Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Marcos Mairton - Contos, Crônicas e Cordéis sexta, 06 de março de 2020

O CHEQUE (CONTO DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

O CHEQUE

No período de 2006 a 2009, razões profissionais me levaram a percorrer muitas vezes a BR-304 – que corta o Estado do Rio Grande do Norte, de leste a oeste – viajando de Natal a Mossoró, ou vice-versa.

A certa altura do percurso, havia um restaurante, à beira da estrada, que servia comidas regionais: queijo coalho, macaxeira frita, carne de sol… À medida que se aproximava do local, o viajante ia encontrando pequenas placas, fixadas nas estacas de uma cerca, com os nomes das comidas que compunham o cardápio.

Restaurante de Campo era o nome do estabelecimento. O proprietário chamava-se Seu Alfredo, e tinha, na época, uns 70 anos de idade.

Era conhecido na região pelo temperamento instável e o limitado estoque de paciência. Uma espécie de Seu Lunga potiguar, sempre com uma resposta pronta e ácida para perguntas que considerasse inúteis ou inoportunas.

Bastava que um cliente desavisado pedisse o cardápio, para Seu Alfredo responder com uma pergunta:

– Num viu as placas, não?

– Vi, mas…

– Pois o cardápio é aquele!

– Puxa… não prestei atenção…

– Pois pegue seu carrinho e volte lá pro começo da cerca. O cardápio que tem é aquele.

Claro que ninguém voltava. Alguns clientes acabavam conseguindo lembrar de alguma coisa, enquanto outros simplesmente iam embora. Mas a maioria já pedia o cardápio sabendo que a resposta seria essa. Tudo não passava de provocação.

O tratamento dispensado por Seu Alfredo aos empregados também não era dos melhores.

Lembro de uma vez em que o garçom me serviu um refrigerante, quando eu havia pedido suco de laranja. Seu Alfredo – que costumava transitar por entre as mesas – perguntou-me se estava tudo certo com o meu atendimento:

– Tudo bem, Seu Alfredo. Só o meu suco de laranja que não veio. O rapaz trouxe foi refrig…

Antes que eu terminasse de pronunciar a palavra “refrigerante”, Seu Alfredo lançou um olhar fulminante em direção ao garçom e berrou:

– Francisco! O rapaz tá dizendo aqui que pediu suco de laranja e você trouxe refrigerante! Deixe de ser burro e traga o pedido certo! Aliás, essa parte do “deixe de ser burro” sou eu que tô dizendo! O rapaz pediu só pra trazer o suco dele!

Era assim. E não faltavam fregueses, em geral mais interessados em ver as demonstrações de truculência do Seu Alfredo, que na comida.

Outra característica folclórica do local era um letreiro enorme que havia, logo na entrada do restaurante, avisando que ali não se recebia cheques de determinado banco. O texto era mais ou menos o seguinte: “Recebemos cheques de qualquer banco, menos do banco X”.

Segundo se comentava, certa feita o tal banco havia devolvido um cheque do Seu Alfredo, por engano, embora houvesse saldo na conta. Foi o suficiente para ele não querer mais negócio com a instituição financeira até o fim dos seus dias.

Comentava-se que ele ficava ainda mais irritado que o normal, se ouvisse alguém pronunciar o nome do tal banco dentro do restaurante.

Pois se deu que, certa vez, resolvi testar a paciência do Seu Alfredo.

Fiz o meu pedido ao próprio Seu Alfredo, mas fui logo perguntando quanto daria a conta. Ele não gostava nem um pouco dessa pergunta:

– Rapaz… – disse ele, já demonstrando impaciência – como é que eu sei quanto vai dar a sua conta? Eu não sei nem se você ainda vai pedir mais alguma coisa…

– Eu sei, Seu Alfredo – repliquei. – Mas é que eu tô com pouco dinheiro, e só tenho cheque do banco X…

O homem ficou roxo. Parecia estar sufocando. Os olhos, fixos em mim, demonstravam algo entre a raiva e a perplexidade, como se não acreditasse que alguém havia tido a imprudência de tocar naquele assunto.

Passaram-se alguns segundos até que conseguisse falar novamente, mas a voz saiu com grande esforço. Como se movesse os lábios, mas o maxilar estivesse travado, pressionando os dentes inferiores contra os superiores:

– Faça o seguinte… coma e beba aí o que você quiser… se o seu dinheiro der pra pagar, você paga… se não der, tá tudo certo também, que eu não sou homem de negar um prato de comida a quem tá com fome…

Tive certo remorso por ter provocado Seu Alfredo daquela maneira. Mesmo muito irritado, ele falou demonstrou nobreza de sentimento: não era homem de negar comida a quem não pode pagar.

Recuperando novamente o fôlego, ele retomou o uso da palavra:

– Agora… essa porcaria desse seu cheque… você vá passar ele lá da baixa da égua pra uma banda… que aqui essa desgraça não entra, nem que eu engrene!

E afastou-se de mim, sem mais nada dizer.


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