Existe uma fábula muito conhecida, sobre um escorpião que pede a um sapo para o ajudar a atravessar um rio. O sapo fica com receio de ser ferroado durante a travessia, mas o escorpião promete não lhe fazer mal. Até porque, se o fizesse, ambos morreriam: o sapo envenenado e o escorpião afogado.
Segundo a fábula, o sapo acaba permitindo que o escorpião viaje nas suas costas. Mas, no decorrer do percurso, o escorpião crava seu ferrão no dorso do sapo.
Sentindo o efeito do veneno, o sapo pergunta a razão pela qual o escorpião havia feito aquilo.
— Ferroar é a minha natureza — teria dito o escorpião. — Por mais que eu queira mudar, não tenho como evitar isso.
Essa história sempre me deixou um tanto intrigado.
Não pelo seu desfecho lamentável, mas porque, se o sapo e o escorpião morreram nas águas do rio, e não há nada a indicar que houvesse alguém lá, para testemunhar a conversa entre o anuro e o aracnídeo, como esses fatos chegaram ao nosso conhecimento? Um mistério.
Muitas vezes refleti sobre isso, sem encontrar solução convincente.
Até que, certa manhã, enquanto recolhia folhas secas no jardim, encontrei um escorpião, e pusemo-nos a conversar. Durante a conversa, essa questão da fábula veio à tona:
— É fake news! — rebateu o escorpião, indignado.
— Como assim? — surpreendi-me. — Essa fábula é muito antiga…
— As fake news também são antigas. Nem sequer foi o escorpião que pediu ajuda ao sapo. O sapo é que ofereceu carona ao escorpião.
Tive vontade de sorrir, mas ele parecia falar sério, então achei melhor prestar atenção no que tinha a dizer. Ele prosseguiu:
— O sapo ofereceu carona. O escorpião relutou, mas acabou aceitando, porque, de fato, o rio estava bem cheio. Subiu nas costas do sapo e os dois iniciaram a travessia. Quando já se aproximavam da outra margem, o sapo começou a ser arrastado pela correnteza, e passou a nadar de um jeito estranho. A todo instante afundava e voltava para a superfície. O escorpião desconfiou que o sapo estava fazendo aquilo de propósito, para o derrubar na água, afogá-lo e depois comê-lo. Foi nessa hora que o escorpião enfiou suas tenazes nas costas do sapo. As tenazes! Para se segurar com mais firmeza. Não o ferrão!
— Mas… e a frase “ferroar é a minha natureza”, que fecha a fábula? Foi tirada de onde?
— A conversa aconteceu, mas a frase foi outra: ao sentir as tenazes do escorpião enfiadas em suas costas, o sapo perguntou: “Você me ferroou?”. E o escorpião respondeu: “Ferroar até me daria mais firmeza. Pare de balançar ou não vou ter como evitar isso”.
— Essa versão da fábula é incrível! Confesso que nunca tinha ouvido falar dela!
— Porque você é um humano. Saiba que, entre nós, os escorpiões, essa história é muito conhecida. Até porque é a única verdadeira.
— Mas, se na sua versão da história, o escorpião não ferroou o sapo, então… eles não morreram?
— Não! Nada disso. O sapo ficou só um pouco ferido pelas tenazes do escorpião. Mas deu sorte. Logo que se afastaram um do outro, uma moça apareceu do nada e deu um beijo no sapo. Houve um tipo de explosão, e ele se transformou em um humano. Alguns meses depois eles se casaram. Quando seus filhos nasceram, ele contava para as crianças essa lenda do escorpião que ferroou covardemente o sapo. Uma mentira deslavada. Mas que foi sendo contada, de geração em geração, e por isso é que vocês, humanos, só conhecem uma versão da história: a versão do sapo.