais que branda compaixão;
Miserando! inda guardava
Seu amor no coração.
Infeliz! não foi culpada;
Foi culpa do fado meu!
Nada mais de pensar nela;
Finjamos que ela morreu.
Por entre a turba que alegre
No baile - a sorrir-se estava,
Mudo, triste, e pensativo
Surdamente se afastava.
De manhã - quando o sarau
Apagava o seu rumor,
Chegava Lia a janela,
Mais formosa de palor.
Chegou-se; - e além -.- no horizonte
Uma vela inda avistou;
E co'a mão trêmula e fria
O telescópio buscou!
Um pavilhão viu na popa,
Que tinha um globo pintado;
E no mastro da mezena
Um negro vulto encostado.
Eram chorosos seus olhos,
Os olhos seus enxugou;
E o telescópio de novo
Para essa vela apontou.
Quem era o vulto tão triste
Parece reconheceu;
Mas a vela no horizonte
Para sempre se perdeu.