AS BRASILEIRAS: Rosa Egipcíaca
José Domingos Brito
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz nasceu em 1719, na Costa de Ajudá, atual Benin, África. Escravizada e autora do mais antigo livro escrito por uma mulher negra na história do Brasil: Sagrada teologia do amor divino das almas peregrinas. Capturada pelo tráfico negreiro, aos 6 anos, foi trazida para o Rio de Janeiro. O nome Egipcíaca foi dado em referência à Santa Maria Egipcíaca.
Viveu no Rio de Janeiro prestando serviços domésticos até 1733, quando foi vendida para a mãe do Frei José de Santa Rita Durão e levada para Minas Gerais. Pouco depois caiu na prostituição e teve uma enfermidade. Neste período passou a ter visões místicas, levando-a a deixar o meretrício e se tornar beata. Em 1748 se desfez de seus bens, distribuindo tudo aos pobres. Passou a se dedicar aos ofícios divinos e em diversas ocasiões foi tomada por espíritos, segundo o vigário, malignos. Foi exorcizada algumas vezes e fazia sermões edificantes alternados entre visões de Nossa Senhora da Conceição e comportamentos estranhos, como se estivesse possuída por demônios.
Tais sermões levaram-na a ficar conhecida em Mariana, Vila Rica e São João del-Rei. Levada ao Bispo de Mariana, foi acusada de embusteira, sendo açoitada no pelourinho da cidade. Sobreviveu aos castigos e teve o lado direito do corpo semiparalisado. Pouco depois foi novamente analisada pelo frei Manoel da Cruz; passou por uma série de testes e concluíram que tudo era fingimento. Com tal diagnóstico o povo passou a chamá-la de feiticeira, tornando sua vida insuportável, fazendo-a retornar ao Rio de Janeiro, em 1751, numa fuga a pé percorrendo 500 km.
Diz-se que, motivada por inspiração espiritual, aprendeu a ler e escrever e passou a revelar seus dons sobrenaturais ao Provincial dos Franciscanos, Agostinho de São José, que se tornou seu mentor espiritual. Sua devoção extrema, jejuns prolongados, comunhão frequente e autoflagelação levaram os franciscanos a chamarem-na de “Flor do Rio de Janeiro”. Ainda em 1751 fundou uma casa com o nome de “Recolhimento do Parto”, destinado a receber ex-prostitutas e manter orações, que atraiu a atenção da população. Em pouco tempo passou a ser adorada por fiéis que a procuravam de joelhos, beijando-lhe os pés e venerando suas relíquias. Suas cerimônias católicas eram misturadas com ritos africanos, como o hábito de pitar cachimbo.
Por esta época escreveu a Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas, um livro de cerca de 250 páginas, que foi considerado como heresia e parcialmente destruído pelo seu confessor e ex-exorcista Pe. Francisco Gonçalves Lopes, conhecido como Xota-Diabos, tendo em vista preservá-la da Inquisição. Conta a história que ela se indispôs com o clero ao “dizer-se mãe de Deus redentora do universo, superior a Santa Teresa, objeto de verdadeira e herética idolatria em seu recolhimento, além de capitanear rituais religiosos sincréticos igualmente suspeitos".
Tais histórias contadas pelo povo relatam que em dado momento, ela chegou a dizer que o menino Jesus diariamente ia pentear seus cabelos e, em agradecimento, dava-lhe de mamar. Certamente, tais declarações irritaram os padres, que a entregaram aos oficiais do Santo Ofício da Inquisição, em 1763. Foi enviada ao cárcere, em Lisboa, onde não desmentiu suas visões e experiências sobrenaturais e veio a falecer, em 12/10/1771.
Em fins da década de 1980, o antropólogo Luiz Mott realizou uma pesquisa de fôlego sobre o fenômeno e publicou, em 1993 o livro Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil pela Editora Bertrand Brasil. O livro despertou o interesse público em conhecer melhor a história dessa mulher, suscitando a publicação de diversos artigos em revistas acadêmicas. Segundo ele, Rosa Egipcíaca "é certamente a mulher negra africana do século XVIII, tanto em África como na diáspora afro-americana e no Brasil, sobre quem se dispõe mais detalhes documentais sobre sua vida, sonhos, escritos e paixão".
Outro livro que alavancou o interesse por essa história foi o romance ficcional Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz: a incrível trajetória de uma princesa negra entre a prostituição e a santidade, publicado por Heloisa Maranhão, em 1997, pela Editora Rosa dos Tempos. Segundo o historiador John Russel-Wood, em seu livro Escravos e libertos no Brasil colonial (2005), "Rosa Egipcíaca abre uma janela para a história das mentalidades de uma sociedade escravocrata e também dá identidade e individualidade a uma mulher africana, escrava e depois livre, no mar de anonimidade conferido aos escravos e aos indivíduos de ascendência africana livres no Brasil".