Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas sexta, 12 de março de 2021

O JURAMENTO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O JURAMENTO

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

 

- Nunca mais, meu prezado senhor, tive tranqüilidade na minha vida; e vinte séculos que viva, vinte existências que tenha na terra, serão para pagar com o remorso de cada dia, ou, antes, de cada noite, o horror daquela vingança!

~ "Cap Finisterre" havia deixado, na véspera, o porto do Havre, quando travamos relações, eu e aquele cavalheiro, no "bar" do navio. Era um homem velho, magro, de grande ossatura, tipo de Quixote dos Pampas, a que não faltava, sequer, a barbicha comprida e rala, suja como a dos bodes. Não obstante os meses passados no clima suave da Europa, a sua pele conservava aquela tonalidade escura e áspera das feias do vento e do sol. Os olhos, miúdos, vivos, desconfiados, escondiam-se órbitas fundas, sob as sobrancelhas pesadas, como duas onças em duas furnas, mascaradas de erva grosseira. Chamava-se Ramon Gonzalez y Gonzalez, e era, dizia ele, industrial à margem do rio Bermejo, no extremo norte da Argentina. Possuía, ali, serrarias de madeira, além de algumas fazendas de gado, no sul, onde vivia ultimamente, em luta, sempre, com a natureza bravia.

- O caso, porém, que me atormenta a vida, meu caro senhor, ocorreu no norte, há trinta anos. Eu tinha, então, quarenta.

A noite estava linda, como, em geral, as noites de estio, ao largo da costa francesa, à entrada do Atlântico. Uma lasca de lua, fina e loura, tomava posse do céu, em nome de Maomé, dando-lhe, com as suas estrelas, a feição de grande pavilhão turco. De baixo, do bojo do navio, subia o ronco fatigado das máquinas, no esforço esclerótico das caldeiras. E, de quando em quando, o ruído fresco de uma vaga arrebentada no costado de ferro, e caindo de novo, em forma de chuva grossa, sobre as espumas de outra onda nascida para morrer.

- Foi em Corrientes que eu a conheci, - começou o ancião, enquanto virava o seu terceiro "whisky and soda". - Filha de um velho amigo meu, era quase menina, quando a vi, na visita que fiz ao pai, meu antigo companheiro de colégio. E, ao regressar a Concepción dei Bermejo, onde ficavam as minhas propriedades, levava-a nos olhos, na alma, no coração. Chamava-se Consuelo, era cândida e fugitiva como as espumas deste oceano que rebenta lá fora. Tamanha foi, em suma, a impressão que me deixou, que, um mês depois, eu regressava a Corrientes, para pedir-lhe a mão, em casamento.

- Casou...

- Não; não casei. Consuelo não quis, e o pai, vendo-a vinte e quatro anos mais moça do que eu - ela andava pelos dezesseis - não a contrariou. Conformei-me com isso, mas pedi-lhes que se conservassem meus amigos; que me não esquecessem; que me olhassem como um parente; que me fossem, enfim, visitar em Concepción, para que não ficasse, de tudo aquilo, o menor ressentimento. Dentro em mim, porém, rugia o jaguar do egoísmo, o despeito do leão velho, que não pudera devorar, como sonhara, a corça tenra que vira na campina. Aquele coração havia de, um dia, pertencer-me. Era o meu juramento de morte.

Bateu na mesa, com a sua grande mão de esqueleto, e pediu:

- Garçon, outro "whisky"

Limpou a boca com as costas das mãos, como quem está habituado a beber nas tavernas ou no campo, às pressas, sobre o dorso de um cavalo. E reatou:

- No fim do ano, em Dezembro, foram a Concepción, visitar-me, o pai e a filha. Cerquei-os de gentilezas, de festas, de carinho. Fazíamos passeios longos, os três. E foi em um destes que se deu a desgraça.

- A desgraça?

- Sim, senhor. Tínhamos planejado uma visita ao alto Soledade, onde eu havia adquirido uma grande extensão de terras, para extração de madeiras. O senhor não conhece o alto Bermejo... Conhece? Era floresta virgem, soturna, impenetrada. Desembarcamos em Guahija, pequeno porto para exportação de lenha, e entramos pela mata, viajando a manhã toda. O senhor não imagina o que são aquelas matas! Eu tenho a impressão de que as selvas do seu Amazonas são assim. Árvores que dois homens não abarcam, cerram fileiras, uma ao lado da outra, numa extensão de centenas de quilômetros. E lá em cima, sobre esses milagres de colunas poderosas, é o toldo verde e fechado, que não deixa passar gota de chuva e que o sol só atravessa, ao meio-dia, em forma de claridade... E começava a entardecer, quando fomos assaltados pelos índios xurupinás, que são os mais terríveis toda a região.

- E então?

- Então, foi o infortúnio. Presos, manietados com cipós, fomos conduzidos ao acampamento dos indígenas, sete léguas diante, mato a dentro... E como me recordo, ainda, dessa travessia pela floresta, tarde toda, e depois, noite fechada! Olhos arregalados de terror, os pulsos arroxeados pelos cipós, Consuelo não tinha uma lágrima, e caminhava mais arrastada do que pelos seus próprios pés. Os cabelos, os seus lindos cabelos negros e fartos, libertos da opressão do chapéu de feltro, rolavam-lhe pelos ombros, pelo colo, pela testa, cobrindo-lhe, às vezes, o rosto todo.

E abrindo um parêntese na narração:

- O senhor já viu coisa que mais excite um homem, despertando-lhe toda a bestialidade, do que o corpo da mulher martirizada? Semi-nua, com os lindos seios morenos pulando quase da camisa esfarrapada, o colo arranhado, o rosto porejando sangue, pelo esforço físico e pelo pudor, Consuelo acordava-me na alma de namorado sem esperança um pensamento diabólico. Eu marchava para a morte, mas marchava calmo, resignado, feliz. Talvez não trocasse, naquele momento, aquele caminho, recoberto de espinhos dilacerantes, pelo mais florido da terra!

Outra incidência:

- Porque, o senhor sabe, acaso, o que é amar uma criatura, sabendo que nunca a possuirá? Já imaginou, porventura, o que é ver, saber, conhecer que a mulher que se ama, que se adora, e que nos despreza, vai cair nos braços de outro homem, dando a outrem, com o seu beijo, com a flor do seu corpo moço, a felicidade que sonhamos para nós? Se sabe, se imagina isso, pode compreender a minha serenidade, ao ver na iminência de ser destruída, sem crime da minha parte, e para sempre, a taça em que eu pretendia beber... Consuelo não seria minha, não me daria o seu beijo, o seu corpo, mas também, não pertenceria, nunca mais, a ninguém...

Mergulhou as mãos, nervosamente, nos magros cabelos grisalhos, arrepiados no crânio, como penas da crista de um pavão, e reatou:

- Antropófagos, os xurupinás devoraram, nesse mesmo dia, os dois homens da condução. No dia seguinte, pela manhã, comeram o meu amigo. Restávamos eu e Consuelo.

Uma pausa, e tornou:

- A mim, eu sabia que me não devorariam tão cedo. Eu estava abatido, cadavérico. A paixão vinha-me devorando, há meses, secretamente, como o fogo ao algodão. Estava quase ossificado. E eu sabia que o índio não come, nunca, a presa nessas condições. Prefere engordá-la, cevá-la, tratando-a durante semanas, durante um ano inteiro.

- E a moça?

- Consuelo era linda e forte. Vi quando a mataram, com uma pancada vigorosa no crânio... Como são feios os miolos, aparecendo, ensangüentados, entre a pasta dos cabelos!... Vi quando um dos seus seios, tão redondo, tão rígido, tombado do jirau, rolou na areia do chão, onde um velho cachorro o tomou nos dentes, indo devorá-lo escondido... Vi quando a esquartejaram, quando a retalharam, quando a distribuíram, em pedaços sangrentos. Impassível, como num sonho, eu via tudo. E Só despertei do meu pasmo, quando um dos índios, o chefe, que tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta de gordura, me veio perguntar, em um gesto, que pedaço eu queria. Olhei as postas de carne fria, sobre as quais as moscas zumbiam, com fúria: a mão miúda, de dedos contraídos, em um dos quais estava, ainda, um anel que eu lhe dera; um dos pés, meio devorado e com as cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça quase esfacelada, pendurada a um esteio pelos cabelos; a sua perna; a sua coxa; um dos seus braços, o mais lindo que eu tenho visto... Indiquei um pedaço de carne roxa, que aparecia, repugnante, entre as vísceras, o qual me foi trazido, e que eu comecei, também, a devorar.

Estremeceu todo, e concluiu, enquanto um arrepio de horror me sacudia:

- Era o coração. Havia cumprido o meu juramento...

E batendo, com força, na mesa:

- "Garçon", outro duplo!


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 11 de março de 2021

O ANJO (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

O ANJO

Dalton Trevisan

 

É um anjo, não há dúvida: apalpo, um tantinho gordo e cheiro, um pouco suado. Tem uns apóstolos-suspeitos, que inventam cada milagre! Um anjo, para falar a verdade, decaído, sujo, asa esquerda rasgada. Ao que se soube, dera um salto duplo (tentativa sacrílega de suicídio?) do terceiro vitral na igreja do Bom Jesus.

Feliz da vida, agora se diverte atirando batatinha frita na cabeça das damas da noite que às três da matina tomam sopa de cebola no Bar do Luís. Saúda pelo nome quem chega, sabe os segredos íntimos de todo mundo, cafifas, bofes e coronéis.

De repente a confusão: acusa um guarda-noturno de ter-lhe surrupiado o relógio de pulso (anjo, é sabido, odeia relógio). O guarda exige sua carteira de identidade, ele declara a condição de anjo --- epa! leva um murro no olho.

O anjo numa cuspidela muda-o em botelha de rum da Jamaica, que bebemos todos, o anjo a piscar o olhinho roxo.

Senta uma dama alegre no colo e quer por força um ósculo (linguagem de anjo, ósculo!). Ela se nega, a boca é para beijar o filhinho. O anjo a arrasta pelos cabelos para baixo da mesa onde, entre ossos de frango e espuma de cerveja, dorme por sete dias (na versão de jornais sensacionalistas).

Invocado, o anjo estranha a costeleta do leiteiro que chega manhã cedinho. Xinga-o de quanto nome feio, o leiteiro saca uma navalha, epa! risca em cruz o nariz do anjo. Esse não pode ver sangue e cai durinho de costas.

Pronto levanta, sacode o pó da asa em frangalhos, cadê o leiteiro? Se escafedeu, longe na carrocinha a galope. Tempo de afastar a atenção geral. Pudera, um anjo baderneiro!

Estala os dedos: encarna as moscas sobre a mesa em bombons de licor, que oferece às musas dos inferninhos. E os garçons em aves do paraíso que se penduram nos globos de luz.

Nessa hora, para ver o anjo, há barricadas nas portas e feros combates na cozinha.

O fim do anjo é triste: surge do meio do nada o maestro Remo de Pérsis e, abraçados, rompem em dó de peito a protofonia do Guarani.

Fatal: antes que puxe do braço uma terceira asa de reserva... Ai, não, linchado pela multidão em fúria. Aos berros de Morte ao tarado!

Mortinho, ninguém mais duvida. É anjo de verdade, na roupinha nova de marinheiro.

Ainda não vi outro anjo.

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 10 de março de 2021

O TESOURO (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

O TESOURO

Coelho Neto

 

Já sem forças para lidar nos campos com os pesados ferros da lavragem, prevendo a miséria próxima, Serapião saía todas as manhãs de casa firmado ao bordão, e vagarosamente percorria os caminhos do sítio, chegando até onde lhe permitiam as pernas fracas. 
 
Repousava nas barrancas, à beira da água ou à sombra de alguma árvore, e ficava esquecidas horas, relembrando o tempo de sua mocidade, quando, brandindo uma foice, roçava o mato bravio, fazendo ele só a tarefa que dois homens de hoje não seriam capazes de levar a termo.
 
E como vivia feliz! A casa farta, a família contente, porque a terra correspondia com abundância de flores e de frutos aos cuidados do lavrador!
 
Agora, entretanto, as laranjeiras morriam carregadas de erva de passarinho, os cafeeiros desapareciam abafados pelo mato; nem uma raiz de mandioca, nem um pé de milho; o vassoural invadia as terras, e as cobras, sentindo o abandono, cruzavam os caminhos ou dormiam ao sol, enroscadas, à beira ao antigo açude seco.
 
Todavia aquelas terras podiam levar vantagem às outras da redondeza, não só por serem mais férteis, como porque nela viviam seis robustos rapazes, o mais velho contando trinta anos, o mais novo tendo apenas dezoito.
 
Filhos de Serapião, órfão de mãe, levavam vida ociosa, uns às portas das vendas fumando, conversando, outros em casa estirados nas redes, afinando violas, sem pena do velho pai, sem cuidados no futuro. Indolentes, para não saírem sem busca de trabalho, contentavam-se com a magra ração de farinha de milho que lhes dava uma negra, antiga escrava da família, que não quisera apartar do sertanejo.
 
De vez em quando, a muita instância, um saía a caçar, e, enquanto durava a carne do fumeiro, zangarreavam e dormiam.
 
Serapião suspirava; mas, como meigo para os filhos, não lhes dirigia uma palavra áspera, lembrava-lhes apenas a fome, nos dias futuros, o frio, as moléstias: mostrava-lhes o sapé da palhoça apodrecido, o adobe esburacado, os currais vazios, e, nos poleiros, nem um galo sequer para anunciar as madrugadas.
 
Eles, porém, sempre estirados, respondiam com a resignação dos fracos e preguiçosos:

— Deus é grande, meu pai...
 
Sucedeu, porém, uma grande seca, e todo o sertão foi lastimosamente devastado pelo sol.
Os que tinham bens acumulados puderam fazer face ao flagelo; os pobrezinhos, porém, esses caminhavam noite e dia pelas estradas secas e poentas, batendo os matos, chafurdando nos pântanos lodosos em busca de frutos e raízes. Tudo, porém, o sol devastador levara. Os pássaros eram raros, e no campo nem uma preá saltava à vista do caçador faminto. O gado, sedento, mugia angustiadamente; e à noite, nos casebres, juntavam-se os bandos de infelizes rezando, em coro aflito, ladainhas de misericórdia. Serapião e os filhos sofreram como os mais desgraçados.
 
Porque nada possuíam, nada lhe fiavam; de sorte que, enquanto duraram os dias tremendos, os infelizes erraram pelas trilhas, catando ervas, procurando raízes. Às vezes caíam exaustos na poeira das estradas, gemendo, de fadiga e de fome; e emagreceram tanto, que os ossos apareciam a flor da pele.
 
O velho sofria calado, e menos tormento lhe causava a fome do que a miséria em que viviam os filhos desalentados, pedindo a morte, preferível a tão duro e longo sofrimento. Afortunadamente, chegaram as águas benditas.
 
Chuvas torrenciais alagaram os campos, e com tal abundância, que os rios, assoberbados, espraiaram; e as terras, fecundadas, entraram a produzir fazendo brotar a sementeira, explodindo em verdura. No sítio, porém, só a erva brava ganhou com as grandes águas: dilataram-se os vassourais, o sapé alastrou abundantemente, e, como aparecessem aves e das tocas saíssem ariscamente as pacas, os rapazes, esquecidos do flagelo, voltaram à vida preguiçosa, buscando os alpendres das vendas, ou estirando-se nas esteiras, na varanda da palhoça esboroada pelo tempo.
 
Serapião, porém, quis incitá-los ao trabalho, lembrando-lhes o que haviam sofrido durante o mês árido de soalheira e penúria; mas como dantes, todos, a uma, responderam-lhe: — “Deus é grande!”— E um deles desleixadamente ajuntou: — “E para que nos havemos de estafar, se nunca chegaremos a ser ricos? Os que menos trabalham são justamente os mais favorecidos. Se alguma coisa nos tiver de vir às mãos, não é preciso que a vamos procurar: a porta está sempre escancarada, entra por ela o sol, entra por ela a noite; a fortuna pode entrar também...”
 
Ouvindo palavras tais, o velho ergue-se lentamente, tomou o cajado e partiu: era ao cair da tarde, os juritis gemiam. A noite veio: a preta, para afugentar os morcegos, fez um fogo de gravetos; e, em torno da chama, acocorados, reuniram-se os rapazes, até que um deles, o mais moço, vendo a lua alta no céu, e dando pela ausência do pai, perguntou: — Que é feito de nosso pai? Que andará fazendo, a horas tais, lá fora, ao relento da noite fria?
 
E outro, com um frêmito pressagio, disse, baixinho e a medo: — Quem sabe se não lhe sucedeu algum desastre? É tão velho, mal vê e anda com tanta dificuldade... Quem sabe se não rolou de alguma ribanceira?
 
Ficaram algum tempo silenciosos, os olhos fitos na lenha que crepitava; um deles, porém, o mais velho, ergueu-se resolutamente; e foi mais forte do que a preguiça o amor no coração do moço:
 
— Vamos! Não podemos ficar aqui agasalhados quando o nosso velho pai treme de frio, e geme, talvez, estropiado no fundo de alguma grota. Vamos! — E todos, levantando-se, travaram dos cajados e disseram: — Vamos!
 
Saíram. A noite, de um esplêndido luar, era luminosa e pura: as estrelas alvas branqueavam por entre a verdura e as árvores pareciam galvanizadas de prata.
 
Grande era o silêncio, apenas interrompido aqui e ali pelo trilar dos grilos e pelo chilro de algum pássaro aninhado; longe rolavam águas com um perene murmúrio.
 
Eles seguiam, ora pelos pedrouços dos caminhos, ora mergulhados no sapezal ondulante, bradando sempre: — Meu pai! — o eco, apenas, respondia.
 
Já os rapazes faziam estranhas e terríveis conjecturas acerca do velho sertanejo, quando um deles que se avantajara em passos gritou de longe:
 
— Aqui! Aqui! — correram todos para o sítio de onde saíra a voz, e lá, com alvoroço, foram encontrar Serapião sentado sob a galhada protetora de uma veneranda mangueira, sorrindo contente.
 
Os rapazes, reunindo-se em círculo, puseram-se a falar da imprudência do pai, e levantaram-no carinhosamente, insistindo com ele para que os acompanhasse à casa.
 
Serapião, porém, sorrindo sempre, apenas dizia, num grande contentamento: — Ah! Se vocês soubessem... se vocês soubesse! — Os rapazes, intrigados com as palavras do velho, cercavam-no, perguntando: — Mas que é? Mas que é? Por que não dizes? Que segredos podes ter para seus filhos?
 
— Deus me dê forças para guardá-lo sempre! Para que hei de contar-vos tal segredo: Não haverá amanhã um homem que o não conheça, e quando o conhecerem os homens... pobre de mim! Se eu vos julgasse capaz de guardá-lo, decerto que a outros não o confiaria, — mas de que me servirá saberdes o que me disse a Iara?
 
Ouvindo isso, os rapazes arremeteram curiosamente, e, apertando o velho, interrogavam-no curiosos:
 
— Iara! E tu falaste a uma Iara, pai? A uma Iara, pai?
 
— Sim, — disse o velho com fingida tristeza, — já que me escapou parte segredo, sabei que aqui, debaixo desta mangueira velha, veio ter comigo uma iara do rio.
 
— Uma iara do rio!...
 
— Uma iara do rio. Toda nua, tinha apenas para cobrir-lhe o colo os cabelos, verde como o limo das pedras; era branca como a espuma das cachoeiras, e os olhos, tinham mais brilho que a estrela d’alva...
 
— Tu sonhaste, pai! — disse o mais moço dos filhos.
 
— Por Deus, que não sonhei! Vi uma iara do rio, afirmo e juro. Ainda podeis ver o caminho úmido, da água que gotejava dos seus cabelos verdes.
 
— Sim! Estão úmidos os caminhos, porque o relento da noite os umedece.
 
— Por Deus! Estão úmidos das gotas que rolaram dos cabelos verdes da iara. E mais: não vos fica bem essa dúvida, meus filhos, quando é vosso pai quem vos fala. Já vos menti alguma vez?
 
— Nunca! — disseram todos.
 
— Então chegai-vos bem para mim, bem perto; que eu vos fale, mas que o vento da noite não leve além uma só das palavras que eu vos disser, uma só das palavras que me disse a iara. Chegai-vos bem para mim, bem perto!
 
E os rapazes apertaram-se em volta de Serapião. — Agora, — continuou o bom velho, — jurai por Deus que nem uma só das palavras que ides ouvir passará dos vossos lábios para os ouvidos de outrem.
 
— Juramos!
 
— Prestai atenção, para que eu não me canse de repetir-vos. Esta terra que o céu alumia, — disse com mistério o velho — esta terra que nós pisamos guarda um valiosíssimo tesouro. Quem o escondeu foi o velho pajé de uma tribo forte, quando a nossa terra foi invadida pelos descobridores. Escondeu-o e partiu, internando-se nas selvas não desbravadas, certo, porém, de que não fora visto enquanto cavava o esconderijo para o seu tesouro. Se homem não havia a espreita, — a iara, por entre as tábuas, espiava, e conhece o sítio em que se conserva a riqueza maravilhosa.
 
— E te disse? E indicou-o, meu pai? — acudiram todos os rapazes com ambição.
 
O velho, porém, moderando as palavras, continuou: — Não, mas prometeu fazê-lo no dia em que os cafeeiros, em vez de flores de prata, desabrochassem flores de ouro.
 
Os rapazes entreolharam-se pasmados.
 
— Vejo que não acreditais nas minhas palavras, filhos; é natural: eu, mais velho do que vós, também sorri da expressão da iara, e foi preciso que ela, para que eu acreditasse me dissesse: — Velho, nada é impossível! Para que os cafeeiros, em vez de flores alvas que costumam tocar sua rama, deem flores da cor do ouro basta que os não esqueçais, que os não deixais abafados pela erva perniciosa; basta que se lhes chegue a terra, que se lhes dê o adubo, que se lhes faça a limpeza em redor do tronco, a fim de que os aqueça o sol e as chuvas se entranharem até as suas raízes; isto feito, em pouco vereis os cafeeiros dourados, e, nesse dia, eu virei mostrar-vos o sítio onde o pajé guardou, numa enorme igaçaba, o tesouro da tribo!
 
Os rapazes, entendendo-se com os olhos, suspiraram, e um deles, oferecendo arrimo ao pobre velho, disse-lhe:
 
— Vamos, meu pai. Faz frio, a noite vai alta e em casa arde um lume que vos há de fazer bem!
 
E caminharam vagarosos através dos campos iluminados pelo luar silencioso.
 
Ao amanhecer, porém, os rapazes, despertando, viram deserto o catre do velho pai, e logo, tomados de apreensões, ergueram-se:
 
— Onde terá ido tão cedo? Que terá ido fazer?
 
— É a loucura de velhice que assim o faz andar desatinadamente, — respondeu o mais velho à pergunta do mais moço.
 
— Melhor é que o vamos buscar ao campo e que o tenhamos sempre junto de nós, vigiado como uma criança.
 
— Sim, vamos buscá-lo ao campo.
 
E foram. Não andaram muito, porque logo ouviram a voz de Serapião que cantava, e a pancada seca de uma enxada batendo a terra.
 
— Trabalha! — exclamou maravilhado um dos rapazes.
 
— Trabalha! disseram todos; e embrenharam-se.
 
Efetivamente o velho trabalhava, capinando, eito acima, uma rua de café.
 
O suor escorria-lhe da fronte, onde os cabelos formavam pastas, o suor pingava-lhe da barba; e o peito, que a camisa entreaberta desnudava, reluzia úmido. Vendo-o, os filhos bradaram:
 
— Oh! Que fazes aí, pai?
 
O velho risonho, com os pequeninos olhos iluminados de um fulgor estranho, voltou-se esfregando as mãos, com o cabo da enxada encostado ao peito: 
 
— Que faço? Pois não vedes? Luto, a ver se consigo despir dos matos e das parasitas os cafeeiros para que se cumpra a promessa da iara do rio. Ao menos morrerei tranquilo, se vos deixar o necessário para que não tenhais uma velhice triste como a que eu arrasto!
— E tu, só, queres dar cabo de tanto?
 
— Eu só, já que me deixais só. Mais depressa viria o tesouro às nossas mãos, se fôssemos todos a trabalhar; mais depressa viria a fartura e a paz; assim virá mais vagarosamente, mas que me dê forças o Senhor e saúde, e eu não dormirei contente enquanto não tiver da iara o melhor da promessa.
 
Ouvindo-o falar assim, com tão segura convicção, um dos rapazes disse ao outro, em segredo:
 
— Quem sabe se o que julgamos alucinação de velhice não é verdade? Não é mais prudente nem mais avisado do que ele o mais notável dos nossos homens conterrâneos; ninguém o apanhou jamais em falsidade; todos lhe pedem conselhos, todos o querem ouvir; e tal não aconteceria, se lhe percebessem desatinos, vindos da razão enfraquecida. Quem sabe se não é verdade?
 
— Sim, quem sabe?
 
— Falam tanto de encantamentos! Melhor seria tentarmos. Juntos, em pouco tempo, daremos conta da tarefa, e talvez apareçam nos cafeeiros as anunciadas flores de ouro. E que regalo, se encontrarmos a riqueza da tribo!
 
— Melhor do que o fazendeiro mais rico...
 
— Muito melhor, por certo!
 
Já o velho tornara à terra, cantando, quando os rapazes, concertados, desceram à casa, rebuscando entre os ferros esquecidos os melhores; e tomando deles, meteram-se pelos matos densos. À tarde caía o crepúsculo nevoento, e o velho descia a caminho da casa, quando viu, com alegre surpresa, os filhos em turma, trabalhando. Deteve-se; e a emoção foi tão forte em sua alma, que as lágrimas saltavam violentas dos olhos do sertanejo; e quem por perto dele passasse ouviria o que disse comovidamente: — “Bendita iara! Bendita iara!” E foi-se cantarolando, risonho e feliz, com a enxada no ombro.
 
No dia seguinte, ao luzir d’alva, Serapião erguia-se do catre, quando o mais velho dos filhos procurou-o:
 
— Fica! — lhe disse; — não é preciso que venhas ao campo. Se for verdade o que te disse a iara, dentro em pouco verás limpos de toda a erva os cafeeiros. Somos mais robustos do que tu; fica e descansa.
 
E o velho disse:
 
— Ide, e que Deus abençoe o vosso trabalho; eu fico, e para que a inércia não me amolente o corpo e o espírito, trazendo a preguiça e os pensamentos tristes, vou distrair-me reparando os estragos que o tempo tem feito na cabana que nos abriga. De volta, à tarde, trazei o sapé para substituir o colmo que mal nos resguarda das chuvas e eu mesmo cobrirei a cabana. É justo que quem trabalha durma tranquilamente, sem que as goteiras o façam andar com o leito dum para outro sítio. Ide! E que Deus abençoe o vosso trabalho!
 
E os rapazes partiram.
 
O velho ficou, e, conforme a promessa que fizera, pôs-se a retocar os muros abertos em frinchas; e à noitinha, quando os filhos entraram, mostrou-lhes o trabalho que havia feito, e eles entregaram-lhe os feixes de sapé que haviam cortado; e sentaram-se à mesa, comendo com apetite e satisfação. O velho, sempre ao fim do repasto, dizia à maneira de oração: “A iara deve estar satisfeita; dentro em pouco terá perdido o seu encanto”.
E assim passou o ano.
 
Os rapazes, por vezes, desanimavam; mas sempre havia um, mais ambicioso, que acoroçoava os outros:
 
— Que! Pois agora que vai em tão bom seguimento o trabalho, é que vocês querem deixá-lo? Vamos! Quem sabe se já não estão abotoando as flores de ouro?
 
E, assim excitados, tornavam todos à terra.
 
E veio o tempo das colheitas.
 
O milho e as canas faziam um extenso mar dourado, ao sol; os arrozais alastravam os alagadiços com um fino tapete de veludo verde; o mandiocal cobria com a sua rama as encostas outrora secas; o feijão, enroscando-se nos pés de milho, subia tanto, que se confundia com as espigas louras; e tudo prometia uma colheita abundante.
 
Os rapazes suspiravam: “Estavam carregados de flores os cafeeiros... ah! Mas não eram de ouro as flores. De que lhes serviria tanto esforço, ao sol?
 
— Perseverança, meus filhos! Perseverança! — as flores de ouro hão de vir, as iaras não mentem. Vamos tratar de recolher os primeiros presentes da terra. E começaram a colher; mas eram em tal abundância os produtos, que os rapazes tiveram necessidade de recorrer aos vizinhos, alugando carros e gado para transportar os frutos; e, como todos viam a prosperidade do sítio, ninguém recusou o que pediam os rapazes, e mais ainda lhes ofereciam.
 
Gente supersticiosa, porque desconhecia o caso do tesouro, começou a murmurar: — que ali andava a mão do diabo! Terras, ontem tomadas pelo mato, como podiam estar assim tão florescentes?
 
E fugiam do sítio os supersticiosos, inventando lendas tenebrosas.
 
Vendida grande parte da colheita, com o produto os rapazes desceram à feira, e comprando gado, aves, e novos instrumentos; sortiram a despensa, encheram os paióis, e tiveram abundância e alegria. O velho, contente, saía a tarde para o terreiro, e chorava lágrimas de alegria, vendo que se ia lentamente realizando a promessa da mãe d’água. Já se ouvia o mugido dos bois nos campos dantes tão silenciosos; e todas as manhãs, a preta saía com uma grande malga para ordenhar as vacas; as ovelhas balavam, galinhas cacarejavam; nas cevas, grandes porcos roncavam, e já as manhãs não passavam sem o canto alegre dos galos: agora eram seis a cantar no poleiro.
 
Mais outro ano passou, mais farto do que o primeiro; os filhos, porém, apesar de verem as árvores vergadas ao peso dos frutos, suspiravam: “por que não vinham aos cafezais as flores de ouro?!”
 
— “Perseverança, meus filhos; perseverança! dizia o velho. — As flores de ouro hão de vir, as iaras não mentem”.
 
— E recolhia à grande arca o que os filhos traziam do mercado, onde haviam ido vender os produtos do sítio.
 
Seis anos depois, já os rapazes tinham desesperado da promessa da iara; mas, como se haviam habituado ao trabalho, saíam todas as manhãs para os campos que eram então os mais belos e os mais férteis da redondeza. O velho enfermou gravemente, sendo levado em braços para o leito.
 
Os filhos, tristes, cercavam-no; e já a vista se lhe turbava, quando ele acenou tremulamente, chamando para bem perto todos os rapazes, e, sentindo-os junto ao leito, disse:
 
— Meus filhos, já agora posso falar, dizendo-vos o melhor segredo da iara. Habituaste-vos ao trabalho, e certo estou de que o não trocareis mais nunca pela vida inerte que leváveis. A alegria está conosco, temos a abundância e a paz, nada nos falta. Já não mendigamos o pão com que nos alimentamos, nem a lã com que nos cobrimos; o vento já não zumbe nos quartos da cabana de muros brancos; lá fora o gado procria; já não basta um curral para conter as crias que vão nascendo; as árvores estão carregadas de frutos, e já não andais descalços nem cobertos de andrajos: tendes tudo, e mais ainda: a consideração dos homens, que já não vos apontam como frequentadores de estradas, desconfiando de vós se lhes faltava uma ovelha ou um fruto no galho... bem vedes que não vos menti!
 
O mais moço, porém, que tudo ouvira em silêncio, não se conteve, vendo que o pai, casado, emudecera:
 
— Mas os frutos de ouro, meu pai... a promessa da iara?
 
— Os frutos de ouro? Ah! Os frutos de ouro... eu os fui ajuntando, para fazer-vos a surpresa, e tenho-os ali, naquela velha arca. Ide ver! A chave está comigo, procura-a debaixo do meu travesseiro! 
 
E o mais moço, ouvindo as palavras do moribundo, procurou a chave; e, achando-a, correu com ela para a grande arca, cercado de todos os irmãos; e, quando abriu, um grande grito saiu de todos os peitos: — Oh!
 
Estava atopetada de ouro! E os rapazes, mal contendo a emoção, precipitaram-se para junto do leito do moribundo:
 
— Que fortuna é essa, pai?
 
E o velho, com a voz enfraquecida, disse:
 
—É o tesouro da iara que estava escondido na terra!
 
— E foste tu que o descobriste?
 
— Eu, não, meus filhos: apontei-vos apenas o caminho! Quem descobriu fostes vós, com o vosso trabalho perseverante; eu acumulei com economia, e agora entrego-vos o que vos pertence. E sabei, filhos meus! Em todo e qualquer ponto da terra há um tesouro escondido, cuja descoberta só é possível fazer-se com o trabalho. Tendes agora abundância e paz; e, se quiserdes aumentar a vossa fortuna, voltai à terra, — que ainda e sempre achareis o que extrair de suas entranhas. Lembrai-vos da iara, lembrai-vos da iara...
 
E, sem mais dizer, cerrou os olhos docemente, repousando a cabeça no travesseiro.

Literatura - Contos e Crônicas terça, 09 de março de 2021

MEDO DA ETERNIDADE (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

MEDO DA ETERNIDADE

Clarice Lispector

 

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

– Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.

– Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.

– Não acaba nunca, e pronto.

– Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

– E agora que é que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.

– Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

– Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

– Acabou-se o docinho. E agora?

– Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade, eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

– Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingidos espanto e tristeza. – Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

– Já lhe disse – repetiu minha irmã – que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

 

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

– Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira.

– Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.

– Não acaba nunca, e pronto.

– Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

– E agora que é que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.

– Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

– Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

– Acabou-se o docinho. E agora?

– Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade, eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

– Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingidos espanto e tristeza. – Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

– Já lhe disse – repetiu minha irmã – que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 08 de março de 2021

À TONA D,ÁGUA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

À TONA D'ÁGUA

Raul Pompéia

(Grafia Original)

 

 

Há crepúsculos que parecem desmaios. Olha-se para cima e vê-se o firmamento pálido; o ocidente apresenta a expressão vaga do olhar da criança que se faz mulher e que sofre a transição. Parece que uma nota de espanto percorre a natureza... Segue-se depois a noite, a escuridão, o desfalecimento da luz.

A alma compreende que a noite é uma ausência. Vai além: apalpa esta ausência. É deleitoso. Tem-se os olhos abertos e sonha-se. Os espetáculos são panoramas de fumaça; e sempre nessa confusão de escuros e meias sombras, destaca-se um ponto. Quem vê este ponto é o coração. Perguntem-no aos amantes.

Rosália estava vendo um crepúsculo assim; e esperava ansiosa pela noite... à praia.

II

Resvala a canoa, macio como a nuvem à flor do céu... Rosália já está com ele. Só quem os vê é a noite. O remeiro canta distraído uma barcarola por trás do estofo que os encobre. E vão...

III

Trocam olhares que os prendem como elos de doces cadeias. Apertam-se as mãos e sentem que possuem alguma coisa de comum que lhes circula pelo corpo deliciosamente. Parece-lhes que possuem o mesmo sangue, porque possuem o mesmo fogo, vivificando a dormência que os acalenta. São dous que se amam de um só amor; mas conhecem-no apenas, porque se sabem amantes e o amor exige duplicidade.

IV

A quilha do barquinho rasga sem ruído a toalha alisada do mar e os gravetos flutuantes vão lhe ficando na esteira. Por essa hora, vai a imergir no ocaso um estilhaço de lua que dissolve ainda pelas trevas uma claridade morta. Rosália vê à proa do barco uma pequena lâmina. Vê não exprime bem. Os olhos passam pelo objeto e não atentam. Mas a canoa vai e vai...

Rosália foge à casa paterna, nos braços do amante.

V

Pela segunda vez depara com o ferro; mas agora com atenção. Aquele aço não brilha, entretanto cai sobre ele o luar. A jovem estende languidamente a mão e o segura. Violento palpita-lhe o coração.

Pressentimento... Ela fita profundamente o semblante amoroso do companheiro e murmura:

— Sangue?!...

O mancebo faz um movimento brusco. A canoa estremece. O remeiro vai cantando...

O moço, que se afastara da jovem, pega-lhe nervosamente nos formosos braços, apenas velados por brandos filós e diz-lhe, com os dentes cerrados, fora de si:

— Teu pai vinha matar-te, desgraçada!

E Rosália atira-se sobre ele e solta um grito de furor:

— Assassino, eu te amo!

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 07 de março de 2021

UMA MULHER EXCEPCIONAL (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

UMA MULHER EXCEPCIONAL

João do Rio

(Grafia original)

 

- Está a brincar!

- Sério. É irrevogável. Preciso um pouco de ar, um pouco de descanso, de repouso, de sossego. A vida desta cidade ataca-me muito os nervos...

Era no salão de Irene de Souza, o salão em que a esplêndida atriz fundira o confortável inglês com o luxo do antigo, espalhando entre os divãs fartos da casa Mapple, bergeres mais ou menos autênticas do século XVIII, contadores do tempo de Carlos V, e por cima das mesas, por cima dos móveis, nos porta-bugigangas de luxo, marfins orientais, esmaltes árabes, estatuetas raras, fotografias com dedicatórias notáveis. Irene de pé, diante da secretária, sorria, estendendo-me as duas mãos finas, nervosas, enquanto os seus dois grandes olhos ardiam mais loucos e mais passionais.

Irene de Souza! Que legenda e que beleza! Os seus inimigos asseguravam-na apanhada como criada de servir perto de um quartel para os lados de S. Cristóvão; outros diziam-na filha de uma família muito distinta do Sul. Ao certo porém ninguém sabia senão aquela aparição brusca no teatro, bela como a Vênus de Médicis, a arrastar nos decadentes tablados cariocas vestidos de muitos bilhetes de mil, criados pelo Paquin e pelo Ruff. Não era uma pequena qualquer. Era a bela Irene de Souza que queria ser a boa, a humilde, a simpática, a talentosa Irene. A critica fora jantar a sua "vila" de Copacabana, onde Irene, ao nascer do sol, num regime essencialmente esportivo, fazia duas horas de bicicleta e sessenta minutos de natação. E a critica suportara o seu companheiro Agostinho Azambuja, empreiteiro, rico, casado; a crítica elogiara Irene, e de chofre todas as atrizes, todos os cabotinos sentiram-se diminuídos lendo no cartaz, em grossas letras, o nome de Irene en vedette, de Irene repentinamente footlight. Ela continuava tão boa porém, tão amiga, tão simples, tão séria... Tão séria? Deram-lhe todos os amantes imagináveis em vão, por vingança afirmaram que os seus dentes como os seus sapatos eram feitos em Paris, emprestaram-lhe instintos perversos, e foi célebre a frase de um jornalistinha desprezado: De pé é a Vênus de Médicis, deitada é a Vênus Andrógina. Mas Irene mostrava o claro fio da dentadura com uma despreocupação tal, tratava tão camarariamente os homens que a calúnia tombou.

De resto Agostinho Azambuja tinha uma confiança muito elegante. A lenda era esse homem vulgar, possuído de uma paixão devoradora, agarra uma pobre rapariga no mais reles alcouce e fizera-a uma obra sua para dominar a cidade, uma mulher perfeita, falando quatro ou cinco línguas, conhecendo música, vibrante de arte e de elegância que é a arte de ser sempre a tentação. Mas a paixão, o ciúme, esses paroxismos fatais de quem quer muito bem, Azambuja encobria-os numa serenidade de bom tom, talvez mesmo para Irene, deixando-a sair só, não lhe perguntando nunca de onde viera, recebendo na própria casa os apaixonados que a ela poderiam ser úteis para o reclamo, colocando-a numa posição verdadeiramente superior, sem esquecer o lado prático, porque lhe assegurava o futuro, comprava-lhe casas, jóias. No dia em que correu ter o Azambuja presenteado Irene com uma baixela de ouro lavrado, herdada do avô, um vago judeu argentário, as mulheres tiveram a certeza da superioridade da rival, e foi notada a resposta do Azambuja a Etelvina, primeira ingênua casada e adúltera da companhia:

- Minha filha, já não estou na idade de satisfazer os caprichos de uma mulher. A Irene quem a fez tal qual fui eu. Vivo do orgulho que ela me dá. É o meu chic.

- E se o trair?

- Tem bastante espírito para o não fazer, e lucrarias mais se fosses sua amiga.

Mas isso é que ninguém concebia: a Irene sem enganar o Azambuja. Afinal era uma rapariga de vinte e cinco anos, um verão ardentíssimo, uma beleza que chamava paixões! Muita vez no seu camarim, forrado de seda cor-de-rosa, faziam-se comentários.

- Mas não ama o velho Agostinho?

- Está claro que não o posso amar como Julieta a Romeu. Há uma grande diferença de idades. Mas respeito-o e sou-lhe grata. É quanto basta. Eis a razão por que resisti a princípio e hoje sou invulnerável.

- Francamente?

- Deve compreender que seria muito parva se fosse perturbar a minha vida e a beleza que vocês proclamam com uma paixão. Ora só a paixão poderia influir. Essa não vem, não vem, e não virá nunca. Conheço os homens.

De fato, tinha razão. Como o seu sorriso tomava-se cortante, as narinas palpitavam e com o seu ar de Diana à caça, ela permitia-se abraços e beijos com as companheiras, mais falsas que a onda, logo se formou irrevogável a legenda.

- Irene? Amantes não... A Irene procura alguém de quem o Azambuja não tenha ciúmes. Lembrar-te da frase do Gomide?

A legenda foi mesmo tão espalhada que súbitas ternuras apareceram, e alguns camarotes eram insistentemente ocupados pelas mesmas damas nas noites das suas representações, e vários convites surgiram para tê-la na companhia de senhoras bem cotadas.

- Es uma criatura imperfeita, disse-lhe eu um dia.

- Por quê?

- Porque não amas o amor. Lembra-te dos versos do Poeta:

Que os vossos corações aprendam a viver,

Amando o amor, amando a perfeição,

A perfeição da alma que nos traz o prazer

Supremo e a suprema ilusão!

Ela suspirou, tristemente.

Se é assim? Que hei de eu fazer? Mas que romântico, Deus!

E todos nós, jantando nas suas pratas, escrevendo a respeito do seu talento, tínhamos aceitado o caso como definitivo. Até Irene mesmo, mostrando predileções excessivas, parecia sossegar com a esquisita calúnia e mostrava uma alegria, uma imensa satisfação na vida. De modo que aquela partida brusca, após seu último sucesso agradável numa comédia inglesa, era de desnortear. Ao saber a resolução pelo velho Azambuja na rua, eu tomara um tílburi, interessado como diante da saída de um ministro, e estava ali, interrogando-a, no meio da desordem do salão, onde havia malas, chapéus, plumas e um intenso cheiro de heliotropo.

Mas por que partir, Irene?

Porque é preciso.

Uma briga com o Azambuja? Não? Aquele ataque da Suzana Serny? Também não? Então? Querem ver que afinal tem uma paixão?

Irene sorriu, no seu quimono rosa, guamecido de uma leve renda antiga.

Paixão? Sabe o que estava a fazer, quando entrou? Estava a limpar a secretária, a rasgar declarações amorosas e a atirá-las para este cesto. Tudo quanto está vendo nesta secretária, tudo quanto vê neste cesto - é paixão!

Recuei assombrado. Nunca tinha visto tanta paixão reunida e um sorriso tão destruidor nos lábios de Irene.

Oh! não se assuste! Essa paixão é uma das faces do meu amor ao teatro. O Azambuja sabe e, às vezes, lê as cartas comigo. Guardo os artigos de jornal num álbum e a chama amorosa na secretária. Algumas ainda não li, mas foi por falta de tempo...

- Cruel!

Oh! É lá possível ler tudo quanto a tolice humana escreve? Recebo as cartas de bom humor porque é impossível zangar, e acabo considerando-as a homenagem anônima, uma espécie de palmas num teatro cheio. Quer lê-las?

Uma ansiedade invadiu-me.

Irene, nunca amou? Francamente? Posso ler todas, todas?

- Todas, fez ela. Sem receio. Divirta-se! Eu vou mandar fazer um pouco de chá, feito da flor, enviado diretamente da China para um inglês rico que me adorou em vão.

Ergueu-se. Houve um deslocamento de perfumes. A meus pés o cesto abria a fauce abarrotada; diante das minhas mãos a secretária escancarava-se. Hesitei, olhei-a, não resisti.

Ah! o estranho capitulo de psicologia, a descraziante página de análise! Daquela papelada subia como uma fúria de paixão, de doença, de loucura. Havia mais de quinhentas cartas, havia mais de mil postais e nesses quadriláteros de papel ardia um arco-íris passional desde a chama roxa da melancolia à chama rosa do amor precoce. A primeira carta que abri tinha ao canto um passarinho voando, e começava assim: "D. Irene, queira desculpar, ao receber esta maltraçadas linhas que lhe envio do Internato. Tenho quinze anos e vi-a ontem. Como é bonita!"

- Conheceu?

- Nunca o vi. Pobre pequeno! Do seu primeiro amor não guardará ao menos más recordações.

- Cá tenho outro: "Senhora. As horas fogem e a esperança fica. Quem a chamou de feia e a senhora não sabe quem é."

- Quantos nestas condições! Vá vendo...

Eu ia com efeito vendo. Peguei de outro: "Adeus, flor da minha vida! E que nas outras cidades deixe os mesmos corações despedaçados.- Maníaco."

- Este confessa-se maluco!

- O que não fazem os outros...

Mas as tolices, os gritos de paixão, que são sempre ridículos, não acabavam mais. Eu lia versos, lia pensamentos patetas, via toda a palpitação ingênua do coração dos homens; ameaças de suicídio, ofertas de dinheiro, descrições de vida futura, pedidos de uma humildade de rafeiro, agonias com erros de português, máximas idiotas e generosas: "A amizade da mulher tem um encanto mais suave do que a do homem: é ativa, vigilante, terna e durável", graças nevrálgicas de palhaço amoroso. Deus! O amor, que dolorosa moléstia... eu não sei por que um nervosismo incompreensível fazia-me trêmulos os dedos, eu procurava com ânsia, humilhado, espezinhado, como se fosse responsável por todas as sandices do meu fraco sexo.

A carta anônima é às vezes melhor que a carta de amor!

Sabe que teve um pensamento?

Como os que acabou de ler?

Não, um pensamento diamantino.

Pois venha tomar chá.

A criada servia, com efeito, o chá num lindo "tête-à-tête" de porcelana com guarnições en vermeille. A encantadora Irene parada; os seus olhos pareciam levemente inquietos. Eu continuava a remexer a secretária. Uma das missivas era enorme. Abri-a. "Peço a V. Ex. que me perdoe a ousadia, e, genuflexo, reclamo o seu carinho para os queixumes de um coração sofredor. Não sei fazer poesia, sou imensamente avesso às flores de retórica e suponho que não me igualarei ao gorjeio dos rouxinóis ou às asas das borboletas inquietas..."

Basta! Basta! fez Irene, tapando os ouvidos.

- É a paixão.

Venha antes tomar chá. Olhe a frase de Ibsen, na Comédia do Amor: O amor é como o chá. Bebamo-lo!

- Ah! minha querida! Como os homens são idiotas! Essa mania de escrever cartas de amor é bem o sintoma de inferioridade. Se eles soubessem o fim das suas letras e o pouco-caso que delas fazem as mulheres. Ainda não tive amante que com ela não rasgasse as cartas dos que me tinham precedido.

Era uma afirmação de que pelo menos no momento não o enganavam.

Quem sabe?

Ela sorria com a chávena na mão. Era realmente bela. Toda de rosa, naquele quimono de seda, lembrava uma flor maravilhosa, uma flor de lenda, inacessível aos mortais. Eu compreendia a futilidade, a tolice, a miséria lamentável dos homens, diante da sedução de Vênus Vingadora, da Vênus que não se entregara nunca, e era honesta sem amantes, sem crimes, sem calunias...

Mas por que ia ela para a Europa? Por que me humilhava com aquela intimidade de correspondência aberta? Por quê? Os meus dedos encontraram uma gaveta. Abri-a. Nunca a linda Irene de Souza amara um homem! Era honesta, era o pólo do desejo! Ah! não... várias cartas. Apanho uma ao acaso. Um selo italiano. Tirei-a do invólucro: "Cruel. Hei de matar-te se alguma vez te encontrar ajeito. Não me quiseste e eu peno, peno há cinco anos. Conto que ainda hei de ver o teu sorriso indiferente, 6 8,6 8, oitavo do século, no mesmo lugar. Preciso muito..."

Não continuei.

E olhe que tem também um doido.

Palavra?

Um sujeito que está na Itália, ao que parece. Fala do número 8, chama-a cruel.

E eu que ainda não tinha lido! Com efeito. E curioso. E assina-se César! Não faz coleção de selos? A filatelia está em moda.

Como todas as parvoices inofensivas. Ainda lá não cheguei.

Depois, parei. Ela estava preocupada, séria, um tanto fria talvez. Decididamente aborrecia a bela Irene de Souza. E era de compreender. Irene preparava a sua partida, desejava estar só. Curvei-me.

Adeus, então. Seja mais humana lá fora.

Eu? Com os espias e as agências de informação pagas pelo Azambuja? Da última vez que estive em Paris, Azambuja mostrou-me um dossier tão copioso que eu pensei no Affaire Dreyffus. Qual, meu amigo, sou invulnerável. E rindo alegremente: já se vê que pour cause...

Saí varado, porque afinal não há nada mais impertinente do que encontrar realmente honesta uma mulher que não tem o direito de o ser, e indo pela Avenida Beira-Mar a matutar naquela criatura excepcional encontrei o velho Justino Pereira, a passear também.

Poesia?

Não, idéias. Venho da casa da Irene.

Boa pega!

Oh! não, um espírito prático, incapaz de amar. Mostrou-me verdadeiras cascatas de amor.

As mulheres nunca mostram todas as cartas. É o seu grande trunfo.

Velho céptico!

Mesmo porque há cartas que os maridos e os amantes podem ler, cartas desvairadas, sem sentido... Que cara a tua! Pareces criança. Pois meu tolo basta uma combinação prévia, basta uma chave do sentido oculto. Por exemplo: Hei de matar-me. Tradução: Não deixes de vir. Peno há cinco anos. Tradução: Preciso de dinheiro.

Ora o fantasista! Não me vai dizer que a Irene tem amantes.

E se disser que tem mesmo uma espécie de gigolô, a quem sustenta?

Indignado, como se fosse uma questão de honra pessoal, estaquei.

Sr. Justino Pereira, nada de calúnias. Irene está acima de maledicência. O senhor calunia e é pelo menos incapaz de nomear o tal gigolô.

Oh! filho, fez Justino a sorrir. Soube-o por um acaso, não tenho que guardar. É até um lindo rapaz, corpo de esgrimista, olhos devoradores. Nasceu em S. Paulo, chama-se Victorino Maesa e partiu há dois meses para a Itália.

Como me visse pálido, aturdido, sem saber o motivo daquela emoção, sem saber que como um imbecil eu tivera a carta na mão:

Estás apaixonado? Contrariei-te? Todas as mulheres são excepcionais quando se lhes quer prestar atenção. Mas no mundo não há uma que não tenha um segredo simples, que lhe mostra um reverso inteiramente diverso da aparência...

E desatou a rir enquanto eu esforçava-me por fazer o mesmo.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 06 de março de 2021

O PECADO (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

O PECADO

Lima Barreto

(Grafia original)

 

Quando naquele dia São Pedro despertou, despertou risonho e de bom humor. E, terminados os cuidados higiênicos da manhã, ele se foi à competente repartição celestial buscar ordens do Supremo e saber que almas chegariam na próxima leva.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro caráter caligráfico.

Assim páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro. O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico, tinha um ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.

Ao entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e, à reclamação da lista d’almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofício) que viesse à tarde buscá-la.

Aí pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa e entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos no dia seguinte.

Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa sua leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades – quem sabe? – o Céu ficasse de todo estragado. Leu São Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista das explicações apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim: P. L. C., filho de…, neto de…, bisneto de… – Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

Deveras, pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional; como tão extraordinárias qualidades bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula saeculorum, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo…

— E porque não ia ? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.

— Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado…

— Veja bem nos assentamentos. Não vá ter você se enganado. Procure, retrucou por sua vez o velho pescador canonizado.

Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro, até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:

— Esquecia-me… Houve engano. É ! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 05 de março de 2021

VITÓRIA RÉGIA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

VIRÓRIA RÉGIA

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

A canoa, puxada a quatro remos, descia o pequeno afluente do Amazonas, desviando-se, ligeira, das grandes manchas de plantas aquáticas que a correnteza preguiçosamente arrastava, quando o velho índio Tibúrcio, sustando a remada, começou a contar-me a mais formosa lenda daquelas ribeiras.

 – Antigamente, meu senhor, este rio era limpo de toda sorte de aguapé, e de corrente tão clara que se podia ver, de dia, as traíras, os piaus e os mandís, rabeando, no fundo, no grande leito da areia dourada. Nesse tempo, morava na cabeceira do rio, onde as águas são mais puras, um velho índio, o famoso Tauí, cuja filha, Jaciara, assim chamada por ser a senhora da lua, era, com os seus olhos mais negros do que o acapú, a mais formosa moça das redondezas.

O caboclo enfiou, de novo, o úmido remo no grande leito do rio, fê-lo roncar, soturno, nas profundezas dágua silenciosa, e levantando-o, gotejante, continuou a narrativa:

– Um dia, voltando da caça, adivinhou Tauí, de longe, a presença de um estranho na palhoça que lhe servia de casa. Arrastando-se, como uma cobra, sobre as folhas do chão, estava o pobre pai a poucos passos da porta de esteira, quando de lá pulou um homem, que desapareceu, de um salto, no seio da mataria.

Duas remadas ressoaram, de novo, profundas, no leito do rio, impelindo a canoa, e Tibúrcio reatou a história:

– Furioso com a traição da filha, o índio, feroz, atirou-se contra ela, esganou-a, e abriu-lhe, de lado a lado, com a ponta da flecha, a caixa do peito moreno. Feito isso, enfiou no seu corpo as grandes unhas de tamanduá, e arrancou-lhe, sangrento, o coração ainda palpitante, que atirou, da porta da palhoça, à clara correnteza do rio.

Impeliu, mais uma vez, a canoa ligeira, fazendo roncar no seio da água o seu pesado remo de massaranduba, e rematou:

– Desde esse tempo, meu senhor, começaram a aparecer no rio estas verdes plantas errantes, cuja flor, alva como a lua, dorme no fundo das águas, e rebenta, à noite, com grande estampido, espalhando por tudo, em redor, a doçura do seu perfume.

E apontando-me uma “vitória-régia” que descia, alva e enorme, nos braços cariciosos das águas, acrescentou, compungido:

– Olhe, lá vai uma. É o coração de Jaciara…

E impeliu a canoa, com força.

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 03 de março de 2021

A GIOVANI (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

A GIOVANI

Aluísio Azevedo


(Grafia original)

 

Querido desconhecido. - A tua carta é a primeira carta anônima que respondo, das muitíssimas que até hoje tenho recebido. E a razão disso está simplesmente no modo asseado por que me falas. Deitaste um pequenino dominó de seda, mas mo descalçaste as meias e não arregaçaste as mangas da camisa.

Para dizer tudo - creio até que em ti percebi uma banda de luva amarrotada na mão esquerda.

Entra, pois, assenta-te, toma um charuto, e conversemos. Não precisas tirar a máscara; pediste que te não procurasse reconhecer, e eu, apesar de minha curiosidade, estou resolvido a fazer-te a vontade.

Antes de entrarmos no assunto verdadeiro de tua carta, convém declarar-te uma cousa: - Estou reconhecido pelas palavras lisonjeiras que me dedicas e mais ainda pelo interesse que mostras pelas minhas produções.

Nada é tão agradável para quem escreve, como saber que seus escritos preocupam de qualquer forma a atenção de quem quer que seja.

Ofereceste-me obsequiosamente para anotar o meu romance O Mulato e eu aceito e agradeço o oferecimento, sentindo apenas não possuir um exemplar para pô-lo à tua disposição.

Hoje é muito difícil encontrar um volume d'O Mulato.

Quanto ao que dizes a respeito das Memórias do condenado, pesa-me confessar-te uma cousa: - Tu tomaste muito a sério essa obra.

Que não nos ouçam os leitores do rodapé, mas impõe-me a franqueza declarar-te que as Memórias, enquanto não aparecerem em volume, não merecerão desvelos de ninguém.

Romance de au jour le jour, escrito para acudir às exigências de uma folha diária, está, como facilmente se pode julgar, eivado de erros e descuidos, que só na revisão para o volume poderão desaparecer.

Além disso, os erros tipográficos são tantos e tão constantes, que constituem uma verdadeira calamidade. Ainda no último folhetim, eu escrevi - belos brilhantes, e os tipógrafos disseram - velhos brilhantes; em outro lugar falo de pedras limpas, e eles emendaram para límpidas. Isto sem querer citar as repetidas transposições que alteram completamente o sentido do que está escrito; as palavras incompletas, os saltos e mil outros inimigos do estilo e da boa lógica gramatical.

Entretanto, manda-me as tuas notas - elas me poderão ser de grande utilidade. Quando fores razoável, seguirei o teu conselho e quando não fores não seguirei; em todo caso nada perderemos com isso.

Mas vejamos as tuas três primeiras emendas:

1.o) Queima como pus.

Se bem que isto não seja unia frase completamente verdadeira, tem todavia algum fundo de verdade. Há certo pus venenoso, que possui propriedades de cáustico, e queima a epiderme. Podes facilmente verificar esse fato nas feridas venéreas. Contudo não disputo a frase, porque não reconheço nela valor algum.

2.o) O abuso das frases - Que diabo! com os diabos! etc., etc.

Não me pareces nisso muito razoável, mas enfim pode ser que tenhas razão.

3.o) Pedes a supressão de certo adjetivo, porque ele pode lembrar desgostos a uma senhora, que ambos nós respeitamos.

Quanto a isso, só me resta declarar-te uma cousa: - Para poupar um desgosto a uma senhora de minha estima, eu seria capaz de sacrificar um dedo, quanto mais um adjetivo.

Creio que te fiz a vontade; espero por conseguinte que sejas mais severo nas tuas notas. Vê se dizes alguma cousa sobre a concepção artística de meus trabalhos.

Pena é que as Memórias estejam a expirar.

E com esta - adeus, fico-te obrigado e à espera de mais.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 02 de março de 2021

CORINTHIANS (2) VS PALESTRA (1) - (CONTO EM VÍDEO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

CORINTHIANS (2) VS PALESTRA (1)

Alcântara Machado

(Vídeo)


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 01 de março de 2021

UM APÓLOGO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM APÓLOGO

Machado de Assis
(Grafia original)

 

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?

- Deixe-me, senhora.

- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

- Mas você é orgulhosa.

- Decerto que sou.

- Mas por quê?

- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?

- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...

- Também os batedores vão adiante do imperador.

- Você é imperador?

- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima.

A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

- Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 28 de fevereiro de 2021

DESPEDIDA (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

DESPEDIDA

Rubem Braga

 

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 27 de fevereiro de 2021

OS DOIS BONITOS E OS DOIS FEIOS (CONTO DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)

OS DOIS BONITOS E OS DOIS FEIOS

Rachel de Queiroz

 

Nunca se sabe direito a razão de um amor. Contudo, a mais frequente é a beleza. Quero dizer, o costume é os feios amarem os belos e os belos se deixarem amar. Mas acontece que às vezes o bonito ama o bonito e o feio o feio, e tudo parece estar certo e segundo a vontade de Deus, mas é um engano. Pois o que se faz num caso é apurar a feiúra e no outro apurar a boniteza, o que não está certo, porque Deus Nosso Senhor não gosta de exageros; se Ele fez tanta variedade de homens e mulheres neste mundo é justamente para haver mistura e dosagem e não se abusar demais em sentido nenhum. Por isso também é pecado apurar muito a raça, branco só querendo branco e gente de cor só querendo os da sua igualha — pois para que Deus os teria feito tão diferentes, se não fora para possibilitar as infinitas variedades das suas combinações?

O caso que vou contar é um exemplo: trata de dois feios e dois bonitos que se amavam cada um com o seu igual. E, se os dois bonitos se estimavam, os feios se amavam muito, quero dizer, o feio adorava a feira, como se ela é que fosse a linda. A feia, embalada com tanto amor, ficava numa ilusão de beleza e quase bela se sentia, porque na verdade a única coisa que nos torna bonitos aos nossos olhos é nos espelharmos nos olhos de quem nos ame.

Vocês já viram um vaqueiro encourado? É um traje extraordinariamente romântico e que, no corpo de um homem e delgado, faz milagres. É a espécie de réplica em couro de uma armadura de cavaleiro.

Dos pés à cabeça protege quem a veste, desde as chinelas de rosto fechado, e as perneiras muito justas ao relevo das pernas e das coxas, o guarda-peito colado ao torso, o gibão amplo que mais acentua a esbelteza do homem e por fim o chapéu que é quase a cópia exata do elmo de Mambrino. Aliás, falei que só assenta roupa de couro em homem magro e disse uma redundância, porque nunca vi vaqueiro gordo. Seria mesmo que um toureiro gordo, o que é impossível. Se o homem não for leve e enxuto de carnes, nunca poderá cortar caatinga atrás de boi, nem haverá cavalo daqui que o carregue.

Os dois heróis da minha história, tanto o feio como o bonito, eram vaqueiros do seu ofício. E as duas moças que eles amavam eram primas uma da outra — e apesar da diferença no grau de beleza, pareciam-se. Sendo que uma não digo que fosse a caricatura da outra, mas era, pelo menos, a sua edição mais grosseira. O rosto de índia, os olhos amendoados, a cor de azeitona rosada da bonita, repetidos na feia, lhe davam uma cara fugidia de bugra; tudo que na primeira era graça arisca na segunda se tornava feiúra sonsa.

De repente, não se sabe como, houve uma alteração. O bonito, inexplicavelmente, mudou. Deixou de procurar a sua bonita. Deu para rondar a casa da outra, a princípio fingindo um recado, depois nem mais esse cuidado ele tinha. Sabe-se lá o que vira. No fundo, talvez obedecesse àquela abençoada tendência que leva os homens bonitos em procura das suas contrárias; benza-os Deus por isso, senão o que seria de nós, as feiosas? Ou talvez fosse porque a bonita, conhecendo que o era, não fizesse força por sustentar o amor de ninguém. Enquanto a pobre da feia todos sabem como é — aquele costume do agrado e, com o uso da simpatia, descontar a ingratidão da natureza. E embora o seu feio fosse amante dedicado, quanto não invejaria a feia a beleza do outro, que a sua prima recebia como coisa tão natural, como o dia ser dia e a noite ser noite. Já a feia queria fazer o dia escuro e a noite clara — e o engraçado é que o conseguiu. Muito pode quem se esforça.

O feio logo sentiu a mudança e entendeu tudo. Passou a vigiar os dois. Se esta história fosse inventada poderia dizer que ele, se vendo traído, virou-se para a bonita e tudo se consertou. Mas na vida mesmo as pessoas não gostam de colaborar com a sorte. Fazem tudo para dificultar a solução dos problemas, que, às vezes, está na cara e elas não querem enxergar. Assim sendo, o feio ficou danado da vida, e nem se lembrou de procurar consolo junto da bonita desprezada; e esta, se sentindo de lado, interessou-se por um rapaz bodegueiro que não era bonito como o vaqueiro enganoso, mas tinha muito de seu e podia casar sem demora e sem condições.

Assim, ficaram em jogo só os três. O feio cada dia mais desesperado. A feia, essa andava nas nuvens, e toda vez que o “primo” (pois se tratavam de primos) lhe botava aqueles olhos verdes — eu falei que além de tudo ele ainda tinha os olhos verdes? — ela pensava que ia entrar de chão adentro, de tanta felicidade.

Mas o pior é que os dois vaqueiros ainda saíam todo o dia juntos para o campo, pois eram campeiros da mesma fazenda e se haviam habituado a trabalhar de parelha, como Cosme e Damião. Seria impossível se separarem sem que um dos dois partisse para longe, e, é claro, nenhum deles pretendia deixar o lugar vago ao outro.

Assim estava a intriga armada, quando a feia, certa noite, ao conversar na janela com o seu bonito que lá viera furtivo, colheu um cravo desabrochado no craveiro plantado numa panela de barro e posto numa forquilha bem encostada à janela (era uma das partes dela, ter todos esses dengues de mulher bonita) e enquanto o moço cheirava o cravo, ela entrefechou os olhos e lhe disse baixinho:

— Você sabe que o outro já lhe jurou de morte?

(Vejo que esta história está ficando muito comprida — só deixando o resto para a semana que vem.)

Falei que o desprezado jurara de matar o traidor. Seria verdade? Quem sabe as coisas que é capaz de inventar uma mulher feia improvisada em bonita pelo amor de dois homens, querendo que o seu amor renda os juros mais altos de paixão?

O belo moço assustou. Gente bonita está habituada a receber da vida tudo a bem dizer de graça, sem luta nem inimizade, como seu direito natural, que os demais devem graciosamente reconhecer. As mulheres o queriam, os homens lhe abriam caminho. E não é só em coisas de amor: de pequenino, o menino bonito se habitua a encontrar facilidades, basta fazer um beiço de choro ou baixar um olho penoso, todo o mundo se comove, pede uni beijo, dá o que ele quer. Já o feio chora sem graça, a gente acha que é manha, mais fácil dar-lhe uns cascudos do que lhe fazer o gosto. Assim é o mundo, e se está errado, quem o fez foi outro que não nos dá satisfações.

Pois o bonito assustou. Deu para olhar o outro de revés, ele que antes vivia tão confiado, como se adiasse que a obrigação do coitado era lhe ceder a menina e ainda tirar o chapéu. Passou a ver mal em tudo. De manhã, ao montar a cavalo, examinava a cilha e os loros, os quatro cascos do animal. Ele, que só usava um canivete quando ia assinar criação, comprou ostensivamente uma faca, afiou-a na beira do açude, e só a tirava do cós para dormir. E quando saía a campo com o companheiro, em vez de irem os dois lado a lado, segundo o costume, marchava atrás, dez braças aquém do cavalo do outro.

O feio não falava nada. Fazia que não enxergava as novidades do colega. Como sempre andara armado, não careceu comprar faca para fazer par com a peixeira nova do rival. E, sendo do seu natural taciturno, continuou calado e fechado consigo.

E o outro — nós mulheres estamos habituadas a pensar que todo homem valente é bonito, mas a recíproca raramente é verdade, e nem todo bonito é valente. Este nosso era medroso. Era medroso mas amava, o que o punha numa situação penosa. Não amasse, ia embora, o mundo é grande, os caminhos correm para lá e para cá. Agora, porém, só lhe restava amar e ter medo. Ou defender-se. Mas como? O rival não fazia nada, ficava só naquela ameaça silenciosa; as juras de morte que fizera — se as fizera — de juras não tinham passado ainda. Meu Deus, e ele não era homem de briga, já não disse? Tinha a certeza de que se provocasse aquele alma fechada, morria.

Bem, as juras eram verdadeiras. O feio jurara de morte o bonito e não só de boca para fora, na presença da amada, mas nas noites de insônia, no escuro do quarto, sozinho no ódio do seu coração. Levava horas pensando em como o mataria — picado de faca, furado de tiro, moído de cacete. Só conseguia dormir quando já estava com o cadáver defronte dos olhos, bonito e branco, ah, bonito não, pois, quando o matava em sonhos, a primeira coisa que fazia era estragar aquela cara de calunga de loiça, pondo-a de tal modo feia que até os bichos da cova tivessem nojo dela. Mas como fazer? Não poderia começar a brigar, matá-lo, sem quê nem mais. Hoje em dia justiça piorou muito, não há patrão que proteja cabra que faz uma morte, nem a fuga é fácil, com tanto telégrafo, avião, automóvel. E de que servia matar, tendo depois que penar na prisão? Assim, quem acabaria pagando o malfeito haveria de ser ele mesmo. O outro talvez fosse para o purgatório, morrendo sem confissão, mas era ele que ficava no inferno, na cadeia. Aí então teve a idéia de uma armadilha. Botar uma espingarda com um cordão no gatilho… quando ele fosse abrindo a porta. Não dava certo, todo o mundo descobriria o autor da espera. Atacá-lo no mato e contar que fora uma onça… Qual, cadê onça que atacasse vaqueiro em pleno dia? E a chifrada de um touro? Difícil, porque teria que apresentar o touro, na hora e no lugar… Lembrou-se então de um caso acontecido muitos anos atrás, quase no pátio da fazenda. O velho Miranda corria atrás de uma novilha, a bicha se meteu por sob um galho baixo de mulungu, o cavalo acompanhou a novilha, e em cima do cavalo ia o vaqueiro: o pau o apanhou bem no meio da testa, lá nele, e quando o cavalo saiu da sombra do mulungu, o velho já era morto… Poderia preparar uma armadilha semelhante? Como induzir o rival?… Levou quatro dias de pesquisa disfarçada para descobrir um pau a jeito. Afinal achou um cumaru à beira de uma vereda, onde o gado passava para ir beber na lagoa. O cumaru estirava horizontalmente um braço a dois metros do chão, cobrindo a vereda logo depois que ela dava uma curva. A qualquer hora passariam de novo os dois por ali. E como só um passava pela vereda estreita, bastaria ele ficar atrás, apertar de repente o passo, meter o chicote no cavalo da frente; o outro, assustado com o disparo do cavalo, se descuidava do pau — e era um homem morto.

Mas não deu certo. Isto é, deu certo do começo ao fim — só faltou o fim do fim. Pois logo no dia seguinte se encaminharam pela vereda, perseguindo um novilhote. O bonito na frente, o feio atrás, como previsto. Quando chegaram à curva que virava em procura do cumaru, o de trás ergueu o relho, bateu uma tacada terrível na garupa do cavalo da frente, que já era espantado do seu natural, e o animal desembestou. Mas o instinto do vaqueiro salvou-o no último instante. Sentiu um aviso, ergueu os olhos, viu o pau, deitou-se em cima da sela e deixou o cumaru para trás. Logo adiante acabava a caatinga e começava o aceiro da lagoa. O bonito sofreou afinal o cavalo. Podia ser medroso, mas não era burro, e uma raiva tão grande tomou conta dele, que até lhe destruiu o medo no coração. Sem dizer palavra, tirou a corda do laço debaixo da capa da sela, e ficou a girar na mão o relho torcido, como se quisesse laçar o novilho que também parará várias braças além, e ficara a enfrentá-los de longe. O companheiro espantou-se: será que aquele idiota esperava laçar o boi, a tal distância? Claro que não entendera como andara perto da morte… Mas o laço, riscando o ar, cortou-lhe o pensamento: em vez de se dirigir à cabeça do novilho, vinha na sua direção, cobriu-o, apertou-se em redor dele, prendeu-lhe os braços ao corpo e, se retesando num arranco, atirou-o de cavalo abaixo. Num instante o outro já estava por cima dele, com um riso de fera na cara bonita.

— Pensou que me matava, seu cachorro… Açoitou o cavalo de propósito, crente que eu rebentava a cabeça no pau… Um ele nós dois linha de morrer, não era? Pois á assim mesmo… um de nós dois vai morrer. Enquanto falava, arquejando do esforço e da raiva, ia inquirindo na corda o homem aturdido da queda, fazendo dele um novelo de relho. Dai saiu para o mato, demorou-se um instante perdido entre as aves e voltou com o que queria — um galho de imburana da grossura do braço de um homem. Duas vezes malhou com o pau na testa do inimigo. Esperou um pouco para ver se o matara. E como lhe pareceu que o homem ainda tinha um resto de sopro, novamente bateu, sempre no mesmo lugar.

Chegou à fazenda, com o companheiro morto à sela do seu próprio cavalo, ele à garupa, segurando-o com o braço direito, abraçado como um irmão; com a mão esquerda puxava o cavalo sem cavaleiro.

Ninguém duvidou do acidente. Foi gente ao local, examinaram o galho assassino, estirado sobre a vereda como um pau de forca. Fincaram uma cruz no lugar.

E o bonito e a feia acabaram casando, pois o amor deles era sincero. Foram felizes. Ela nunca entendeu o que houvera, e remorso ele nunca teve, pois, como disse ap padre em confissão, matou para não morrer.

E a moral da história? A moral pode ser o velho ditado: faz o feio para o bonito comer. Ou então compõe-se um ditado novo: entre o feio e o bonito, agarre-se ao bonito. Deus traz os bonitos de baixo da Sua Mão.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 26 de fevereiro de 2021

IMUNIDADE (CONTO RIMADO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

IMUNIDADE

Olavo Bilac

(Grafia Original)

 

Foi Praxedes Cristiano

À Capital Federal:

Levou a mulher, o mano

E a filha. E, ao cabo de um ano,

Regressa ao torrão natal.

 

Regressa... Vão esperá-lo,

Com festas e rapapés,

Os amigos, à cavalo;

Queimam-se as bichas de estalo,

Foguetes e busca-pés.

 

Praxedes, guapo e pachola,

Vem transformado e feliz:

Traz polainas e cartola,

E guarda-chuva de mola,

E botinas de verniz.

 

E a mulher, gorda matrona,

É aquilo que se vê:

— Vem que parece uma dona,

— Vestido cor de azeitona,

Saído do Raunier...

 

Depois do almoço, se ajunta

Toda a gente principal:

E, depois de toda junta.

— O que há de novo, pergunta,

Na Capital Federal.

 

Praxedes impa de orgulho,

E principia a falar:

“Ah! que vida! que barulho!

No Rio, este mês de julho

É mesmo um mês de gozar!”

 

 

Praxedes fala de tudo,

Sem cousa alguma esquecer;

Todo o auditório peludo

Fica tonto, fica mudo,

E de tudo quer saber.

 

Nisto, o velho boticário,

Sujeito de distinção,

Que idolatra o Formulário

E é a glória do campanário.

Põe em campo esta questão:

 

“Já que tanta cousa viste,

Praxedes, dize-me cá:

Dizem, não sei se por chiste

Ou por maldade, que existe

Muita sífilis por lá...”

 

“É pura intriga, seu Ramos!

(Diz o Praxedes) que quer?

Um ano por lá passamos...

E nada disso apanhamos,

Nem eu, nem minha mulher!”

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 25 de fevereiro de 2021

JESUS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

JESUS

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

A casa de José, o carpinteiro, em Nazaré, ficava à margem do caminho que leva a Tiberíades. Pequena e humilde, mais humilde parecia, ainda, pela ancianidade, e por não ser possível ao dono reconstruí-la. Edificada por Jacó, primogênito de Matran, tornara-se, por morte deste, propriedade do esposo de Maria, filha de Ana, da casa de Davi. E como o carpinteiro já se encontrasse velho e alquebrado de forças, ia deixando que o casebre se desmoronasse, açoitado pelos grandes ventos que sopravam no verão, das bandas do golfo de Caifa, e no inverno, da alta cordilheira que orna o país de Sichen. Sem cercas que a defendessem, era a casa rodeada de limoeiros, que embalsamavam o ar, e que a afogavam, com a suas frondes de um verde escuro, como punhados de mangericão em torno de uma rosa fanada.

Era à sombra de um desses limoeiros José trabalhava, quando fazia bom tempo, manejando, trêmulo, o seu serrote e a plaina primitiva. E era sob a copa de todos os outros que brincavam, a manhã toda, e a tarde inteira, as crianças das casas vizinhas. Atraídas para ali pela frescura do local, vinham elas, isoladamente, ou duas a duas, ou três a três, com o seu perfil judaico, os olhos muito vivos e chegados um ao outro, para as correrias habituais. Trazia-as, muitas vezes, João, filho de Zacarias, antigo sacerdote do Templo, em Jerusalém. O senhor, entre elas, da casa e dos limoeiros, era, porém, Jesus, filho do carpinteiro, mais moço do que João quase um ano, e que era ainda seu parente, pois que Maria, esposa de José, e Isabel, esposa do velho sacerdote, eram primas e, apesar da diferença de idade, amigas e confidentes.

As duas famílias, a de Zacarias como a do carpinteiro, traziam no espírito, constantemente, duas preocupações. Segundo a palavra dos Profetas, o povo de Israel teria de cair sob o jugo do estrangeiro, do qual o livraria, no entanto, um grande Rei, que viria disfarçadamente à terra, com o sangue de Davi. A primeira parte das profecias estava cumprida. Os sucessores dos Macabeus haviam ateado a guerra civil na Judéia, e invocado, em certo momento, o auxílio dos romanos, que tinham escolhido entre eles um rei, de nome Herodes, o qual reinava em Jerusalém. E a outra, a mais grave e difícil, parecia, agora, em via de realização.

Efetivamente, nove anos antes, achando-se Zacarias sozinho no Templo, em Jerusalém, incensando o altar, Ouvira um ruído, que lhe parecera o de um grande pássaro em vôo. Volvera, lento, o rosto, e estacara, surpreso. Diante dele, vestido de uma túnica diáfana, e que parecia feita com o fumo do turíbulo, estava um mancebo de fisionomia resplandecente, de cujas espáduas saíam grandes asas, e que lhe dissera, em palavras sem mistérios, que sua esposa, Isabel, lhe daria, dentro de alguns meses, um filho varão. Dissera isto, e desaparecera.

Suspeitando dos próprios olhos e dos próprios ouvidos, duvidava o sacerdote do próprio entendimento. Se a espôsa, na mocidade, não lhe dera um filho, como lho daria, agora, quando os dois, ele e ela, já se sentiam velhos? Que fazer, pois, naquela emergência? Narrar o sucedido? Contar à mulher, e aos íntimos, a ocorrência do Templo? Melhor seria, talvez, não pecar pela palavra, quem já pecava, incrédulo, pelo pensamento. E desse dia em diante, aguardando os acontecimentos de cada hora, os seus lábios se selaram para o mundo, enquanto a sua alma se descerrava, inteira, para os olhos de Deus.

Semanas depois, o mesmo Enviado aparecia, belo e fulgurante, na casa do carpinteiro, em Nazaré. Levava àquele outro lar uma notícia idêntica. Maria, esposa de José, seria mãe. e o seu filho, neto de Reis, seria o Rei da Judéia.

De acordo com o anunciado, Isabel tivera, em verdade, um filho, que tomou o nome de João. E Maria concebera outro, que era, agora, essa triste criança, de seis anos, sob cujos olhos, de uma estranha doçura, as outras vinham, de longe, brincar à sombra cheirosa dos limoeiros.

Desde o nascimento do menino, em Belém, quando iam àquela cidade para serem recenseados por ordem de Augusto, o carpinteiro e a esposa se haviam convencido dos altos destinos do filho. Daquele infante dependia, desde aquela hora, a sorte do Povo de Deus. Daí os cuidados de que o rodeavam, a cautela com que o vigiavam dia e noite, o susto com que acompanhavam as suas menores enfermidades. Naquele pequenito moreno, de olhos claros e fisionomia meiga, estava, não apenas o filho único, mas o Rei; não unicamente o rebento miraculoso de um casal que ia desaparecendo sem prole, mas o Salvador de uma raça, prometido pelas profecias do fundo remoto dos séculos.

Jesus havia nascido, entretanto, tão alegre como os outros meninos de Nazaré. Ao se lhe enrijar o pequeno corpo, de linhas modelares e puras, procurara correr, como os outros, e, como os outros, subir às árvores, roubar o ninho aos pássaros, ou banhar-se no lago, quando a família ia a Genezaré ou a Tiberíades. Mal, porém, tentava ia dessas distrações infantis, a mãe acorria aflita, ou acorria o pai, preocupado, detendo-lhe o gesto ou o desejo. E essa diferença de tratamento acordava-lhe dúvidas no espírito e no coração. Por que, sendo o mundo tão vasto, e a vida tão boa, só lhe não cabia, a ele, a alegria de ser livre como as crianças? Aquelas ondas cariciosas do lago, e aqueles ninhos de rouxinol dos olivais, teriam sido feitos unicamente para Mateus, filho de Marta, para Barnabé, filho de Manassés, para Eleazer, filho de Josué, ou, mesmo, para João, seu primo, tão violento que só procurava brinquedos de guerra, em que sempre saía vencedor? Por que, ainda, a curiosidade de toda a gente, em torno da sua pessoa: o sorriso de zombaria de uns, ao apontá-lo de passagem, e o respeito comovido de outros, - alguns dos quais chegavam, até, a ajoelhar na poeira dos caminhos para beijar-lhe, chorando, a fímbria grosseira da túnica?

Sob os limoeiros copados, cujas ramas, aqui e ali, roçavam o chão, as crianças brincavam, correndo em algazarra, simulando combates de judeus e romanos. Por cima das ramagens, o céu era todo azul e ouro, e uma brisa fresca soprava, como uma carícia, das bandas do lago. Balouçado por ela, o limoal escrevia em hebraico, aqui e ali, no solo pedregoso, com letras de luz abertas na sombra, pequenos poemas misteriosos. Tudo era, em torno, festivo e jovial. As próprias aves, tontas de luz, cantavam mais alto.

Sentado junto ao muro limoso de um poço, Jesus, ele só, estava triste.

- Pai, - havia pedido, momentos antes, ao carpinteiro, - deixa-me brincar com os outros!

- Não, meu filho; não podes, - respondera, paternal, o ancião, passando a mão trêmula e rude pelos seus cabelos castanhos. - E se caísses, em uma dessas correrias, que seria de nós, e do teu Povo?

Aquelas palavras eram, para ele, um mistério. Que significavam elas? Que Povo era esse, que era seu, e que ele não conhecia?

Os seus olhos, doces, e mansos, encheram-se de sombra. Uma lágrima correu, lenta e límpida, parando aqui e ali, pela sua face morena, vindo deter-se ao canto da boca miúda, pondo, nela, um desagradável gosto de sal.

Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido Deus...

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 24 de fevereiro de 2021

NOITE (CRÔNICA DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

NOITE

Dalton Trevisan

 

Friorento, o sol se recolhe sobre os últimos telhados. O vento balouça de leve a samambaia na varanda. A casa toda em sossego. No quintal o cãozinho late aos pardais que se aninham entre as folhas.
A magnólia pende a cabeça com sono. Já não bole a cortina.
No silêncio da penumbra se ouve cada vez mais alto o coração delator do tempo: um relógio.
Diante da janela o passarão da noite farfalha as asas. O galo não gala a galinha. Duros objetos perdem os contornos agressivos. Há paz na cidade.
Em pé no balcão os operários bebem cálice de pinga. As caixeiras deixam as lojas com a bolsinha na mão. Eis a noite que se esgueira em surdina no fundo dos quintais.
As mulheres são mais queridas a essa hora. O rosto iluminado pelo farol dos carros é promessa de delícias.
Os bondes sacolejam nos trilhos, em cada janela um rosto diferente. O mundo não é uma festa de prodígios: gnomos, baleias voadoras, unicórnios, basiliscos de fogo?
Escancaram as sete portas da noite. O ar povoado de sombras. Não mais o dia dos pequenos ódios nos olhos, das injúrias furiosas pelas costas. Os carros já não devoram ciclistas.
Enxugando os dedos no avental, as mães chamam os filhos que brincam na rua.
Se aquietam as vozes. Os pardais não pipiam nas árvores. Nem late o cãozinho.
A pomba da noite é mansa. Arrulha o amor na sopa quente sobre a mesa.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 23 de fevereiro de 2021

O RATO (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

O RATO

Coelho Neto

 

Vivia de esmolas num estreito e úmido quarto de estalagem, onde mal cabiam os móveis: a cama onde jazia prostrada a moléstia, uma pequena mesa, duas velhas cadeiras e uma arca. Acompanhava-a o filho, um rapazola de nove anos, sadio e robusto, de uma tal viveza que todos na estalagem não o conheciam senão pela alcunha: o Rato.

Era um dos primeiros que acordavam e, ainda escuro, fazia toda a limpeza do aposento, mudava a água nas bilhas, deixava ao alcance da mão da paralítica a cafeteira e o pão, e saía cantarolando. Saía, porque a mãe, julgando-o ainda tenro e fraco para o trabalho e não dispondo de recursos para manter-se, pedira um atestado ao médico que, por misericórdia a tratava e, entregando-o ao pequeno, dissera: — Vai e fica à porta das igrejas: e aos que passarem mostra esse papel e pede uma esmola para tua mãe.

O pequeno saiu, e, à noite, tornando à casa com algumas moedas, entregou-as à mãe; mas, no mesmo momento, rompeu em pranto, atirando-se, soluçante, sobre a velha arca.

A paralítica, atribuindo a angústia da criança à quantia escassa que trouxera, procurou palavras de consolo: — Não chores, meu filho. Hás de ser mais feliz amanhã; o que trouxeste basta para passarmos o dia. Deus será por nós. Não chores.

O pequeno, porém, longe de consolar-se, afligiu-se ainda mais; e, à noite, a paralítica que velava ouviu ainda durante algum tempo os soluços do filho. De manhã, porém, cedo, como de costume, levantou-se, e, depois do serviço, foi beijar a mão à velha enferma, e partiu.

Era tarde, quase dez horas da noite, quando o Rato apareceu na estalagem cantarolando. A mãe, que passara o dia cheia de cuidados, mal o viu entrar falou com certa severidade:

— Ah! Meu filho, a que horas vens? Muito deves ter esmolado para que só às dez horas da noite voltes a casa!

O Rato, porém, risonho, beijou a mão da enferma, e logo, metendo as mãos nos bolsos, pôs-se a tirar moedas e notas atirando tudo para cima da cama. A paralítica, sorrindo, disse:

— Então, bem te disse eu que hoje havias de ser mais feliz, meu filho...

— Sim, minha mãe, fui muito mais feliz, principalmente porque ninguém me injuriou.

— Como! Pois houve alguém que te injuriasse, filho?

— Sim, minha mãe, ontem. Como a senhora me havia ordenado, fui ficar à porta da igreja. Quando cheguei, já havia lá muitos pobres, uns cegos, outros aleijados; meti-me entre eles e logo começaram as injúrias, porque eu era uma criança sadia e forte que ia para ali vadiar, quando podia estar empregando o meu tempo em alguma coisa útil. Uns mandavam-me para a escola, outros para a oficina; e, se aparecia alguém, vendo-me avançar com o papel na mão para pedir, empurravam-me, davam-me beliscões, e um atirou-me uma bordoada às pernas com a muleta.

“Tudo isso, porém, fazia-me rir; o que me fez chorar foi o que me disse um velho que levava um pequeno pela mão, um pequeno do meu tamanho.”

“Quando eu lhe pedi esmola, ele olhou-me carrancudo, meteu os dedos no bolso do paletó, tirou um níquel e ficou algum tempo a olhar-me; depois vagarosamente guardou a moeda e, puxando o menino, disse baixinho: — Verás, vai daqui direto para a taverna... — O pequeno, mamãe, olhou-me de tal modo, que eu senti o sangue subir-me ao rosto e as lágrimas saltarem-me dos olhos. Vendo-me chorar, o pequeno teve pena de mim e falou ao pai. Pararam, e eu enxugava os olhos, quando ouvi a voz do menino: — Toma! — Olhei, e vi que ele me estendia a moeda. Estive para recusar, mas olhava-me com tanta meiguice que não tive ânimo. Recebi-a, agradeci e guardei. Logo, porém, que os vi entrar na igreja, tirei-a do bolso, dei-a a um velho cego que estava sentado perto de mim, e desci. Desci os degraus, disposto a voltar para casa, mamãe, mas lembrei-me de ti, lembrei-me que nada havia em casa e pensei em pedir trabalho em algum lugar...”

“Foi então que encontrei o Vicente com um maço de jornais, apregoando. Pedi-lhe alguns e, fazendo como ele, fui vendendo, e com tanta facilidade, que não me ficou um só. Ele, então, ficou de arranjar-me maior quantidade para hoje e não mentiu.”

“Passei o dia todo vendendo jornais, primeiro os da manhã, depois os da tarde; e à noite o Vicente convidou-me para acompanhá-lo até a porta do Liceu, onde aprende, e onde quero que mamãe me faça entrar, para que eu não ande a pedir aos outros que me ensinem a apregoar as notícias dos jornais. Hoje ganhei mais do que ontem: e estou contente, mamãe, porque ninguém me tomou por vadio.”

“Quando eu for mais forte, irei para uma fábrica, e tu não terás necessidades, nem ninguém me falará mais com o desprezo com que me falou o velho que me julgou tão mal...”

A paralítica, com os olhos rasos d’água, tomou a cabecinha loura do filho junto ao colo, e, beijando-a, disse comovidamente:

— Fizeste bem, meu filho; fizeste bem: a humilhação é a pior das afrontas. Fizeste bem, meu filho, e eu te abençoo.

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 22 de fevereiro de 2021

ISSO É MUITA SABEDORIA (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

ISSO É MUITA SABEDORIA

Clarice Lispector

 

Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue; outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho... o de mais nada fazer.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 21 de fevereiro de 2021

A POMBA E A ESTRUMEIRA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPEIA)

A POMBA E A ESTRUMEIRA

Raul Pompeia

(Grafia original)

 

Eu quero um noivo rico... Que não seja formoso!... Formosa já sou eu... Quero um noivo de ouro, de ouro como o bezerro. Adoro tudo que é de ouro: as jóias, as moedas e o bezerro mosaico. Quando durmo, sobre o meu corpo os sonhos entornam douradas cascatas... As auroras são belas para mim, porque têm diademas de ouro. Ama-se geralmente a montanha pela verdura basta e frondosa, que a reveste; eu amo a montanha, porque sinto lá dentro da crosta granítica, o espesso filão dourado. Há quem adore o ciciar do córrego, cachoeirando-se pelas pedrinhas afora; eu acho apenas adorável o ribeiro, quando rola palhetas de ouro nas areias do leito... Com o ouro faz-se o domínio e funde-se o trono. Os imperadores romanos faziam esculpir em ouro as próprias figuras...

Os raios do sol são de ouro.

Enfim, eu serei conquistada pelo ouro... A formosura tem a glória de valer o grande metal e de poder trocar-se por ele.

A mulher que se deixa conquistar pelo ouro passa a ser conquistadora; a fraqueza da formosura transfunde-se na onipotência do metal... De que serviria a nós outras, mulheres, a beleza, se a beleza não fosse ouro no mercado da vida e se o ouro não exigisse o formoso róseo da nossa carne para mais fino realce?!... Os homens dominam pela matéria, que é o ouro, nós dominamos pelo ideal, que é a sedução. A aliança dos dous domínios faz o domínio supremo... Esta é a verdade. Por isso, eu quero um noivo rico. Um noivo de ouro; de ouro maciço como o bezerro do velho testamento... Pertenço a quem mais der!... O calão vulgar da canalha chama isso vender-se...

Eu vendo-me!

 

Eu estava horrorizado. E ela dizia a brilhante catadupa de blasfêmias com aqueles mimosos lábios, que eu supusera feitos para o murmúrio doce das santas confidências da virtude e do amor...

Como era horrível a lagarta amarela do ouro, a sair por entre as rosas daquela boca!

.................................................................

Diante de nós, lá embaixo, no jardim, haviam acumulado a um canto uma grande porção de estrume.

Sobre o estrume, uma pomba branca, de lindos pés sangüíneos e sangüíneo bico, revolvia com as unhas o monte infecto, procurando alimento...

Fez-me estremecer o epigrama da casualidade.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 20 de fevereiro de 2021

A PARADA DA ILUSÃO (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A PARADA DA ILUSÃO

João do Rio

(Grafia original)

 

Como tinha sido aquilo! Diante do espelho, a dar um laço frouxo no lenço de seda, Geraldo sorria o sorriso satisfeito e vagamente mau que têm todos os homens quando recordam uma aventura em que foram os mais espertos. Como tinha sido!... O acaso, apenas o acaso. Pobre, sem pretensões, alugara por uma ninharia aquele casinhoto do morro, bem na rua de Santa Luzia, defronte do mar. O mar é um fornecedor de energia. Contemplar as ondas, aspirar o ar infiltrado de salsugem fazia-lhe bem. Depois, acordava cedo, quase de madrugada, e como a vizinhança era quase toda de pescadores, de banhistas, de jovens dos centros de regatas, ia mesmo de camisa-de-meia, com os pés nus metidos nuns enormes tamancos, ao estabelecimento balneário. Quem o visse grosso, forte, o bigode espesso, a negra cabeleira ondeante, o braço cabeludo, não o diria jamais um estudante de medicina. Havia no seu olhar qualquer coisa dos barqueiros de Nápoles, do langor das serenatas, e na alegria do semblante, na gesticulação, o ar da raça, o ar que não falha. Basta olhar um homem para se sentir donde ele veio. Geraldo começara humilde, de origem italiana. De trabalho em trabalho fizera-se afinal acadêmico, graças à pertinácia da sua inteligência. Mas, por mais querido que fosse entre os colegas, era uma delícia para a sua alma ir arrastar as pernas pela madrugada nos corredores da casa de banhos, quase nu, a conversar em napolitano com os banhistas, os tradicionais banhistas há vinte anos os mesmos.

Era tão bom, tão bizarro! A princípio, postava-se no pátio, junto da barraca do gerente, escura de roupas em trouxas com um quadro das chaves e o bico de gás aceso. Era a chegada dos freqüentadores. Havia mulheres pálidas, mães de família acompanhadas de crianças e de criadas, verdadeiros regimentos de cloróticos; havia sujeitos de passo trôpego, reumáticos, beribéricos, talvez tísicos; havia os habituais, senhores respeitáveis, burgueses de ar solene, que tomavam banho de mar desde crianças, aconselhando para todas as moléstias um mergulho no salso elemento; e sujeitos que vinham especialmente para a pândega, as lições de natação, os namoros com apertões debaixo da água, as meninas assanhadas, as cocottes, as cocottes de uma palidez mortal àquela hora... e havia também muita mulher chic, muita mulher de estalo, que os mirones da praia até olhavam de binóculo.

Mas Geraldo não tinha pretensões a conquistas, e aquele espreguiçamento na casa de banhos era apenas uma tonificação para o estudo, que recomeçava horas mais tarde, com o curso dos hospitais, as aulas, os livros. Depois de descansar na gerência ia trocar palavras com os banhistas, rindo, brincando. Afinal atirava-se à água, no meio da algazarra dos conquistadores e das pequenas, e sempre tímido, só metido a gente do serviço. Ninguém o tomaria por um estudante e o próprio pessoal da casa tratava-o familiarmente por tu.

Uma vez, estava no corredor estreito e escuro a conversar com Nicolau, quando mesmo ao pé abriu-se a porta a um dos quartinhos e uma linda criatura loira chamou:

- O senhor banhista, venha cá.

Nicolau adiantou-se.

- Não, o outro. Sim, você mesmo.

Geraldo sorriu enleado. Tomavam-no por banhista! Ele, um estudante, um acadêmico! Mas, ao mesmo tempo que o fato o humilhava um pouco, sentia um desejo imprevisto e romântico de se deixar passar por banhista e ter assim a sua primeira façanha de estudante. Os estudantes são todos levados da breca! Apertou o braço do Nicolau, disse-lhe em calão de Nápoles que o deixasse, e aproximou-se. A dama loira estava já vestida para o banho.

- Não quero mais aquele banhista velho. Há cinco dias que tomo banho e logo no primeiro pedi-lhe conservar-se o quarto seco. Não há meio. Veja só. Fica você. Quer?

Geraldo curvava-se, sem uma palavra. A dama loira abriu a bolsa de prata, tirou uma nota.

- Tome. Não quer receber? Ora esta! Receba. Para esquentar. Ande lá.

- Grazzie, signorina...

- Diga: é italiano?

- lo sono venuto da Napoli fa tre anni...

- Ah! bem. E quantos anos tem de idade?

- Vinte e due.

A dama loura olhou-o profundamente, teve um leve suspiro, e ainda indagou:

- Como se chama?

- Túlio.

- Venha dar-me banho.

Infinitamente alegre com a aventura, Geraldo seguiu para o oceano a dar banho na dama loura, e quando voltou estava a arrebentar de riso. Não é que a mulherzinha o tomava mesmo por banhista? Entretanto, o imprevisto do caso acendia-lhe o desejo de continuar. Sim, continuaria. E falou ao dono da casa de banhos. O homem, um italiano velho, não gostava de patifarias no estabelecimento. Mas, como era ele, Geraldo, consentia. Os outros riam a perder, um pouco envaidecidos porque, afinal, um estudante era tal qual eles. E Geraldo, que não dissera a coisa na escola por um certo pudor, não faltou mais. Logo cedo lá estava no estabelecimento, de pés nus, calção de meia, camisa aberta. A dama loura chegava sempre às seis e meia.

- Então, Túlio, o meu quarto?

- Pronto patroa, prontinho.

No fim do quinto dia ele fazia tão bem o papel de banhista de opereta, que ela lhe disse o nome. Era Alda Pereira, brasileira, do sul, tinha vinte e sete anos, e um protetor sério, o senador Eleutério, que a tomara depois da separação do marido. Dizia essas coisas naturalmente, aprendendo a nadar.

- Ai! não me afogues, rapaz. Morrer aos vinte e sete anos...

Ou então:

- Palavra de rio-grandense e de Alda Pereira que aprender a nadar custa!

Ele sorria queria levá-la para longe.

- Não, que o senador Eleutério pode saber; e eu, meu filho, depois que me separei do meu marido, tenho muito medo do ciúme...

Uma suave intimidade brotava aos poucos daquela hora de banho.

Ele procurava termos vulgares, copiava o rir dos outros, dizia coisas grossas com um ar ingênuo, o seu tom de analfabeto, e ela parecia ter cada dia mais confiança. Já se encostava ao seu ombro, já lhe agarrava o pulso potente de certo modo. Uma vez perguntou-lhe:

- Você, um rapaz inteligente, por que não muda de vida?

- Para que, signorina? Aqui vivo, aqui hei de morrer...

- Criança! E não tem aspirações?

- Não, signorina!

- Aposto que nem sabe ler?

Ele parou um instante atônito. Estaria ela a brincar, já sabedora de tudo? Seria o caso de avançar e não gozar mais o prazer de ser conquistado. Mas Alda tinha uma expressão de tão velutínea piedade, que não hesitou na farsa.

- É verdade. Nem sei ler.

- Meu Deus! Um rapaz de vinte e dois anos que não sabe ler!

Os seus olhos nesse dia tomaram-se mais úmidos, e ao rebentar de uni onda na ponte ela se deixou positivamente cair no seu largo peito. Não tinha dúvida! A mulher amava-o como certas damas amam os impetuosos adolescentes das classes baixas; a criatura era uma nevrosada romântica. Decididamente estava de sorte.

No dia seguinte, à saída, Alda Pereira indagou:

- Ô Túlio, quereria você aprender a ler?

- A signorina paga o professor?

- Ensino eu mesma.

- Então quero. Onde?

- Vá à minha casa. Logo, à noite, às sete; é a melhor hora.

Ele arranjara um dólmã de brim, um capote comprido; comprara o lenço de seda e um chapéu desabado para aparecer com a cor local. E fora. A dama loura habitava, numa rua transversal à Lapa, uma casa elegante e discreta, com duas criadas apenas. Fizeram-no entrar para uma saleta de estilo moderno, em que os móveis eram incômodos e as paredes tinham mulheres de túnica soprando trombetas. Alda lá estava.

- Entre, Túlio. Nada de acanhamentos. Francine, deixa a porta aberta... Sabe que já lhe comprei o seu livro? Sente-se, menino, sente-se...

Evidentemente, ela estava comovida, com um riso nervoso, as faces coradas. Ele achava aquilo deliciosamente ridículo. Outro qualquer teria avançado; a sua natural timidez, a pretensão de levar a cabo uma fantasia inibiam-no de um movimento de ataque. E parecia-lhe o cúmulo aprender o alfabeto ensinado por aquela interessante mulher, tal qual nos vaudevilles franceses, numa cena de burla. Sentou-se. Ela mostrou-lhe o livro na mesa aproximando a cadeira do outro lado. E começou a ensinar, com a voz molhada de mistério.

- Que letra é esta?

Geraldo fazia-se inteiramente bronco, curvava-se muito para sentir os loiros cabelos dela roçando-lhe ao de leve a fronte. As vezes as mãos se encontravam. As dela estavam geladas. As dele eram de brasa. Ao fim de uma hora, ela disse num suspiro:

- Bom, vai embora.

Ele quase não podia falar. Curvou-se mais, respirando forte, e ia tocá-la. quando ela chamou:

- Francine, acompanha o Túlio até a porta...

Como saiu ele furioso! A sua vontade foi declarar a verdadeira posição. tomar uma atitude. Mas, para quê? Não teria realizado nada! Não a gozaria! Era uma aventura falha. Nunca! Tivesse que estudar o alfabeto a vida inteira - aquela, ao menos, não lhe escaparia. E, desde a madrugada, foi esperá-la na casa de banhos, apaixonado. Sim, de fato, apaixonado. Ele não estava senão apaixonado. A paixão é quase sempre o desejo de um triunfo, que se imagina de um certo e determinado modo. Há sempre um vencedor na alma de um amante. Ele queria pregar uma peça. Que peça? Enfim, queria confundir a linda mulher de estranha vontade. E Alda Pereira parecia também amá-lo, porque apareceu de olheiras, com um ar fatigado.

- Sabe que estudei? fez ele, olhando-a fixo.

- Palavra?

- Quer tomar a lição hoje?

Não, amanhã...

Ele se preparou, e foi. Já sabia o alfabeto. Alda Pereira sorria, enlevada.

- Mas como é inteligente! Vamos a soletrar. Olhe que você pode dar orgulho a um professor.

A aula ia continuar. Ela tinha a cabeça curvada, mostrando a nuca nua. Ele estava encostado à mesa, com aquele tom vulgar e potente, que o seu físico ajudava. A luz era tênue. Geraldo moveu apenas a cabeça e roçou o bigode no pescoço venusto. Ela estremeceu, estendeu as mãos e suspirou como uma rola.

- Ah! Túlio...

Ele firmou os lábios polpudos e apertou-lhe as mãos. Ela se debateu, voltou a cabeça e a sua boca purpurina, ansiosa e ávida, sugou o lábio de Geraldo. Nem uma palavra. Estavam num outro mundo. Ele caiu de joelhos, ela pendeu, rolaram os dois. Era frenética e deliciosa. Deliciosamente deliciosa. A própria paixão a vibrar. E Geraldo voltou ao casinhoto, Outro homem, aturdido, sem compreender o que via, a lembrar-se dos seus abraços e das palavras suas:

- Túlio! Túlio! não digas a ninguém! É a minha vida! Lembra-te do que fiz por ti. Só o amor, muito amor...

A vida de delírio começou então. Ela entregava-se e sentia-o como um imenso acorde do seu próprio ser. Cada beijo era uma revelação, cada abraço a dissolução de um mundo. E a necessidade de ocultar de olhares profanos aquele sentimento ainda mais os incendiava. No banho, ela estudava o momento de apertá-lo, de mordê-lo, esperava com a porta do quarto entreaberta para um beijo; em casa, as lições de leitura eram a leitura de Paulo e Francesca, no verso de Dante. Jamais, porém, ela mostrava desconfiar da sua verdadeira situação, e Geraldo, sentindo-se indigno de si mesmo, continuava a ser o banhista Túlio, sem forças para dizer a verdade.

Afinal, o senador Eleutério soubera do caso, e, mais pai do que amante, resolvera mandar Alda à Europa, a ver se o escândalo terminava. Alda chorava, queria viver sem roupas, em Santa Luzia, com o seu Túlio, e fora um verdadeiro trabalho o convencê-la de uma breve separação.

- Tu queres, Túlio?

- É para teu bem.

- Queres mesmo? É o nosso amor que matas...

Eleutério comprara as passagens combinara tudo. Era no dia seguinte que Alda partiria. Geraldo, preparando-se para a última visita, relembrava aqueles dois meses loucos de romantismo. Como aquilo fora! Era lá possível prever? Antes, porém, da partida era preciso dizer-lhe a verdade. Ele ia para o último ato.

Então penteou o cabelo como os banhistas, com muita brilhantina, pôs o chapéu e o capote, consertou ainda uma vez o lenço de seda e partiu. Alda estava na mesma sala da primeira vez, muito abatida. Estendeu-lhe as mãos e a boca.

- Meu amor... A última vez!

E deixou-se cair.

- Alda, que é isso? ânimo...

- Lembras-te? Há dois meses!... Quanto amor! Quando te vi, desde que te vi, meu amor, amei-te. Que me importava que tu fosses banhista? Se era a tua carne, o teu corpo, os teus olhos que eu desejava, meu adivinhado querido... Nunca, nunca mais sentirei o que senti por ti, no mar, quando te tinha a meu lado, forte, meu, fiel... Dize!... Nenhuma outra será como eu. Pois não?

- Mas, Alda...

- Aquela casa vão tantas mulheres! E tu tens que servir a todas, tens que as segurar, tens que as salvar...

Geraldo viu que era o momento.

- Alda, tenho que te dizer...

- Não digas! não digas nada!

- Não, há um engano; um engano que não pode continuar.

- Não há, Túlio, não há!...

- Há.

- Pois deixa-o!

- Não. Tu pensas que eu sou o banhista Túlio, nascido em Nápoles.

- E não és? Es sim, és o meu Túlio.

- Criança! Eu sou estudante de medicina, chamo-me Geraldo Pietri.

Mas, como Alda recuava, com a fisionomia demudada, Geraldo teve um resto de piedade.

- Sim, Geraldo, estudante, que se fez passar por banhista para te amar...

Um silêncio tombou. Alda sentara-se. Depois, como Geraldo se aproximasse, sorriu, afastando-o.

Não, senta-te. Ou vai-te. É melhor ires. Vai-te.

- Mas a nossa última noite?

- Vai-te.

- Zangaste-te?

- Não, pensei que tinhas mais espírito. Não tens. Eu sabia, ouviste? eu sabia desde o primeiro dia, quem eras tu. Se não soubesse, teria perguntado por ti e dar-me-iam informações. Eu sabia. O meu amor nasceu de uma brincadeira. Tudo na vida é ilusão e só a ilusão é verdadeira. A verdade é a mentira porque é o comum e o vulgar. Amei-te, querendo fazer desse sentimento uma parada de gozo superfino em que ambos nos esforçássemos por dar a cada um a ilusão. Nunca se desengana uma mulher porque não se mata a ilusão. Eu amava um ser idealizado, que seria chocante se fosse verdadeiro, um banhista imprevisto, um selvagem, filho do mar e das canções, em ti que o fingias bem. Tu mataste Túlio. Que me importa a mim o estudante Geraldo? Já nem parto. Não é preciso. Adeus! E nunca, ingênuo rapaz, queiras ser verdadeiro nas coisas do sentimento que ama a ilusão.

Geraldo, nervoso, sem saber o que fazer do seu chapéu calabrês, sentia a lamentável, uma curiosa e lamentável sensação de que retomava o seu eu; um eu vulgar e comum. Alda fez-lhe ainda um vago gesto. Na rua, outra vez, envergonhado, furioso, triste, o pobre rapaz deitou quase a correr, com o receio de que o conhecessem ainda malvindo da parada romântica. E só no quarto humilde é que pôde chorar, chorar longamente não ter sabido guardar integralmente o princípio da vida - a ilusão...


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 18 de fevereiro de 2021

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS (RESUMO DO CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS

Lima Barreto

 

O escritor Lima Barreto viveu estado de permanente exclusão, o que certamente justificou o alcoolismo crônico que o derrubou, tirando-lhe a vida ainda muito jovem: faleceu com pouco mais de 40 anos. Observador de ordem política da escravidão — ele mesmo descendente direto de escravos — Lima Barreto também criticou a cultura oficial que ornava o Brasil dos bacharéis. Grande parte deles era de intelectuais oportunistas. Há muitos deles até hoje.

Lima Barreto também faz com que reflitamos a propósito da ética da verdade: deslegitimou a mentira como mecanismo de ascensão social. Ele viveu à margem. Foi amanuense no Ministério da Guerra, com salários que permitiam sobrevivência frugal, situação que se agonizava com a necessidade de cuidar da família, sustentando o pai (que sofria de demência aguda) e os irmãos. Especificamente, indagava Lima Barreto: haveria legitimidade em se construir carreira com fundamento em uma mentira? Ele percebia nos bacharéis trajetórias montadas a partir de bases pouco sólidas.

O Homem que Sabia Javanês, parece-me, é um delicioso conto que denuncia este estado de coisas. O narrador, Castelo, relata a um amigo (Castro), em uma confeitaria, como pregou peças contra “às convicções e às respeitabilidades, para poder viver”. Castelo trabalhava no serviço diplomático, chefiava um consulado. O modo como alcançou a posição é a alavanca que Lima Barreto usou para denunciar o bacharelismo. O artifício de uma mentira — Castelo não sabia a língua exótica que um dia se propôs a ensinar — fora o ponto de apoio para que obtivesse posição de cônsul.

Castelo confessou ao amigo que já fora professor de javanês. E acrescentou que foi nomeado cônsul justamente por isso. Contou que quando chegou no Rio de Janeiro vivia na miséria, fugindo dos cobradores de aluguel das casas de pensão. Foi quando leu anúncio no Jornal de Comércio, que dava conta de que alguém necessitava de um professor de malaio. Imaginou que se tratava de ocupação para a qual não haveria muitos pretendentes. Castelo lembrou que continuava fugindo credores, o que evidenciava que a necessidade de empregar-se era absoluta. Enviou uma carta ao jornal, oferecendo-se para a vaga inusitada que se abria.

Castelo informou que foi conhecer o autor do anúncio, um interessado em tomar aulas de javanês. Tratava-se de um ancião. Teimosamente (coisa peculiar de velhos, segundo Castelo), o aluno queria saber onde o professor aprendeu javanês. Castelo observou que não contava com aquela pergunta. Disse que imediatamente arquitetou uma mentira. Teria falado que o pai era javanês, tripulante de navio mercante, que se estabeleceu nas proximidades de Canavieiras, na Bahia, como pescador; que teria se casado, e que prosperou. Foi com o pai que aprendeu javanês, explicou-se Castelo. Mentiu.

O aluno era da nobreza. Tratava-se do Barão de Jacucanga. Uma estória curiosa justificaria o interesse no estudo de língua tão pouco falada por estas bandas, e de utilidade questionável. O velho então explicou a Castelo porque queria aprender javanês: queria cumprir um juramento de família, que possuía um livro nessa inusitada língua, e que deveria ser lido.

Contrataram condições, preço e hora. Comprometeu-se a fazer com que o velho “lesse o tal alfarrábio antes de um ano”. As aulas começaram. O ancião não era muito diligente. Pelo contrário, preguiça e displicência pareciam ser as características de estudante. Castelo observou que levaram um mês com metade do alfabeto. Castelo obtinha algumas informações sobre o javanês em enciclopédias. O aluno aprendia e desaprendia. O bote foi dado.

A partir do genro do Barão, Castelo teria conseguido se aproximar da vida diplomática. Trata-se do momento mais significativamente crítico do conto, na medida em que Lima Barreto indicou as linhas gerais que marcaram a entrada de Castelo para o serviço diplomático. A diplomacia era o sonho de muitos intelectuais, que disporiam de tempo para dedicação exclusiva ao estudo e às atividades literárias.

Castelo estava definitivamente empregado. Observou ao amigo que nada sabia de javanês, e que representaria o Brasil num congresso de sábios. O Barão havia morrido um pouco antes. O livro escrito em javanês ficou com o filho, que o deixaria para o neto. Castelo foi brindado no testamento do aluno, com alguns benefícios materiais. Continuava estudando as línguas malaio-polinésias, porém confessava que não havia forma de as aprender. Comprava livros, assinava revistas. Era apontado nas ruas como o homem que sabia javanês.

Castelo contou ao amigo que descrevia a ilha de Java com o auxílio de dicionários, com alguns livros de geografia, que citava o tempo todo. O amigo perguntou se alguém duvidara do conhecimento que Castelo teria do javanês, se já teria passado por algum apuro. Castelo ainda contou sua participação no encontro de sábios. O professor de javanês estava entre os eruditos, era especialista em assunto hermético, e de conhecimento reduzido a um pequeno grupo de iluminados.

Castelo não se arrependia de tudo que viveu, e pelo que passou. A opção para o ensino de javanês, uma língua que desconhecia, fora a alternativa para a sobrevivência, para que se livrasse das agruras na cidade-grande. Fez-se como professor de javanês, língua que ninguém conhecia. Parece que Lima Barreto pretendia alcançar equilíbrio nas relações humanas, que deveriam ser marcadas pela franqueza e pela honestidade; não haveria espaço para mentiras. De tal modo, inconcebível o triunfo que decorreria de uma falsidade. O Homem que Sabia Javanês é, nesse sentido, denúncia contra bacharelismo que não tinha limites para que se alcançasse posição social de relevo.

Ao denunciar o homem que sabia javanês Lima Barreto tornava pública a revolta que vivia. Intelectual, porém com possibilidades limitadas de ascensão social, por conta das origens e da ascendência escrava, Lima Barreto fora preterido inúmeras vezes. Não conseguiu a imortalidade da Academia Brasileira de Letras. Jamais foi lembrado para posto no exterior. Mofou como amanuense em repartição pública que odiava. Enquanto isso, muitos professores de javanês atendiam congressos e representavam o país no exterior. Quando voltavam, eram recebidos com júbilo. Lima Barreto, vencido pela dipsomania, terminava seus dias num manicômio.

Se os fins justificam os meios, a premissa legitimaria a estratégia de Castelo. Se do ponto de vista kantiano, a verdade o é para quem a merece, não se saberá se o velho Barão teria direito de não ser enganado. Mas se a verdade é imperativo para convivência respeitosa, o Homem que Sabia Javanês inscreve-se no panteão nacional que plasma anti-heróis marcados pelo mau-caráter.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 17 de fevereiro de 2021

NINHO DO CURIÓ (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

NINHO DO CURIÓ

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

Rosto em brasa, olhos vivos, cabelos alvoroçados, atravessava o Luizinho a praça do povoado, denunciando no desalinho das roupas, no fogo das faces, no susto das maneiras, a sua última travessura, quando, ao passar pela frente da igreja, foi detido suavemente, brandamente, pela bondade do padre Guilherme.

 

— Venha cá, ó Luizinho!

 

O garoto tremeu, desconcertado, e o vigário, homem de uns quarenta anos, insistiu:

 

— Venha cá!

 

Luizinho chegou-se, respeitoso, de olhos no chão e chapéu entre os dedos, e o sacerdote indagou:

 

— Então, por onde andou você, hoje?

 

— Eu?

 

— Sim, você.

 

O pequeno corou, envergonhado, e o padre, excelente pastor, pegou-lhe da mão, puxando-o para dentro da igreja.

 

— Venha cá; venha se confessar.

 

Um minuto depois estava o Luizinho, com os olhos muito espantados, ajoelhado no confessionário, a contar ao padre Guilherme o seu grande pecado do dia.

 

— Eu estive hoje na mata do outro lado do rio, tirando uns ninhos de curió... confessava o garoto.

 

— Ninho de curió? — estranhou o confessor, franzindo a testa. — Você não sabe, então, que é pecado tirar os ninhos das avezitas, roubando os pobres passarinhos ao conchego de seus pais?

 

Luizinho mantinha-se cabisbaixo, vermelho de arrependimento e de vergonha, e não respondeu. O vigário insistiu, porém:

 

— E onde foi que você achou esses ninhos de curió?

 

— Na ingazeira, junto do morro.

 

— E havia muitos?

 

— Havia, sim, senhor.

 

— Pois, não tire mais, não. É pecado, e pecado mortal!

 

Na manhã seguinte, após uma noite de apreensões aflitivas, ia o garoto procurar urnas vacas na outra margem do rio, quando viu, ao longe, o vulto de padre Guilherme, que se aproximava, cauteloso, da ingazeira de que lhe falara na véspera. Luizinho escondeu-se, de um salto, em uma das moitas das proximidades, e observou tudo. Padre Guilherme chegou, com o breviário nas mãos e nariz no ar, examinou, sondou, olhou para um lado, olhou para outro, e, como não visse ninguém, descansou o livro na raiz da árvore, endireitou os óculos e subiu. Momentos depois, assinalados pelo piar dos passaritos implumes e pelo voo das aves aninhadas, o servo de Deus descia da ingazeira, sustentando nas mãos os bolsos da batina, repletos de curiós.

 

Luizinho viu tudo isso, da sua moita, e não disse nada. Padre Guilherme apanhou o seu breviário e foi-se embora para a aldeia. Ele tomou, também, o seu varapau, e lá se pelo mundo ganhar a vida, até que, anos depois, homem feito, voltou, de novo, à terra do seu nascimento.

 

Forte, moço, querido das moças, ia, uma tarde, o Luiz pela praça da matriz, quando o detiveram pelo braço:

 

— Olá, Luiz, como vai?

 

— Oh! o Sr. padre Guilherme! — sorriu o rapagão, feliz.

 

E travou-se a palestra

 

— Então, veio à terra para casar, não?

 

— É verdade, sim, senhor.

 

O padre deu-lhe parabéns, mas, não satisfeito, insistiu:

 

— E a noiva?... Afinal, quem é a noiva?

 

Luiz encarou, firme, o reverendo, e trovejou:

 

— A noiva? Eu sou tolo, então, para lhe dizer quem é?

 

E, dando-lhe as costas, indignado:

 

— Pensa, então, que isto é ninho de curió?...

 

E afastou-se, resmungando.

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 15 de fevereiro de 2021

FILOMENA BORGES (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

FILOMENA BORGES

Aluísio Azevedo

(Grafia original)

 

Sabemos que é geral a ansiedade por descobrir o mistério em que se envolve a individualidade conhecida pelo nome que encima estas linhas.

De há alguns dias conhecíamos parte do romance - se romance podemos chamar a uma história tristemente verdadeira - de que é heroína, protagonista, vítima, e não sabemos que mais, aquela mulher que é hoje célebre por andar o seu nome por toda esta população, repetido de boca em boca.

E sabíamos da sua história, porque nô-la referira a pessoa que assina a carta que abaixo transcrevemos, e que, tendo dela ligeira notícia, dirigira-se pessoalmente a tomar informações, e voltara trazendo-as, e as mais preciosas.

Encetaremos, pois, brevemente, a história da vida de Filomena Borges, escrita pelo conhecido romancista Aluízio Azevedo.

Eis a carta que ele nos enviou:

"Sr. Redator da Gazeta de Notícias. - Não é uma questão de interesse próprio que me traz ao seu conceituado jornal. Também não venho tratar de política, nem de ciência nem de literatura. Não.

Meu fim único, dirigindo-me a V. S., é cumprir um dever de consciência, um dever de justiça.

Neste instante, Sr. Redator, acabo de chegar da casa de Filomena Borges, e é ainda dominado por uma impressão violenta que lhe escrevo estas linhas.

Nunca imaginei que o ódio, a intriga e a inveja conseguissem tanto! Nunca me persuadi de que o espírito do mal fosse tão longe!

Bem sei que Filomena não é um modelo de virtudes domésticas; bem sei que na febre de suas paixões mais de um futuro se tem estiolado; bem sei que muito coração ainda hoje sangra a ferida de seus ósculos vermelhos.

Mas será ela porventura a maior culpada de tudo isso, será ela a única responsável pelo mal que fez e pelas fortunas que destruiu?!

Não caberá alguma parte dessa culpa a nossa sociedade, aos nossos costumes, à nossa educação, e finalmente ao triste meio onde cresceu e palpitou essa desventurada e formosa criatura?!

As mulheres são fatalmente aquilo que os homens decretam que elas sejam.

Filomena Borges é um produto legítimo dos vícios e da covardia de seus pais.

Se não a educassem no falso luxo; se não lhe ensinassem todas as misérias de uma pobreza sem coragem e sem dignidade; se não a vendessem ao primeiro noivo rico e brutal que a desejou: Filomena Borges seria talvez neste instante o melhor modelo das mães de família.

Eu também a detestava; eu também a temia. Não foi sem escrúpulo que cheguei ao lado dela. Mas. depois que a encarei de perto; depois que lhe sondei todos os arrebatamentos da alma apaixonada; depois que a ouvi nesses momentos terríveis da desgraça em que se não pode fingir, ah! então compreendi que, melhor do que o desprezo, merecia a infeliz, compaixão e consolo.

Hoje ninguém ignora o que há a respeito dessa pobre criatura desamparada; todos sabem a perseguição de que ela é vítima, e toda a grande tempestade de cólera que lhe paira sobre a cabeça.

Formaram-se grupos, inventaram-se clubes para a perseguir. Homens poderosos e mulheres felizes pedem o seu quinhão de vingança, como esfomeados que exigem pão. Multiplicam-se as cartas, os artigos., os cartões postais, os ditos maldizentes, as pequenas conversas intrigantes; e, todavia, Filomena Borges, a temível, a medonha Filomena, chora e pede por amor de i)eus que não a condenem sem a ter ouvido.

Ainda ontem um cidadão, cujo nome abstenho-me por ora de citar, chegou a quebrar-lhe os vidros da janela, depois de me dirigir da rua os maiores insultos. Um capitão do exército jurou que lhe havia de meter uma bala no miolos, se ela não tratasse quanto antes de sair do Rio de Janeiro. A Sra. baronesa X... mãe de três rapazes, e em vésperas de ser avó, remeteu-lhe unia carta, que faria temer um oficial de artilharia.

E, no fim de contas, qual é o motivo de tanta guerra?! De que lado esta a razão?!

Isso só o público decidirá, depois de ler o apanhado de todos os fatos, o extrato de todos os documentos, que me foi permitido descobrir a respeito de Filomena Borges.

Não hei de inventar, nem esconder cousa alguma; a verdade aparecerá nua e limpa, ainda que tenha de arcar com o ressentimento de algumas pessoas.

Rio, 4 de outubro.

Aluízio Azevedo

O Pais, outubro de 1883.

 

II

Antes de principiar

- Leste Filomena Borges!

- Li.

- Que tal?

- Uhm! Assim!...

- Por quê?

- Pouco enredo... pouca forma... e, com franqueza, achei tudo aquilo falso.

- Falso? Não! Isso tem paciência'. Tudo aquilo é vasado na observação e na verdade!

- Talvez seja por isso mesmo! Nesse caso há excesso de fidelidade e a cousa parece falsa. Às vezes um retrato a óleo é mais verdadeiro do que uma fotografia.

- Ora essa!.

- Parece-te unia asneira o que acabas de ouvir, mas não é, acredita! Nada é tão inverossímil como a própria verdade, quando ela se apresenta com toda a brutalidade de seu peso.

- Estás metafísico, homem!

- Não sei se estou metafísico, o que te afianço, é que não gostei da tal Filomena Borges, tão apregoada, tão ansiosamente esperada. Confesso, achei-a fraca, desengraçada, inútil. Pode ser, se o romance não fosse tão anunciado, que eu achasse bom, porém puxaram tanto pela minha curiosidade, tanto mexeram comigo, que, palavra de honra, esperava outra cousa.

- Ora! Isso não é crítica!

- Mas que queres, filho... Tenho eu culpa que a tal Filomena, uma mulher que leva o seu histerismo à loucura, não me haja agradado?! Tenho eu culpa de não poder suportar o tal Borges com a sua ingenuidade pulha?... O Guterres, com a sua má língua; o Barroso, sempre feliz em público e desgraçado consigo mesmo? Sou o responsável por não acreditar naquela viúva Perdigão, naquele Barradinhas, naquele Urso?!... Não! Tem paciência! Mas o tal Aluízio pode limpar as mãos à parede! - O seu novo romance é um atentado contra a verdade!

- Ora, deixa-te disso! Tu mesmo, na tua vida, atravessaste já algumas das situações que se encontram em Filomena Borges; tu mesmo já passaste por muitos daqueles transes; não negues! Bem sabes que eu conheço a tua vida tanto como a minha!...

- De acordo! Convenho que aí esteja descrita muita cousa que se tenha dado comigo. Mas será isso uma razão para gostar do livro... Não me parece que seja!... Eu quero que um livro me faça rir ou chorar, não há dúvida; mas, com os diabos! quero que ele me faça rir com os ridículos alheios, e chorar com as dores que não são minhas! Quero chorar para me divertir, e não para sofrer, percebes tu?

- Mas, filho, olha que estás a cair em contradição, porque, se todos pensarem como tu pensas, não haverá meio de fazer um romance real!

- Sim; mas é que há umas tantas verdades que estão conosco, em nossa inteligência, e que, todavia não existem na vida de ninguém; por exemplo...

- Não! não cites! Já vejo que não chegaremos a um acordo; quanto mais citares, é pior!

Eu, por mim, digo-te ingenuamente: não desgostei de Filomena Borges. Achei-a fora do comum, despretensiosa e divertida.

- São opiniões! Eu não lhe descobri nenhuma dessas qualidades! Não sei qual seja o fundo filosófico daquela obra, não sei o que ela prove, o que ela afirme!

- Nem eu, mas fico satisfeito em saber que ela divertiu, que ela me prendeu a atenção por muitos dias! E, digo-te agora: certas cenas que encontrei ali, fizeram-me pensar... Acredito que em tudo aquilo há uma intenção muito acentuada, há a intenção de...

- É inútil continuares! Já sei do que me vais falar, e a esse respeito temos conversado!

- O que eu vejo, é que é muito difícil escrever romances no Brasil!... O pobre escritor tem a lutar com dois terríveis elementos - o público e o crítico. O público que sustenta a obra e o crítico que a julga e às vezes a inutiliza; o público que compra um livro para aprender, e o crítico que exige que o livro sustente as suas idéias e pense justamente com ele - crítico.

- E daí?

Daí é que tudo isso seria muito razoável, se o público caminhasse ao lado do crítico; mas assim não sucede - aquele navega ainda no romantismo de 1820, e este não admite literatura que não esteja sujeita às regras de 1883. A dificuldade está em agradar a ambos, ou, ao menos, não desagradar totalmente a nenhum dos dois. Isso, quero crer, é a grande preocupação de Filomena Borges. Ela tanto pertence ao público como pertence ao crítico.

Será este o diálogo que se travará depois do último folhetim de Filomena Borges?

Pode ser. Em todo o caso, a obra principiará a sair de amanhã em diante no rodapé desta folha, e o leitor que a julgue à vontade, que diga o que entender, que a condene ou que a proteja, porque eu cá tenho as minhas razões para não a ter feito melhor nem pior.

Boa ou má, esta é a única Filomena Borges, legítima, verdadeira, a Filomena Borges da "Gazeta de Notícias", aquela que mandou o seu cartão a vários cavalheiros desta cidade e aquela de quem até hoje se tem ocupado a nossa imprensa e o nosso público.

Sirva isso de resposta às cartas dos Srs. A. P. Ramos de Almeida, Niemeyer, L...., O. Borges, P. de Oliveira e tantos outros que me honraram com as suas letras; como igualmente sirva de réplica ao Sr. Júlio Alberto Machado, que não teve o menor escrúpulo em aproveitar aquele nome para título de um romance de sua folha, e, outrossim, ao velhaco que publicou há pouco tempo um detestável fascículo intitulado: Filomena Borges, a mulher demônio.

O público que evite as contrafações e desconfie das Filomenas que não trouxerem o seguinte carimbo:

Aluízio Azevedo

Gazeta de Notícias, 1883


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 14 de fevereiro de 2021

CARMELA (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

CARMELA

Alcântara Machado

(Grafia original)

 

 

Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.

A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.

– Espia se ele está na esquina.

– Não está.

– Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.

– Que fiteiro!

O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores.

– Ai que rico corpinho!

– Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!

Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.

Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.

– Olha o automóvel do outro dia.

– O caixa-d’óculos?

– Com uma bruta luva vermelha.

O caixa-d’óculos pára o Buick de propósito na esquina da praça.

– Pode passar.

– Muito obrigada.

Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.

– Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!

Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.

– O Ângelo!

– Dê o fora.

Bianca retarda o passo.

Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só que sorri.

– Já acabou o romance?

– A madama não deixa a gente ler na oficina.

– É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.

– Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!

– Enjoada!

Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.

– Quem é aquele cara?

– Como é que eu hei de saber?

– Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu armo já uma encrenca!

Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calçada. E estacam.

– Boa tarde, belezinha…

– Quem? Eu?

– Por que não? Você mesma…

Bianca rói as unhas com apetite.

– Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?

– Ao lado de minha casa.

– Onde é sua casa?

– Não é de sua conta.

O caixa-d’óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado.

– Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.

– Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4. Carmela mora com a família dela no 5.

– Ah! Chama-se Carmela… Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?

Bianca rói as unhas.

– Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua… na…. atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também pode ficar em casa.

– Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!

– É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, as oito horas, atrás da igreja.

– Vá saindo que pode vir gente conhecida.

Também o grilo já havia apitado.

– Ele falou com você. Pensa que eu não vi?

O Ângelo também viu. Ficou danado.

– Que me importa? O caixa-d’óculos disse que espera você amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.

– Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!

– Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.

– Ele disse?

– Gosta pra burro.

– Não vou na onda.

– Que fingida que você é!

– Ciao.

– Ciao.

Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo 2.0

Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.

Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor:

– Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!

E – raatá! – uma cusparada daquelas.

– Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou avisando.

– Trouxa. Que tem?

No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d’óculos sem tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:

– Uma voltinha de cinco minutos só… Ninguém nos verá. Você verá. Não seja má. Suba aqui.

Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas.

– Só com a Bianca…

– Não. Para quê? Venha você sozinha.

– Sem a Bianca não vou.

– Está bem. Não vale a pena brigar por isso.

– Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.

– Mas cinco minutos só. O senhor falou…

– Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.

Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.

Só pára no Jardim América.

Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.

– Xi, quanta cousa pra ficar bonita!

– Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.

– Que é?

– Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que disse.

– Pirata!

– Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.

– É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo me disse que você está ficando mesmo uma vaca.

– Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece.

– Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo mesmo.

Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe.

– Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?

– Andiamo.

Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosissima.

Logo encontra a Ernestina. Conta tudo ã Ernestina.

– E o Ângelo, Bianca?

– O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. E pra casar.

– Há!…


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 13 de fevereiro de 2021

ANTES DA MISSA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ANTES DA MISSA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

CONVERSA DE DUAS DAMAS

 

 

(D. LAURA entra com um livro de missa ira mão; D. BEATRIZ vem recebê-la)

 

  1. BEATRIZ       Ora esta! Pois tu, que és a mãe da preguiça,

                      Já tão cedo na rua! Onde vais?

 

  1. LAURA         Vou à missa;

                      A das onze, na Cruz. Pouco passa das dez;

                      Subi para puxar-te as orelhas. Tu és

                      A maior caloteira...

                                                      Espera; não acabes.

 

  1. BEATRIZ       O teu baile, não é? Que queres tu? Bem sabes

                      Que o senhor meu marido, em teimando, acabou.

                      "Leva o vestido azul" — "Não levo" — “Hás de ir” — "Não vou".

                      Vou, não vou; e a teimar deste modo, perdemos

                      Duas horas. Chorei! Que eu, em certos extremos,

                      Fico que não sei mais o que fazer de mim.

                      Chorei de raiva. Às dez, veio o tio Delfim;

                      Pregou-nos um sermão dos tais que ele costuma,

                      Ralhou muito, falou, falou, falou... Em suma,

                      (Terás tido também essas coisas por lá)

                      O arrufo terminou entre o biscoito e o chá.

 

  1. LAURA         Mas a culpa foi tua.

 

  1. BEATRIZ                                       Essa agora!

 

  1. LAURA                                                            O vestido

                      Azul... É o azul-claro? aquele guarnecido

                      De franjas largas?

 

  1. BEATRIZ                                       Esse.

 

  1. LAURA                                                   Acho um vestido bom.

 

  1. BEATRIZ       Bom! Parece-te então que era muito do tom

                      Ir com ele, num mês, a dois bailes?

 

  1. LAURA                                                            Lá isso

                      É verdade.

 

  1. BEATRIZ                             Levei-o ao baile do Chamisso.

 

  1. LAURA         Tens razão; na verdade, um vestido não é

 

                      Uma opa, uma farda, um carro, uma libré.

 

  1. BEATRIZ       Que dúvida!

 

LAURA                                    Perdeste uma festa excelente.

 

  1. BEATRIZ       Já me disseram isso

 

  1. LAURA                                          Havia muita gente.

                      Muita moça bonita e muita animação.

 

  1. BEATRIZ       Que pena! Anda, senta-te um bocadinho.

 

  1. LAURA                                                                      Não;

                      Vou à missa.

 

  1. BEATRIZ                             Inda é cedo; anda contar-me a festa.

                      Para mim, que não fui, cabe-me ao menos esta Consolação.

 

  1. LAURA         (indo sentar-se)

                                            Meu Deus! faz calor!

 

  1. BEATRIZ                                                          Dá cá

                      O livro.

 

  1. LAURA                       Para quê? Ponho-o aqui no sofá.

 

  1. BEATRIZ       Deixa ver. Tão bonito! E tão mimoso! Gosto

                      De um livro assim; o teu é muito lindo; aposto

                      Que custou alguns cem...

 

  1. LAURA         Cinqüenta francos.

 

  1. BEATRIZ                                       Sim? Barato. És mais feliz

                      Do que eu. Mandei vir um, há tempos, de Bruxelas;

                      Custou caro, e trazia as folhas amarelas,

                      Umas letras sem graça, e uma tinta sem cor.

                      Foi comprado em Paris;

 

  1. LAURA         Ah! Mas eu tenho ainda o meu fornecedor.

                      Ele é que me arranjou este chapéu. Sapatos,

                      Não me lembra de os ter tão bons e tão baratos.

                      E o vestido de baile? Um lindo gorgorão

                      Gris-Perle; era o melhor que lá estava.

 

  1. BEATRIZ                                                          Então,

                          Acabou tarde?

 

  1. LAURA                                          Sim; à uma, foi a ceia;

                      E a dança terminou depois de três e meia.

                      Uma festa de truz. O Chico Valadão,

                      Já se sabe, foi quem regeu o cotilhão.

 

  1. BEATRIZ       Apesar da Carmela?

                                                      Apesar da Carmela.

 

  1. BEATRIZ       Esteve lá?

 

  1. LAURA                       Esteve; e digo: era a mais bela

                      Das solteiras. Vestir, não se soube vestir;

                      Tinha o corpinho curto, e mal feito, a sair

                      Pelo pescoço fora.

 

  1. BEATRIZ                                       A Clara foi?

 

  1. LAURA                                                            Que Clara?

 

  1. BEATRIZ       Vasconcelos.

 

  1. LAURA                                Não foi; a casa é muito cara.

                      E a despesa é enorme. Em compensação, foi

                      A sobrinha, a Garcez; essa (Deus me perdoe!)

                      Levava no pescoço umas pedras taludas,

                      Uns brilhantes...

 

  1. BEATRIZ                             Que tais?

 

  1. LAURA                                                   Oh! falsos como Judas!

                      Também, pelo que ganha o marido, não há

                      Que admirar. Lá esteve a Gertrudinha Sá;

                      Essa não era assim; tinha jóias de preço.

                      Ninguém foi com melhor e mais rico adereço.

                      Compra sempre fiado. Oh! aquela é a flor

                      Das viúvas.

 

  1. BEATRIZ                             Ouvi dizer que há um doutor. . .

 

  1. LAURA         Que doutor?

 

  1. BEATRIZ                             Um Dr. Soares que suspira,

                      Ou suspirou por ela.

 

  1. LAURA                                          Ora esse é um gira

                      Que pretende casar com quanta moça vê.

                      A Gertrudes! Aquela é fina como quê.

                      Não diz que sim, nem não; e o pobre do Soares,

                      Todo cheio de si, creio que bebe os ares

                      Por ela... Mas há outro.

 

  1. BEATRIZ                                       Outro?

 

  1. LAURA                                                   Isto fica aqui;

                      Há coisas que eu só digo e só confio a ti.

                      Não me quero meter em negócios estranhos.

                      Dizem que há um rapaz, que quando esteve a banhos,

                      No Flamengo, há um mês, ou dois meses, ou três,

                      Não sei bem; um rapaz... Ora, o Juca Valdez!

 

  1. BEATRIZ       O Valdez!

 

  1. LAURA                       Junto dela, às vezes, conversava

                      A respeito do mar que ali espreguiçava,

                      E não sei se também a respeito do sol;

                      Não foi preciso mais; entrou logo no rol

                      Dos fiéis e ganhou (dizem), em poucos dias,

                      O primeiro lugar.

 

  1. BEATRIZ                             E casam-se?

 

  1. LAURA                                                   A Farias

                      Diz que sim; diz até que eles se casarão

                      Na véspera de Santo Antônio ou São João.

 

  1. BEATRIZ       A Farias foi lá a tua casa?

 

  1. LAURA                                                   Foi;

                      Valsou como um pião e comeu como um boi.

 

  1. BEATRIZ       Come muito, então?

 

  1. LAURA                                          Muito, enormemente; come

                      Que, só vê-la comer, tira aos outros a fome.

                      Sentou-se ao pé de mim. Olha, imagina tu

                      Que varreu, num minuto, um prato de peru,

                      Quatro croquetes, dois pastéis de ostras, fiambre;

                      O cônsul espanhol dizia "Ah, Dios qué hambre!"

                      Mal me pude conter. A Carmosina Vaz,

                      Que a detesta, contou o dito a um rapaz.

                      Imagina se foi repetido; imagina.

 

  1. BEATRIZ       Não aprovo o que fez a outra.

 

  1. LAURA                                                   A Carmosina?

 

  1. BEATRIZ       A Carmosina. Foi leviana; andou mal.

                      Lá porque ela não come ou só come o ideal...

 

  1. LAURA         O ideal são talvez os olhos do Antonico?

 

  1. BEATRIZ       Má língua!

 

  1. LAURA         (erguendo-se)

                                            Adeus!

 

  1. BEATRIZ                                       Já vais?

 

  1. LAURA                                                   Vou já.

 

  1. BEATRIZ                                                          Fica!

 

  1. LAURA                                                                      Não fico.

                      Nem um minuto mais. São dez e meia.

 

  1. BEATRIZ                                                          Vens

                      Almoçar?

 

  1. LAURA                       Almocei.

 

  1. BEATRIZ                                       Vira-te um pouco; tens

                      Um vestido chibante!

 

  1. LAURA                                          Assim, assim. Lá ia

                      Deixando o livro. Adeus! Agora até um dia.

                      Até logo, valeu? Vai lá hoje; hás de achar

                      Alguma gente. Vai o Mateus Aguiar.

                      Sabes que perdeu tudo? O pelintra do sogro

                      Meteu-o no negócio e pespegou-lhe um logro.

 

  1. BEATRIZ       Perdeu tudo?

                                            Não tudo; há umas casas, seis,

                      Que ele pôs, por cautela, a coberto das leis.

 

  1. BEATRIZ       Em nome da mulher, naturalmente?

 

  1. LAURA                                                            Boas!

                      Em nome de um compadre; e inda há certas pessoas

                      Que dizem, mas não sei, que esse logro fatal

                      Foi tramado entre o sogro e o genro; é natural

                      Além do mais, o genro é de matar com tédio.

 

  1. BEATRIZ       Não devias abrir-lhe a porta.

 

  1. LAURA                                                   Que remédio!

                      Eu gosto da mulher; não tem mau coração;

                      Um pouco tola... Enfim é nossa obrigação

                      Aturarmo-nos uns aos outros.

 

  1. BEATRIZ                                                O Mesquita

                      Brigou com a mulher?

 

  1. LAURA                                          Dizem que se desquita.

 

  1. BEATRIZ       Sim?

 

  1. LAURA                       Parece que sim.

 

  1. BEATRIZ                                                Por que razão?

 

  1. LAURA         (vendo o relógio)                                               Jesus!

                      Um quarto para as onze! Adeus! Vou para a Cruz.

                                                      (Vai a sair e pára)

                      Cuido que ela queria ir à Europa; ele disse

                      Que antes de um ano mais, ou dois, era tolice.

                      Teimaram, e parece (ouviu-o ao Nicolau)

                      Que o Mesquita passou da língua para o pau.

                      E lhe fez um discurso hiperbólico e cheio

                      De imagens. A verdade é que ela tem no seio

                      Um sinal roxo; enfim vão desquitar-se.

 

  1. BEATRIZ                                                          Vão

 

                      Desquitar-se!

 

  1. LAURA                                Parece até que a petição

                      Foi levada a juízo. Há de ser despachada

                      Amanhã; disse-o hoje a Luisinha Almada,

                      Que eu, por mim, nada sei. Ah! feliz, tu, feliz,

                      Como os anjos do céu! Tu sim, minha Beatriz!

                      Brigas por um por um vestido azul; mas chega o urso

                      Do teu tio, desfaz o mal com um discurso,

                      E restaura o amor com dois goles de chá!

 

  1. BEATRIZ       (rindo) Tu nem isso!

 

  1. LAURA                                          Eu cá sei.

 

  1. BEATRIZ                                                          Teu marido?

 

  1. LAURA                                                                               Não há

                      Melhor na terra; mas...

 

  1. BEATRIZ                                       Mas...

 

  1. LAURA                                                   Os nossos maridos!

                      São, em geral; não sei... uns tais aborrecidos.

                      O teu, que tal?

 

  1. BEATRIZ                             É bom.

 

  1. LAURA                                          Ama-te?

 

  1. BEATRIZ                                                          Ama-me.

 

  1. LAURA                                                                               Tem

                      Carinhos por ti?

 

  1. BEATRIZ                             Decerto.

 

  1. LAURA                                                   O meu também

                     Acarinha-me; é terno; Inda estamos na lua

                      De mel. O teu costuma andar tarde na rua?

 

  1. BEATRIZ       Não.

 

  1. LAURA                       Não costuma ir ao teatro?

 

  1. BEATRIZ                                                          Não vai.

 

  1. LAURA         Não sai para ir jogar o voltarete?

 

  1. BEATRIZ                                                          Sai

                      Raras vezes.

 

  1. LAURA                                Tal qual o meu. Felizes ambas!

                      Duas cordas que vão unidas às caçambas.

                      Pois olha, eu suspeito, eu tremia de crer

                      Que houvesse entre vocês qualquer coisa... Há de haver.

                      Lá um arrufo, um dito, alguma coisa e... Nada?

                      Nada mais? É assim que a vida de casada

                      Bem se pode dizer que é a vida do céu.

                      Olha, arranja-me aqui as fitas do chapéu.

                      Então? Espero-te hoje? Está dito?

 

  1. BEATRIZ                                                          Está dito.

 

  1. LAURA         De caminho verás um vestido bonito:

                      Veio-me de Paris; chegou pelo Poitou.

                      Vai cedo. Pode ser que haja música. Tu

                      Hás de cantar comigo, ouviste?

 

  1. BEATRIZ                                                          Ouvi.

 

  1. LAURA                                                                      Vai cedo.

                      Tenho medo que vá a Claudina Azevedo,

                      E terei de aturar-lhe os mil achaques seus.

                      Quase onze, Beatriz! Vou ver a Deus. Adeus!

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 12 de fevereiro de 2021

ANTES A ROCHA TARPEIA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ANTES A ROCHA TARPEIA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

Como é que me achei ali em cima? Era um pedaço de telhado, inclinado, velho, estreitinho, com cinco palmos de muro por trás. Não sei se fui ali buscar alguma coisa; parece que sim, mas qualquer que ela fosse, tinha caído ou voado, já não estava comigo. Eu é que fiquei ali no alto, sozinho, sem nenhum meio de voltar abaixo.

 

Começara a entender que era pesadelo. Já lá vão alguns anos. A rua ou estrada em que se achava aquela construção era deserta. Eu, do alto, olhava para todos os lados sem descobrir sombra de homem. Nada que me salvasse; pau nem corda. Ia aflito de um para outro lado, vagaroso, cauteloso, porque as telhas eram antigas, e também porque o menor descuido far-me-ia escorregar e ir ao chão. Continuava a olhar ao longe, a ver se aparecia um salvador; olhava também para baixo, mas a idéia de dar um pulo era impossível; a altura era grande, a morte certa.

 

De repente, sem saber de onde tinham vindo, vi em baixo algumas pessoas, em pequeno número, andando, umas da direita, outras da esquerda. Bradei de cima à que passava mais perto:

 

— Ó senhor! acuda-me!

 

Mas o sujeito não ouviu nada, e foi andando. Bradei a outro e outro; todos iam passando sem ouvir a minha voz. Eu, parado, cosido ao muro, gritava mais alto, como um trovão. O temor ia crescendo, a vertigem começava; e eu gritava que me acudissem, que me salvassem a vida, pela escada, corda, um pau, pedia um lençol, ao menos, que me apanhasse na queda. Tudo era vão. Das pessoas que passavam só restavam três, depois duas, depois uma. Bradei a essa última com todas as forças que me restavam:

 

— Acuda! acuda!

 

Era um rapaz, vestido de novo, que ia andando e mirando as botas e as calças. Não me ouviu, continuou a andar, e desapareceu.

 

Ficando só, nem por isso cessei de gritar. Não via ninguém, mas via o perigo. A aflição era já insuportável, o terror chegara ao paroxismo... Olhava para baixo, olhava para longe, bradava que me acudissem, e tinha a cabeça tonta e os cabelos em pé... Não sei se cheguei a cair; de repente, achei-me na cama acordado.

 

Respirei à larga, com o sentimento da pessoa que sai de um pesadelo. Mas aqui deu-se um fenômeno particular; livre de perigo, entrei a saboreá-lo. Em verdade, tivera alguns minutos ou segundos de sensações extraordinárias; vivi de puro terror, vertigem e desespero, entre a vida e a morte, como uma peteca entre as mãos destes dois mistérios. A certeza, porém, de que tinha sido sonho dava agora outro aspecto ao perigo, e trazia à alma o desejo vago de achar-me nele outra vez. Que tinha, se era sonho?

 

Ia assim pensando, com os olhos fechados, meio adormecido; não esquecera as circunstâncias do pesadelo, e a certeza de que não chegaria a cair acendeu de todo o desejo de achar-me outra vez no alto do muro, desamparado e aterrado. Então apertei muito os olhos para não despertar de todo, e para que a imaginação não tivesse tempo de passar a outra ordem de visões.

 

Dormi logo. Os sonhos vieram vindo, aos pedaços, aqui uma voz, ali um perfil, grupos de gente, de casas, um morro, gás, sol, trinta mil coisas confusas, que se cosiam e descosiam. De repente vi um telhado, lembrei-me do outro, e como dormira com a esperança de reatar o pesadelo, tive uma sensação misturada de gosto e pavor. Era o telhado de uma casa; a casa tinha uma janela; à janela estava um homem; este homem cumprimentou-me risonho, abriu a porta, fez-me entrar, fechou a porta outra vez e meteu a chave no bolso.

 

— Que é isto? perguntei-lhe.

 

— É para que nos não incomodem, acudiu ele risonho.

 

Contou-me depois que trazia um livro entre mãos, tinha uma demanda e era candidato a um lugar de deputado: três matérias infinitas. Falou-me do livro, trezentas páginas, com citações, notas, apêndices; referiu-me a doutrina, o método, o estilo, leu-me três capítulos. Gabei-os, leu-me mais quatro. Depois, enrolando o manuscrito, disse-me que previa as críticas e objeções; declarou quais eram e refutou-as uma por uma.

 

Eu, sentado, afiava o ouvido, a ver se aparecia alguém; pedia a Deus um salteador ou a justiça, que arrombasse a porta. Ele, se falou em justiça, foi para contar-me a demanda, que era uma ladroeira do adversário, mas havia de vencê-lo a todo custo. Não me ocultou nada; ouvi o motivo, e todos os trâmites da causa, com anedotas pelo meio, uma do escrivão que estava vendido ao adversário, outra de um procurador, as conversações com os juízes, três acórdãos e os respectivos fundamentos. À força de pleitear, o homem conhecia muito texto, decretos, leis, ordenações, citava os livros e os parágrafos, salpicava tudo de perdigotos latinos. Às vezes, falava andando, para descrever o terreno, — era uma questão de terras, — aqui o rio, descendo por ali, pegando com o outro mais abaixo; deste lado as terras de Fulano, daquele as de Sicrano... Uma ladroeira clara; que me parecia?

 

— Que sim.

 

Enxugou a testa, e passou à candidatura. Era legítima; não negava que pudesse haver outras aceitáveis; mas a dele era a mais legítima. Tinha serviços ao partido, não era aí qualquer coisa, não vinha pedir esmola de votos. E contava os serviços prestados em vinte anos de lutas eleitorais, luta de imprensa, apoio aos amigos, obediência aos chefes. E isso não se premiava? Devia ceder o seu lugar a filhos? Leu a circular, tinha três páginas apenas; com os comentários verbais, sete. E era a um homem destes que queriam deter o passo? Podiam intrigá-lo; ele sabia que o estavam intrigando, choviam cartas anônimas... Que chovessem! Podiam vasculhar no passado dele, não achariam nada, nada mais que uma vida pura, e, modéstia à parte, um modelo de excelentes qualidades. Começou pobre, muito pobre; se tinha alguma coisa era graças ao trabalho e à economia, — as duas alavancas do progresso.

 

Uma só dessas velhas alavancas que ali estivesse bastava para deitar a porta abaixo; mas nem uma nem outra, era só ele, que prosseguia, dizendo-me tudo o que era, o que não era, o que seria, e o que teria sido e o que viria a ser, — um Hércules, que limparia a estrebaria de Augias, — um varão forte, que não pedia mais que tempo e justiça. Fizessem-lhe justiça, dando-lhe votos, e ele se incumbiria do resto. E o resto foi ainda muito mais do que pensei... Eu, abatido, olhava para a porta, e a porta calada, impenetrável, não me dava a menor esperança. Lasciati ogni speranza...

 

Não, cá está mais que a esperança; a realidade deu outra vez comigo acordado, na cama. Era ainda noite alta; mas nem por isso tentei, como da primeira vez, conciliar o sono. Fui ler para não dormir. Por quê? Um homem, um livro, uma demanda, uma candidatura, por que é que temi reavê-los, se ia antes, de cara alegre, meter-me outra vez no telhado em que...?

 

Leitor, a razão é simples. Cuido que há na vida em perigo um sabor particular e atrativo; mas na paciência em perigo não há nada. A gente recorda-se de um abismo com prazer; não se pode recordar de um maçante sem pavor. Antes a rocha Tarpéia que um autor de má nota.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 11 de fevereiro de 2021

O CAJUEIRO (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

O CAJUEIRO

Rubem Braga

(Grafia original)

 

O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.
 
Eu me lembro do outro cajueiro que era menor, e morreu há muito mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente “tala”) e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, “beijos”, violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado de casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.

No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido.
 

A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados.
 


Foi agora, em setembro. Estava carregado de flores.

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 10 de fevereiro de 2021

O ATEU (CONTO DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)

O ATEU

Rachel de Queiroz

(Grafia original)

 

Era uma vez, já faz muito tempo, havia um homem que era ateu. Naquele pequeno povoado onde morava não existia nenhum outro ateu igual a ele, de forma que o coitado vivia em grande isolamento. Mas era orgulhoso e não se queixava, mesmo quando se sentia mais solitário, por exemplo nos dias de domingo em que todo o povo da terra ia ouvir missa e ele ficava vagando entre as árvores da praça; ou na véspera de Natal, quando as pessoas só se preocupavam com o Presépio e com a Missa do Galo. Tocavam os foguetes, os sinos repicavam, todo o mundo se alegrava e ia cear, mas o ateu declinava os convites que lhe faziam: não tendo rezado não se achava com direito à ceia, pois ele com ser ateu não deixava de ser honesto; trancava-se em casa e ficava de vela acesa, lendo um dos seus livros de ateísmo. E, se alguma das pessoas vindas de longe para assistir às festas naquele povoado, estranhava a silhueta do homem solitário a ler junto à fresca da janela e perguntava por que não estava ele na missa ou na ceia, o povo da terra explicava:


- Ele não pode, coitado. É o nosso ateu.


       No mais, o ateu vivia como os outros. Trabalhava no seu ofício, plantava couve e orégano no quintal, criava dois cachorros perdigueiros e, à boca da noite, tomava parte na roda dos conterrâneos que conversavam sentados nos degraus do chafariz. E quando a conversa tocava em assunto de religião sempre havia uma observar:

- Você, que é ateu...

        Mas, então chegou um ano em que o nosso ateu, por diversas razões, parece que deu para se sentir ainda mais só. Esqueci de contar que ele era solteiro. Embora a cidade alimentasse um certo orgulho em possuir aquela singularidade - um ateu público-, as moças não sentiam coragem de casar com um homem assim marcado e que, mal expirasse, iria decretado para o inferno. Veio uma peste canina e matou os dois cachorros perdigueiros; pareceia castigo para mais agravar a solidão do pobre ateu. E os livros dele, de tão lidos e relidos, já não lhe contavam mais nada. De dia, o trabalho ajudava a fazer companhia; e de tarde tinha os amigos. Mas nessas eras antigas os homens eram muito religiosos e grande parte do tempo levavam na igreja: de manhã era a missa, de tarde o terço, de noite a novena e, a qualquer pequena festa, as procissões. E nessas horas numerosas em que toda a gente se metia na igreja, o ateu saía de casa, sentava à sombra do cruzeiro, sentia o cheiro bom do incenso queimando nos turíbulos, e lhe dava uma certa vontade de entrar, de ver o dourado nas vestes dos santos, e escutar o belo latim do padre. Mas continha-se; que diria o povo se o visse lá dentro?


       Outras ocasiões de inveja tinha-as nos dias de procissão, quando todos os seus amigos vestiam uma opa de seda colorida e iam carregar o andor, as varas do pálio ou os tocheiros acesos, e ele ficava nas esquinas, as mãos penduradas dos cotovelos, na sua roupa velha do diário. Então voltava a trabalhar, embora fosse dia de festa, e ninguém se escandalizava com isso pois todos compreendiam a sua condição de ateu, embora lhe lamentassem a desventura.


        E foi aí, na altura do fim desse ano, apareceu uma moça - por sinal sobrinha do padre - que se apaixonou pelo ateu. Como começou ninguém sabe, mas o amor tem disso: vai passando uma moça pela rua, vê um homem que toda a vida viu, e de repente sente um baque no peito e está amando aquele homem. Ele a princípio ficou apenas enternecido ante os olhos que ela lhe puna, toão doces e amigos; mas depois, descobrindo-se amado - ele, a quem ninguém amava-, começou a amá-la também.

        E todas as pessoas do lugarejo lamentavam os namorados, sabendo que podiam pensar em casamento, queo padre não iria entregar a sua ovelhinha inocente às mãos de um ateu confesso.

       Assim chegou o Natal e foi arumando o Presépio ecomeçou a romaria dos visitantes que iam beijar o pé do Menino. E a namorado do ateu deu de teimar que ela a acompanhasse nessa visita obrigatória. Ele dizia que não e só com muito custo consentiria em entrar na sala e ficar a um canto,

enquanto ela fizesse a sua devoção. Mas assim a rapariga não aceitava:


- Que é que custa um beijo? Você não me beija? Ele sorria:


- Mas você é gente, é de carne e eu lhe quero bem. O Menino, como vocês chamam, é um bonequinho de louça.


       A moça argumentou que de louça também era a xícara que ele levava aos lábios e não lhe fazia mal nenhum. Ele então alegou o seu amor-próprio. Afinal era o ateu dali, o único. A moça nesse ponto começou a chorar, a dizer que se ele tinha mais amor-próprio do que amor a ela estava tudo acabado. O ateu se assustou com a ameaça e consentiu, embora constrangido. Acompanhou à moça triunfante; entrou na fila atrás dela, enfrentou os olhares de espanto. De um em um, os devotos paravam diante da manjedoura, dobravam o joelho, rezavam uma jaculatória e beijavam o pé do Menino. Chegou a vez da namorada que, feita a sua reverência e dado o beijo, virou-se e sorriu para o seu bom ateu, a fim de o animar. Ele correu o olhar em torno e viu em todos o mesmo ar de animação e esperança. Resolveu-se: dobrou o joelho áspero, curvou a cabeça sobre os pezinhos do santo. E sentiu debaixo dos lábios, não o frio da porcelana, mas o calor da carne, o movimento, a pulsação da carne. Ergueu os olhos assombrado. Encarou o Menino e viu que Ele lhe sorria radioso, e dos olhos lhe saía uma luz que jamais olhos de louça teriam.


       Dizem que o ateu caiu no chão, com os braços em cruz, chorando e adorando. E naquela noite de Natal acabou-se o único ateu do povoado.
Mas dizem também que ele não se casou com a namorada. Não podia, pois largou tudo e foi ser frade.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 09 de fevereiro de 2021

FEITO NO ESCURO (CONTO EM VERSO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

FEITO NO ESCURO

Olavo Bilac

Ele era branco, e ela branca,
Ambos claros como a luz...
Casaram. Baile de arranca,
E pagodeira de truz...

O mais formoso dos ninhos
Era a casa, à beira-mar,
Onde, como dois pombinhos,
Foram os dois arrulhar.

Só eles... e um cozinheiro,
Que era o crioulo Manuel,
Crioulo lesto e ligeiro,
Obediente... e fiel.

Ali, Amor assentava
Os seus doces arraiais,
E o mar, gemendo, invejava
Aqueles beijos... e o mais.

 



Nove meses decorridos,
Uma notícia correu:
Escutaram-se os vagidos...
E o morgadinho nasceu!

Que horror! que espanto! o menino,
Filho daquela afeição,
Era belo e pequenino,
Mas... preto como carvão!...

O marido, ardendo em chama,
Fígado cheio de fel,
Quer, ali mesmo na cama,
Estrangular a infiel.

Ela, porém, que o conhece,
Pergunta: — "Você que tem?
"Você maluco parece...
"Reflita um pouco, meu bem!

"Bem lhe eu dizia, homem duro!
"Porém, você a teimar...
"Olhe! o que é feito no escuro,
"Sempre há-de de escuro ficar!

"Pois... o pobre pequenino...
"Feito de noite... bem se vê...
Cada qual tem seu destino....
"O culpado foi você..."

 



Tudo acaba em alegria...
Mas o Manuel, no fogão,
Malicioso sorria,
E temperava o feijão.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 07 de fevereiro de 2021

HERODES (CONTO DE HUMBERTO DE CAMPOS)

HERODES

Humberto de Campos

(Grafia Original)

 

O vapor fluvial que demandava a região do Xingu, no Baixo-Amazonas, acabava de atracar ao pequeno trapiche do barracão ribeirinho, suspenso nas águas sobre duzentas antenas de madeira, no ponto em que o rio Mapuá se bifurca para melhor abraçar a floresta alagada, e onde eu vivia sozinho, com um miserável seringueiro empaludado. A água escura, quieta durante um mês, ondulava, agora, nervosa, assustada pelo choque das hélices da embarcação civilizada. Seringueiros opilados, com os olhos quase escondidos no rosto inchado e terroso, olhavam, de longe, debruçados no alpendre de zinco do armazém, o "gaiola" formigante de marinheiros e de "brabos", o qual havia deixado dias antes, e voltaria a rever em breve, um mundo que eles não veriam mais. Um espanto, um susto alegre, uma inquietação feliz, parecia apossar-se das coisas, em torno, naquela festa de meia hora. Dentro de alguns minutos, o navio desceria a corrente do rio, deixando tudo, de novo, mergulhado no silêncio e na morte.
 
Embarcada a borracha amassada com a lama na terra e com o sangue dos meus homens, e recebidas as mercadorias destinadas aos seringais do centro, o comandante do "gaiola" chamou-me ao seu camarote, e pediu-me que recebesse no barracão, como um serviço à sua pessoa e à casa comercial a que a embarcação pertencia, um doente que vinha a bordo e que talvez não resistisse aos múltiplos inconvenientes da viagem. Se melhorasse, eu devia mandá-lo, numa canoa, para a foz do rio, onde o reembarcaria, no regresso. Disse-me isso enquanto me servia um cálice de vinho do Porto e eu admirava, com inveja, os gabes dourados que lhe enfeitavam o boné branco e o fardamento cuidado. Sem refletir muito sobre a responsabilidade que assumia, subornado pela gentileza daquele homem que me levava a civilização e a perfídia no gargalo de uma garrafa, aquiesci sem relutância. E os marinheiros desembarcaram para o barracão, onde os mosquitos chiavam na sombra, o corpo macilento de um indivíduo de quarenta anos, mais ou menos, em cujas linhas fisionômicas, a enfermidade, e o meio em que ultimamente vivia, haviam alterado os traços de uma antiga distinção. Nos seus olhos escuros, que a febre incendiava intermitentemente, boiavam a revelação de uma vida civilizada, a reminiscência de sociedades polidas, a lembrança inequívoca de um ambiente invulgar. A barba negra e cerrada, pontilhada de fios de prata, tentava esconder os traços finos, indícios de origem, do rosto moreno e cavado, que o paludismo esverdeara. As mãos pequenas e magras que a alisavam, traíam, porém, a dissimulação, denunciando no gesto elegante e no feitio gracioso a companhia em que se haviam educado. Ao menor movimento, pareciam comprimir, ainda, a pelica de uma luva ou uma cintura de mulher.
 
Desaparecido o vapor na curva do rio, tratamos, eu e o meu companheiro, de alojar o nosso hóspede. Enquanto os seringueiros, remando as suas "montarias", subiam os dois braços fluviais para um novo degredo de trinta dias, dávamos nós, ao enfermo, o compartimento mais abrigado que havia em nosso ninho de abutres. Pusemos-lhe à disposição os nossos cobertores, o nosso quinino, as nossas bolachas, que ele agradecia com desconfiada dignidade, como se estivesse prisioneiro de selvagens.
 
Ao fim de dois dias, durante os quais a febre não o abandonou, aumentando em horas certas, em solavancos que lhe faziam bater os dentes e chocalhar os ossos, éramos amigos, quase íntimos. A solidão identifica as almas, e a desgraça as aproxima. No degredo há uma ânsia permanente de confidências. Fiz-lhe, por isso, as minhas, contei-lhe a minha existência heroica e atormentada. E ele já me havia dito que era do Rio de Janeiro, onde se formara em medicina, e onde exercera a profissão durante dois lustros, com alto sucesso mundano. Abandonara o sul por fastio da vida, e procurara a Amazônia para refazer os sentidos, entorpecidos da ciência, bêbados de civilização.
 
À noite do terceiro dia, bateram, porém, à porta do meu quarto. Era o caboclo, meu companheiro, que, encolhido, as mãos unidas no peito, a cabeça guardada nos ombros, tiritando, matracando as maxilas sem dentes, assaltado também pela febre, me vinha chamar para ver o nosso hóspede, que regougava sinistramente no seu aposento. Levantei-me às pressas e atravessei o alpendre. A noite sem lua estava toda enfeitada de estrelas, que se miravam no espelho quieto do rio. A floresta, na outra margem, era como um grande muro de bronze edificado sobre uma lâmina de aço, que lhe duplicava o perfil. Mil vozes retalhavam o silêncio em pedaços miúdos, tornando-o indivisível. Batráquios e insetos pareciam procurar um ponto vago no tempo e no espaço a fim de enfiar o alfinete sonoro do seu grito. Uma pirarara fez espadanar a água, de súbito, em luta com algum peixe de grande vulto, e partiu, como um torpedo, agitando a superfície do rio. A alma da Natureza dormia, mas o seu corpo velava, no ritmo inconsciente da vida.
 
À porta no quarto do enfermo, parei, escutando. Não havia luz, lá dentro. Da escuridão vinha, porém, uma agitação de esqueleto, como se os demônios estivessem mudando, àquela hora, o ossuário de um cemitério. Chamei pelo meu novo amigo, e a sua resposta foi um uivo estrangulado, seguido de um resfolegar de bomba hidráulica, em que se misturavam na garganta e nos brônquios o ar da vida e a espuma da morte. Acendi uma vela e depois de lhe olhar o rosto, angustiosamente alterado, preguei a estearina no soalho, para aquecer alguns goles d'água, em um caneco de ágata. O trabalho era, entretanto, difícil. Incomodados pela luz, que se ia refletir na lama através das frestas do tabuado, os jacarés, que dormiam embaixo do barracão, davam rabanadas furiosas nas tábuas, abalando-as, aos bufos. E eu, para evitar que a vela tombasse, amparava-a com uma das mãos, segurando com a outra o caneco d'água, que precisava aquecer.
 
Com água quente, a que adicionara algumas gotas de acônito, o frio diminuiu progressivamente ficando apenas a febre alta, a devorar o doente. E foi nesse estado que o meu enfermo, num equilíbrio súbito das suas faculdades de raciocínio, me confessou, com grandes pausas, como se eu fosse um ministro de Deus; a sua história terrível.
 
— Eu lhe vou deixar, meu amigo, — disse, começando, — eu lhe vou deixar, como herança da minha gratidão, o segredo triste do meu destino e da minha miséria. Uma lição do mundo é sempre um tesouro. E eu lhe vou entregar, com as mãos vermelhas de sangue, as chaves do cofre da minha vida.
 
Os olhos brilharam-lhe sinistros, reproduzindo a chama da vela, como se guardassem dois esquifes. Interrompeu-se, de repente, como se se tivesse arrependido. Um largo silêncio, cortado apenas pela sua respiração agitada e pela vaia fina de um grilo escondido em toda parte, encheu o quarto. Depois, continuou:
 
— Na sua idade, eu tinha a alma congestionada de sonhos, e o coração repleto de ambições, que me torturavam. Não eram sonhos de riquezas, desejos de domínio, ambições de poderio. Não queria comandar os homens, que, para mim, não existiam; queria dominar as mulheres, que, para mim, eram tudo na terra. Queria-as a todas, e como não as tinha a todas, votava rancor aos homens que possuíam as que não eram minhas. Era sentimental e egoísta; mas de um egoísmo doentio, que chegava ao delírio maridos, noivos, namorados, eram atingidos, todos, pela peçonha do meu despeito, pela baba do meu ódio. Um beijo estalado na boca de outro, um sorriso mandado a outro que não a mim, envenenava-me, dava-me uma noite de insônia. Que as mulheres lindas não fossem minhas; mas, também, que não fossem de outros braços, de outros lábios, de outra luxúria.
 
Um regougo, semelhante ao de uma onda numa urna marinha, interrompeu-o. Tossiu e, vencendo uma dispneia angustiosa, reencetou, com dificuldade:
 
— Essa preocupação turvava até as minhas conquistas felizes, o meu prazer, as minhas horas de ventura. Quando eu me apossava de um coração ou de um corpo que pertencia a um esposo, a um amante, a um namorado mais velho do que eu, essa mesma posse era perturbada pela visão do que fariam comigo mais tarde, quando eu fosse tomando na terra o lugar deles, e outros homens mais novos tomassem o meu. Os maridos, os amantes, os noivos de agora, seriam vingados. Dentro de alguns anos viriam outros homens; mais jovens, mais vigorosos, mais arrogantes, que tomariam, por sua vez, minha noiva, minha mulher, minhas amantes. E comecei a odiar os homens.
 
Os sapos, nas duas margens do rio soturno, espaçavam o coaxar ensurdecedor, a que se misturavam ainda as mil vozes, os mil gritos, os mil anseios da noite que declinava. O enfermo calou-se por um instante, e reatou, ainda mais opresso, repetindo a última frase:
 
— Comecei a odiar os homens... Eram meus inimigos, inimigos da minha ventura. Se eu os não matasse, eles me matariam, mais tarde, na velhice, impiedosamente, ferindo-me no coração... Pensei que fosse enlouquecer... Meu pai morreu louco... Eu tenho um irmão, louco, no Hospício, no Rio de Janeiro... Mas, era preciso que, depois de mim, não viesse ninguém que me disputasse as minhas mulheres!
 
Como se tivesse medo de mim, olhou-me fixamente, à luz da vela, os olhos febris, dizendo, rouco, num ímpeto:
 
— E comecei a matar os homens que nasciam!
 
Senti um arrepio de terror. O doente percebeu o meu espanto, leu-o nos meus olhos e na minha palidez, mas continuou:
 
— Minha profissão favorecia-me. Modifiquei a minha especialidade, entregando-me à obstetrícia e à pediatria. Ia receber os meus pequeninos inimigos à porta da vida, e declarava-lhes guerra. As mulheres eram perdoadas, abençoadas, amparadas. Os homens, não; a esses, eu perseguia implacavelmente com todas as armas traiçoeiras da minha ciência, e só os abandonava no túmulo, sob as lágrimas e as rosas das mães inconsoláveis... A minha clínica de crianças era uma hecatombe. Fui, entre elas, um lobo num rebanho!
 
Uma nova pausa, mais funda e mais longa, sacudida pela respiração ansiada.
 
Reatou:
 
— Um dia, suspeitaram. Era o escândalo, que se anunciava. Era a condenação, que vinha. Era a prisão infalível. E eu fugi!
 
E num arranco:
 
— Fugi, matando crianças pelo caminho!
 
Um tremor mais forte de todo o seu corpo sacudiu a rede até os punhos. Esperei que continuasse. Como a pausa fosse demorada e as suas convulsões me enchessem de pavor, corri para o alpendre, a respirar o hálito da manhã, que nascia. Quando voltei, o aposento estava em silêncio. Apenas o pavio da vela, que eu deixara no soalho, agonizava, num lago de cera derretida. Chamei o meu hóspede. Estava morto.

Literatura - Contos e Crônicas sábado, 06 de fevereiro de 2021

NAMORADA (CONTO DE PARANAENSE DALTON TREVISAN)

NAMORADA

Dalton Trevisan

(Grafia original)

 

Depois que vê a garota ele corre se olhar no espelho: não pode negar, meio feio? quase feio? Numa palavra, feio. Dia seguinte desiste do bigode ralo. Quem sabe costeleta ou cavanhaque?


A menina o enfeitiça. Possuído, sim. Febrícula, sonho delirante, falta de ar, sede mas não de água.

Ela surge enrolada no garfo do suculento espaguete à bolonhesa. De sainha xadrez na primeira tarde, ó deliciosa bolacha Maria com geleia de uva. Formigas de fogo mordem sob a camisa quando ela vem na rua, brincando com o arco-íris na ponta dos dedos.

Consegue afinal apertar-lhe a mãozinha na luva de crochê, ri (descuidoso de ser feio) dentro de seus olhos glaucos. Discutem o narizinho, quem sabe arrebitado, segundo ela. E para ele, nada mais bonito que tal narizinho.

Meio do sono acorda, olho arregalado no escuro. A sua imagem o percorre, impetuoso vento por uma casa de portas abertas. Ninguém por perto, fala sozinho. A mãe o acha mais magro. Quem dera ser o terceiro motociclista do Globo da Morte.

Em guarda no portão, as mãos suadas, fumando. Ela aparece: um caramanchão florido de glicínia azul. Olhinho esquivo que fixa e foge. O sorriso (uma virgem fatal?) na pequena boca fresca.

Um dentinho ectópico no lado esquerdo, onde a palavra tiau esbarra quando sai. Ah, se ela deixar, passa o resto da vida adorando esse dentinho.

Espera outras vezes, fumando aflito, um cigarro aceso no outro. Ele mesmo um cigarro em chamas. A mocinha não quer lhe dar a mão. Como pode, uma santinha disfarçada na terra? Depois, deu.

Brava, ainda mais linda. Toda rosa, o lenço no pescoço, gatinha na janela depois do banho. A curva altaneira da testa, os cachos loiros arrepiados ao vento.

Ai, não, uma pérola na orelha. A pérola da orelha. Uma divina orelhinha esquerda, sabe o que é?

A voz meio rouca: Adivinhe o que eu tenho na mão? “Bem, pode ser tanta coisa.” Bala de mel, seu bobo. Pra você que não merece.

Já esquecido de timidez e feiura: “Sabe o que eu mais quero? É embalar você no colo.”

Pronto, ofendida, lhe negaceou o rosto.

De mal, até amanhã. Amanhã nosso herói vai cultivar uma barbicha.

Literatura - Contos e Crônicas sexta, 05 de fevereiro de 2021

PERNA DE PAU (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

PERNA DE PAU

Coelho Neto

(Grafia Original)

 

 

Já grisalho, alto e magro, olhos miúdos e negros, mas de um brilho estranho, viam-no todas as manhãs passar à porta do colégio com uma grossa e nodosa bengala.

Conheciam-no pelo toc-toc da perna de pau; e logo, chamando-se uns aos outros, corriam todos os meninos às grades, e, quando o inválido passava, rompiam em assuada: — Oh, perneta!

Ele sorria docemente; os seus olhos bravios, de uma expressão feroz, ameigavam-se; e, longe de agastar-se, tirava o seu grande chapéu de abas largas e fazia uma barretada, não sei se para brincar com os pequenos, se para lhes mostrar os cabelos brancos.
 
Um dia o diretor chamou-o para lhe fazer presente de umas roupas, de sorte que, à hora do recreio, quando os meninos saíram para o pátio, viram com surpresa o Perna de Pau sentado tranquilamente em um dos bancos. 
 
Receosos murmuraram: — Vem dar parte! Vem queixar-se ao diretor! — mas o bom homem sorria com tanta meiguice, que um dos pequenos ousou acudir o seu chamado.
 
— Venha cá, meu menino! Tem medo de mim?
 
— Não! — disse com orgulho o pequeno.
 
— Então venha até cá... eu gosto muito de crianças.
 
O menino adiantou-se, e os outros, vendo a bondade do inválido, acercaram-se dele, e o bom homem ficou numa roda de crianças, feliz, sorrindo. Um dos pequenos, curioso, perguntou-lhe então ingenuamente:
 
— Que é da tua perna, homem?
 
— A minha perna, meu menino? A minha perna um bicho mau levou!
 
A estas palavras a curiosidade dilatou todas as pupilas, e os meninos, esquecendo o recreio, chegaram-se mais ao homem, perguntando:
 
— Que bicho? Como foi? Conta...
 
— Ah! Meus meninos... eu era um rapaz robusto; vivia na minha terra descansadamente, quando correu a notícia de uma fera, que deitava fogo pela boca, queimando as cabanas e as plantações dos pobres, andava se arrastando pela vizinhança da nossa terra.
 
Diziam que ela matava velhos e crianças. Muitos moços da minha idade partiram para combater a fera que lhes ameaçava a casa e a vida dos velhos pais; eu também tinha minha mãe, uma velhinha, e quando me disseram que o animal podia matá-la, não pensei mais, meus meninos, tomei de uma arma e parti num bando.
 
Todos quantos nos viam passar abençoavam-nos: um, porque nós íamos defender a sua casa; a mãe, porque íamos evitar que a fera lhe viesse arrancar o filho dos braços, o enfermo, porque não consentiríamos que fosse maltratado. Os velhos mostravam-nos os cabelos brancos, as donzelas atiravam-nos flores, e nós seguíamos, levando todas essas lembranças num registro, que um dos nossos conduzia, para que sempre lembrássemos do que viríamos e ouviríamos. 
 
E chegamos ao sítio em que a fera errava. Ah! Meus meninos! Quanto mal ela já havia feito! Quanta criancinha órfã, quanta cabana reduzida a cinzas, quantos campos devastados! Felizmente, encontramo-la e o combate travou-se.
 
Muitos dos meus companheiros lá ficaram, devorados pelo dragão terrível; eu, mais feliz, apenas perdi uma perna: e não me arrependo, nem lastimo a dor que sofri, porque, de volta à casa, encontrei minha mãe fiando, e vi minha terra tranquila e farta, todas as mães contentes, e os velhos respeitados.
 
— Que seria de vossas mães, meus meninos? Talvez tivessem sido vítimas como outras foram...
 
— E que bicho era? Perguntou o pequeno curioso.
 
— A guerra, meu menino! — disse o inválido — Foi na guerra que deixei a minha perna, e não me arrependo: fiz o meu dever, defendendo a minha Pátria, e, quando voltei com peito coberto de medalhas, ainda achei minha velha mãe que me abençoou. Hoje estou velho e doente, e os meninos riem-se de mim...
 
— Não riremos mais! — disse um pequeno com os olhos rasos d’água; e atirando-se ao pescoço do velho soldado, pôs-se a dizer, comovido:
 
—“Não riremos mais! Não riremos mais!” — e o Perna de Pau, no meio das crianças que procuravam abraçá-lo, rindo, mas com duas lágrimas nos olhos, dizia:
 
— Ah! Meus meninos, assim dão cabo de mim! — e todos festejavam o inválido, prometiam-lhe presentes, abraçavam-no.
 
Felizmente pôs termo ao assalto de ternura a sineta, chamando para a aula...

Literatura - Contos e Crônicas quinta, 04 de fevereiro de 2021

FELICIDADE CLANDESTINA (CONTO DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

FELICIDADE CLANDESTINA

Clarice Lispector

 

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 03 de fevereiro de 2021

A MONA DO SAPATEIRO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPEIA)

A MONA DO SAPATEIRO

Raul Pompeia

(Grafia original)

 

Ela servia bem...

Era redondinha, rosada, bonita. Sobretudo era nova, novíssima mesmo...

Uns dezesseis anos se tanto.

Fernando e Emílio espiavam-na. Viam-na à porta da lojinha do pai, o sapateiro Cândido, um Cândido preguiçoso, ébrio e pobre. Achavam tentadora, ó diabo! a melancolia da menina, com o rosto colado ao portal da loja, observando quem passava e seguindo com um olhar expressivo as mocinhas de sua idade que transitavam de carro, ou vinham pelo passeio, a pé, apanhando garbosamente a seda farfalhante das saias para não roçarem pelo vestidinho enxovalhado e sujo, que lhe caía dos quadris.

Não trabalhava quase a filha do sapateiro. A ociosidade do pai a escusava ante a própria consciência e a opinião pública, isto é, o veredict da vizinhança.

Demais, a Joaninha vivia desgostosa. O pai, quando se embebedava, (e isto era freqüente) maltratava-a muito, injuriava-a desabridamente; chamava-a descarada, cadela... Mortificava aquilo. E ela não tinha gosto pelo trabalho. Levava as horas num farniente lânguido, aborrecida, dissolvendo-se cm mórbida tristeza, ou erguendo castelos de ouro, sobre as suas ilusões de menina ambiciosa...

Fechava-se, por exemplo, num biombo escuro existente nos fundos da loja, seu quarto de dormir; despia-se de alguns dos panos mal asseados que a cobriam, e punha-se a olhar para o corpo. Um sorriso estranho ressaltava-lhe, palpitante e ardentes, as maçãs do rosto. Joaninha deitava timidamente olhares em roda de si, como a gazela, antes de mergulhar o focinho na fonte para saciar-se; depois, cheia de feminino orgulho, passava os dedos pela epiderme velutínea dos braços e do seio. Entretanto, segredava de si para si que não ficaria mal naquele corpo uma camisinha fresca, mole, transparente, toda enfeitada de rendas... Cingia o pulso com o polegar e o dedo médio, em forma de pulseira, e imaginava o efeito de uma argola de ouro luzente, cavando-lhe ali uma cintura na carne...

E nada tinha para si, além dos maus tratos do pai e dos galanteios de alguns vagabundos atrevidos!

Os castelos perdiam-na numa ficção azul, donde a realidade a tirava com uma violência semelhante à do menino que deixa voar a avezinha atada pelo pé, e puxa então o cordel para fazê-la bater no chão e atordoar-se.

Por mais cruel entretanto, que fosse a realidade, jamais se dissipava do cérebro da moça o pensamento de melhorar de condição no mundo, subir...

Tinha ouvido dizer uma vez que a mulher tudo alcança pela formosura. Ela não era feia. Consultara o seu pequeno espelho a esse respeito e vira lá dentro uma carinha a rir de satisfeita. Era chic, bem chic. Então de corpo!... Quem seria mais elegante do que ela? Que braços mais lindos do que os seus; que cintura mais bem talhada?...

Não era sem motivo que certo moço da vizinhança lhe dava tanta atenção. Este moço não passava pela porta da loja, quando ela aí estava, que não lhe deitasse um olhar significativo - não chegava à janela da sua casa, pouco distante da loja, sem verificar se havia certa pessoa à porta daquela sapataria...

Ela era querida. Ser querida, eis a questão. Joaninha sentia-se no princípio da carreira...

Quase sempre as suas meditações eram interrompidas pelo pai.

Ou ele entrava da rua com a cabeça aquecida e a língua ardente pela ação do álcool e gritava:

Oh, Joaninha!... Onde se meteu esta peste?!... Oh, endemoninhada!...

Ou, sem estar embriagado, sentia acessos de amor paternal e chamava Joaninha, para acariciá-la, e dar-lhe conselhos. e, se estava trabalhando, deixava tudo, ia em busca da moça, bater à porta do biombo.

A Joaninha não fora possível dizer quando lhe era mais desagradável o chamado, se para a repreensão, se para o afago. Tinha contudo a necessária paciência para suportar uma cousa e outra.

Sofria tudo, confiando no futuro e adorando no fundo do peito ao jovem vizinho, como o alicerce das suas esperanças.

 

II

O sapateiro Cândido gostava muito de palestra. Era o seu natural... que fazer?...

Aos domingos, quando não se achava toldado pelo vinho, sentava-se à entrada da oficina, no seu banquinho de pano listrado e pernas em X, e esperava o primeiro conhecido para a prosa.

Os conhecidos vulgares não eram os mais apreciados pelo sapateiro. Ele preferia conversar com gente de gravata lavada, como um militar, uma autoridadezinha de polícia, um estudante, etc. Gente que percebesse as considerações mais ou menos digeridas que ele desenvolvia a propósito disto, ou daquilo, ou mesmo sem propósito nenhum.

Esta preferência revelava a face principal do caráter de Cândido. Não era homem de afazer-se à sua posição social. Dizia-se degradado pela necessidade. Não nascera para aquilo que era. Por isso estimava as palestras com gente boa. Tinha até predileção pelos homens ilustrados. Sim, porque ele não era qualquer ignorantão. Em pequeno, chegara a aprender geografia; e os quarenta anos que lhe pesavam nos ombros o tinham feito um tanto entendido na ciência...

Daí a amizade que ele travou com dois moços estudantes que moravam nas imediações da sapataria.

Um desses jovens era alto, magro, amorenado, cabelos negros, olhos negros, bigode vasto e queixo rapado; o outro de estatura vulgar, cheio de corpo, sangüíneo, bigode recurvado para cima, pupilas ameigadas, maneiras de conquistador; quanto ao mais trajavam ambos rigorosamente e gozavam da fama de ricos...

O moreno chamava-se Emílio; o alvo era seu companheiro de casa e colega; chamava-se Fernando.

Temos falado de ambos ao leitor.

Insinuante mancebo que era Emílio! Modos afidalgados, mas corteses, sorriso bom sempre a correr nos lábios. Fernando era insinuante como o outro, porém de gênero diverso. Derramava em torno de si uma chuva de olhares qual mais eloqüente e dizendo tanta cousa que uma mulher honesta e casta não podia afrontá-los. Punha de alcatéia os pacatos burgueses; e, mais de uma vez, o simples fato de sua passagem por junto de uma mocinha fizera agitar-se o pretropolis de honrado papai.

Fernando simpatizava com a Joaninha. Dize-lo basta para fazer evidente a atração que ligava o sapateiro e o estudante.

Travaram, pois, conhecimento Cândido e Fernando; Emílio por intermédio do amigo, entrou também na roda...

Era uma satisfação para o primeiro ter à sua porta os estudantes... Sentia-se menos sapateiro, lidando com os doutores. Pobre homem!

III

Certa ocasião, num dia santo (dia de... S. Sebastião, por sinal) os dois moços pararam à porta da sapataria; perguntaram a Cândido como ia da saúde, etc. O pai de Joaninha convidou-os a entrar. Sabia que eles eram democratas, não coravam de transpor o limiar de uma humilde oficina... Os democratas acederam ao convite. Era fim da tarde e já os lampiões da iluminação pública salpicavam a meia sombra crepuscular com as chamas esbranquiçadas do gás. A rua toda parecia respirar na sonolência inexprimível dos dias desocupados. Pouco movimento, nenhum rumor notável. No céu, nevoeiros empastados, prenhes de chuva, anunciavam uma próxima mudança de tempo. Pelo ar, espalhava-se alguma eletricidade, que impressionava os nervos, predizendo trovoada.

Os estudantes e o sapateiro conversavam. Davam à taramela a respeito de tudo, primeiro a respeito da atmosfera; depois, de S. Sebastião; em seguida, das festas de Igreja; por tocarem nisso, meteu Cândido as botas nos padres, especialmente no vigário da paróquia, um patife tão baixo para com os ricos, quanto arrogante para com os pobres, um bandalho, etc...

Entretanto, passou o caixeiro da venda do Manoel corcunda.

Escurecera completamente, mas o sapateiro tinha acendido o lampião de querosene, a cuja luz trabalhavam os seus empregados em dias de serviço. Conquanto amortecida, essa claridade enchia a oficina, desenrolando uma toalha avermelhada até ao meio da rua...

O caixeiro espiou, sorrindo de ver na oficina o Dr. Fernando R. e o Dr. Emílio ....

- Querem alguma cousa? perguntou.

Os estudantes cruzaram um olhar...

- Queremos, disse Fernando. Traga cerveja e...

- A branca!... completou Cândido.

E Fernando atirou ao caixeiro uma nota de cinco mil-réis...

O caixeiro abriu a boca, mostrando os dentes sujos, num riso malicioso, e foi-se...

Minutos depois, estava tudo aí: troco dos cinco, cerveja, a branca, bebedeira.

Os moços deram o exemplo. Dois copos e uma caneca fizeram de cristais. Começou a orgia. Saltavam as rolhas e a cerveja surgia espumosa como a saliva de um gotoso à beca das garrafas...

... As negrinhas estão babando! gritava Cândido, e estendendo o copo para colher aquela espumarada atraente...

- Vamos bebendo! diziam os estudantes.

Note-se que Fernando bebia moderadamente.

O sapateiro entusiasmou-se. Descompôs a sociedade que o maltratava, e o destino, que o perseguia; maldisse de tudo, em altas vozes, revelando raros dotes de uma oratória inchada e de má gramática.

Os moços discutiam com ele, e o faziam beber cada vez

Principiou então a perder o fio das idéias. Dissertando sobre a conveniência da instrução, apostrofava subitamente os seus empregados que lhe comiam o dinheiro sem trabalhar.

- Corja de bêbados! urrava...

Iam-lhe as palavras tornando pegajosas de mais a mais, a língua pesava-lhe sobre os dentes inferiores, e os estudantes a ministrarem-lhe copos sobre copos...

O bêbado afastava os cantos da boca num sorriso bestial, as pálpebras caíam-lhe como bambinelas e, nos olhos semicerrados, moviam-se languorosamente as pupilas, como se estivessem também embriagadas.

Emílio e Fernando riam gostosamente, oferecendo ao sapateiro mais cerveja e mais aguardente. O infeliz, encantado pela transparência brilhante dos copos, deixava-se atordoar e ia bebendo... bebendo.

Numa porta que se rasgava como um paralelogramo negro ao fundo da loja, assomou um vulto. Parecia uma coluna de fumo alvacento a flutuar nas trevas. Os moços sentiram-no. Emílio voltou a cabeça; Fernando voltou a cabeça. Era a menina!...

Joaninha percebera os rumores da orgia. O que seria? Convinha ver...

Estivera espreitando.

O estado do pai confrangia-lhe o coração, à força de causar-lhe nojo. Aquilo já não era beber! Porque nascera ela daquele homem? Deus não podia ter-lhe dado um pai menos borracho? E tinha de amá-lo!... E ela o amava, mesmo; sentia-o às vezes... Que miseráveis eram aqueles que ali estavam a escarnecer do pobre homem?

Devia verificá-lo e censurar os malvados. Quis entrar na loja...

Os homens, porém, tinham voltado o rosto e ela que já os suspeitava viu que eram os dois vizinhos, aquele que lhe dava muita atenção, e o companheiro...

A figura do pai, com a cabeça pendida, balanceando à toa como a de um morto; as pernas distendidas e os braços caídos como pedaços de chumbo, desfez-se-lhe, com o deslumbramento que lhe causou o olhar de um dos moços, de Fernando.

Fernando era o seu namorado, isto é, o moço que podia servir-lhe. Um belo rapaz; tanto melhor. O que a dispusera para amá-lo, para notar-lhe as feições, fora o ser Fernando um moço de fortuna como revelava pelo rigor do traje e pelo seu modo de vida. Demais o estudante gostava dela, não havia que duvidar. Disso possuía mil provazinhas galantes que o moço lhe dava e que ela compreendia sem custo. Com Fernando se casaria.

Por que não?

Ela pobre, mas bonita; ele namorado e rico...

IV

Adiantara-se muito a noite. A rua ficara sem viva alma. Alguns trovões pouco intensos abalavam de longe em longe o ar. Na loja do sapateiro Cândido são havia como lá fora pessoa alguma, a não ser o indivíduo que dormia sobre um assento, encostado à parede. Era o bêbado. Os estudantes tinham desaparecido.

Emílio propositalmente deixara Fernando só e fora-se para a casa. O namorado de Joaninha, tendo recostado como melhor pôde o sapateiro, adormecido na mais absoluta embriaguez, encaminhara-se para a porta onde vira a Joaninha mostrar-se.

A mocinha não estava mais aí. Fernando olhou para trás, como temendo que o pai da sua querida despertasse e adiantou-se para o interior. Sabia que Joaninha era órfã de mãe, e, naquela casa, residia com o pai unicamente. Não eram, pois, de recear encontros.

Barafustou por vários aposentos, onde não se distinguia um só objeto, na massa compacta de negruras que havia neles. O coração palpitava-lhe violento como se não estivesse a gosto no tórax. O cheiro de couros e graxas que corrompia o ambiente incomodava-lhe o olfato...

Sem saber como, viu-se o moço em uma saleta mais clara (menos escura, fora melhor). Uma janela envidraçada apresentava um pedaço de céu sombrio, um pouco menos, contudo, que as paredes da saleta. Relâmpagos brancos, demorados, iluminavam os caixilhos da vidraça como clarões brincando num painel fantástico. Estes clarões faziam uma rápida solução de continuidade em a noite. Um dia veloz penetrava na saleta e fugia num instante, mal permitindo que se visse no centro da sala uma mesinha coberta de objetos insignificantes e um velho sofá vizinho da janela.

Neste sofá estava sentada Joaninha. Quando um relâmpago mostrou-lhe o namorado a entrar, ela sorriu e baixou o rosto acanhadamente.

- Até que enfim meu anjo! disse Fernando, com voz um tanto comovida.

O moço estava habituado às entrevistas; mas aquela era de ordem excepcional. Fora tão longamente preparada, que, quando a grande hora chegou, o herói sentiu-se abalado. A filha de Cândido gozava um sobressalto delicioso. Havia se retirado da loja, para ser seguida pelo dileto do seu coração. Ali estava ele.

A um segundo relâmpago, a mocinha viu junto de si o mancebo e, apenas voltou a escuridão, sentiu um braço musculoso enlaçando-lhe a cintura, apertando-a com arrebatamento contra um peito largo, onde havia palpitações que eram marteladas.

Joaninha pendeu a cabeça para o ombro daquele homem.

Caiu numa dormência povoada de visões. A noite pareceu-lhe sulcada por mágicas irradiações de esquisito fulgor, a cruzarem-se no espaço, como para circundar uma figurinha de criança que lhe sorria de longe, agitando as mãos...

Quando terceiro relâmpago clareou a saleta, os dois namorados cingiam-se num abraço de despedida.

- Meu noivo!... dizia a moça com os lábios sobre a face de Fernando.

- Minha noiva! ciciava este ao ouvido dela...

E lá fora o trovão rufava com força, fazendo estremecer a vidraça.

V

Em seguida Joaninha conduzia seu noivo até à porta da rua.

Na oficina jazia o sapateiro estendido no chão, a dormir como um porco. Escorregara do assento, em que o tinha deixado Fernando.

Chovia bastante, àquela hora, e a água, entrando pelo vão da porta da loja, inundava o chão. Cândido parecia boiar num lago.

Os noivos não lhe deram atenção... Apertaram-se as mãos e Joaninha perguntou graciosamente:

- Como se chama, mesmo, você?...

- Felizardo... flor...

- Bem... Agora, Felizardo, até...

- Logo, Joaninha...

Dando esta resposta, Fernando abriu o guarda-chuva que trouxera.

- Adeus! atirou-lhe a filha do sapateiro.

- Adeus! disse ele, sorrindo.

E partiu.

.......................................................

Pouco depois, Fernando e Emílio conversavam em sua casa.

- Com que, graceja Emílio, conseguiste, meu felizardo, plantar uma lança em África!...

- Sabes que sou decidido, observou Fernando, pavoneando-se... Mas o principal é que temos de nos mudar desta casa, já e já... não quero que a pequena me torne a ver...

- Fazemos a mudança amanhã mesmo; olha, o mudou-se há dois dias; temos a casa dele...

- O diabo é esta chuva... parece que o céu está chorando...

Todo estudante é mais ou menos poeta. A frase de Emílio inspirou-lhe uma idéia.

- Deixa estar, Fernando, que hei de dedicar-te um soneto com este título: a queda de um querubim, onde farei o céu deplorando uma virgem...

- E eu, replicou o companheiro distraidamente e rindo, hei de dedicar-te um com este outro titulo: a mona do sapateiro.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 02 de fevereiro de 2021

O BEBÊ DE TARLATANA ROSA (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

O BEBÉ DE TARLATANA

João do Rio

(Grafia Original)

 

– Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto… Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventuras não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura…  

E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.  

Havia no gabinete o barão Belfort, Anatólio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autêntico, parecia absorto.  

– É uma aventura alegre? indagou Maria.  

– Conforme os temperamentos.  

– Suja?  

– Pavorosa ao menos.  

– De dia?  

– Não. Pela madrugada.  

– Mas, homem de Deus, conta! suplicava Anatólio. Olha que está adoecendo a Maria.  

Heitor puxou um largo trago à cigarreta 

– Não há quem não saia no Carnaval disposto no excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma…  

– Nem com um, atalhou Anatólio.  

– Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a pornéia da cidade, saio como na Fenícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.  

– Muito bonito! ciciou Maria de Flor.  

– Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andávamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champagne aos clubes de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio. – “Nossa Senhora! disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias do pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge, um cheiro atroz, rolos constantes…” – Que tem isso? Não vamos juntos?”  

Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparrimando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos em frascos de álcool, que têm as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel-arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tarlatana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem-feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro: – ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e era sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma freqüentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chic e mais secante da cidade.  

– E o bebê?  

– O bebê ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado do chauffeur; no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e urna voz rouca dizer: “para pagar o de ontem”. Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo de indagar: aonde vais hoje?  

– A toda parte! respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.  

– Estava perseguindo-te! comentou Maria de Flor.  

– Talvez fosse um homem… soprou desconfiado o amável Anatólio.  

– Não interrompam o Heitor! fez o barão, estendendo a mão.  

Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, continuou:  

– Não o vi mais nessa noite e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e cai no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.  

Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.  

– A quem o dizes!… suspirou Maria de Flor.  

– Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!  

– É quando se fica mais nervoso!  

– Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de bengala, caiam em sombras – sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços… E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo largo do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do interior, quando vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.  

Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei.  

– “Os bons amigos sempre se encontram” disse.  

O bebê sorriu sem dizer palavra. Estás esperando alguém? Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. – Vens comigo? Onde? indagou a sua voz áspera e rouca. – Onde quiseres! Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.  

– Por pouco…  

– Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica: – “Aqui não!” Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado ao jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas-Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vicio naquela austeridade da noite. – Então, vamos? indaguei. – Para onde? – Para a tua casa. – Ah! não, em casa não podes… – Então por aí. – Entrar, sair, despir-me. Não sou disso! – Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. – Que tem? – Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. – Que máscara? – O nariz. – Ah! sim! E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.  

Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal. – Tira o nariz! – Ela segredou: Não! não! custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne de chama.  

O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal-estar curioso, um estado de inibição esquisito. – Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. – Disfarça sim! – Não! procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinante – uma caveira com carne…  

Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. – Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste…  

Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da Luxúria Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semitreva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo o mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo em febre.  

Quando parei à porta para tirar a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana rosa…  

Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatólio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes e resumiu:  

– Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do Carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.  

E foi sentar-se ao piano. 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 01 de fevereiro de 2021

A VIDA ETERNA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A VIDA ETERNA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

É opinião unânime que não há estado comparável àquele que nem é sono nem vigília, quando, desafogado o espírito de aflições, procura algum repouso às lides da existência. Eu de mim digo que ainda não achei hora de mais prazer, sobretudo quando tenho o estômago satisfeito e aspiro a fumaça de um bom charuto de Havana.

Depois de uma ceia copiosa e delicada, em companhia de meu excelente amigo o Dr. Vaz, que me apareceu em casa depois de dois anos de ausência, fomos eu e ele para a minha alcova, e aí entramos a falar de coisas passadas, como dois velhos para quem já não tem futuro a gramática da vida.

Vaz estava assentado numa cadeira de espaldar, toda forrada de couro, igual às que ainda hoje se encontram nas sacristias; e eu estendi-me em um sofá também de couro. Ambos fumávamos dois excelentes charutos que me haviam mandado de presente alguns dias antes.

A conversa, pouco animada ao princípio, foi esmorecendo cada vez mais, até que eu e ele, sem deixarmos o charuto da boca, cerramos os olhos e entramos no estado a que aludi acima, ouvindo os ratos que passeavam no forro da casa, mas inteiramente esquecidos um do outro.

Era natural passarmos dali ao sono completo, e eu lá chegaria, se não ouvisse bater à porta três fortíssimas pancadas. Levantei-me sobressaltado; Vaz continuava na mesma posição, o que me fez supor que estivesse dormindo, porque as pancadas deviam ter-lhe produzido a mesma impressão se ele se achasse meio acordado como eu.

Fui ver quem me batia à porta. Era um sujeito alto e magro embuçado em  um capote.  Apenas lhe abri a porta, o homem entrou sem me pedir licença, e nem dizer coisa nenhuma.  Esperei que me expusesse o motivo da sua visita, e esperei debalde, porque o desconhecido sentou-se comodamente em uma cadeira, cruzou as pernas, tirou o chapéu e começou a tocar com os dedos na copa do dito chapéu uma coisa que eu não pude saber o que era, mas que devia ser alguma sinfonia de doidos, porque o homem parecia vir direitinho da Praia Vermelha.

Relanceei os olhos para o meu amigo, que dormia a sono solto na cadeira de espaldar. Os ratos continuavam a sua saturnal no forro.

Conservei-me de pé durante poucos instantes a ver se o desconhecido se resolvia a dizer alguma coisa, e durante esse tempo, apesar da impressão desagradável que o homem produzia em mim, examinei-lhe as feições e o vestuário.

Já disse que vinha embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriu-se-lhe o capote, e vi que o homem calçava umas botas de couro branco, vestia calça de pano amarelo e um colete verde, cores estas que, se estão bem numa bandeira, não se pode com justiça dizer que adornem e aformoseiem o corpo humano.

As feições eram mais estranhas que o vestuário; tinha os olhos vesgos, um grande bigode, um nariz à moda de César, boca rasgada, queixo saliente e beiços roxos. As sobrancelhas eram fartas, as pestanas longas, a testa estreita, coroando tudo uns cabelos grisalhos e em desordem.

O desconhecido, depois de tocar a sua música na copa do chapéu, levantou os olhos para mim, e disse-me:

- Sente-se, meu rico senhor!

Era atrevimento receber eu ordens em minha própria casa. O meu primeiro dever era mandar o sujeito embora; contudo, o tom em que ele falou era tão intimativo que eu insensivelmente obedeci e fui sentar-me no sofá. Dai pude ver melhor a cara do homem, à luz do lampião que pendia do teto, e achei-a pior do que antes.

- Chamo-me Tobias e sou formado em matemáticas.

Inclinei-me levemente.

O desconhecido continuou:

- Desconfio que hei de morrer amanhã; não se espante; tenho certeza de que amanhã vou para o outro mundo. Isso é o menos; morrer é dormir, to die, to sleep; entretanto, não quero ir deste mundo sem cumprir um dever imperioso e indispensável.  Veja isto.

O desconhecido tirou do bolso um quadrinho e entregou-me. Era uma miniatura; representava uma moça formosíssima de feições. Restituí o quadro ao meu interlocutor esperando a explicação.

- Esse retrato, continuou ele olhando para a miniatura, é de minha filha Eusébia, moça de vinte e dois anos, senhora de uma riqueza igual à de um Creso, porque é a minha única herdeira.

Eu me espantaria do contraste que havia entre a riqueza e a aparência do desconhecido se não tivesse já a convicção de que tratava com um doido. O que eu estava a ver era o meio de pôr o homem pela porta fora; mas confesso que receava algum conflito, e por isso esperei o resultado daquilo tudo.

Entretanto perguntava a mim mesmo como é que os meus escravos deixaram entrar um desconhecido até a porta do meu quarto, apesar das ordens especiais que eu havia dado em contrário. Já eu calculava mentalmente a natureza do castigo que lhes daria por causa de tamanha incúria ou cumplicidade, quando o desconhecido atirou-me estas palavras à cara:

- Antes de morrer quero que o senhor se case com Eusébia; é esta a proposta que venho fazer-lhe; sendo que, no caso de aceitar o casamento, já aqui lhe deixo este maço de notas do banco para alfinetes, e no caso de recusar mando-lhe simplesmente uma bala à cabeça com este revólver que aqui trago.

E pôs à mesa o maço de bilhetes do banco e o revólver engatilhado.

A cena tomava um aspecto dramático. O meu primeiro ímpeto foi acordar o Dr. Vaz, a ver se ajudado por ele punha o homem pela porta fora; mas receei, e com razão, que vendo um gesto meu nesse sentido, o desconhecido executasse a segunda parte do seu discurso.

Só havia um meio: ladear.

- Meu rico Sr. Tobias, é inútil dizer-lhe que eu sinto imensa satisfação com a proposta que me faz, e está longe de mim a idéia de recusar a mão de tão formosa criatura, e mais os seus contos de réis. Entretanto, peço-lhe que repare na minha idade; tenho setenta anos; a Sra. D. Eusébia apenas conta vinte e dois.  Não lhe parece um sacrifício isto que vamos impor à sua filha?

Tobias sorriu, olhou para o revólver, e entrou a tocar com os dedos na copa do chapéu.

- Longe de mim, continuei eu, a idéia de ofende-lo; pelo contrário, se eu consultasse unicamente a minha ambição não diria palavra; mas é no interesse mesmo dessa gentilíssima dama, que eu já vou amando apesar dos meus setenta, é no interesse dela que eu lhe observo a disparidade que entre nós existe.

Estas palavras disse-as eu em voz alta a ver se o Dr. Vaz acordava; mas o meu amigo continuava mergulhado na cadeira e no sono.

- Não quero saber de sua idade, disse Tobias pondo o chapéu na cabeça e segurando no revólver; o que eu quero é que se case com Eusébia, e hoje mesmo. Se recusa, mato-o.

Tobias apontou-me o revólver. Que faria eu naquela alternativa, senão aceitar a moça e a riqueza, apesar de todos os meus escrúpulos?

- Caso! exclamei.

Tobias guardou o revólver na algibeira, e disse

- Pois bem, vista-se.

- Já?

- Sem demora. Vista-se enquanto eu leio.

Levantou-se, foi à minha estante, tirou um volume do "D. Quixote", e foi sentar-se outra vez; e enquanto eu, mais morto que vivo, ia buscar ao guarda-roupa a minha casaca, o desconhecido tomou uns óculos e preparou-se para ler.

- Quem é este sujeito que está dormindo tão tranqüilo? perguntou ele enquanto limpava os óculos.

- O Dr. Vaz, meu amigo; quer que lhe apresente?

- Não, senhor, não é preciso, respondeu Tobias sorrindo maliciosamente.

Vesti-me com vagar para dar tempo a que algum incidente viesse interromper aquela cena desagradável para mim.  Além disso, estava trêmulo, não atinava com a roupa, nem com a maneira de a vestir.

De quando em quando deitava um olhar para o desconhecido, que lia tranqüilamente a obra do imortal Cervantes.

O meu relógio bateu onze horas.

Subitamente lembrou-me que, uma vez na rua, podia eu ter o recurso de encontrar um policial a quem comunicaria a minha situação, conseguindo ver-me livre do meu importuno sogro.

Outro recurso havia, e melhor que esse; vinha a ser acordar o Dr. Vaz na ocasião da partida (coisa natural) e ajudado por ele desfazer-me do incógnito Tobias.

Efetivamente, vesti-me o mais depressa que pude, e declarei-me as ordens do Sr. Tobias, que fechou o livro, foi pô-lo na estante, rebuçou-se no capote, e disse:

- Vamos!

- Peço-lhe entretanto para acordar o Dr. Vaz, que não pode ficar aqui, visto que tem de voltar para casa, disse-lhe eu dando um passo para a cadeira onde dormia o Vaz.

- Não é preciso, atalhou Tobias; voltamos dentro de pouco tempo.

Não insisti; restava-me o recurso do policial, ou de algum escravo se pudesse falar-lhe a tempo; o escravo era impossível.  Quando saímos do quarto o desconhecido deu-me o braço e desceu comigo rapidamente as escadas até a rua.

À porta de casa havia um carro.

Tobias convidou-me a entrar nele.

Não tendo previsto este incidente, senti fraquear-me as pernas e perdi de todo a esperança de escapar do meu algoz. Resistir era impossível e arriscado; o homem estava armado com um argumento poderoso; e além disso, pensava eu, não se discute com um doido.

Entramos no carro.

Não sei quanto tempo andamos, nem por que caminho fomos; calculo que não ficou no Rio de Janeiro canto por onde não passássemos.  No fim de longos e aflitivos séculos de angústia, parou o carro diante de uma casa toda iluminada por dentro.

É aqui, disse o meu companheiro, desçamos.

A casa era um verdadeiro palácio; a entrada era ornada de colunas de ordem dórica, o vestíbulo calçado de mármore branco e preto, e iluminado por um magnífico candelabro de bronze de forma antiga.

Subimos, eu e ele, por uma magnífica escada de mármore, até o topo, onde se achavam duas pequenas estátuas representando Mercúrio e Minerva.  Quando chegamos ali o meu companheiro disse-me apontando para as estátuas:

- São emblemas, meu caro genro: Minerva quer dizer Eusébia, porque é a sabedoria; Mercúrio, sou eu, porque representa o comércio.

- Então o senhor é comerciante? perguntei eu ingenuamente ao desconhecido.

- Fui negociante na Índia.

Atravessamos duas salas, e ao chegarmos à terceira encontramos um sujeito velho, a quem Tobias me apresentou dizendo:

- Aqui está o Dr. Camilo da Anunciação; leve-o para a sala dos convidados, enquanto eu vou mudar de roupa. Até já, meu caro genro.

E deu-me as costas.

O sujeito velho, que eu soube depois ser o mordomo da casa, tomou-me pela mão e levou-me a uma grande saIa, que era onde se achavam os convidados.

Apesar da profunda impressão que me causava aquela aventura, confesso que a riqueza da casa me assombrava cada vez mais, e não só a riqueza, senão também o gosto e a arte com que estava preparada.

A sala dos convidados estava fechada quando lá chegamos; o mordomo bateu três pancadas, e veio abrir a porta um lacaio, também velho, que me segurou pela mão, ficando o mordomo do lado de fora.

Nunca me há de esquecer a vista da sala apenas se me abriram as portas.  Tudo ali era estranho e magnífico. No fundo, em frente da porta de entrada, havia uma grande águia de madeira fingindo bronze, encostada à parede, com as asas abertas, e preparando-se como para voar. Do bico da águia pendia um espelho, cuja parte inferior estava presa às garras, conservando assim a posição inclinada que costuma ter um espelho de parede.

A sala não era forrada de papel, mas de seda branca, o teto artisticamente trabalhado; grandes candelabros, magnífica mobília, flores em profusão, tapetes, tudo enfim quanto o luxo e o gosto sugerem ao espírito de um homem rico.

Os convidados eram poucos, e não sei por que coincidência, eram todos velhos, como o mordomo e o lacaio, e o meu próprio sogro; finalmente velhos como eu também.

Introduzido pelo criado, fui logo cumprimentado pelas pessoas presentes com uma atenção que me dispôs logo o ânimo a querer-lhes bem.

Sentei-me numa cadeira, e vieram reunir-se em roda de mim, todos risonhos e satisfeitos por ver o genro do incomparável Tobias. Era assim que chamavam ao homem do revólver.

Acudi como pude às perguntas que me faziam, e parece que todas as minhas respostas contentavam aos convidados, porquanto de minuto a minuto choviam sobre mim louvores e cumprimentos.

Um dos convidados, homem de setenta anos, condecorado e calvo, disse com aplausos gerais:

- O Tobias não podia encontrar melhor genro, nem que andasse com uma lanterna por toda a cidade, que digo? por todo o império; vê-se que o Dr. Camilo da Anunciação é um  perfeito cavalheiro, notável por seus talentos, pela gravidade da sua pessoa, e enfim pelos admiráveis cabelos brancos que lhe adornam a cabeça, mais feliz do que eu que os perdi há muito.

Suspirou o homem com tamanha força que parecia estar nos arrancos da morte. A assembléia cobriu de aplausos as últimas palavras do orador.

Articulei um agradecimento, e preparei imediatamente os ouvidos para responder a outro discurso que me foi dirigido por um coronel reformado, e outro finalmente por uma senhora que, desde a minha entrada, não tirava os olhos de mim.

- Sra. condessa, disse o coronel quando a senhora acabou de falar, confesse V. Exa. que os rapazes de hoje não valem este respeitável ancião, futuro genro do incomparável Tobias.

- Valem nada, coronel!  Em matéria de noivos só o século passado os fornece capazes e bons. Casamentos de hoje! Abrenúncio! Uns peraltas todos pregadinhos e esticados, sem gravidade, sem dignidade, sem honestidade!

A conversa assentou toda neste assunto. O século dezenove sofreu ali um vasto processo; e (talvez preconceito de velho) falavam tão bem naquele assunto, com tanta discrição e acerto, que eu acabei por admirá-los.

No meio de tudo, estava ansioso por conhecer a minha noiva. Era a última curiosidade; e se ela fosse, como eu imaginava, uma beleza, e além do mais riquíssima, que poderia exigir da sorte?

Aventurei uma pergunta nesse sentido a uma senhora que se achava ao pé de mim e em frente à condessa. Disse-me ela que a noiva estava no toucador, e não tardava muito que eu a visse. Acrescentou que era linda como o sol.

Entretanto decorrera uma hora, e nem a noiva, nem o pai, o incomparável Tobias, aparecia na sala. Qual seria a causa da demora do meu futuro sogro? Para vestir-se não era preciso tanto tempo. Eu confesso que, apesar da cena do quarto e das disposições em que vi o homem, estaria mais tranqüilo se ele estivesse presente. É que ao velho já eu tinha visto em minha casa; habituara-me aos seus gestos e discursos.

No fim de hora e meia abriu-se a porta para dar entrada a uma nova visita. Imaginem o meu pasmo quando dei com os olhos no meu amigo Dr. Vaz! Não pude abafar um grito de surpresa, e corri para ele.

- Tu aqui!

- Ingrato! respondeu sorrindo o Vaz, casas e não convidas ao teu primeiro amigo.  Se não fosse esta carta ainda eu lá estaria no teu quarto à espera.

- Que carta? perguntei eu.

O Vaz abriu a carta que trazia na mão e deu-me para ler, enquanto os convidados de longe contemplavam a cena inesperada, tanto por eles, como por mim.

A carta era de Tobias, e participava ao Vaz que, tendo eu de casar-me naquela noite, tomava ele a liberdade de convida-lo, na qualidade de sogro, para assistir a cerimônia.

- Como vieste?

- Teu sogro mandou-me um carro.

Aqui fui obrigado a confessar mentalmente que o Tobias merecia o titulo de incomparável, como Enéas o de pio. Compreendi a razão porque não quis que eu o acordasse; era para causar-lhe a surpresa de vê-lo depois.

Como era natural, quis o meu amigo que eu lhe explicasse a história do casamento, tão súbito, e eu já me dispunha a isso, quando a porta se abriu e entrou o dono da casa.

Era outro.

Já não tinha as roupas esquisitas e o ar singular com que o vira no meu quarto; agora trajava com aquela elegância grave que cabe a um velho, e pairava-lhe nos lábios o mais amável sorriso.

- Então, meu caro genro, disse-me ele depois dos cumprimentos gerais, que me diz à vinda do seu amigo?

- Digo, meu caro sogro, que o senhor é uma pérola. Não imaginará talvez o prazer que me deu com esta surpresa, porque o Vaz foi e é o meu primeiro amigo.

Aproveitei a ocasião para o apresentar a todos os convidados, que foram de geral acordo em que o Dr. Vaz era um digno amigo do Dr. Camilo da Anunciação. O incomparável Tobias manifestou o desejo e a esperança de que dentro de pouco tempo ficaria a sua pessoa ligada à de nós ambos, por modo que fôssemos todos designados: os três amigos do peito.

Bateu meia-noite não sei em que igreja da vizinhança. Ergueu-se o incomparável Tobias, e disse-me:

- Meu caro genro, vamos cumprimentar a sua noiva; aproxima-se a hora do casamento.

Levantaram-se todos e dirigiram-se para a porta da entrada; indo na frente eu, o Tobias e o Vaz. Confesso que, de todos os incidentes daquela noite, este foi o que mais me impressionou. A idéia de ir ver uma formosa donzela, na flor da idade, que devia ser minha esposa, - esposa de um velho filósofo já desenganado das ilusões da vida, - essa idéia, confesso que me aterrou.

Atravessamos uma sala e chegamos diante de uma porta, meia aberta, dando para outra sala ricamente iluminada. Abriram a porta dois lacaios, e todos nós entramos.

Ao fundo, sentada num riquíssimo divã azul, estava já pronta e deslumbrante de beleza a Sra. D. Eusébia.  Tinha eu até então visto muitas mulheres de fascinar; nenhuma chegava aos pés daquela. Era uma criação de poeta oriental. Comparando a minha velhice à mocidade de Eusébia, senti-me envergonhado, e tive ímpetos de renunciar ao casamento.

Fui apresentado à noiva pelo pai, e recebido por ela com uma afabilidade, uma ternura, que acabaram por vencer-me completamente.  No fim de dois minutos estava eu cegamente apaixonado.

Meu pai não podia escolher melhor marido para mim, disse-me ela fitando-me uns olhos claros e transparentes; espero que tenha a felicidade de corresponder aos seus méritos.

Balbuciei uma resposta; não sei o que disse; tinha os olhos embebidos nos dela.  Eusébia levantou-se e disse ao pai:

- Estou pronta.

Pedi que Vaz fosse uma das testemunhas do casamento, o que foi aceito; a outra testemunha foi o coronel. A condessa serviu de madrinha.

Saímos dali para a capela, que era na mesma casa, e pouco retirada; já lá se achavam o padre e o sacristão. Eram ambos velhos como toda a gente que havia em casa, exceto Eusébia.

Minha noiva deu o sim com uma voz forte, e eu com voz fraquíssima; pareciam  invertidos os papéis.

Concluído o casamento, ouvimos um pequeno discurso do padre acerca dos deveres que o casamento impõe e da santidade daquela cerimônia. O padre era um poço de ciência e um milagre de concisão; disse muito em pouquíssimas palavras.  Soube depois que nunca tinha ido ao parlamento.

À cerimônia do casamento seguiu-se um ligeiro chá e alguma música. A condessa dançou um minueto com o velho condecorado, e assim terminou a festa.

Conduzido aos meus aposentos por todos os convidados, soube em caminho que o Vaz dormiria lá, por convite expresso do incomparável Tobias, que fez a mesma fineza aos circunstantes.

Quando me achei só com a minha noiva, cai de joelhos e disse-lhe com a maior ternura:

- Tanto vivi para encontrar agora, já quase no túmulo, a maior ventura que pode caber ao homem, porque o amor de unia mulher como tu é um verdadeiro presente do céu!  Falo em amor e não sei se tenho direito de o fazer... porque eu sou velho, e tu...

- Cale-se! cale-se! disse-me Eusébia assustada.

E foi cair num sofá com as mãos no rosto.

Espantou-me aquele movimento, e durante alguns minutos fiquei na posição em que estava, sem saber o que havia de dizer.

Eusébia parecia estar chorando.

Levantei-me afinal, e acercando-me do sofá, perguntei-lhe que motivo tinha para aquelas lágrimas.

Não me respondeu.

Tive uma suspeita; imaginei que Eusébia amava alguém, e que, para castigá-la do crime desse amor, obrigavam-na a casar com um velho desconhecido a quem ela não podia amar.

Despertou-se-me uma fibra de D. Quixote.  Era uma vítima; cumpria salva-la. Aproximei-me de Eusébia, confiei-lhe a minha suspeita, e declarei-lhe a minha resolução.

Quando eu esperava vê-la agradecer-me de joelhos o nobre impulso das minhas palavras, vi com surpresa que a moça olhava para mim com ar de compaixão, e dizia-me abanando a cabeça:

- Desgraçado! é o senhor quem está perdido!

- Perdido! exclamei eu dando um salto.

- Sim, perdido!

Cobriu-se-me a testa de um suor frio; as pernas entraram a tremer-me, e eu para não cair assentei-me ao pé dela no sofá. Pedi-lhe que me explicasse as suas palavras.

- Por que não? disse ela; se lhe ocultasse seria cúmplice perante Deus, e Deus sabe que eu sou apenas um instrumento passivo nas mãos de todos esses homens. Escute. O senhor é o meu quinto marido; todos os anos, no mesmo dia e à mesma hora, dá-se nesta casa a cerimônia que o senhor presenciou.  Depois, todos me trazem para aqui com o meu noivo, o qual...

- O qual? perguntei eu suando.

- Leia, disse Eusébia indo tirar de uma cômoda um rolo de pergaminho; há um mês que eu pude descobrir isto, e só há um mês tive a explicação dos meus casamentos todos os anos.

Abri trêmulo o rolo que ela me apresentava, e li fulminado as seguintes linhas:

"Elixir da eternidade, encontrado numa ruma do Egito, no ano de 402. Em nome da águia preta e dos sete meninos do Setentrião, salve. Quando se juntarem vinte pessoas e quiserem gozar do inapreciável privilégio de uma vida eterna, devem organizar uma associação secreta, e cear todos os anos no dia de S. Bartolomeu, um velho maior de sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por cima".

Compreende alguém a minha situação?  Era a morte que eu tinha diante de mim, a morte infalível, a morte dolorosa. Ao mesmo tempo era tão singular tudo quanto eu acabava de saber, parecia-me tão absurdo o meio de comprar a eternidade com um festim de antropófagos, que o meu espírito pairava entre a dúvida e o receio, acreditava e não acreditava, tinha medo e perguntava por que?

- Essa é a sorte que o espera, senhor!

- Mas isto é uma loucura! exclamei; comprar a eternidade com a morte de um homem! Demais, como sabe que este pergaminho tem relação?...

- Sei, senhor, respondeu Eusébia; não lhe disse eu que este casamento era o quinto? Onde estão os outros quatro maridos? Todos eles penetraram neste aposento para saírem meia hora depois.  Alguém os vinha chamar, sob qualquer pretexto, e eu nunca mais os via.  Desconfiei de alguma grande catástrofe; só agora sei o que é.

Entrei a passear agitado; era verdade que eu ia morrer? era aquela a minha última hora de vida? Eusébia, assentada no sofá, olhava para mim e para a porta.

- Mas aquele padre, senhora, perguntei eu parando em frente dela, aquele padre também é cúmplice?

- É o chefe da associação.

- E a senhora! também é cúmplice, pois que as suas palavras foram um verdadeiro laço; se não fossem elas eu não aceitaria o casamento...

- Ai! senhor! respondeu Eusébia lavada em lágrimas; sou fraca, isso sim; mas cúmplice, jamais. Aquilo que lhe disse foi-me ensinado.

Nisto ouvi um passo compassado no corredor; eram eles naturalmente.

Eusébia levantou-se assustada e ajoelhou-se-me aos pés, dizendo com voz surda:

- Não tenho culpa de nada do que vai acontecer, mas perdoe-me a causa involuntária!

Olhei para ela e disse-lhe que a perdoava.

Os passos aproximavam-se.

Dispus-me a vender caro a minha vida; mas não me lembrava que, além de não ter armas, faltavam-me completamente as forças.

Quem quer que vinha andando chegou à porta e bateu. Não respondi logo; mas insistindo de fora nas pancadas, perguntei:

- Quem está aí?

- Sou eu, respondeu-me Tobias com voz doce; queira abrir-me a porta.

- Para que?

- Tenho de comunicar-lhe um segredo.

- A esta hora!

- Urgente.

Consultei Eusébia com os olhos; ela abanou tristemente a cabeça.

- Meu sogro, adiemos o segredo para amanhã.

- É urgentíssimo, respondeu Tobias, e para não lhe dar trabalho eu mesmo abro com outra chave que possuo.

Corri á porta, mas era tarde; Tobias estava na soleira, risonho como se fosse entrar num baile.

- Meu caro genro, disse ele, peço-lhe que venha comigo à sala da biblioteca; tenho de comunicar-lhe um importante segredo relativo à nossa família.

- Amanhã, não acha melhor? disse eu.

- Não, há de ser já! respondeu Tobias franzindo a testa.

- Não quero!

- Não quer! pois há de ir.

- Bem sei que sou o seu quinto genro, meu caro Sr. Tobias.

- Ah! sabe! Eusébia contou-lhe os outros casamentos; tanto melhor!

E, voltando-se para a filha, disse com frieza de matar:

- Indiscreta! vou dar-te o prêmio.

- Sr. Tobias, ela não tem culpa.

- Não foi ela quem lhe deu esse pergaminho? perguntou o Tobias apontando para o pergaminho que eu ainda tinha na mão.

Ficamos aterrados!

Tobias tirou do bolso um pequeno apito e deu um assobio, ao qual responderam outros; e daí a alguns minutos estava a alcova invadida por todos os velhos da casa.

- Vamos à festa! disse o Tobias.

Lancei mão de uma cadeira e ia atirar contra o sogro, quando Eusébia segurou-me no braço, dizendo:

- É meu pai!

- Não ganhas nada com isso, disse Tobias sorrindo diabolicamente; hás de morrer, Eusébia.

E segurando-a pelo pescoço entregou-a a dois lacaios dizendo:

- Matem-na.

A pobre moça gritava, mas em vão; os dois lacaios levaram-na para fora, enquanto os outros velhos seguraram-me pelos braços e pernas, e levaram-me em procissão para uma sala toda forrada de preto. Cheguei ali mais morto que vivo.  Já lá achei o padre vestido de batina.

Quis ver antes de morrer o meu pobre amigo Vaz, mas soube pelo coronel que ele estava dormindo, e não sairia mais daquela casa; era o prato destinado ao ano futuro.

O padre declarou-me que era o meu confessor; mas eu recusei receber a absolvição do próprio que me ia matar. Queria morrer impenitente.

Deitaram-me em cima de uma mesa atado de pés e mãos, e puseram-se todos à roda de mim, ficando à minha cabeceira um lacaio armado com um punhal.

Depois entrou toda a companhia a entoar um coro em que eu só distinguia as palavras:  Em nome da águia preta e dos sete meninos do Setentrião.

Corria-me o suor em bagas; eu quase nada via; a idéia de morrer era horrível, apesar dos meus setenta anos, em que já o mundo não deixa saudades.

Parou o coro e o padre disse com voz forte e pausada:

- Atenção! Faça o punhal a sua obra!

Luziu-me pelos olhos a lâmina do punhal, que se cravou todo no coração; o sangue jorrou-me do peito e inundou a mesa; eu entre convulsões mortais dei o último suspiro.

Estava morto, completamente morto, e entretanto ouvia tudo à roda de mim; restava-me uma certa consciência deste mundo a que já não pertencia.

- Morreu? perguntou o coronel.

- Completamente, respondeu Tobias; vão chamar agora as senhoras.

As senhoras chegaram dali a pouco, curiosas e alegres.

- Então! perguntou a condessa; temos homem?

- Ei-lo.

As mulheres aproximaram-se de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais; todos concordaram em que eu estava gordo e havia de ser excelente prato.

- Não podemos assá-lo inteiro; é muito alto e gordo; não cabe no forno; vamos esquartejá-lo; venham facas.

Estas palavras foram ditas pelo Tobias, que imediatamente distribuiu os papéis: o coronel cortar-me-ia a perna esquerda, o condecorado a direita, o padre um braço, ele outro e a condessa, amiga de nariz de gente, cortaria o meu para comer de cabidela.

Vieram as facas, e começou a operação; confesso que eu não sentia nada; só sabia que me haviam cortado uma perna quando ela era atirada ao chão com estrépito.

- Bem, agora ao forno, disse Tobias.

De repente ouvi a voz do Vaz.

- Que é isso, ó Camilo, que é isso? dizia ele.

Abri os olhos e achei-me deitado no sofá em minha casa; Vaz estava ao pé de mim.

- Que diabo tens tu?

Olhei espantado para ele, e perguntei:

- Onde estão eles?

- Eles quem?

- Os canibais!

- Estás doido, homem!

Examinei-me: tinha as pernas, os braços e o nariz. O quarto era o meu. Vaz era o mesmo Vaz.

- Que pesadelo tiveste! disse ele.  Estava eu a dormir quando acordei com os teus gritos.

- Ainda bem, disse eu.

Levantei-me, bebi água, e contei o sonho ao meu amigo, que riu muito, e resolveu passar a noite comigo.

No dia seguinte acordamos tarde e almoçamos alegremente. Ao sair, disse-me o Vaz:

- Por que não escreves o teu sonho para o Jornal das Famílias?

- Homem, talvez.

- Pois escreve, que eu o mando ao Garnier.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 31 de janeiro de 2021

O FEITICEIRO E O DEPUTADO (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

O FEITICEIRO E O DEPUTADO

Lima Barreto

(Grafia original)

 

Nos arredores do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”, que, como se sabe, fica no município Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante singular.

Conheciam-no no lugar, que, antes do batismo burocrático, tivera o nome doce e espontâneo de Inhangá, por “feiticeiro”; o mesmo, certa vez a ativa polícia local, em falta do que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse negro. Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas teimava em chamá-lo de “feiticeiro”.

É bem possível que essa alcunha tivesse tido origem no mistério de sua chegada e na extravagância de sua maneira de viver.

Fora mítico o seu desembarque. Um dia apareceu numa das praias do município e ficou, tal e qual Manco Capac, no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas. Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma miserável choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras, vivendo taciturno e sem relações quase.

A meia encosta da colina, o seu casebre crescia como um cômoro de cupins; ao redor, os cajueiros, as bananeiras e as laranjeiras afagavam-no com amor; e cá embaixo, no sopé do morrote, em torno do poço de água salobre, as couves reverdesciam nos canteiros, aos seus cuidados incessantes e tenazes.

Era moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos anos; e um olhar doce e triste, errante e triste e duro, se fitava qualquer cousa.

Toda a manhã viam-no descer à rega das couves; e, pelo dia em fora, roçava, plantava e rachava lenha. Se lhe falavam, dizia:

— “Seu” Ernesto tem visto como a seca anda “brava”.

— É verdade.

— Neste mês “todo” não temos chuva.

— Não acho… Abril, águas mil.

Se lhe interrogavam sobre o passado, calava-se; ninguém se atrevia a insistir e ele continuava na sua faina hortícola, à margem da estrada.

À tarde, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando as tardes são longas, ainda era visto depois, sentado à porta de sua choupana. A sua biblioteca tinha só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina Comédia, o Robinson e o Pensées, de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de torturas.

A desconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas certamente teriam-no feito sofrer muito, tanto mais que já devia ter chegado sofrendo muito profundamente, por certo de amor, pois todo o sofrimento vem dele.

Se se é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é bem este que nos provoca a dor moral: é a certeza de que ele não nos deixa amar plenamente…

Cochichavam que matara, que roubara, que falsificara; mas a palavra do delegado do lugar, que indagara dos seus antecedentes, levou a todos confiança no moço, sem que perdesse a alcunha e a suspeita de feiticeiro. Não era um malfeitor; mas entendia de mandingas. A sua bondade natural para tudo e para todos acabou desarmando a população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro bom.

Um dia Sinhá Chica animou-se a consultá-lo:

— “Seu” Ernesto: viraram a cabeça de meu filho… Deu “pa bebê”… “Tá arrelaxando”…

— Minha senhora, que hei de eu fazer?

— O “sinhô” pode, sim! “Conversa cum” santo…

O solitário, encontrando-se por acaso, naquele mesmo dia, com o filho da pobre rapariga, disse-lhe docemente estas simples palavras:

— Não beba, rapaz. E feio, estraga—não beba!

E o rapaz pensou que era o Mistério quem lhe falava e não bebeu mais. Foi um milagre que mais repercutiu com o que contou o Teófilo Candeeiro.

Este incorrigível bebaço, a quem atribuíam a invenção do tratamento das sezões, pelo parati, dias depois, em um cavaco de venda, narrou que vira, uma tardinha, aí quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do “homem” um pássaro branco, grande, maior do que um pato; e, por baixo do seu vôo rasteiro, as árvores todas se abaixavam, como se quisessem beijar a terra.

Com essas e outras, o solitário de Inhangá ficou sendo como um príncipe encantado, um gênio bom, a quem não se devia fazer mal.

Houve mesmo quem o supusesse um Cristo, um Messias. Era a opinião do Manuel Bitu, o taverneiro, um antigo sacristão, que dava a Deus e a César o que era de um e o que era de outro; mas o escriturário do posto, “Seu” Almada, contrariava-o, dizendo que se o primeiro Cristo não existiu, então um segundo!…

O escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que escrevia em ortografia pretensiosa os pálidos ofícios, remetendo mudas de laranjeiras e abacateiros para o Rio.

A opinião do escriturário era de exegeta, mas a do médico era de psiquiatra.

Esse “anelado” ainda hoje é um enfezadinho, muito lido em livros grossos e conhecedor de uma quantidade de nomes de sábios; e diagnosticou: um puro louco.

Esse “anelado” ainda hoje é uma esperança de ciência…

O “feiticeiro”, porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro a todos eles. Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário, o seu desdém soberano de miserável independente; e ao estulto julgamento do bondoso Mané Bitu, a doce compaixão de sua alma terna e afeiçoada…

De manhã e à tarde, regava as suas couves; pelo dia em fora, plantava, colhia, fazia e rachava lenha, que vendia aos feixes, ao Mané Bitu, para poder comprar as utilidades de que necessitasse. Assim, passou ele cinco anos quase só naquele município de Inhangá, hoje burocraticamente chamado – “Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista”.

Um belo dia foi visitar o posto o Deputado Braga, um elegante senhor, bem-posto, polido e cético.

O diretor não estava, mas o doutor Chupadinho, o sábio escriturário Almada e o vendeiro Bitu, representando o “capital” da localidade, receberam o parlamentar com todas as honras e não sabiam como agradá-lo.

Mostraram-lhe os recantos mais agradáveis e pinturescos, as praias longas e brancas e também as estranguladas entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios e cismadores do alto das colinas; as plantações de batatas-doces; a ceva dos porcos… Por fim, ao deputado que já se ia fatigando com aqueles dias, a passar tão cheio de assessores, o doutor Chupadinho convidou:

— Vamos ver, doutor, um degenerado que passa por santo ou feiticeiro aqui. E um dementado que, se a lei fosse lei, já de há muito estaria aos cuidados da ciência, em algum manicômio.

E o escriturário acrescentou:

— Um maníaco religioso, um raro exemplar daquela espécie de gente com que as outras idades fabricavam os seus santos.

E o Mané Bitu:

— É um rapaz honesto… Bom moço – é o que posso dizer dele.

O deputado, sempre cético e complacente, concordou em acompanhá-los à morada do feiticeiro. Foi sem curiosidade, antes indiferente, com uma ponta de tristeza no olhar.

O “feiticeiro” trabalhava na horta, que ficava ao redor do poço, na várzea, à beira da estrada.

O deputado olhou-o e o solitário, ao tropel de gente, ergueu o busto que estava inclinado sobre a enxada, voltou-se e fitou os quatro. Encarou mais firmemente o desconhecido e parecia procurar reminiscências. O legislador fitou-o também um instante e, antes que pudesse o “feiticeiro” dizer qualquer cousa, correu até ele e abraçou-o muito e demoradamente.

— És tu, Ernesto?

— És tu, Braga?

Entraram. Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte e os dois conversaram particularmente.

Quando saíram, Almada perguntou:

— O doutor conhecia-o?

— Muito. Foi meu amigo e colega.

— É formado? indagou o doutor Chupadinho.

— É.

— Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus ares, a maneira com que se porta fizeram-me crer isso; o povo, porém…

— Eu também, observou Almada, sempre tive essa opinião íntima; mas essa gente por aí leva a dizer…

— Cá para mim, disse Bitu, sempre o tive por honesto. Paga sempre as suas contas.

E os quatro voltaram em silêncio para a sede do “Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais”.

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 30 de janeiro de 2021

OS SUBMARINOS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OS SUBMARINOS

Humberto de Campos

 

18 de janeiro

À margem do Tietê, em lugar em que o rio se tornava mais claro e menos profundo, tomavam banho, uma tarde, sete ou oito crianças, de quatro a nove anos, entre as quais uma encantadora menina, a Lili, irmã do Armindinho, que era, no grupo, o mais insuportável e barulhento. Com a inocência peculiar à idade, apresentavam-se todos despidinhos, nadando, mergulhando, pulando, como um bando de golfinhos irrequietos.

O barulho que faziam, era, como facilmente se imagina, ensurdecedor. Entregues a si mesmos, rolavam-se na areia, atiravam-se terra, empurravam-se, nadando, ora de papo para cima, ora de papo para baixo, com as mãos em movimento dentro dágua, no "nado de cachorro", batendo com os pés, na imitação dos navios de roda, ou de barriga para o sol, agitando os braços ritmadamente, como escaleres em marcha pelo impulso regular de dois remos.

Estavam os pequeninos tritões no mais aceso do entusiasmo, quando o Armindinho propôs, gritando:

- Vamos brincar de submarino?

- Vamos! - concordaram os outros, aos pulos, com o busto fora dágua. - Vamos!

Unindo o gesto à palavra, o Armindinho atirou-se à frente dos companheiros, nadando, ágil, de peito para o ar, meio submerso, dando marcha ao corpo com o movimento das mãos debaixo dágua. Imitando o inovador, os outros pirralhos fizeram o mesmo, de papo para cima,, pernas estiradas, silenciosos, como uma verdadeira flotilha de submersíveis.

Momentos depois, de volta à margem, iam repetir a proeza, quando a Lili pediu, nuazinha, batendo as mãos:

- Eu também vou, mano, eu também vou! Sim?

O Armindinho encarou-a, com a superioridade de um oficial alemão, e protestou:

- Não; você não pode!

E virando-se para um dos companheirinhos, explicou, com a maior inocência do mundo:

- Ela não tem periscópio; não é?


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 28 de janeiro de 2021

CASA DE CÔMDOS (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

 

CASA DE CÔMODOS

Aluísio Azevedo

(Grafia original)

 

Há no Rio de Janeiro, entre os que não trabalham e conseguem sem base pecuniária fazer pecúlio e até enriquece; um tipo digno de estudo - é o "dono de casa de cômodos"; mais curioso e mais completo no gênero que o "dono de casa de jogo"; pois este ao menos representa o capital da sua banca, suscetível de ir à glória, ao passo que o outro nenhum capital representa, nem arrisca, ficando, além de tudo, isento da pecha de mal procedido.

Quase sempre forasteiro, exercia dantes um oficio na pátria que deixou para vir tentar fortuna no Brasil; mas, percebendo que aqui a especulação velhaca produz muito mais do que o trabalho honesto, tratou logo de esconder as ferramentas do oficio e de fariscar os meios de, sem nada fazer, fazer dinheiro. Foi a um patrício seu, estabelecido no comércio, pediu e dele obteve uma carta de fiança, alugou um vasto casario de dois ou três andares, meteu-se lá dentro, pregou escritos em todas as janelas; e agora o verás!

Como na Capital Federal há mais quem habite do que onde habitar, começou logo a entrar-lhe pela casa, à procura de cômodos, uma interminável procissão de desamparados da sorte e de magros lutadores pela vida, que lhe foram enchendo surdamente, do primeiro ao último, os numerosos quartos. Mais houvesse, e não faltariam para os ocupar estudantes pobres, carteiros e praticantes do correio, repórteres de jornais efêmeros, moços de botequim, operários de todas as profissões, comparsas e figurantes de teatro, pianistas de contrato por noite, cantores de igreja, costureiras sem oficina, cigarreiros sem fábrica, barbeiros sem loja, tipógrafos, guarda-freios, limpa-trilhos, bandeiras de bondes, enfim toda essa pobre gente, rara quem se inventaram os postos mais ingratos na luta pela vida, os mais precários e os mais arriscados; essa gente que em tempo de paz morre de fome, e em tempo de guerra dá de comer com a própria carne às bocas de fogo das baterias inimigas.

Mas, por entre a aflita farandolagem dos ganhadores de pão para a boca, surge sempre na casa de cômodos um tipo que é o desespero do locador e o tormento dos locatários. Refiro-me ao poeta boêmio.

O poeta boêmio é para o alugador de cômodos o osso do seu ofício. Sem emprego, sem rendimentos de nenhuma espécie, sem mesada e sem mobília, carregado de sonhos, que são os filhos que lhe deu Quimera, sua amante, o poeta boêmio vive da desgraça e da glória de ser poeta, atravessando indiferentemente todos os andares da miséria, olhos fitos no ideal, aos encontrões com os miseráveis que sobem e com os miseráveis que descem as longas escadarias do negro e frio castelo. Seu pé quase descalço não respeita o que topa, nem escolhe o terreno que pisa, e vai mundo afora, kneippeando pelos simétricos canteiros da burguesia indignada e pelos relvosos coradouros das lavadeiras em fúria.

Esse é o anjo mau da casa, o terror dos vizinhos, o malquerido de todos os locatários. Dorme enquanto os outros trabalham e durante a noite conversa com as estrelas, declamando em voz alta cousas de amor e de fantasia que, ali, só ele e elas compreendem.

Esse nunca paga.

Mas que importa o calote de um boêmio, cujo quarto era pouco maior que uma sepultura, se os outros inquilinos aí ficam para ir despejando, todos os meses, na funda algibeira do malandro, os trinta, os quarenta, os cinqüenta e os cem mil réis; e se com esse dinheiro pode o alugador de cômodos pagar o aluguel do prédio, e comer, e beber, e gozar, pondo ainda de parte o seu pecúlio em que já se abotoa a futura riqueza e talvez a futura comenda?

E assim vai vivendo o esperto forasteiro à barba longa, perna alçada e barriga farta, enquanto os outros trabalham para ele.

Lá um belo dia de fim de mês, um dos estudantes da casa, tendo devorado a mesada, atira a canastra pela janela e foge em seguida, abandonando a estreita cama de ferro, a mesinha, e o lavatório; e, como os maus exemplos aproveitam sempre um segundo estudante, e um terceiro e um quarto seguem, como as famosas pombas de mestre Raimundo Correia, o vôo do companheiro e ca vão ficando no pombal as meias cômodas, as estantes americanas e as cadeiras compradas no belchior. E outros, e outros inquilinos, atrasados no pagamento do mês vencido, lá se vão a contragosto

Não já pela janela, mas pela porta da rua, com uma descompostura atrás, deixando nas gloriosas mãos do triunfador, como despojo de luta, os tarecos que constituíam a sua mobília.

Então, o dono da casa de cômodos começa a anunciar "Quartos mobiliados" e começa a cobrar aos novos hóspedes o duplo do que cobrava aos primitivos. E, ao fim de algum tempo, aí está o nosso homem pondo de parte, a cada mês, o triplo do que dantes punha, porque já não aluga aposento sem mobília e sem roupa de cama.

São sempre os inquilinos quem guarnece de móveis as hospedarias desse gênero. Daí a ter o que se chama "Casa de pensão" só vai um passo, e a cousa faz-se quase sempre do seguinte modo: - Como o malandro nada mais tem a fazer durante todo o mês do que cobrar os aluguéis no dia primeiro, enche as horas de calor a ensinar habilidades ao seu cão ou ao seu papagaio, e nas horas frescas vai para a calçada da rua cavaquear com os vizinhos.

Entre estes há sempre uma quitandeira de quem o dono da casa de cômodos, começando por merecer a simpatia, acaba por conquistar a confiança e o amor. Juntam-se e, quando ela dá por si, está cozinhando e lavando para todos os hóspedes do eleito do seu coração, sem outros vencimentos além das carícias, que lhe dá o amado sócio.

Assim chega a empresa ao seu completo desenvolvimento, e o dono da casa de pensão começa a ganhar em grosso, acumulando forte, sem trabalhar nunca, nem empregar capital próprio, até que um dia, farto de aturar o Brasil, passa com luvas o estabelecimento e retira-se para a pátria, deixando, naturalmente também com luvas, a preciosa quitandeira ao seu substituto.

E, quando algum dos inquilinos fala mais alto no seu quarto, ou quando os estudantes e as costureiras dão para rir e cantar, acode o locador e ordena que se calem, gritando que não admite barulhos em "sua casa".

Sua casa! Ora, eis aí, ao meu ver, uma cousa singularíssima. O aluguel daquele prédio é pago pelos hóspedes, como é a mesa, o gás, a água e o serviço dos criados. Tudo que ali está dentro foi comprado pelos locatários e não pelo locador; ali só há um homem que não trabalha e que não paga o lugar que ocupa, nem a comida que consome, nem o serviço dos que o servem; e é, no entanto, esse homem justamente quem só tem ali o direito de dizer que está em sua casa e o único que grita e manda como verdadeiro dono.

Será legal, mas é injusto e é duro. Se ao menos o especulador tomasse a responsabilidade do que se passa dentro da "sua casa", vá, mas nem isso acontece, porque quando os inquilinos são vitimados pelos gatunos, ninguém lhes responde pelo objeto subtraído.

Entrássemos lá agora, neste instante, e espiássemos para dentro de cada quarto. Neste veríamos um pobre homem a fazer charutos; naquele uma mulher a coser camisas; mais adiante um artista a desenhar; outro a decorar um papel de comédia; outro a escrever; outro a consertar relógios; e aqui um estudante às voltas com uma caveira e um compêndio de medicina; e ali um fotógrafo a preparar clíchês. E, se indagássemos o que fazem os hóspedes ausentes cujos quartos estão fechados e não garantidos por ninguém, saberíamos que todos eles andam a ganhar a vida, ao balcão, na rua, nas oficinas, nas secretarias, nas redações das folhas e nos escritórios de todos os gêneros.

Pois bem! Enquanto toda essa gente moureja, o que faz o locador? O locador, defronte do seu papagaio, estala os dedos com a mão no ar e, risonho, a babar-se feliz, diz-lhe pela milésima vez: "Papagaio real, para Portugal! Quem passa meu louro? É o rei que vai à caça!"

Todavia, certo é que dentre toda aquela gente, é ele o único que tem imputabilidade social em nosso meio.

Será justo? Não sei, mas. parece-me que o direito de ter casa de alugar cômodos ou casa de pensão devia ser conferido pelo governo, como um privilégio de recompensa, somente aos inválidos da pátria, que já não possam trabalhar, ou às viúvas dos militares, dos artistas e dos filósofos, que se tenham sacrificado em nossa honra e morrido na pobreza.

Que diabo! não vale a pena fazer propaganda de imigração para termos belos malandros que ensinem papagaios a falar!

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 27 de janeiro de 2021

ARTIGO DE FUNDO (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

ARTIGO DE FUNDO

Alcântara Machado

(Grafia original)

 

Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal deve ter artigo de fundo. A fachada explica o resto.

Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.

Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa de "mostrar suas vergonhas". A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças "bem gentis" daquela, que tinham cabelos "mui pretos, compridos pelas espadoas".

E nasceram os primeiros mamalucos.

A terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, munibandas, macumas.

E nasceram os segundos mamalucos.

E os mamalucos das duas fornadas deram o empurrão inicial no Brasil. O colosso começou a rolar.

Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta também imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamalucos.

Nasceram os italianinhos.

O Gaetaninho.

A Carmela.

Brasileiros e paulistas. Até bandeirantes.

E o colosso continuou rolando.

No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada:


Carcamano pé-de-chumbo
Calcanhar de frigideira
Quem te deu a confiança
De casar com brasileira?

O pé-de-chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado: A brasileira, per Bacco!

Mas não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Integrou-se. Prosperou.

E o negro violeiro cantou assim:


Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a bandeira da Itália!

Brás, Bexiga e Barra Funda, como membro da livre imprensa que é, tenta fixar tão somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.

Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E será então analisado e pesado num livro.

Brás, Bexiga e Barra Funda não é um livro.


Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres este jornal rende uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mamaluca. São nomes de literatos, jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida espiritual e material de São Paulo.

Brás, Bexiga e Barra Funda não é uma sátira.

A REDAÇÃO

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 26 de janeiro de 2021

O ANJO DAS DONZELAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O ANJO E A DONZELA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

Cuidado, leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela.

A esta notícia o leitor estremece e hesita. É naturalmente um homem de bons costumes, acata as famílias e preza as leis do decoro público e privado. É também provável que já tenha deparado com alguns escritos, destes que levam aos papéis públicos certas teorias e tendências que melhor fora nunca tivessem saído da cabeça de quem as concebeu e proclamou. Hesita e interroga a consciência se deve ou não continuar a ler as minhas páginas, e talvez resolva não prosseguir. Volta a folha e passa a coisa melhor.

Descanse, leitor, não verá neste episódio fantástico nada do que se não pode ver à luz pública. Eu também acato a família e respeito o decoro. Sou incapaz de cometer uma ação má, que tanto importa delinear uma cena ou aplicar uma teoria contra a qual proteste a moralidade.

Tranqüilize-se, dê-me o seu braço, e atravessemos, pé ante pé, a soleira da alcova da donzela Cecília.

Há certos nomes que só assentam em certas criaturas, e que quando ouvimos pronunciá-los como pertencentes a pessoas que não conhecemos, logo atribuímos a estas os dons físicos e morais que julgamos inseparáveis daqueles. Este ê um desses nomes. Veja o leitor se a moça que ali se acha no leito, com o corpo meio inclinado, um braço nu escapando-se do alvo lençol e tendo na extremidade uma mão fina e comprida, os cabelos negros, esparsos, fazendo contraste com a brancura da fronha, os olhos meio cerrados lendo as últimas páginas de um livro, veja se aquela criatura pode ter outro nome, e se aquele nome pode estar em outra criatura.

Lê, como disse, um livro, um romance, e apesar da hora adiantada, onze e meia, ela parece estar disposta a não dormir sem saber quem casou e quem morreu.

Ao pé do leito, sobre a palhinha que forra o soalho, estende-se um pequeno tapete, cuja estampa representa duas rolas, de asas abertas, afagando-se com os biquinhos. Sobre esse tapete estão duas chinelinhas, de forma turca, forradas de seda cor de rosa, que o leitor jurará serem de um despojo de Cendrilon. São as chinelas de Cecília. Avalia-se já que o pé de Cecília deve ser um pé fantástico, imperceptível, impossível; e examinando bem pode-se até descobrir, entre duas pontas do lençol mal estendido, a ponta de um pé capaz de entusiasmar o meu amigo Ernesto C..., o maior admirador dos pés pequenos, depois de mim... e do leitor.

Cecília lê um romance. É o centésimo que lê depois que saiu do colégio, e não saiu há muito tempo. Tem quinze anos. Quinze anos! é a idade das primeiras palpitações, a idade dos sonhos, a idade das ilusões amorosas, a idade de Julieta; é a flor, é a vida, é a esperança, o céu azul, o campo verde, o lago tranqüilo, a aurora que rompe, a calhandra que canta, Romeu que desce a escada de seda, o último beijo que as brisas da manhã ouvem e levam, como um eco, ao céu.

Que lê ela? Daqui depende o presente e o futuro. Pode ser uma página da lição, pode ser uma gota de veneno. Quem sabe? Não há ali à porta um índex onde se indiquem os livros defesos e os lícitos. Tudo entra, bom ou mau, edificante ou corruptor, "Paulo e Virgínia", ou "Fanny". Que lê ela neste momento? Não sei. Todavia deve ser interessante o enredo, vivas as paixões, porque a fisionomia traduz de minuto a minuto as impressões aflitivas ou alegres que a leitura lhe vai produzindo.

Cecília corre as páginas com verdadeira ânsia, os olhos voam de uma ponta da linha à outra; não lê; devora; faltam só duas folhas, falta uma, falta uma lauda, faltam dez linhas, cinco, uma... acabou.

Chegando ao fim do livro, fechou-o e pô-lo em cima da pequena mesa que está ao pé da cama. Depois, mudando de posição, fitou os olhos no teto e refletiu.

Passou em revista na memória todos os sucessos contidos no livro, reproduziu episódio por episódio, cena por cena, lance por lance. Deu forma, vida, alma, aos heróis do romance, viveu com eles, conversou com eles, sentiu com eles. E enquanto ela pensava assim, o gênio que nos fecha as pálpebras à noite hesitou, à porta do quarto, se devia entrar ou esperar.

Mas, entre as muitas reflexões que fazia, entre os muitos sentimentos quê a dominavam, alguns havia que não eram d'agora, que já eram velhos hóspedes no espírito e no coração de Cecília.

Assim que, quando a moça acabou de reproduzir e saciar os olhos da alma na ação e nos episódios que acabara de ler, voltou-lhe o espírito naturalmente para as idéias antigas e o coração palpitou sob a ação dos antigos sentimentos.

Que sentimentos, que idéias seriam essas? Eis a singularidade do caso. De há muito tempo que as tragédias do amor a que Cecília assistia nos livros causavam-lhe uma angustiosa impressão. Cecília só conhecia o amor pelos livros. Nunca amara. Do colégio saíra para casa e de casa não saíra para mais parte alguma. O pressentimento natural e as cores sedutoras com que via pintado o amor nos livros, diziam-lhe que devia ser uma coisa divina, mas ao mesmo tempo diziam-lhe também os livros que dos mais auspiciosos amores pode-se chegar aos mais lamentáveis desastres. Não sei que terror se apoderou da moça; apoderou-se dela um terror invencível. O amor, que para as outras mulheres apresenta-se com aspecto risonho e sedutor, afigurou-se a Cecília que era um perigo e uma condenação. A cada novela que lia mais lhe cresciam os sustos, e a pobre menina chegou a determinar em seu espírito que nunca exporia o coração a tais catástrofes.

Provinha este sentimento de duas coisas: do espírito supersticioso de Cecília, e da natureza das novelas que lhe davam para ler. Se nessas obras ela visse, ao lado das más conseqüências a que os excessos podem levar, a imagem pura e suave da felicidade que o amor dá, não se teria de certo apreendido daquele modo. Mas não foi assim. Cecília aprendeu nesses livros que o amor era uma paixão invencível e funesta; que não havia para ela nem a força de vontade nem a perseverança do dever. Esta idéia calou no espírito da moça e gerou um sentimento de apreensão e de terror contra o qual ela não podia nada, antes se tornara mais impotente à medida que lia uma nova obra da mesma natureza.

Este estrago moral completava-se com a leitura da última novela. Quando Cecília levantou os olhos para o teto tinha o coração cheio de medo e os olhos traduziam o sentimento do coração. O que sobretudo a atemorizava mais era a incerteza que ela tinha de poder escapar à ação de uma simpatia funesta. Muitas das páginas que lera diziam que o destino intervinha nos movimentos do coração humano, e sem poder discernir o que teria de real ou de poético este juízo, a pobre mocinha tomou ao pé da letra o que lera e confirmou-se nos receios que nutria de muito tempo.

Tal era a situação do espírito e do coração de Cecília quando o relógio de uma igreja que ficava a dois passos da casa bateu meia noite. O som lúgubre do sino, o silêncio da noite, a solidão em que estava, deram uma cor mais sombria às suas apreensões.

Procurou dormir para fugir às idéias sombrias que se lhe atropelavam no espírito e dar descanso ao peso e ao ardor que sentia no cérebro; mas não pôde; caiu em uma dessas insônias que fazem padecer mais em uma noite do que a febre de um dia inteiro.

De repente sentiu que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura desconhecida, fantástica. Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha esse aspecto masculino e feminino a um tempo com que os pintores reproduzem as feições dos serafins. Vestia túnica de tecido alvo, coroava a fronte com rosas brancas e despedia dos olhos uma irradiação fantástica e impossível de descrever. Andava sem que a esteira do chão rangesse sob os passos. Cecília fitou os olhos na visão e não pôde mais desviá-los. A visão chegou-se ao leito da donzela.

- Quem és tu? perguntou Cecília sorrindo, com a alma tranqüila e os olhos vivos e alegres diante da figura desconhecida.

- Sou o anjo das donzelas, respondeu a visão com uma voz que nem era voz nem música, mas um som que se aproximava de ambas as coisas, articulando palavras como se executasse uma sinfonia do outro mundo.

- Que me queres?

- Venho em teu auxílio.

- Para que?

O anjo pôs as mãos no peito de Cecília e respondeu:

- Para salvar-te.

- Ah!

- Sou o anjo das donzelas, continuou a visão, isto é, o anjo que protege as mulheres que atravessam a vida sem amar, sem depor no altar dos amores uma só gota do óleo celeste com que se venera o deus menino.

- Sim?

- É verdade. Queres que eu te proteja? Que te imprima na fronte o sinal fatídico ante o qual recuarão todas as tentativas, curvar-se-ão todos os respeitos?

- Quero.

- Queres que com um bafejo meu te fique eternamente gravado o emblema da eterna virgindade?

- Quero.

- Queres que eu te garanta em vida as palmas verdes e viçosas que cabem às que podem atravessar o lodo da vida sem salpicar o vestido branco de pureza que receberam do berço?

- Quero.

- Prometes que nunca, nunca, nunca te arrependerás deste pacto, e que, quaisquer que sejam as contingências da vida, abençoarás a tua solidão?

- Quero.

- Pois bem! Estás livre, donzela, estás inteiramente livre das paixões. Podes entrar agora, como Daniel, entre os leões ferozes; nada te fará mal. Vê bem; é a felicidade, é o descanso. Gozarás ainda na mais remota velhice de uma isenção que será a tua paz na terra e a tua paz no céu!

E dizendo isto a fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de Cecília. Depois tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que não opunha a nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes sorria com um sorriso de Angélica suavidade como se naquele momento entrevisse as glórias perenes que o anjo lhe prometia.

- Este anel, disse o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha esposa ante a eternidade. Deste amor não te resultarão nem tormentos nem catástrofes. Conserva este anel a despeito de tudo. No dia em que o perderes, estás perdida.

E dizendo estas palavras a visão desapareceu.

A alcova ficou cheia de uma luz mágica e de um perfume que parecia mesmo hálito de anjos.

No dia seguinte Cecília acordou com o anel no ledo e a consciência do que se passara na véspera. Nesse dia levantou-se da cama mais alegre que nunca. Tinha o coração leve e o espírito desassombrado. Tocara enfim o alvo que procurara: a indiferença para os amores, a certeza de não estar exposta às catástrofes do coração... Esta mudança tornou-se cada dia mais pronunciada, e de modo tal que as amigas não deixaram de reparar.

- Que tens tu? dizia uma. És outra inteiramente. Aqui anda namoro!

- Qual namoro!

- Ora, decerto! acrescentava outra.

- Namoro? perguntava Cecília. Isso é bom para as... infelizes. Não para mim. Não amo...

- Amas!

- Nem amarei.

- Vaidosa!...

- Feliz é que deves dizer. Não amo, é verdade. Mas que felicidade não me resulta disto?... Posso afrontar tudo; estou armada de broquel e cota de armas...

- Sim?

E as amigas desataram a rir, apontando para Cecília e jurando que ela se havia de arrepender de dizer palavras tais.

Mas passavam os dias e nada fazia notar que Cecília tivesse pago o pecado que cometera na opinião das amigas. Cada dia trazia um pretendente novo. O pretendente fazia corte, gastava tudo quanto sabia para cativar a menina, mas afinal desistia da empresa com a convicção de que nada podia fazer.

- Mas não se lhe conhece preferido? perguntavam uns aos outros.

- Nenhum.

- Que milagre é este?

- Qual milagre! Não lhe chegou a vez... Ainda não enflorou aquele coração. Quando chegar a época da florescência há de fazer o que as mais fazem, e escolher entre tantos pretendentes um marido.

E com isto se consolavam os taboqueados.

O que é certo é que corriam os dias, os meses, os anos, sem que nada mudasse a situação de Cecília. Era a mesma mulher fria e indiferente. Quando completou vinte anos tinha adquirido fama; era corrente em todas as famílias, em todos os salões, que Cecília nascera sem coração, e a favor desta fama faziam-se apostas, levantavam-se coragens; a moça tornou-se a Cartago das salas. Os romanos de bigode retorcido e cabelo frisado juravam sucessivamente vencer a indiferença púnica. Trabalho vão! Do agasalho cordial ao amor ninguém chegava nunca, nem por suspeita. Cecília era tão indiferente que nem dava lugar à ilusão.

Entre os pretendentes um apareceu que começou por cativar os pais de Cecília. Era um doutor formado em matemáticas, metódico como um compêndio, positivo como um axioma, frio como um cálculo. Os país iram logo no novo pretendente o modelo, o padrão, fênix dos maridos. E começaram por fazer em presença da filha os elogios do rapaz. Cecília acompanhou-os nesses elogios, e deu alguma esperança aos pais. O próprio pretendente soube do conceito em que tinha a moça e criou esperanças.

E, conforme a educação do espírito, tratou de regularizar a corte que fazia a Cecília, como se se tratasse de descobrir uma verdade matemática. Mas, se a expressão dos outros pretendentes não impressionou a moça, muito menos a impressionava a frieza metódica daquele. Dentro de pouco tempo a moça negou-lhe até aquilo que concedia aos outros: a benevolência e a cordialidade.

O pretendente desistiu da causa e voltou aos calculos e aos livros.

Como este, todos os outros pretendentes iam passando, como soldados em revista, sem que o coração inflexível da moça pendesse para nenhum deles.

Então, quando todos viram que os esforços eram baldados, começou-se a suspeitar que o coração da moça estivesse empenhado a um primo que exatamente na noite da visão de Cecília embarcara para seguir até Santos e daí tomar caminho para a província de Goiás. Esta suspeita desvaneceu-se com os anos; nem o primo voltou, nem a moça mostrou-se sentida com a ausência dele. Esta conjectura com que os pretendentes queriam salvar a honra própria perdeu o valor, e os iludidos tiveram de contentar-se com este dilema: ou não tinham sabido lutar, ou a moça era uma natureza de gelo.

Todos aceitaram a segunda hipótese.

Mas que se passava nessa natureza de gelo? Cecília via a felicidade das amigas, era confidente de todas, aconselhava-as ao sentido de uma prudente reserva, mas nem procurava nem aceitava os ciúmes que lhe andavam a mão. Todavia mais de uma vez, à noite, no fundo da alcova, a moça sentia-se só. O coração solitário parece que se não acostumara de todo ao isolamento a que o votara a dona.

A imaginação, para fugir às pinturas indiscretas de um sentimento a que a moça fugia, corria às soltas no campo das criações fantásticas e desenhava com vivas cores essa felicidade que a visão lhe prometera. Cecília comparava o que perdera e o que ia ganhar, e dava a palma do gozo futuro em compensação do presente. Mas nesses rasgos de imaginação o coração palpitava-lhe com força, e mais de uma vez a moça dava acordo de si procurando com uma das mãos arrancar o anel da aliança com a visão.

Nesses momentos recuava, entrava em si e chamava no interior a visão daquela noite dos quinze anos. Mas o desejo era baldado; a visão não aparecia, e Cecília ia procurar no leito solitário a calma que não podia encontrar nas vigílias laboriosas.

Muitas vezes a aurora veio encontrá-la à janela, enlevada nas suas imaginações, sentindo um vago desejo de conversar com a natureza, embriagar-se no silêncio da noite.

Em alguns passeios que fez aos subúrbios da cidade deixava-se impressionar por tudo o que a vista lhe oferecia de novo, água ou montanha, areia ou ervaçal, parecendo que a vista se lhe comprazia nisso e esquecendo-se muitas vezes de si e dos outros.

Ela sentia um vácuo moral, uma solidão interior, e procurava na atividade e na variedade da natureza alguns elementos de vida para si. Mas a que atribuía ela essa ânsia de viver, esse desejo de ir buscar fora aquilo que lhe faltava? Ao principio não reparou no que fazia; fazia involuntariamente, sem determinação nem conhecimento da situação.

Mas, como se prolongasse a situação, ela foi pouco a pouco descobrindo o estado do coração e do espírito. Tremeu ao principio, mas em breve se tranqüilizou; a idéia da aliança com a visão pesava-lhe no espírito, e as promessas feitas por ela de uma bem-aventurança sem igual desenhava na fantasia de Cecília um quadro vivo e esplêndido. Isto consolava a moça, e, sempre escrava dos juramentos, ela fazia honra sua em ficar pura do coração para subir à morada das donzelas libertadas do amor.

Demais, ainda que o quisesse, parecia-lhe impossível sacudir a cadeia a que involuntariamente se prendera.

E os anos corriam.

Aos vinte e cinco inspirou uma paixão violenta a um jovem poeta. Foi uma dessas paixões como só os poetas sabem sentir. Este do meu conto depôs aos pés da bela insensível a vida, o futuro, a vontade. Regou com lágrimas os pés de Cecília e pediu-lhe como uma esmola uma centelha que fosse do amor que parecia ter recebido do céu. Tudo foi inútil, tudo foi vão. Cecília nada lhe deu, nem amor nem benevolência. Amor não tinha; benevolência podia ter, mas o poeta perdera o direito a ela desde que declarou a extensão do seu sacrifício. Isto deu a Cecília a consciência da sua superioridade, e com essa consciência certa dose de vaidade que lhe vendava os olhos e o coração.

Se lhe aparecera o anjo para tirar-lhe do coração o gérmen do amor, não lhe apareceu nenhum que lhe tirasse o pouco de vaidade.

O poeta deixou Cecília e foi para casa. Dai seguiu para uma praia, subiu a uma pequena eminência e atirou-se ao mar. Dai a três dias encontrou-se-lhe o cadáver, e os jornais deram do fato uma notícia lacrimosa. Entretanto encontrou-se entre os papéis do poeta a seguinte carta:

 

"*** A Cecília D...

 

"Morro por ti. É ainda uma felicidade que eu procuro em falta da outra que eu procurei, implorei e não alcancei.

"Não me quiseste amar; não sei se o teu coração estaria cativo, mas dizem que não. Dizem que és insensível e indiferente.

"Não quis crê-lo e fui por mim próprio averiguá-lo. Coitado de mim! o que vi bastou para dar-me a certeza de que não estava reservado para mim semelhante fortuna.

"Não te pergunto que curiosidade te levou a voltares a cabeça e transformares-te, como a mulher de Loth, em estátua insensível e fria. Se alguma coisa há nisto que eu não compreendo, não quero sabê-lo agora que deixo o fardo da vida e vou, por caminho escuro pra curar o termo feliz da minha viagem.

Deus te abençoe e te faça feliz. Não te desejo mal. Se te fujo e se fugi ao mundo é por fraqueza, não é por ódio; ver-te, sem ser amado, é morrer todos os dias. Morro uma só vez e rapidamente.

 

"Adeus..."

 

Esta carta causou a Cecília muita impressão. Chorou até. Mas era piedade e não amor. A maior consolação que ela mesma deu a si foi o pacto secreto e misterioso. É culpa minha? perguntava ela. E respondendo negativamente a si mesma achava nisso a legitimidade da sua indiferença.

Todavia, esta ocorrência trouxe lhe ao espírito uma reflexão.

O anjo prometera-lhe, em troca da isenção para o amor, uma tranqüilidade durante a vida que só poderia ser excedida pela paz eterna da bem-aventurança.

Ora, que encontrava ela? O vácuo moral, as impressões desagradáveis, uma sombra de remorso, eis os lucros que tivera.

Os que foram fracos como o poeta recorreram aos meios extremos ou deixaram-se dominar pela dor. Os menos fracos ou menos sinceros no amor alimentaram contra Cecília um despeito que deu em resultado levantar-se uma opinião ofensiva à moça.

Mais de um procurava na sombra o motivo da indiferença de Cecília. Era a segunda vez que se atiravam a essas investigações. Mas o resultado delas era sempre nulo, visto que a realidade era. que Cecília não amava ninguém.

E os anos corriam...

Cecília chegou aos trinta e três anos. Já não era a idade de Julieta, mas era uma idade ainda poética; poética neste sentido - que a mulher, em chegando a ela, tendo já perdido as ilusões dos primeiros tempos, adquire outras mais sólidas, fundadas na observação.

Para a mulher dessa idade o amor já não é uma aspiração do desconhecido, uma tendência mal exprimida; é uma paixão vigorosa, um sentimento mais eloqüente; ela já não procura a esmo um coração que responda ao seu; escolhe entre os que encontra um que possa compreendê-la, capaz de amar como ela, próprio para fazer essa doce viagem às regiões divinas do amor verdadeiro, exclusivo, sincero, absoluto.

Nessa idade era ainda bela. E pretendida. Mas a beleza continuou a ser um tesouro que a indiferença avarenta guardava para os vermes da terra.

Um dia, longe dos primeiros, muito longe, a primeira ruga desenhou-se no rosto de Cecília e alvejou um primeiro cabelo. Mais tarde, segunda ruga, segundo cabelo, e outras e outros, até que a velhice de Cecília declarou-se completa.

Mas há velhice e velhice. Há velhice feia e velhice bonita. Cecília era da segunda espécie, porque através dos sinais evidentes que o tempo deixara nela, sentia-se que fora uma criatura formosa, e, embora de outra natureza, Cecília inspirava ainda a ternura, o entusiasmo, o respeito.

Os fios de prata que lhe serviam de cabelos emolduravam-lhe o rosto rugado, mas ainda suave. A mão, que tão linda era outrora, não tinha a magreza repugnante, mas era ainda bela e digna de uma princesa... velha.

Mas o coração? Esse atravessara do mesmo modo os tempos e os sucessos sem nada deixar de si. A isenção foi sempre completa. Lutava embora contra não sei que repugnância do vácuo, não sei que horror da solidão, mas nessa luta a vontade ou a fatalidade vencia sempre, triunfava de tudo, e Cecília pôde chegar à adiantada idade em que achamos sem nada perder.

O anel, o fatídico anel, foi o talismã que nunca a abandonou. A favor desse talismã, que era a assinatura do contrato celebrado com o anjo das donzelas, ela pôde ver de perto o sol sem se queimar.

Tinham-lhe morrido os pais. Cecília vivia em casa de uma irmã viúva. Vivia dos bens que recebera em herança.

Que fazia agora? Os pretendentes desertaram, os outros envelheceram também, mas iam ainda por lá alguns deles. Não para requestá-la de certo, mas para passar as horas ou em conversa grave e pausada sobre coisas sérias, ou à mesa de algum jogo inocente e próprio de velhos.

Não poucas vezes era assunto de conversação geral a habilidade com que Cecília conseguira atravessar os anos da primeira e da segunda mocidade sem empenhar o coração em nenhum laço de amor. Cecília respondia a todos que tivera um segredo poderoso do qual não podia fazer comunicação alguma.

E nestas ocasiões olhava amorosamente para o anel que trazia no dedo ornado de uma bela e grande esmeralda.

Mas ninguém reparava nisto.

Cecília gastava horas e horas da noite em evocar a visão dos quinze anos. Quisera achar conforto e confirmação às suas crenças, quisera ver e ouvir ainda a figura mágica e a voz celeste do anjo das donzelas. Parecia-lhe, sobretudo, que o longo sacrifício que consumara merecia, antes da realização, uma repetição das promessas anteriores.

Entre os que freqüentavam a casa de Cecília alguns velhos havia dos que, na mocidade, tinham feito roda a Cecília e tomado mais ou menos seriamente as expressões de cordialidade da moça.

Assim que, agora que se encontravam nas últimas estações da vida, mais de uma vez a conversa tinha por objeto a isenção de Cecília e as infelicidades dos adoradores.

Cada um referia os seus episódios mais curiosos, as dores que sentira, as decepções que sofrera, as esperanças que Cecília esfolhara com impassibilidade cruel.

Cecília ria ouvindo essas confissões, e acompanhava os seus adoradores de outrora no terreno das facécias que as revelações mais ou menos inspiravam.

- Ah! dizia um, eu é que sofri como poucos.

- Sim? perguntava Cecília.

- É verdade.

- Conte lá.

- Olhe, lembra-se daquela partida em casa do Avelar ?

- Foi há tanto tempo!

- Pois eu me lembro perfeitamente.

- Que houve?

- Houve isto.

Todos se prepararam para ouvir a narração prometida.

- Houve isto, continuou o ex-adorador. Estávamos no baile. Eu, nesse tempo, era um verdadeiro pintalegrete. Envergava a melhor casaca, esticava a melhor calça, derramava os melhores cheiros. Mais de uma dama suspirava em segredo por mim, e às vezes nem mesmo em segredo...

- Ah!

- É verdade. Mas qual é a lei geral da humanidade? É não aceitar aquilo que se lhe dá, para ir buscar aquilo que não poderá obter. Foi o que fiz.

 

 ............... Le bonheur, c'est la boule Que cet enfant porsuit tout le temps qu'elle roule.

Et que, dès qu'elle arrête, il repousse du pied.

 

- Bravo!

- Vamos a história!

- Estávamos no baile. Já duas senhoras tinham-se retirado para o camarim a fim de evitar algum desmaio. Por que? Que fazia eu? Eu derramava aos pés de D. Cecília uma torrente de madrigais, dizia-lhe do melhor modo possível que a beleza dela tinha-me inspirado um amor profundo e decisivo. Ela não prestava aos meus discursos senão uma atenção indiferente. Isto desesperava. Insistia, repetia, pedia-lhe quase o coração. Ela nada. Enfim ofereci-lhe o braço. Percorremos algumas salas. D. Cecília estava divina de graça, de beleza, e até... de indiferença. Se fosse a indiferença somente bem estava, mas houve mais.

- Houve mais?

- Houve. Houve desengano. Eu disse-lhe que a amava perdidamente; ela respondeu-me positivamente que não me podia amar. Quase cai. Não lhe disse mais nada e voltamos para a sala.

- Não me lembro disso, observou Cecília.

- Lembro-me eu que fui a vítima. O algoz...

- À ordem! à ordem! reclamaram os ouvintes. O narrador continuou:

- Deixei D. Cecília na sala e saí. Fui para o jardim. Desesperado, cuidei que o ar e a solidão me aplacassem o ânimo. Vi através da rama de uns arbustos um ponto de luz. Era um charuto ao que me parecia, e com o charuto um homem. A noite estava escuríssima. Caminhei para o lugar em que me parecia estar o homem e o charuto. Pedi fogo e vi que o charuto me entrava nas mãos. Acendi um charuto e agradeci. A minha voz foi conhecida pelo meu interlocutor e eu próprio reconheci na voz que me falava um rapaz que eu conhecera nos salões.

- Abrevie a história!

- Apoiado!

- É simples. Contei ao meu interlocutor os motivos da minha presença, e estava calmo, esperando algumas palavras de consolação, quando me senti agarrado. Procurei defender-me e lutamos durante alguns minutos, ao som de uma polca que se executava no interior da casa. Todos compreendem o caso. O meu adversário era pretendente ao coração de D. Cecília; estava, como eu, desconsolado. Lutamos, como disse. Nunca mais nos falamos.

- Nunca mais?

- Nunca mais.

- Não me lembro de nada, nem me constou nada neste sentido, disse Cecília.

- Eu nunca disse nada a ninguém.

Fora escrever dois volumes repetir os episódios trágicos, ou cômicos, ou patéticos, que os ex-adoradores de Cecília traziam para a conversação.

Em uma dessas práticas íntimas, singelas, trouxe um criado uma carta para Cecília. Era de Tibúrcio.

Quem era Tibúrcio? Era o primo de Cecília que partira da corte na noite em que Cecília fizera o contrato misterioso para independência do coração.

Tibúrcio partira moço e voltou velho. Nunca dera sinal de si. Não se sabia onde andava nem que fazia.

Tibúrcio escrevia de S. Paulo. Dizia que dentro de oito dias estaria na corte. E dai a oito dias chegou.

 

A carta dizia:

 

"Minha prima. - Dentro de oito dias lá' estarei. Vai aparecer-lhe um velho. Há que tempo de lá saí!

"Andei seca e meca. Ganhei, perdi, tornei a ganhar, e a experiência me serviu, por que o que ganhei conservo agora e .não tenho idéia, nem ânimo de perdê-lo outra vez.

"Que é feito de nossa família? Eu de nada sei. Não procurei ninguém, não escrevi; acho que fizeram bem em me não escreverem. Com ingrato, ingrato e meio. Mas eu hei de provar que não fui ingrato.

"Adeus. Esta lhe há de ser entregue por C..., meu amigo, que parte para essa corte. Adeus. - Tibúrcio".

 

Tibúrcio acompanhou a carta com intervalo de alguns dias. Era um velho bonito, folgazão, opulento de carnes e de dinheiro.

Nem Tibúrcio reconhecia Cecília, nem Cecília reconheceu Tibúrcio. Tão mudados estavam!

Vieram as longas narrativas do que se houvera passado durante o longo espaço de tempo que se não viram.

É necessário dizer que Tibúrcio, quando partira da corte, amava Cecília, sem que para amá-la se fundasse em nenhum sentimento recíproco.

Cecília foi ao principio indiferente... por indiferença. Mais tarde é que veio o pacto angélico.

Tibúrcio ouviu, com grande admiração, da boca de Cecília a notícia de que ela nunca se houvera casado.

E de sua parte declarou que também se conservara solteiro, adiantando logo a razão disso, que era não poder levar família para as trabalhosas empresas a que se entregava.

Mas a respeito de Cecília admirou-se muito. Não a deixara formosa e requestada? Não via ainda que essa beleza tarde desapareceu?

- Não quis, respondia Cecília.

- Mas por que?...

- Não sei... não quis.

E, como sempre, Cecília olhava amorosamente para o anel. Os olhos de Tibúrcio acompanharam os de Cecília e pousaram na esmeralda que ela trazia no dedo.

- Ah! disse ele.

E a conversa passou a outros assuntos.

Insistiram todos em que Tibúrcio referisse as suas viagens, as suas aventuras, os seus perigos, as suas fortunas.

- Fora preciso um ano, disse Tibúrcio.

Com efeito, Tibúrcio tinha vivido uma vida acidentada. Lutas, perigos, sustos, fortunas, alternativas de todo o gênero, tudo matizava o fundo do quadro da existência de Tibúrcio.

Tibúrcio adquirira parte de sua fortuna em algumas explorações de minas de ouro e de brilhantes.

Durante os dias que se seguiram ao da chegada dele em casa de Cecília, a família, os restos da família, e os convivas habituais, divertiram-se muito ouvindo as narrações de Tibúrcio sobre os acidentes das explorações mineiras.

Quando se esgotou esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos bugres perto do rio Araguaia. Quando caiu nas mãos daqueles bárbaros perdeu até a última gota de sangue. Viu a morte diante dos olhos. Já os bugres se preparavam para almoçar aquele bife, quando uma partida de soldados que andava à caça de um criminoso descobriu o fato e chegou a tempo de salvar Tibúrcio dos estômagos indígenas.

Outros perigos correra o primo de Cecília, como o de naufragar em torrentes de rios, encontrar-se com onças, e outros deste gênero.

O auditório habitual de Tibúrcio divertia-se muito com estas narrações, e ele por sua parte sabia referir os tais episódios dando-lhes as cores próprias de comover e interessar.

Tibúrcio resolvera ir morar com as duas parentas, e ali se instalou imediatamente.

Todas as noites havia uma reunião de amigos para tomar chá, conversar e jogar.

Uma noite de chuva, em mês de junho, debalde se esperaram os convivas. A chuva e o frio não consentiram que os respeitáveis anciões deixassem os conchegos do lar, nem mesmo com a sedução das boas horas que se passava em casa de Cecília.

Foram, pois, os três parentes obrigados a se privarem naquela noite da companhia dos amigos.

Tomaram chá cedo e estavam fazendo horas à mesa até que viesse a hora habitual de se recolherem.

Travou-se a seguinte conversação:

- Ora, prima, disse Tibúrcio, ainda não lhe contei os tormentos que sofri relativamente ao coração.

- Ah!

- É verdade. Lembrei-me muito de você.

- Deveras?

- É verdade. Não se lembra que eu mais de uma vez lhe confessei o amor que alimentava?

- Lembro-me, sim.

- Pois sai da corte com as mais dolorosas impressões. Via que ia para longe e perdia de vista a mulher que eu ainda nem conhecia de coração. Padeci muito.

- Falar nisso agora não sei que me parece.

- Parece o que é, a verdade. Quis matar-me...

- Que tolice!

- Foi o que eu pensei...

- Morria e eu ficava.

- Mas o que me agrada é ver que se eu não esqueci, também você não esqueceu.

- Não, decerto.

- Mas, de certo modo?

- Que modo?

- Gentes! disse a prima viúva. Vocês parecem namorados!

- Mas de que modo? como apaixonada?

- Sim.

- Que loucura!

- Pelo menos tenho uma prova.

- Vamos ver a prova, disse a viúva.

- A prova não está comigo.

- Está comigo? perguntou Cecília.

- É verdade.

- Onde?

- Aí, no dedo.

Cecília olhou para o anel.

- No dedo! disse ela sem compreender a que podia o primo aludir.

- Esse anel, disse o primo.

- Este anel? Que tem este anel?

- Ora, afinal, disse a prima viúva, vamos saber o que significa este misterioso anel.

Cecília estava espantada sem compreender.

Tibúrcio continuou:

- Este anel, sim. É meu. Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o encomendei.

- Mas explique-se.

- Nas vésperas de partir da corte quis deixar-lhe uma prova de que o meu amor era verdadeiro e seria eterno. Encomendei este anel, que o ourives prontificou com o maior cuidado e zelo. Tinha dois meios de dar-lho: ou introduzir-lho no dedo, francamente, com a declaração de que era uma lembrança minha que deixara, ou depositá-lo no seu toucador para que, quando eu já estivesse fora, aquela lembrança a surpreendesse.

- É romanesco, disse a viúva.

Cecília nada disse. Tinha os olhos pregados em Tibúrcio e procurava arrancar-lhe as palavras da boca.

Tibúrcio prosseguiu:

- Preferi o segundo meio por me parecer, como diz a prima, romanesco. Mas, ao executá-lo, ocorreu-me um terceiro meio. Era o de colocar o anel no seu dedo na hora em que dormisse, de modo que a surpresa fosse ainda maior.

- Ah! e...

Esta exclamação e esta conjunção partiram da prima viúva. Cecília tão absorta estava que nada podia dizer.

- Descansem, disse Tibúrcio, eu fiz as coisas honestamente. Peitei a mucama para que alta noite, na ocasião em que a prima dormisse depois da costumada leitura... Ah! você lia muito romance!

- Adiante!

- Para que alta noite se aproveitasse do sono em que você estivesse e lhe pusesse o anel. Assim foi. Vejo agora que conservou o anel. Mas, diga-me, a Teresa nunca lhe disse nada disto?

- Não, disse Cecília distraidamente.

- Pois foi assim. E se quer mais uma prova tire o anel... Nunca o tirou?

- Nunca.

- Pois tire o anel e veja se não estão gravadas pela parte interior as iniciais do meu nome.

Cecília hesitou entre a curiosidade de averiguar a asseveração de Tibúrcio e um resto de crença que tinha nas palavras da visão.

- Tire o anel.

- Mas...

- Tire! Que receio é esse?

- Esperem, não tiro por uma razão. Eu não creio no que diz o primo Tibúrcio.

- Por que?

- Não creio, mas creio em outra coisa.

- Essa agora!

- É verdade.

E Cecília passou a referir aos dois parentes todas as circunstâncias da visão, o diálogo que tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das donzelas.

- Tal foi, acrescentou Cecília, a razão porque me não casei. Tinha fé nisto. Quanto a tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse.

Tibúrcio deu uma gargalhada.

- Ora, prima, disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma superstição? Ainda acredita em sonhos!

- Como, sonhos?

- É evidente. Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho com o fato do anel. Mas você quando acordou no dia seguinte achou-se com um anel no dedo, não devia fazer outra coisa mais do que averiguar a razão do fenômeno, e não dar crédito a uma coisa toda de imaginação.

Cecília abanou a cabeça.

- Pois não crê? Tire o anel.

Cecília hesitava. Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi acompanhado pela prima viúva de modo que Cecília, com alguma relutância, pálida e trêmula, arrancou o anel do dedo.

O anel tinha na parte interna gravadas estas iniciais: T. B.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 25 de janeiro de 2021

A NAVEGAÇÃO DA CASA (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

A NAVEGAÇÃO DA CASA

Rubem Braga

(Grafia original)

 

Muitos inversos rudes já viveu esta casa. E os que a habitaram através dos tempos lutaram longamente contra o frio entre essas paredes que hoje abrigam um triste senhor do Brasil.

Vim para aqui enxotado pela tristeza do quarto do hotel, uma tristeza fria, de escritório. Chamei amigos para conhecer a casa. Um trouxe conhaque, outro veio com vinho tinto. Um amigo pintor trouxe um cavalete e tintas para que os pintores amigos possam pintara quando vierem. Outro apareceu com uma vitrola e um monte de discos. As mulheres ajudaram a servir as coisas e dançaram alegremente para espantar o fantasma das tristezas de muitas gerações que moraram sob esse teto. A velha amiga trouxe um lenço, me pediu uma pequena moeda de meio franco. A que chegou antes de todas trouxe flores: pequeninas flores, umas brancas e outras cor de vinho. Não são das que aparecem nas vitrinas de luxo, mas das que rebentam por toda parte, em volta de Paris e dentro de Paris, porque a primavera chegou.

tudo isso alegra o coração de um homem. Mesmo quando ele já teve outras casas e outros amigos, e sabe que o tempo carrega uma traição no bojo de cada minuto. Oh! deuses miseráveis da vida, por que nos obrigais ao incessante assassínio de nós mesmos, e a esse interminável desperdício de ternuras? Bebendo esse grosso vinho a um canto da casa comprida e cheia de calor humano (ela parece jogar suavemente de popa a proa, com seus assoalhos oscilantes sob os tapetes gastos, velha fragata que sai outra vez para o oceano, tripulada por vinte criaturas bêbadas) eu vou ternamente misturando aos presentes os fantasmas cordiais que vivem em minha saudade.

Quando a festa é finda e todos partem, não tenho coragem de sair. Sinto o obscuro dever de ficar só nesse velho barco, como se pudesse naufragar se eu o abandonasse nessa noite de chuva. ando pelas salas ermas, olho os cantos desconhecidos, abro as imensas gavetas, contemplo a multidão de estranhos e velhos utensílios de copa e de cozinha.

eu disse que os moradores antigos lutaram duramente contra o inverno, através das gerações. Imagino os inversos das guerras que passaram: ainda restam da última, farrapos de papel preto nas janelas que dão para dentro. Há uma série grande e triste de aparelhos de luta contra o frio: aquecedores a gás, a eletricidade, a carvão e óleo que foram sendo comprados sucessivamente, radiadores de diversos sistemas, com esse ar barroco e triste da velha maquinaria francesa. Imagino que não usarei nenhum deles; mas abril ainda não terminou e depois de dormir em uma bela noite enluarada de primavera acordamos em um dia feio, sujo e triste como uma traição. O inverno voltou de súbito, gelado, com seu vento ruim a esbofetear a gente desprevenida pelas esquinas.

Hesitei longamente, dentro da casa gelada; qual daqueles aparelhos usaria? O mais belo, revestido de porcelana, não funcionava, e talvez nunca tivesse funcionado; era apenas um enfeite no ângulo de um quarto; investiguei lentamente os outros, abrindo tampas enferrujadas e contemplando cinzas antigas dentro de seus bojos escuros. Além do sistema geral da casa – esse eu logo pus de lado, porque comporta ligações que não merecem fé e termômetros encardidos ao lado de pequenas caixas misteriosas – havia vários pequenos sistemas locais. Chegaram uns amigos que se divertiram em me ver assim perplexo. Dei conhaque para aquecê-los, uma jovem se pôs a cantar na guitarra, mas continuei minha perquirição melancólica. Foi então que me veio a idéia mais simples: afastei todos os aparelhos e abri, em cada sala, as velhas lareiras. Umas com trempe, outras sem trempe, a todas enchi de lenha e pus fogo, vigiando sempre para ver se as chaminés funcionavam, jogando jornais, gravetos e tacos e toros, lutando contra a fumaceira, mas venci.

Todos tiveram o mesmo sentimento: apagar as luzes. Então eu passeava de sala em sala como um velho capitão, vigiando meus fogos que lançavam revérberos nos móveis e paredes, cuidando carinhosamente das chamas como se fossem grandes flores ardentes mas delicadas que iam crescendo graças ao meu amor. Lá fora o vento fustigava a chuva, na praça mal iluminada; e vi, junto à luz triste de um poste, passarem flocos brancos que se perdiam na escuridão. Essa neve não caía do céu; eram as pequenas flores de uma árvore imensa que voavam naquela noite de inverno, sob a tortura do vento.

Detenho-me diante de uma lareira e olho o fogo. É gordo e vermelho, como nas pinturas antigas; remexo as brasas com o ferro, baixo um pouco a tampa de metal e então ele chia com mais força, estala, raiveja, grunhe. Abro: mais intensos clarões vermelhos lambem o grande quarto e a grande cômoda velha parece se regozijar ao receber a luz desse honesto fogo. Há chamas douradas, pinceladas azuis, brasas rubras e outras cor-de-rosa, numa delicadeza de guache. Lá no alto, todas as minhas chaminés devem estar fumegando com seus penachos brancos na noite escura; não é a lenha do fogo, é toda a minha fragata velha que estala de popa a proa, e vai partir no mar de chuva. Dentro, leva cálidos corações.

Então, nesse belo momento humano, sentimos o quanto somos bichos. somos bons bichos que nos chegamos ao fogo, os olhos luzindo; bebemos o vinho da Borgonha e comemos pão. Meus bons fantasmas voltam e se misturam aos presentes; estão sentados; estão sentados atrás de mim, apresentando ao fogo suas mãos finas de mulher, suas mãos grossas de homem. Murmuram coisas, dizem meu nome, estão quietos e bem, como se sempre todos vivêssemos juntos; olham o fogo. Somos todos amigos, os antigos e os novos, meus sucessivos eus se dão as mãos, cabeças castanhas ou louras de mulheres de várias épocas são lambidas pelo clarão do mesmo fogo, caras de amigos meus que não se conheciam se fitam um momento e logo se entendem; mas não falam muito. Sabemos que há muita coisa triste, muito erro e aflição, todos temos tanta culpa; mas agora está tudo bom.

Remonto mais no tempo, rodeio fogueiras da infância, grandes tachos vermelhos, tenho vontade de reler a carta triste que outro dia recebi de minha irmã. Contemplo um braço de mulher, que a luz do fogo beija e doura; ela está sentada longe, e vejo apenas esse braço forte e suave, mas isso me faz bem. De súbito me vem uma lembrança triste, aquele sagüi que eu trouxe do Norte de Minas para minha noiva e morreu de frio porque o deixei fora uma noite, em Belo Horizonte. Doeu-me a morte do sagüi; sem querer eu o matei de frio; assim matamos, por distração, muitas ternuras. Mas todas regressam, o pequenino bicho triste também vem se aquecer ao calor de meu fogo, e me perdoa com seus olhos humildes. Penso em meninos. Penso em um menino.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 23 de janeiro de 2021

COMO OS CÃES (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

COMO OS CÃES

Olavo Bilac

(Grafia Original)

 

 

— Não é possível, senhora! — dizia o comendador à esposa — não é possível!

— Mas se eu lhe digo que é certo, seu Lucas! — insistia a D. Teresa — pois é mesmo a nossa filha quem m’o disse!

O comendador Lucas, atônito, coçou a cabeça:

— Oh! senhora! mas isso é grave! Então o rapaz já está casado com a menina há dois meses e ainda...

— Ainda nada, seu Lucas, absolutamente nada!

— Valha-me Deus! Enfim, eu bem sei que o rapaz, antes de casar, nunca tinha andado pelo mundo... sempre agarrado às saias da tia... sempre metido pelas igrejas.

— Mas — que diabo! — como é que, em dois meses, ainda o instinto não lhe deu aquilo que a experiência já lhe devia ter dado?! Enfim, vou eu mesmo falar-lhe! Valha-me Deus!

E, nessa mesma noite, o comendador, depois do jantar, chamou à fala o genro, um moço louro e bonito, dono de uns olhos cândidos...

— Então, como é isso, rapaz? tu não gostas de tua mulher?

— Como não gosto? Mas gosto muito!

— Tá tá tá... Vem cá! que é que tu lhe tens feito, nestes dous meses?

— Mas... tenho feito tudo! converso com ela, beijo-a, trago-lhe frutas, levo-a ao teatro... tenho feito tudo...

— Não é isto, rapaz, não é somente isso! o casamento é mais que alguma cousa! tu tens de fazer o que todos fazem, caramba!

— Mas... não entendo...

— O´ homem! tu precisas... ser marido de tua mulher!

— ... não compreendo...

— Valha-me Deus! tu não vês como os cães fazem na rua?

— Como os cães? ... como os cães?... sim... parece-me que sim...

— Pois, então? Faze como os cães, pedaço de moleirão, faze como os cães! E não te digo mais nada! Faze como os cães...!

— E, ao deitar-se, o comendador disse à esposa, com um risinho brejeiro:

— Parece que o rapaz compreendeu, senhora! e agora é que a menina vai ver o bom e o bonito...

 

 

Uma semana depois, a Rosinha, muito corada, está diante do pai, que a interroga. O comendador tem os olhos esbugalhados de espanto:

— Que, rapariga? pois então, o mesmo?

— O mesmo... ah! é verdade! houve uma coisa que até me espantou... ia-me esquecendo... houve uma cousa... esquisita...

— Que foi? que foi? — exclamou o comendador — que foi?... eu logo vi que devia haver alguma cousa!

— Foi uma cousa esquisita... Ele me pediu que ficasse... assim... assim... como um bicho... e...

— E depois? e depois?

— E depois... depois... lambeu-me toda... e...

— ...e?

— ... e dormiu!


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 22 de janeiro de 2021

A MAIS ESTRANHA MOLÉSTIA (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A MAIS ESTRANHA MOLÉSTIA

João do Rio

(Grafia original)

 

Era o momento verde, o momento do aperitivo outrora absinto, hoje uma série de envenenamentos de cores variadas e de nomes ingleses, a que a leve estética sem inventiva dos cafés e das confeitarias continuava de chamar sempre o momento da água glauca. Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço de confeitaria, os olhos perdidos na contemplação da Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e de ruído. No asfalto da rua era a corrida dos carros, apitos, trilos, largo bater de patas de cavalos, chicotadas estalando no pelo das magras pilecas dos tilburis, carroções em disparada, cornetas de automóvel buzinando arredas, gente a correr, ou parada nos refúgios, à espera de um claro para poder passar, o estrépito natural do instante, à hora da noite nas cidades. Nas calçadas uma dupla fila de transeuntes sempre a renovar-se, o cinema colossal de homens das classes mais diversas, operários e dândis, funcionários públicos e comerciantes, ociosos e bolsistas, devagar ou apressados ao lado de uma multicor galeria de mulheres, a teoria infinita do feminino para todos os gêneros: pequenas operárias, cocottes notáveis, senhoras de distinção, meninas casadeiras, simples apanhadoras de amor. As sombras, a princípio de um azul furfureáceo, depois de um cinza espesso, iam preguiçosamente espalhando o veludo da noite na silhueta em perspectiva das grandes fachadas. À beira das calçadas, a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores formavam uma tríplice candelária de pequenos focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estralejamento surdo das lâmpadas elétricas de um estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como talhadas em vestes de arlequins dos cinematógrafos, brasonando de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! os contos de fadas que são as cidades! Os meus olhos se fixavam na confusão mirionima das cores, vendo em cada roseta um caleidoscópio, sentindo em cada tabuleta o sonho postiço de um tesouro de Golconda, a escorrer para a semi-opacidade da noite cascatas de rubis, lágrimas de esmeraldas, reflexos cegadores de safiras, espelhamentos jaldes de topázios, e eu recordava outras cidades, outras casas, o eterno boulevard, suprema orquestração do bom gosto urbano. Que fazer? Os meus olhos descansaram na multidão.

Algum tempo depois reconheci, como tendo perdido alguma coisa, os olhos à procura, o nariz ao vento, o delicado Oscar Flores, um ente muito fino, muito sensível, do qual diziam horrores e que de resto parecia ter na alma um fatigante segredo. Os segredos fizeram-se para ser contados. Tudo vai de ocasião. Que estaria Oscar Flores, com a sua palidez e as suas lindas mãos, a procurar assim? Esperei alguns minutos olhando a ver se via a causa daquela aflição e por fim, quando o jovem se resolvia a continuar, chamei-o ruidosamente. Ele voltou-se, como se fosse apanhado em flagrante. Estava visivelmente contrariado.

— Vem daí tomar um aperitivo.

— Não, obrigado. Tenho que fazer.

— Pois se já perdeste a pessoa a quem acompanhavas?…

— Viste? fez ainda mais pálido.

— Vi, isto é -sossega- vi que procuravas alguém.

Ele teve um suspiro, deixou-se cair na cadeira. Já agora tomava um cock-tail. O seu caso porém era outro. E fechou-se num silêncio nervoso, cortado de sobressaltos, alheado de mim -o seu habitual silêncio em todas as rodas, como sempre à espera de um sinal misterioso para partir e desaparecer. Olhei-o então com vagar. Era encantadoramente lindo com o seu ar de adolescente de Veroneso, a pele morena, o negro cabelo anelado. Como devia ser feliz assim rico e belo, com a sua bengala de castão de turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude inquieta de um príncipe assassino e radiante, o Oscar Flores! E falavam tanto mal dele! Disse-lhe, íntimo e confidencial:

— Então, Oscar, onde estás? É por isso que te caluniam…

— Ah! tornou sorrindo, ainda falam de mim?

— Cada vez mais. És o leit-motiv da falta de assunto. De resto ha sempre na voz do povo um pouco de razão. Estou a acreditar que realmente tens um segredo. Ora os segredos deixam-se para as mulheres e para os homens sem interesse, os homens vulgares…

— Mas não tenho segredos, protestou cansado. Tenho apenas a mais estranha moléstia nervosa -que ninguém sabe. Curioso, hein? Diante de mim toda a gente sente a anormalidade, outra esfera, outra vibração. Que será? Os mais espessos -e dessa espessura intelectual se faz a opinião da massa- pensam logo nas degenerações normais, no centro das loucuras que é a cidade. E não é nada disso, é outra coisa -é a minha moléstia. A existência concentro-a nela, no desejo de doma-la e na irresistível vontade de satisfaze-la. Tenho estudado, tenho lido, tenho feito observações a ver se encontro outro tipo igual. Absolutamente impossível..

Tomou um gole de cock-tail com evidente prazer, sorriu mais acalmado.

— Todos pensam que é um segredo porque ninguém imagina. E eu sofro desde criança. A princípio, na mais tenra idade, apareceu como escandalosa precocidade; até a adolescência tive-o como um crime horrível, castigo e prazer do pecado. Com a razão -porque eu sou um sujeito muito razoável e muito refletido- vim a descobrir que era um desequilíbrio dos sentidos, a exaltação lírica, o desenvolvimento assustador de um dos sentidos, capaz de dominar os outros, submete-los e virar aos poucos em fonte de todos os prazeres, em único foco das sensações agradáveis, em tirano da impalpável luxúria.

Já decerto conversaste com os artistas jovens, os que falam na realização da arte, no ideal que jamais se corporifica e é na nossa alma como o perpétuo sonho irrealisável. A minha moléstia, o meu desequilíbrio, o império de um único sentido no meu organismo e nesta sensibilidade caldeado numa ascendência de requintados, deu-me da vida íntima uma prévia noção incorpórea, deslocou-me para um mundo de fantasia exasperante, fez-me o lascivo da atmosfera, o gozador das essências esparsas, o detalhador do imponderável, o empolgado da miragem da vida.

Emborquei tranquilamente o veneno que me tirava o apetite, e murmurei:

— Meu caro Oscar, tenho uma profunda simpatia por ti, em primeiro lugar porque és belo, em segundo porque tens espírito, em terceiro porque nem a beleza nem o espírito conseguiram reduzir-te à atroz banalidade de ser totalmente feliz. Daí o poder ouvir sem comentário todas as narrativas lindas com que me queres honrar. Esse teu desequilíbrio é de fato de uma psicologia muito sutil, muito trabalhada.

Oscar teve um gesto de impaciência.

— Quando digo! É tão inverossímil que ninguém acreditaria. Entretanto tens diante de ti o homem que analisa o seu tormento e não lhe resiste. Sabes que é o sentido soberano? O olfato, apenas o olfato. Sou como o escravo, o ergastulado do cheiro. Tudo é cheiro. É o cheiro que guia, repele, atrai, repugna, o cheiro é o condutor das almas. As nossas impressões são filhas do cheiro que atua como a luz e muito mais porque há cegos e não há ser vivo que não respire e não sinta o cheiro. O cheiro plasma, porque está no ambiente. Os caracteres dos homens são feitos de essências, as profissões dão aos entes certos e determinados cheiros. Vive oito dias numa casa de perfumes ou no boudoir de uma mulher galante, e as tuas idéias tomam o aspecto de idéias com pó de arroz, de idéias efeminadas, made expressely para uma certa roda pueril. Sente o cheiro dos marinheiros, com o cheiro do mar e três ou quatro escalas de cheiros de óleos refrescados pela viração larga. Um homem sensível não pode viver muito tempo nesses lugares porque o cheiro permanente dá-lhe como uma continuidade da visão oceânica e um estado trepidante que lembra a vagabundagem de grandes navios por mares ignotos. A alma dos entes revela-se pelo cheiro. A das coisas também, só pelo cheiro. Conheço os interiores das casas, o gênero, a classe das pessoas que as habitam pelo cheiro, como de olhos fechados dir-te-ei a casa vazia apenas aspirando-a. Posso mesmo dizer-te que cada cidade tem um cheiro próprio, e que eu os sinto ao aproximar-me, ao saltar no desembarcadouro, cheiros que conseguem dar a impressão geral dos habitantes, cheiros honestos, cheiros voluptuosos, cheiros de seio…

— Mas, realmente, é delicioso.

— É atroz.

— A hiper-acuidade de um sentido dirigida com estética. És o homem dos perfumes.

— Não me fales de perfumes, do perfume com a significação normal de extrato fabricado para o mercado. É outra coisa. Sou a vítima do cheiro. Para mim não há cheiros repugnantes, há cheiros desagradáveis. Tenho a sensualidade dos cheiros os mais diversos, do cheiro da terra, do cheiro da erva, do cheiro dos estábulos e do cheiro das rosas. Como comecei a sofrer desse desenvolvimento paroxismado do sentido olfativo? Sei lá! Não foi o perfume, foi a extensão vasta dos cheiros que não são perfumes. Em criança, antes de levar qualquer gulodice à boca, instintivamente cheirava-a de olhos cerrados, para sentir bem e prelibar deliciosamente o prazer de degusta-la. Depois, quando me tomavam ao colo, ao beijar-me, achava sempre meio de cheirar, de aspirar as pessoas agradáveis. Cada Pessoa tem um cheiro diverso. Na minha infância a perversão -se-lo-á de fato?- surgiu ensinando-me todo o pecado. Gostei da carne porque cada nuca é um pouco do olor da natureza, e há bocas que são como orquestrações de odores. Ah! esse tempo ainda ingênuo, esse tempo instintivo… Eu me envolvia nas roupas brancas que as raparigas já tinham usado, pendia para as cabeleiras com tal ânsia aspiradora, tinha uns modos tão pouco normais que a família se assustava e as raparigas achavam uma infinita graça. Ah! que pequeno vicioso! Elas diziam convencidas de que eu gostava apenas do cheiro das suas roupas. Não era, porém. A minha nevrose olfativa se acentuava cada vez mais, cada dia mais com caráter desabridamente sensual, e já rapazola, não distinguia o que me poderia conceder o prazer: a erva molhada, o cheiro dos estábulos, um cheiro de nuca, um cheiro de corpo, e já começava a sentir as cruciantes necessidades de certos cheiros, que eram tão violentas quanto a fome ou o amor. Então era preciso alhear-me, deixar a roda dos conhecidos, sair por aí a ver se descobria o cheiro que eu precisava, o cheiro que não sabia qual era, mas devia tranquilisar-me.

— Tinhas a obsessão de um cheiro nunca sentido?

— Exatamente. Ainda era romântico e até aos dezoito anos tentei com um pouco de literatura e alguns conhecimentos químicos, o prazer dos perfumes, dos cheiros artificiais. Arranjei catálogos, estudei longamente, tive baterias de perfumes em frascos de cristal, fiz como todo sujeito lido em livros franceses, a sinfonia dos perfumes, a alegoria dos perfumes, a pintura sugestiva dos perfumes, combinando essências, renovando as camadas de ar do aposento com pulverizadores cheios de misturas sábias ao lado de incensários a queimar olências exóticas. Era perturbador e era irritante. O meu olfato desejava, tal as marafonas que a sorte eleva ao grande luxo, excessos de natureza, virilidades de ambiente. Esses perfumes que as mulheres usam, esses perfumes com que vocês se civilizam e se friccionam são ignóbeis. Na composição química da enorme quantidade por mim aspirada senti apenas que poderia fazer um catálogo, dividindo em classes de almas a diversa temperatura: perfumes quentes, semi-oleosos, perfumes tépidos, perfumes frios. Os perfumes de Haubigant dão sempre a impressão de calidez, de calor opressivo. Os ingleses e os americanos fazem-nos frios, desses que a gente ao aspirar pensa em águas geladas e madrugadas hibernais. Meia dúzia de refinados franceses conseguem a meia temperatura, evolando-se lentamente. E há também os medíocres, os reles, os que lembram montras de boulevards em blefes de luxo e de conforto, elegâncias por todo o preço de armazéns duvidosos.

Quer uns quer outros, entretanto, acabaram por me fazer mal, dores de cabeça, apertões nas têmporas, uma impressão angustiosa de acachapamento. Mas era muito artista. Um amigo, de volta do Oriente, trouxe-me então uma coleção de perfumes. Eram maravilhosos. Andei doente e morno, com uma alma de serralhoe de mel por aspirar um frasco de essência de rosas. Esses perfumes entravam-me no crânio como estofos bordados de pedraria, como broqueis encrustrados de gemas coruscantes. Deixavam-me sonambúlico, com frases de antifonárioe sonhos de rosas de Shiraz, de Kernar, de Kashmir. Vi então que a minha doença não amava as concentrações mais ou menos industriais.

— Príncipe encantador, havia as flores…

— Sim, as flores, amei as flores, tateando na sombra do mal. As flores são as caçoulasdos perfumes naturais. A natureza condensa nelas o olor das suas paixões, a alma dos seus desejos, as recordações das tonturas, de frenesis ou de grandes repousos celestes. Não sorrias. O que eu sinto não o dizem palavras. É preciso descobrir frases prismáticas como certos cristais e vê-las à luz do sentimento, que percebe para além das coisas visíveis. Os deuses gostavam de perfumes; o perfume exorta e exalta. Porque lisonjear os deuses com perfumes, se não tivéssemos a idéia do sacrifício, do grande pecado da natureza, que ele representa? Há flores cujo perfume é cínico, outras cujo cheiro é banal, outras cujo olor se celestisa, outras ainda que nos dão desesperos de carne. É possível ter à lapela uma gardênia sem sentir cefalalgias horas depois? É possível cheirar certas rosas sem odia-las?

— Mas, meu querido, procuras apenas pretexto para dizer coisas infantilmente interessantes. Olha que antes de ti outros estetas falaram… Odiar as rosas!

— Sim! Odia-las. Há flores carnudas, as rosas rosas, as rubro negro como sangue coagulado, que a gente aspira, absorve o odor, cheira, cheira, e depois estraçalha com ódio porque prometem mais do que dão, porque deixam em meio o gozo, não nos completam o prazer anunciado pelo cheiro. Ah! essa aflição que dá aos sentidos o cheiro de algumas flores, as violetas, cujas emanações são como sons de violino em noites de luar, as tuberosas, crispantes de cio, as rosas chá que cheiram como carnes morenas, o resedá, a flor do resedá que o Fezensac cantou idiotamente num trocadilho e que entretanto guardam um frio e exasperante odor de gérmen fecundante, cheiro de marfim raspado… E, para notares a correspondência de cheiros idênticos nas coisas mais diversas, a flor que cheira a marfim, é também, cheiro resumo do cheiro inicial da vida, irmão odor do odor da semente criadora, estranhamente perdido entre as ervas…

Oscar caíra num abatimento. Eu começava a temer o delírio.

— Então, se não amas os perfumes que te fazem mal, se odeias as flores que te exasperam, em que consiste o desproporcional domínio do olfato sobre os teus sentidos? É decerto um estado de anemia, uma grande fraqueza que te adoece e te faz sensível aos odores. Não amas os cheiros, temes todos os cheiros desde que eles se especializam, se individualizam.

— Ao contrário, fez, de novo animado, ao contrário. Tenho entre mim e a vida comum um como véu de talagarçaespessa. E tudo quanto na vida se faz, eu sinto pelo cheiro, pelos cheiros, como um setter humano, amarrado à corrente da conveniência. É a existência de miragem olfativa, uma existência em que os cheiros visionam ambientes, descrevem as almas dos tipos que me rodeiam, dão-me sensações de cor, porque há odores de todas as cores; de sons, de músicas, porque cada cheiro é como um som diverso e o cheiro da baunilha é bem uma nota abemolada diversa do cheiro do cravo vermelho, esse sustenido de clarim; de gosto, porque os cheiros têm gosto; de excitação, porque todos os sentidos calcados por tamanha acuidade vibram a arcada furiosa de um desejo incompreensível, perpétuo, demoníaco, no meu pobre corpo. Oh! não estejas a olhar para mim assim irônico. Há uma íntima correlação entre as sensações do homem normal, que o faz amar a harmonia das coisas e o faz pensar na beleza esplendente. Quando ele ama e sente assim, na floração da arte, que é o arrimo da vida, minhando o seu pensamento sutil e vaga essa misteriosa afinidade entrelaça os sentidos, para que o homem sinta numa curva de anca a música das linhas, na carne de uma espádua o perfume da rosa, no entreabrir de um lábio o sabor dos frutos, na criatura que se desnuda o bruto. Desejo cego, caos das sensações… Quando é como eu, porém vítima de um só sentido, morbidamente absorve os outros e leva louco, no delírio perpétuo, a tentar reaver a harmonia.

— Daí…

— Daí, fez Oscar afastando nervosamente o cock-tail em meio, daí para a minha sensibilidade compreender que a natureza é inconsciente, que todos esses perfumes elas os espalhou brutalmente, desvairadamente, e que só um instante a razão lhe voltou, quando fazia a carne, quando criava a criatura, onde todos os cheiros da terra se encontram em suaves nuanças. O que eu amo é o olor da carne, sempre uma orquestração, uma sinfonia de recordações de outros cheiros, o cheiro das bocas, o cheiro dos cabelos, o cheiro das nucas, o estonteante cheiro das axilas… Há cabelos, sabes? que relembram o aconchego arminoso dos ninhos dos pássaros, cabelos em que a gente se perde como num imenso oceano de olências reparadoras, cabelos musicais que fazem pensar em manacás e em magnólias, cabelos que são o tecido de todos os cheiros reconfortantes. Há carnes douradas, carnes feitas de leite e de sangue de cerejas que ao aspira-las pensa um pobre no descanso dos bosques, em ragaes, em fraudas rústicas, em grandes abraços pagãos sobre as liras. E as bocas? Já reparaste nas bocas? Ha bocas quentes e frias, bocas sem cheiro algum, e bocas que quando falam junto a ti têm um cheiro intimo de rosa murcha, quando te beijam parecem feitas de pétalas de rosas, e quando as sugas transfundem a alma como uma essência especial que parece o mel feito de todos os perfumes dos campos. As criaturas são as ânforas da harmonia dos cheiros. Cada carne tem o seu corpo odico que é o cheiro, cada ser faz-me sentir a alma pela veste incorpórea do cheiro, desse cheiro que cada um tem próprio e jamais igual ao do outro, do cheiro que se procura para aquietar e amar…

— Realmente, com um pouco de toilette, cada qual faz o seu cheiro.

— Não! não é isso. Talvez pela toilette e a perfumaria sejam-me indiferentes as formosas mulheres que deixam rastileos de perfumes industriais e parecem feitas para os retratos de Heleu ou do Amoedo. Não as amo, porque, maceradas de essências, com os vestidos pulverisados de perfumes, a boca lavada por águas e pós brilhantes, os lábios carminados, a face empoada, são como os manequins da moda. O cheiro é a alma dos seres. Elas afogam a alma no artificial para encantar os simples, os brutais. Os meus instintos gelam-se, morrem em frente dessas baiadeiras mascaradas com a mascara transparente de outros cheiros. Houve um silêncio pesado.

— Ah! disse eu vendo a expirar a confissão, é grave…

Oscar olhou para mim, cândido como Adonis, e cansado como se sustentasse nos ombros o mundo.

— Por isso, murmurou, procuro -é horrível!- procuro as criaturas simples, as que não se perfumam, as que ignoram o postiço ignóbil da civilização, e guardam o próprio cheiro: as crianças, as adolescências rústicas, as criaturas que saem do banho brilhando mais e cheirando mais, os que não sabem se cheiram bem porque pensam que o cheiro é a falsificação dos perfumistas. Um lindo corpo, um corpo branco, cor de leite, que tem todos os suspiros campinos das boninas, dos mal-me-queres, das margaridas, o sonho casto das violetas brancas e o anseio tranquilo, o cheiro animal de qualquer coisa que se não sabe! Um corpo moreno, feito de um raio de Sol, guardando a carnação das rosas e o cheiro da lascívia!… Beijar corpos assim, aspira-los, aspira-los… É quando há a simpatia do cheiro, que é o irmanamento das almas. Tudo quanto toca a pessoa fica com o seu cheiro, o lenço esquecido, um pedaço de móvel. Parta ela, desapareça, cheira aquele pedaço. O poeta sensual já escreveu:

Ela andou por aqui, andou. Primeiro

Porque há vestígios das suas mãos; segundo

Porque ninguém como ela tem no mundo

Este esquisito, este suave cheiro.

E é. De chofre, à calentura do cheiro dela, uma onda de gozo nos transmuda, faz-nos reviver delícias e nevroses da gama que se acordava com o teu desejo. É a música mortal. Que digo eu? A roupa? Os trastes? Não! Basta o lábio cansado de roçar, basta o contato das mãos pelo seu corpo. Nós não conhecemos a própria alma porque não sentimos o nosso cheiro, enigmas para nós mesmos indecifráveis. O cheiro dos outros fica, impera. De volta de um cheiro amado, é cheirar as mãos e sentir o olor do amor como um velador nos próprios dedos. Ah! não! E dizer-te que eu uma vez, há quatro anos senti esse cheiro, o cheiro do meu amor, numa criatura miserável, dizer que não me lembro das suas feições pelo muito que me lembro da completa satisfação do meu desejo, dizer que nunca mais a vi, que a procuro, que a procuro e jamais a encontro… Como queres tu que eu ouça as conversas idiotas, como queres tu que pense noutra coisa? Vou em busca do meu perfume, do perfume que amo, da urna desse sonho, do corpo dessa alma. E degringolo a razão, a moral, o respeito da sociedade, rolo o abismo dos lugares pouco distintos, dou-me a relações pouco brilhantes, aspiro todos os corpos a espera de um dia encontrar o perfume incomparável, a essência doce dessa carne de ouro.

— Curioso.

— A mais rara moléstia que ninguém sabe.

De repente, porém, os seus olhos chisparam. Ergueu-se. Sorriu.

— Espera um instante.

Sumiu-se apressado. Eu também sorri então. Não voltada. Alguém passara que se parecera com o seu cheiro. Pobre rapaz! Talvez fosse na desvairada luxúria o grande sensual do ideal. E talvez não, talvez fosse um louco. Somos todos loucos mais ou menos. Foi então que vi serem oito horas. Como o personagem do poema, Oscar procurava novos perfumes no seu cheiro ideal e os prazeres não sentidos, sempre mais amargos e menos consoladores. Ergui-me. Já com toda a Avenida, centenas de lâmpadas elétricas acendiam a sua grande extensão no clarão da luz, – “a mensageira da verdade visível”.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 21 de janeiro de 2021

CATIMBAU (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

CATIMBAU

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

"BELÉM, 18 de janeiro - Os jornais desta capital noticiam a trágica morte ocorrida há dias nos campos da ilha de Marajó, município de Soure.

O destemido vaqueiro Narciso Viana, aí cunhado Catimbau, famoso domador de touros, prometeu â sua namorada que, em troca de um beijo, laçaria um touro bravio que esta lhe indicou.

Narciso perseguiu o animal, fez prodígios de equitação, rivalizando em rapidez com a destreza do touro. Afinal, atirou o laço, enrolando-se este acidentalmente, em torno do vaqueiro, que foi cuspido da sela. Estando a ponta do laço presa â cilha foi estrangulado o bravo sertanejo, sendo arrastado pelo cavalo cerca de légua e meia.

Os companheiros da fazenda do infeliz cavaleiro, conseguiram, depois de grande correria, apoderar-se do sangrento cadáver de Narciso Viana, entregando-o â sua namorada, que, involuntariamente, causara a sua morte

(Telegrama da Agência Americana).

Entre os vaqueiros do Campo-Alegre, a famosa fazenda marajoara, era Catimbau, sem dúvida, o mais destemido. À tarde, quando a campina, extensa a perder de vista, começava a cobrir-se da cinza tênue com que a noite polvilha o seu caminho, era ele o primeiro a esporear o cavalo na extremidade da planície, e a estacar, de repente, no alpendre da casa, o chapéu de couro para a nuca, o chicote na mão, disposto, após doze horas de campo, como se voltasse de um passeio domingueiro.

Era um caboclo forte e ágil. O rosto moreno, queimado de sol, que Os olhos risonhos alegravam, iluminava-se todo, quando com a dentadura sã, das raças primitivas. Toda a sua figura constituía, enfim, uma festa de bravura e de saúde, que enchia de inveja os homens e matava de paixão as mulheres.

Na sua vida de herói, filho e rei daquelas amplidões verdes, havia, contudo, tristeza secreta: a que lhe nascera há dois anos, pelo S. João, na festa do Aquiri, fazenda do Joaquim Inácio, quando conhecera a Rosinha, caçula do João Soares e o botão que ia ser, no ano próximo, a rosa mais linda, e mais fresca daquelas redondezas.

A filha do João Soares era o tipo clássico da cabocla paraense. Cabelo escorrido e longo, atirado em cascata para as costas; morena, como as rolas do terreiro; nariz correto e fino; olhos negros e úmidos; era, toda ela, candura e tentação. Duas cousas, porém, não saíam da imaginação de Catimbau: o colo farto da rapariga, arfante como as ondas do rio depois da "pororoca", e aquela boca miúda e vermelha, de uma mobilidade atordoante e que mostrava, ao menor sorriso, dois rosários de dentes pequenos, que eram, aos seus olhos de homem do campo, como pingos de leite no focinho rosado de um bezerrinho novo.

Beijar aquela boca, sugar aquelas gotas de leite, tornara-se para o vaqueiro a maior ambição do seu destino. Para ver a rapariga, mesmo de passagem, viajava cinco léguas, três vezes por semana. Para isso, inventava os pretextos mais ingênuos: ora perseguição a um garrote da fazenda, tocado à força naquela direção, ora a caça a uma novilha que ele sabia onde se achava, mas que ia procurar, sempre, para as bandas do João Soares. E cada uma dessas vezes, eram horas perdidas de conversa no alpendre: ele, escanchado no cavalo, o cotovelo esquerdo pousado na lua da sela, a curva da perna direita dobrada, em posição de descanso; ela, feliz, assustada, risonha, esmagando os seios virgens na tábua escura do parapeito.

A despedida era todo um poema de ternura que, quase, não tinha fim. A mão na mão, os olhos nos olhos, ficavam assim minutos seguidos, sem uma palavra nos lábios. Até que, fria, trêmula, numa sacudidela violenta dos nervos, Rosinha pedia, fechando os olhos e soltando-se violentamente da férrea pressão dos seus dedos:

— Ande... Vá embora!

E, esporeando o cavalo, em dois corcovos, o caboclo partia.

Certa vez, a voz cortada pela emoção, Catimbau resistiu:

— Não vou!

E enunciando um desejo que lhe estava, de há muito, no coração:

— Só irei se você me der um beijo!

A resposta, dessa vez, foi uma carreira, rápida, de veadinha arisca, para o interior da casa. De outra feita, porém, Rosinha prometera, corando:

— Olhe, agora, não... Pelo Natal... Pelo Natal eu dou... Serve?

— Olhe lá, hein? Promessa é promessa! observou o vaqueiro.

De agosto a dezembro o pensamento de Catimbau não se prendeu a outra cousa. Agitada pela esperança da felicidade, a sua imaginação galopava mais que o seu cavalo. Para que o beijo prometido fosse mais doce, e não comprometesse outros, pela repugnância talvez despertada na rapariga, deixara de fumar. Para perfumar a boca alimentava-se de coalhada e comia, no campo, das frutas mais cheirosas da ilha. E foi assim que, com o coração aos pulos como um potro bravo, chegou, enfim, ao mês do Natal.

O dia da Conceição, oito de dezembro, era de festa, de novo, no Aquiri. De toda parte da ilha iriam vaqueiros e moças, para a festa de Nossa Senhora. E lá estaria, também, a Rosinha, cuja beleza se acentuava à medida que se tornava mulher e o amor penetrava, como uma aurora, aos abismos floridos da alma.

Quando Catimbau chegou à fazenda do Joaquim Inácio, a casa já estava cheia de gente. Dançava-se na sala, no alpendre e, na cozinha. Ao ver, de longe, o movimento dos pares, o coração do caboclo apertou-se. Rosinha estaria dançando? E com quem? Ao aproximar-se, porém, da casa, a alma se lhe desabrochou no rosto franco, num sorriso de felicidade: resistindo às solicitações dos outros rapazes, Rosinha estava a um canto do alpendre, à sua espera. À tarde, com o sombrear da campina, os convidados saíram, todos, para o alpendre para o terreiro. Para aguardar a noite, e dar um pouco de repouso aos músicos, sugeriu-se uma pega aos novilhos. E a idéia recebida com uma salva de palmas pelas mulheres, e por um gesto de entusiasmo pelos vaqueiros, sempre dispostos a pôr em evidência a sua bravura na carreira e a sua destreza no manejo do laço.

Em frente à casa, a uns cinqüenta metros, ficava o curral, onde uma pequena boiada que chegara pela manhã aguardava o dia seguinte para continuar a viagem, rumo do Soure. Estalando os chifres, amontoando-se ora a um canto do cercado, ora noutro, as reses permaneciam de pé, sem repouso. À menor aproximação de uma pessoa, agitavam-se todas em redemoinho, na previsão instintiva da fatalidade iminente.

Um dos vaqueiros encaminhou-se naquele rumo, para escolher um barbatão. A porteira entreabriu-se, e o primeiro boi que estourou no pátio, foi um garrote alvação, de chifres tortos e pescoço de touro precoce. Ao sentir-se em liberdade, o animal estacou, irresoluto, como se procurasse destino. Ao ver, porém, a poucos metros um vaqueiro que corria ao seu encontro, atirou-se pela planície em carreira desabalada, levando na esteira, cada vez mais próximos, cavalo e cavaleiro. Este era Ventania, campeiro famoso da fazenda Água-Doce, e rival, nas "pegas", do Catimbau.

Curvado para diante, apoiado apenas nos estribos, em poucos segundos o rapaz alcançava o garrote, emparelhava-se com ele, segurava-lhe a cauda distendida na carreira, enrolava-a na mão, e, num movimento súbito, atirava o animal ao solo, pulando-lhe em seguida em cima, paralisando-o de focinho no chão.

 Catimbau!... Catimbau!... - gritavam as moças e os outros vaqueiros, partidários do campeiro do Campo-Alegre.

Ao lado da namorada, o caboclo mostrava-se indiferente a tudo aquilo. Que lhe importavam a glória, a fama de vaqueiro, se ele possuía, ali, o coração da Rosinha? Que o Ventania lhe arrebatasse todos os louros, mas deixasse aqueles, de homem que ama, e que é amado... Ademais, enchia-lhe a alma um pressentimento doloroso. Parecia-lhe que, se saísse dali, do lado da noiva, lhe aconteceria alguma coisa.

A sua indiferença ao feito do outro começava, porém, a causar estranheza. Onde estava, então, a sua coragem tão proclamada? Os partidários do Ventania principiavam a sorrir, vitoriosos; os amigos Catimbau murmuravam, contrafeitos. E quem deu por isso, por essa atmosfera de prevenção que se formava, foi Rosinha.

— Por que você não vai? - indagou, mimosa.

 Para não sair de junto de você.

— E se eu lhe pedisse que fosse?

— Eu ia... Mas, com uma condição... Que você me desse hoje o beijo que me prometeu para o Natal...

A moça ficou toda vermelha. As orelhas pequenas tornaram-se-lhe de lacre, como duas cristas de galo garnizé. Meditou, porém, um instante. A fama, a nomeada, a dignidade de vaqueiro do seu namorado, do seu noivo, do homem que era o seu orgulho, estavam em perigo. E foi resoluta, decidida, que, numa violência sobre si mesma, prometeu:

— Eu dou... Vá...

De um arranco, pulando sobre o parapeito, estava Catimbau escanchado no seu cavalo castanho, o sorriso nos lábios, um brilho estranho nos olhos, o laço enrodilhado no arção. Uma salva de palmas cobriu-lhe o gesto inopinado.

— Solta o touro! - gritou o caboclo.

Um momento mais, e, arrancando pela porteira meia-aberta, sacudindo-lhe os paus para os lados, irrompia no campo a maior peça da fazenda, um touro negro, de sangue crioulo, que, após vários meses de vida arisca e selvagem, havia sido, na véspera, recolhido ao curral.

Pernas estendidas, o corpo ligeiramente vergado para a frente, as mãos na rédea, o olhar de ave de rapina que espera a passagem da presa, a corda do laço pendente da sela, Catimbau aguardava o arranco do touro. E quando o bicho estourou fora da cerca, só se ouviu uma dupla exclamação, rápida, seca, repentina, como um grito de guerra:

— Upa!... Upa!...

E o cavalo partiu, depois de dois galões, com uma assombrosa elasticidade dos músculos, no encalço da fera.

Levando o touro uma vantagem de trinta metros, o cavaleiro alcançou-o, em dois segundos. Negaceando, virando, torcendo, o boi dificultava a pega, que o próprio vaqueiro evitava, preferindo demorar a batalha para dar maior campo à variedade da destreza. De repente, no meio da várzea, em uma grande manobra elegante, Catimbau deixou o touro distanciar-se.

— É o laço... É o laço!... exclamaram todos, que conheciam, ponto por ponto, os processos do vaqueiro famoso.

E não se enganavam. Ao fundo da planície imensa e verde, que se tornava azul na proporção da distância, o touro e o cavalo eram como duas formigas em uma grande bandeja de esmeralda. Arrancando o laço à ilharga da sela, sentindo-lhe a extremidade bem amarrada ao arção, Cabimbau cravou as esporas no cavalo, apertou os joelhos à barriga do animal, e soltou o grito clássico do momento de perigo:

— Ecôoo!...

Compreendendo o sinal, cavalo e touro dispararam no máximo da velocidade e do esforço. Duas flechas que cortassem o ar, impelidas pelo arco de um gigante, não seriam mais rápidas. Não era uma carreira: era uma vertigem.

— Ecôoo!...

A cinco metros da rês, viu-se, ou imaginou-se ver, do alpendre, a corda rodar, num círculo, sobre a cabeça do vaqueiro. E a um impulso violento, justo, certeiro, aquele arco partiu, rodou, desceu, indo cair, preciso, sobre a cabeça do touro.

— Laçou!... Laçou!... - gritaram vozes nervosas, no alpendre e no terreiro.

Súbito, a corda esticou. Dir-se-ia que ia partir, rebentar, estalar. Cavaleiro e touro, ao choque formidável, estremeceram, sem parar. Mas, a este choque, correspondeu uma nova cena imprevista: o corpo de Catimbau, arrancado da sela num salto sinistro, foi postar-se, de pé, entre o touro e o cavalo!

— Nossa Senhora! ...

— Meu Deus... - gritaram quarenta vozes, no alpendre.

As mãos nos olhos, as mulheres não queriam ver. Olhos arregalados, porém, os homens compreenderam tudo: ao atirar a corda, esta dera volta em torno ao pescoço do vaqueiro, o qual, ao esticar o laço, fora arrancado da sela, estrangulado!

Ao longe, na campina, o touro e o cavalo presos um ao outro pela corda distendida continuavam a correr, em direção à mata distante. E, de pé, sustido pela corda, arrastado como um bólide, pela várzea, corria, também, com eles, o cadáver do vaqueiro.

Cavaleiros partiram, céleres, com estrépito, em uma nuvem de poeira. Ao alcançarem o touro e o cavalo, estes aproximavam-se da mata misteriosa, mas, já sem o companheiro sinistro. A cabeça do vaqueiro foi encontrada primeiro, coberta de sangue e terra. O corpo foi achado depois.

Uma hora mais tarde, a cabeça decepada de Catimbau recebia na boca sangrenta, no alpendre da fazenda, diante dos companheiros comovidos, o seu prometido beijo do Natal...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 20 de janeiro de 2021

MARIA PINTADA DE PRATA (CONTRO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

MARIA PINTADA DE PRATA

Dalton Trevisan

Escritor paranaense, Dalton Trevisan renovou o conto brasileiro, dando-lhe um estatuto próprio. Dono de um estilo objetivo e seco, desnuda em seus contos as pequenas tragédias do cotidiano. Seus personagens atormentam-se e destroem-se, perdidas entre os atos banais de uma existência vazia e medíocre.

Ou seja, num estilo que parte dos lugares-comuns da linguagem urbana brasileira, recriados pela introdução de originalíssimas metáforas, Dalton Trevisan conseguiu criar uma marca própria como ficcionista. Mas o que verdadeiramente fascina em seus contos é a construção de um cenário comum para os mesmos: Curitiba. Cidade feroz - símbolo de todas as grandes cidades brasileiras - em suas ruas mal-iluminadas as pessoas espreitam as outras, em busca de uma companhia para a noite. Alguém já disse que na Curitiba de Dalton Trevisan as pessoas vivem apenas para o amor.Apenas que esse amor curitibano não tem nada a ver com aquele amor que pressupomos autêntico. A humanidade gerada pelo ventre disforme de Curitiba não tem autenticidade: sua forma de amar é degradada, feita de erros, instinto bestial, medo, ressentimento, tédio, traição, vingança e crime.

O conto:

Grandalhão, voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria - ambiciosa, quer enfeitar a casa de brincos e teteias. Ele ganha pouco, mal pode com os gastos mínimos. Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a roupinha dos meninos, costura as camisas do marido. Inconformada porém da sorte, humilhando o homem na presença da sogra.

Para não discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe agarra a ponta do paletó:

- Não vá, pai. Por favor, paizinho.

Comove-se de ser chamado de paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um grito castanho de ódio.

- O paizinho vai dar uma volta.

Tão grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável, atropelando as palavras, é o palhaço do botequim. E, pior que tudo, sente-se desgraçado, quer aconchego do corpo gostoso da mulher.

Mais discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito pintada e gasta pelos trabalhos caseiros. Desespero de João e escândalo das famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho as mil marchinhas de carnaval. Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelhas e encurtar a saia - no braço o riso de pulseiras baratas.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 19 de janeiro de 2021

O PÁROCO (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

O PÁROCO

Coelho Neto

(Grafia original)

A noite, esparzida de astros, silenciosa e morna, corria triste, sem os rumores dos outros anos, quando era vivo o venerando pároco centenário que fazia despertar a aldeia religiosa com a voz sonora do grande sino e com os repiques festivos das campanilhas.

 

Ia passar despercebida a grande hora da alva redentora em que Jesus nasceu. Campos desertos, choças apagadas, eiras emudecidas; apenas um ou outro campônio, saudoso do velho tempo, abria a porta da cabana para olhar os muros brancos do presbitério vazio, ou passava por entre as ramagens sob o esplendor infinito da noite constelada, como o espectro errante da alegria extinta, tocando tristemente a viola.

O luar escorria pelas árvores alvo e diáfano, tornando de prata a água lisa de um lago, onde o gado descia a beber. A igreja fechada, branca, muito branca, era como uma miragem feita pela claridade do luar. Mas que diferença dos outros anos! Àquela hora, as portas escancaravam-se exalando o aroma santificante dos turíbulos, e o campo enchia-se com o clangor dos hinos do povo que saudava, no berço de palhas do presepe, o louro Jesus nascido, deitado, com simplicidade, entre a vaca e o jumento. Que diferença dos outros anos! Quem tivesse ouvido a palavra trêmula do velho pároco, narrando, ao fim da missa, diante do pequeno estábulo, o mistério de Belém: como nascera de Maria Sempre Virgem numa creche, para exemplo dos homens, Jesus, o Rei dos Reis, a Misericórdia Suprema – teria saudades diante de tamanha tristeza.

Nos currais fechados, o gado, adivinhando a lúcida manhã, mugia profundamente. No céu puríssimo resplandecia radiosa a estrela-d’alva.

Um galo solitário cantou num quintalejo; e, súbito, o som profundo e grave do grande sino quebrou o silêncio melancólico da noite natalícia, e logo romperam, em bimbalhada estrídula, todas as campanilhas, justamente como nos outros anos quando era vivo o venerando pároco…

De repente abriram-se as portas das cabanas; e campônios atônitos apareceram nas soleiras em leves roupas, as cabeças nuas, com lanternas erguidas alumiando a noite.

As portas da igreja, abertas de par em par, deixavam ver o interior resplendente de luzes.

O espanto foi grande entre os rústicos, e nenhum ousou aventurar um passo, posto que os sinos continuassem a soar festivamente.

Foi um boiadeiro quem primeiro falou:

– Deve ser alguém da vila que faz soar à missa para trazer-nos recordações do pároco, fazendo que não passe em silêncio a noite santa de Deus!

Os sinos repicavam a mais e mais, e já, em frente da igreja, havia uma esteira de luz dourada que os círios alastravam.

– Se fôssemos? – propôs o boiadeiro.

Voltaram todos em busca dos gabões e dos cajados, e, reunindo-se, com os olhos sempre fitos na igreja iluminada, foram seguindo em grupo cerrado, lentos, tímidos, parando de instante a instante, assustando-se ao mínimo ruído.

Ia à frente o boiadeiro, batendo fortemente com o cajado para animar a turba.

Longe, pelos quintais, ao frescor da madrugada, cantavam mais vivamente os galos.

De repente, um grito atroou no grupo: o boiadeiro, que ia à frente, caíra de bruços junto às escadas da igreja, clamando. Nem um só homem atreveu-se a avançar para acudi-lo: e só quando o viram erguer-se com os braços alçados, brandindo o cajado grosseiro, foram caminhando.

– O pároco! O pároco! – bradava o boiadeiro, subindo tremulamente os degraus. E os homens, que haviam corrido, extáticos, parados, balbuciavam, com os olhos postos no altar da igreja: – O pároco que morreu! O pároco!

Começava a missa de Natal.

Junto ao altar, revestido dos hábitos religiosos, estava um velhinho pálido, inclinado sobre o livro santo, as mãos juntas, orando. À sua esquerda, fúlgido, com um esplendor sideral, um anjo de asas cerradas, ajoelhado, agitava um turíbulo; outro, à direita, todo num grande nimbo de luz, acolitava.

Nada se ouvia. De vez em vez o oficiante voltava-se para abençoar os campônios, e as suas pupilas fulguravam.A pouco e pouco foi-se enchendo o templo; havia montes de cajados à porta.

Os anjos passavam de um lado para outro lado, sem tocar o solo, aereamente, num adejo sutil.

Finda a cerimônia, a bênção do sacerdote caiu sobre todas as cabeças; e ele, lentamente, como nos outros anos, desceu para o meio da turba, e, flanqueado pelos anjos, fez a prédica consoladora, narrando o poema da simplicidade, paternalmente, com a palavra pausada e meiga. Por fim, passando pelos grupos, mais pálido do que o luar que ainda alumiava, ia dando a beijar a mão gelada; e viram todos o santo e venerando padre alçar os braços em ofertório; depois voltou-se, e ficou muito tempo a olhar a vila; e uma lágrima silenciosa desceu-lhe pela face branca. Ajoelhou-se, curvando a fronte, e todos imitaram-no.

Quando os campônios levantaram os olhos, os sinos tinham emudecido no campanário, e, pelas tábuas do templo, havia estrias douradas de sol. O pároco e os anjos haviam desaparecido.Entreolharam-se os campônios; e o boiadeiro, tomando o cajado, indagou:

– De onde terá vindo? De onde terá vindo?

– Do túmulo, decerto! – disse uma velha a tremer.

– Do céu – disse um pastorinho; – não há anjos na terra.

– Mas ele chorou – disse o boiadeiro -, e não há lágrimas no céu.

– Saudades talvez! – falou alguém no grupo.

Então, o boiadeiro, fazendo o sinal-da-cruz, suspirou:

– Se há saudades no céu, bem triste deve ser a vida eterna!

– Bem triste! – suspiraram todos.

E o boiadeiro ajuntou:

– Bem disse ele, antes de expirar, que havia de estar sempre conosco, acompanhando-nos em nossas dores e em nossas alegrias! Bem o disse ele antes de expirar. . .

– Sempre estará conosco protegendo-nos à nossa mesa, à beira de nosso leito, junto ao sepulcro em que ficarmos! – disse um sertanejo.

E todos, movidos pelo mesmo sentimento, levantaram para o céu os olhos agradecidos. A manhã de Jesus resplandecia .
……………

E eis por que não tem pároco a Igreja de São José do Monte: o presbitério é o céu, e o pároco é sempre o mesmo, que desce em espírito, para abençoar as almas e as campinas.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 18 de janeiro de 2021

FAZ DE CONTA (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

 

FAZ DE CONTA

Clarice Lispector

 

[Pintura 'SEM SENTIDO' de Clarice Lispector em 1975]

Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que vêem, faz de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta que tudo o que tinha não era de faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a guiava pela floresta de açudes e tranqüilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando.

Literatura - Contos e Crônicas domingo, 17 de janeiro de 2021

A CRUZ DA MATRIZ (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

A CRUZ D AMATRIZ

Raul Pompéia

(Grafia original)

 

A igreja Matriz de *** está distante uns cinqüenta passos do povoado...

É um edifício pobre de arquitetura, mas rico dessas arborizações cor de limo, que a humanidade pinta pelas paredes velhas, como que para suavizar o colorido deslumbrante de uma caiação primitiva. Tem por campanário uma espécie de sótão. Este sótão sobressai no vértice do ângulo de duas cornijas oblíquas, que sobem a unir-se aos pés de uma cruz de ferro escalavrado por uma oxidação antiga. À janela anterior dessa torre está suspensa uma sineta, que atira badaladas alegres aos ecos do sertão quando soa a hora da missa.

Galga três pedras amontoadas, como degraus, quem pretende ter ingresso no santuário. Vê-se então, em uma nave modestíssima, que os esforços dos fiéis conseguiram assoalhar sofrivelmente.

O altar-mor levanta-se fronteiro à entrada. Em nada destoa do aspecto geral da matriz. A cada lado desse altar existe uma portinha. A da direita dá para. um terreiro; a do lado oposto comunica com a sacristia. Triste sacristia que é! Calçada de ladrilhos desnivelados, tem por mobília dous bancos, a que o tempo tirou quase todo o verniz, e um armário, sobre o qual se vê uma imagem poeirenta da Virgem e dous castiçais azinhavrados, de cujas bordas pendem longas estalactites de cera amarela.

A sacristia tem uma janela e uma porta, que se abrem para um terreno plantado de girassóis.

Entre a janela e a porta está um dos bancos de que falei. É aqui que o velho vigário C... passava as suas manhãs e tardes. Manhãs e tardes de tranqüila meditação, inspirada menos pelos segredos da ciência, que pelos mistérios da fé. Nesse lugar era visto, os olhos no chão e o pensamento no céu, deixando cair dos joelhos as mãos abandonadas, ou mergulhando os dedos por meio das franjas argentinas, que alguns dissabores e alguma idade lhe haviam feito brotar da fronte.

Ao lado do pároco aparecia às vezes o sacristão. Brício chamava-se ele. Era um rapazola travesso. Os seus treze anos nutriam nele pronunciada disposição para a brejeirada, que, conquanto inofensiva, desgostava bastante o bom do vigário. Diziam uns que o sacristão era afilhado do respeitável sacerdote; outros, porém, os maldizentes, em maior número certamente e, porventura, menos longe do verdadeiro, afirmavam que os afixos do qualificativo eram mero disfarce de um velho pecadinho do vigário.

Milhado, ou não, o certo é que Brício era paternalmente amado pelo padre. Este, não obstante o seu amor, via-se freqüentemente forçado a apertar-lhe a orelha, quando o pequeno por qualquer forma fazia conhecer a decidida preferência que dava a um alçapão sobre a campainha. De fato, o menino gostava mais de espreitar, no mato, qualquer volátil do que responder ao Dominus vobiscum, no altar. Era mais passarinheiro do que sacristão. Isto causava certo desgosto ao pároco e o fazia murmurar:

— O brejeiro é levado.

Estes termos traduziam a irritação do sacerdote, pequena trovoada que, descarregando-se às vezes pelas orelhas do brejeiro, se desfazia logo no mais bonançoso esquecimento.

As vezes que as travessuras de Brício ficavam impunes, devia-as ele a um refúgio que possuía, inacessível às punições, pelo menos às do vigário. O refúgio era a torre, ou antes, o sótão da Matriz. Com efeito, o padre C... não era muito idoso, mas... sofria de um reumatismo, que não consentia que ele, na torre, ouvisse de mais perto o repicar do bronze. Uma vez, pois, no campanário, tinha Brício as orelhas livres dos dedos do vigário.

Pela manhã, quando aparecia o padre na sacristia, se o sacristão era detido, passava este os mais desagradáveis instantes da sua existência. Além da missa, que ele ajudava com alguma paciência, outros tormentos lhe eram marcados. Ora, eram dois pombinhos que chegavam a ligar-se perante Deus, ora, um pequeno candidato a um lugar na arca da salvação... E Brício era forçado a postar-se estupidamente ao lado dos pombinhos e ao lado do candidato.

O sacristão vingava-se. Resmungava contra matrimônios e batismos, que tanto tempo lhe roubavam à caça de passarinhos. Se lhe metiam nas mãos alguma vela, partia-a em pedaços, que só o pavio não deixava cair. Estas vinganças eram as brejeiradas com que o vigário menos simpatizava. Eis porque, depois de qualquer ato religioso, uma cabecinha esperta mostrava-se nas janelas do campanário... Lá estava o sacristão esperando que o padre C... esquecesse o seu delito. E pouco esperava.

À tarde, já feitas as pazes com o vigário, Brício o deixava no banco da sacristia. Trocava então o ambiente de flores em decomposição, que tresandavam as melancolias da Matriz, pelo ar puro dos descampados, tão cheio desse perfume indefinível das últimas como das primeiras horas do dia. Ia para o campo armar esparrelas aos pássaros ou rachar taquaras e fazer gaiolas para os íncolas miúdos das selvas.

Uma vez, era ao descair de um belo dia. As cambiantes roxo-negras do crepúsculo vinham ganhando o anilado celeste. As tintas de ouro do Ocaso expiravam afogadas em róseos vapores...

Nessa hora alguns campônios contentes seguiam pela estrada de.... Iam da povoação para a matriz. Havia entre eles duas mulheres, uma das quais carregava risonha uma criança nos braços. A criança ia batizar-se.

O préstito caminhava... De repente parou... Uma exclamação de raiva partira do meio dos silvados, que margeavam o caminho.

Os campônios olharam em redor, talvez assustados. Um menino lhes apareceu então, mergulhado até a cintura em montes de mato rasteiro.

— Ora! dizia ele irado. Espantaram o meu passarinho!

Os rústicos que, sem o saber, haviam afugentado uma avezinha, no momento em que se ia deixar prender pela armadilha do pequeno caçador, riram-se da exclamação e seguiram para a igreja.

Entretanto, o menino aproximou-se da sua armadilha. Estava intacta; porém o passarinho, prestes a cair, voara embora.

Franziu o senho e pôs-se a olhar alternadamente para o seu alçapão vazio e para o grupo de camponeses, que seguia para a matriz.

Ah! uma boa pedrada!... murmurou ele, com os dentes cerrados.

— Mas não! disse, depois de refletir. Vão batizar o filhote. Não é assim?... Muito bem... Ficarão sem sacristão.

Brício, pois o caçador não era outro, tinha formado o seu plano. Na ocasião em que o batizado chegava à igreja, o sacristão entrava no povoado.

Encaminhou-se este para a casa onde moravam ele e o vigário. Não quis entrar. Assentou-se na soleira da porta e aí ficara alguns minutos, quando um seu amiguinho chegou correndo e gritou-lhe.

— Brício, fuja! O Sr. vigário está lá em casa a perguntar por você e provavelmente virá aqui, vá esconder-se... Ele está furioso... Diz que você o deixou sem sacristão...

Brício soltou uma gargalhada franca e ruidosa:

— Ah! disse ele. Não tiveram sacristão. Nada mais justo...

O amiguinho do sacristão arregalou os supercílios com um ar pasmado.

— Não me entende. Não é?... Eu te explico... Um passarinho, antes de recolher-se ao ninho, pousou no meu alçapão... lá no caminho. Estava a cair, quando uns tratantes apareceram, levando um pequeno para batizar-se. Espantaram-me o passarinho e riram-se de mim... Agora eu rio-me deles... Espantando o passarinho, espantaram o sacristão... Bem feito! Não acha?

— Bem feito! Bem feito... Mas o mau é que os tais do batizado brigaram com o Sr. vigário, por faltar o sacristão, e juraram que se haviam de mudar da freguesia para não voltar a uma igreja tão...

— Oh! oh! Que logro!

— Sim! mas o Sr. vigário está seriamente zangado por isso... com você... E fuja, Brício! Aí vem gente!

Brício sumia-se por um lado, quando por outro mostrou-se o padre C... voltando uma esquina.

Ao ver o amigo do sacristão, o sacerdote dirigiu-se a ele:

— Você viu o Brício?

— Não, senhor, respondeu o menino.

E se afastou do padre, que ficou mordendo o beiço, ante a mentira do pequeno.

— Este é outro, disse ele, a meia-voz. Pensa que eu não ouvi-lhes a conversa...

Tinha já Brício chegado à igreja e se acomodara na torre.

Dentro em pouco avistou, caminho da matriz, o vigário

Vinha devagar, por causa da sua moléstia. Brício teve então umas das suas lembranças... E com elas havia várias vezes apaziguado o sacerdote.

— Bom, disse consigo, ele me há de avistar... Se me mandar descer, eu direi que apanhei um reumatismo que não me deixa andar quase... Ótima razão!

É a mesma que ele tem para não subir. O reumatismo que não o deixa subir, porque não me impedirá de descer?... Mais tarde descerei sem receio...

No princípio de uma cólera, qualquer cousa que devera fazer rir, irrita mais ainda. No fim sucede o contrário: extingue-a de todo.

Parece que o sacristão sabia disto, que cuidou em preparar-se no campanário. Saltou pela janela da frente curvando-se para não esbarrar na sineta, e passava para cavalgar no ângulo das cornijas do frontispício da Matriz, onde seria facilmente visto, apesar da noite que entrava...

Então, debaixo da estrada, se fez ouvir um grito de terror.

Era o vigário C...

Sucedera uma cousa horrível.

O pobre sacristão escorregara para fora e, fiando-se demasiado na segurança da cruz de ferro, agarrara-se a ela. O ferro oxidado vergou, inclinando-se para a frente, e depois abaixando-se.

Brício, com as mãos pregadas na cruz com uma energia desesperada, pedia socorro... suspenso no ar.

A cruz se ia entortando lentamente. Se Brício fosse pesado, o seu suplício não duraria tanto.

O ferro começou a rachar-se.

O menino, aterrado, via como avançava a morte, e ouvia os gritos do pároco abaixo dele...

O mísero vigário estava fora de si. Tinha querido subir ao campanário. Não pudera. Colocara-se então por baixo de Brício e, com os braços abertos, esperava neles recebê-lo.

— Brício! Brício! gritava.

E o ferro da cruz, primeiro devagar... depois, rápido... partiu-se.

Daí a pouco estava no adro da Matriz de*** um pequeno cadáver... A cabecinha, descansada nas lajes da escada, pendia um pouco para trás, com os cabelos a nadar em sangue... O corpo estendia-se inerte sobre a terra, uma das mãos encostada aos olhos, a outra segurando-se a uma cruz de ferro... Era o sacristão Brício.

A porta da igreja estava aberta. A noite enchera de trevas o santuário... Apenas no fundo luzia o clarão baço da alampada, com essa expressão sepulcral e triste que se descobre no olhar do moribundo... E este clarão, flutuando naqueles negrumes, deixava ver no meio da nave uma sombra negra.

Dir-se-ia um espectro...

Mas o espectro falou:

— Malfadada criança!

E depois com entonação soturna.

— Eu pecara, meu Deus... E tu me puniste!

Estas vozes perderam-se pelos recantos do templo, e a luz da alampada tremulou como em soluços.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 16 de janeiro de 2021

CORAÇÃO (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

CORAÇÃO

João do Rio

(Grafia original)

 

Quando chegou a casa para almoçar, João Duarte soube pela criada que a menina ardia em febre. Nem descansou o chapéu. Precipitou-se no quarto onde a pequena Maria, numa grande cama, estendia o seu corpinho ardente.

— Que tens, minha filha?

Maria não respondeu. Apenas agitou a cabeça como se a incomodasse qualquer coisa no pescoço, e tinha a pele de brasa, a pele que parecia fogo.

— Como foi? Como foi? perguntava o pai, curvado sobre o leito. Comeste decerto alguma coisa que te fez mal. Uma fruta decerto? Com este calor, louquinha, com este calor! Mas vamos mandar a Jesuina ao médico. Ele vem já, dá-te umas drogas, e ficas outra vez boa, pois não?

Saiu para a sala de jantar, escreveu á pressa um bilhete.

— Leva já isso ao doutor Guimarães. Depressa.

— E o senhor não almoça? Está pálido.

— Não, perdi a fome. Esta Maria! Decerto fez alguma imprudência. Anda, vai. Diz-lhe que venha imediatamente. Que te parece a doença da Maria?

— Oh! meu senhor, uma das doenças da menina. Oito dias, e sara.

João Duarte forçou um sorriso de esperança e de novo foi-se ao quarto. A pequena continuava numa ânsia, a mover a cabeça, os olhos fixos, uma vermelhidão na face, os braços também vermelhos. João aconchegou-lhe as cobertas, apalpou-a, teve vontade de tirar o cobertor ao mesmo tempo que lembrava ir buscar mais outro, abriu as cortinas das janelas, olhou fora sem ver o movimento da rua, tornou à filha, beijou-a, passeou nervoso, sentou-se à beira da cama, ergueu-se, apanhou uma cadeira, suspirou, quedou-se com uma dor indizível a olhar a pequena. Era sempre assim, era sempre aquele excesso. A sua filha, a sua querida filha! João Duarte era um pobre professor de matemáticas, com uma larga fronte e um gênio arrebatado. Diziam-no de grande talento os discípulos, posto que bastante original. Filho de uma família rica e de raízes nobres, viu-se aos treze anos, ao cursar o primeiro ano da Escola Central, na miséria, porque o pai morrera de congestão em véspera de certa combinação da Bolsa e os sócios, irmanados na infâmia, haviam absorvido com descaro toda a fortuna. João entregou a parte que lhe cabia dos restos da herança às irmãs e continuou só a estudar, ensinando para viver. Os amigos acharam excessivo o gesto do rapaz. Ele nem sorriu -porque sentia na sua alma um desejo infinito de amar e dedicar-se.

— São minhas irmãs! dizia.

Naquele tipo de matemático, havia um ser excepcional, o estofo de um santo? Quem sabe?

Ele resumia a vida no amor que se entrega suave e sem mácula, e enquanto através do seu curso brilhante, lentes e condiscípulos vaticinavam-lhe o mais brilhante futuro, pensava em criar uma família, em ter um lar para ter alguém seu e inteiramente dedicar-se, velando, cuidando, sendo a causa dos prazeres, o principio das alegrias de alguém. Casou com uma pequena de família humílima antes de terminar o curso. Era um colégio gratuito em que meia dúzia de rapazes ensinavam meninas pobres. Ela aparecera aos treze anos, pálida, com as mãos bem tratadas, um sorriso de resignação nos lábios. Ele indagou da família, e certa vez em aula:

— Menina, queres casar comigo?

Toda a aula riu, achando graça na pilhéria do senhor professor. A pequena ficou mais pálida e duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces brancas. Ele foi dali à casa da mãe, uma senhora viúva de gênio irascível, que vivia com três filhas honestas a fornecer comida para fora.

— Mas, senhor doutor, está louco! Minha filha tem treze anos apenas. É uma criança.

— Não importa. Espero até aos quinze, mas fica noiva.

A mulher desconfiou a princípio e negou-lhe entrada. Ele começou a presentear a criança, e dar-lhe dinheiro entre as folhas dos livros mandados à velha, de quem sabia as necessidades, a enche-la de cuidados, num exagero que a assustava. Era um amor mais de pai que de noivo, um amor sem desejo de carne, espiritual e enorme. Ela foi a pouco e pouco acostumando-se, vendo nele o protetor, menos que o apaixonado. Certa vez, ao entrar na aula, recebeu a primeira carta de amor: «Venha já. Mamãe com um ataque. Nós três sós e aflitíssimas». Partiu. A moléstia da velha era grave e ele ficou para fazer-lhe fricções, dar-lhe banhos, enquanto naturalmente as despesas da casa corriam por sua conta. Quanto era preciso trabalhar! Lecionava em três colégios, tinha aulas particulares, ensinava à noite turmas de calouros. Morria de trabalho e estava satisfeitíssimo, sentia-se feliz quando a Aurélia dizia:

— O pai quando era vivo também fazia assim!

Para não chocar a suscetibilidade da velha, imaginou tomar pensão na sua casa, pagando o triplo do que devia pagar, acabou pedindo-lhe um quarto, em cima, no sotão do velho prédio, o quarto em que estavam os cacaréos. Quantos sabiam do fato comentavam-no com acrimônia. Estava o João Duarte de dentro, com três virgens! Que sátiro! Sempre que a opinião da rua filtrava através das portas, a velha em cólera, bramia, gesticulava, bradava. E João, sem forças, dizia súplice:

— Mas se não é verdade? Se a senhora sabe que não tenho tensões más?

— Era melhor que as tivesse! Ao menos sabia-se logo! engrolava a velha no auge do furor.

— Que se há de fazer? Cada um como nasceu...

Ao cabo de dois anos, porém, casou. Foi modesto o casamento. Ele apareceu com o mesmo fato preto com que diariamente labutava. Não lhe sobrara dinheiro, tanto era o luxo para a noiva e tantos os objetos comprados para a nova casa, aos poucos, com mil sacrifícios e uma porção de trabalho, muito trabalho. Mas Aurélia não o amava. Nunca amou a ninguém. O desequilíbrio nervoso da mãe redundara nela numa vaga histeria. Precisaria de certo de um homem brutal. Encontrara perdida no mundo uma rara alma. A influencia da mãe, as suas ordens, os seus conselhos era que a regiam. João marido passou a ser a criatura que tem obrigação de dar. Ele dava como um escravo. Nunca um enlevo, um simples gesto terno lhe acolheu sacrifícios de dinheiro, sacrifícios de trabalho. A família, por ver Aurélia feliz, começou a quere-la menos. As duas irmãs solteiras açulavam os maus instintos da velha, e eram elas que faziam a chuva e o bom tempo na casa de João. Às vezes, Aurélia entrava em casa a chorar:

— São umas miseráveis! Trataram-me como um cão, depois de lhes ter dado uma porção de coisas!

A cólera estalava na alma de João.

— Já não te tenho dito tanta vez? Não lhes fales! Elas invejam a tua felicidade.

— Se elas soubessem!...

— Então, não és feliz?

— Eu feliz?... Ah! que idéia!

Um grande desejo de insultar aquela criatura vulgar empurpurecia a face de João. Mas para que? A pobre mulher não o compreendia, ele é que escolhera mal amando-a, amando-a com aquele estranho amor de altruísmo e incapaz de viver senão para por ela sofrer e a ela dar todo o produto do seu sangue, dos seus nervos, da sua inteligência. De resto, Aurélia rebentava em choro ou caía em profundos silêncios agonientos. Era preciso diverti-la, dar-lhe mimos, leva-la ao teatro. Então João multiplicava-se. Quando não havia criada, era ele de madrugada que ia acender o lume, preparar o primeiro almoço, levá-lo à cama. Saía, corria às obrigações, com a redingote verde e os sapatos em mau estado, voltava para o almoço carregado de frutas, de gulosinas de que ela dizia gostar.

— Trouxe-te figos e bombons. Come.

— Não quero, fazia ela instintivamente cruel, empurrando os embrulhos.

Ele tinha um vinco de tristeza e de raiva logo sopitada. Mas comia à pressa qualquer coisa, ia logo trabalhar. Ao jantar trazia-lhe sempre uma recordação, ria verificando que já não existiam frutas e bombons, mandava-a vestir para o teatro, e ainda dava explicações a uma turma, entre o jantar e o teatro. Ela saia sempre contrariada porque o marido tinha pressa e voltava em cólera porque havia no teatro mulheres mais bem postas ou porque a peça não lhe agradara. João, humilde, preparava-lhe o chá, preparava-lhe o leito, ia para a sala escrever e estudar até de madrugada, e muita vez Aurélia acordou sobressaltada, com ele ao lado a olha-la enternecido.

— Ah! que susto! até pareces um lobisomem!

Mas, de súbito, Aurélia aparecia mais alegre, consentindo mesmo numa carícia. Era a reviravolta. Fizera as pazes com os parentes, ou antes, sem recursos, a velha mãe e as irmãs solteiras tinham vindo alegremente fazer-lhe uma visita. As frutas, os bombons iam embrulhados tal qual para a casa delas, os cortes de vestido, os frascos de perfumes sumiam-se do guarda vestido.

— Como estou aborrecida! Se me deixasses ir ver a mamã? Ela afinal é mãe. Não há duas mães...

João sorria.

— Vai, filha. Não te prendo, mas vê se consegues demorar as pazes.

— Se elas brigaram foi culpa tua. Não insultes a minha família. Minha mãe é minha mãe.

— Bom, bom, nada de zangas. Vai, anda...

Por que tentar o impossível? Ela não o compreenderia nunca. Era um espírito de criança numa alma de mulher sem amor. Como sentir aquela afeição tão fina, tão superior em que a honra, a dedicação, o sonho de um homem cheio de coração irradiavam? Um rapazola qualquer com três socos talvez abrisse na rocha a fonte do amor. Um tipo cheio de dinheiro espalhando notas do banco talvez a fizesse esquecer os seus deveres de esposa. E João Duarte recalcava bem no íntimo um vago e atroz ciúme do que não existia, culpava-se, culpava-se e vinha a ama-la mais, a rodea-la de maiores carinhos para não perde-la, para não se ver perdido, porque precisava amar alguém, dar a sua dedicação a alguém. Assim viveu dez anos. Parecia ter vivido vinte. Estava magro, abatido. As roupas de baixo tinha-as rasgadas. Os fatos duravam-lhe dois anos. Não bebia senão água: comia sempre pensando noutra coisa, e dormia pouco, cada vez menos, com o cérebro cheio de preocupações, as aulas, as vontades de Aurélia a satisfazer, os negócios a liquidar com os prestamistas. Foi por essa ocasião que a mulher se fez mais criança ainda, começou a ter vômitos, a sentir os pés inchados, a vociferar com ciúmes, despedindo as criadas aos gritos. João não acreditava. Seria possível? Mas o médico não lhe deixou dúvidas. Após dois lustros de união, Aurélia estava grávida. Todo o desejo do pobre em fim realizado! O seu amor foi tão grande, o sentimento da paternidade fê-lo tão loucamente feliz, tão cheio de carinho para com a mulher, que ela, uma vez na vida, cedeu, deixou-se embalar. E eram passeios e eram consultas de médico e eram beijos. Nos últimos dias era ele quem a vestia.

— Vamos ter um filho! Um filho! Sorri, tolinha! Sorri! Vai ser tão bom... Se for mulher, havemos de chama-la Maria, hein? Querias que fosse homem? Ah! egoísta! Os filhos gostam sempre mais das mães que dos pais. Mas há exceções. Tu por exemplo és mulher e gostas muito da tua mãe.

— Não fales! Não fales!

O parto foi laborioso. Aurélia gritou duas noites, julgando-se desgraçada e intimamente culpando daquele horror o marido, que não dormia, de um para outro lado, aflito, pálido. Quando a pequena nasceu, uma noite de temporal no mês de junho, João ao toma-la ao colo sentiu uma tontura de alegria. O mundo se transfigurava. Os móveis tocavam-se de uma luz estranha. O teto abria uma chuva de delícias. Afinal o destino realizava a sua única vontade: uma filha! O seu sangue, parte do seu ser, com alguma coisa da sua alma, o desdobramento belo do seu eu. A essa sim, ele podia amar totalmente, com o seu grande amor sempre contido e represo, a essa devia amar e sentia amar, a essa entregaria a sede de pureza e ideal do seu coração dedicado, porque ela havia de compreende-lo, havia de senti-lo, havia de saber que a sua vida inteira de esforço, de coragem e de sofrimento tinha por fim, por meta do sonho, por último círculo do paraíso -ela.

— Minha filha..., murmurou num êxtase, minha filha...

Mas decerto o destino dando-lhe uma filha queria simplesmente aumentar as angústias desse humilde coração sensível, feito de excessos de ternura e de dedicação. Maria nascera doente. Aurélia, vendo que os carinhos do escravo diminuíam e por uma feição dos seus nervos em desequilíbrio, desinteressou-se dos carinhos maternos ao mesmo tempo que sentia um violento ciúme do marido, apontando-o como o inimigo pronto a roubar-lhe o amor da filha. Era o próprio egoísmo, o feroz egoísmo das histéricas. João entrava da rua ansioso.

— E a pequena?

— Não sei, pergunta à ama. Pois se não a largas!

Ele queria sorrir, hesitava, não compreendia bem aquele azedume eterno e lá se ia para o berço a olhar, a olhar, muito, muito... Sem nunca ter aprendido, viu-se à perfeição a enfaixar a petiza, a embala-la, a cantar cantigas, com uma voz muito triste. Ele, que nunca na sua vida cantara por não ter tempo nem alegria, sentia naquela obrigação de carinho paterno que cantar era para a sua alma como desabafar soluços guardados no seu peito de homem muitos anos antes, toda a sua vida.

Quando se anunciou a dentição, Maria foi presa de uma febre violenta. João desvairado mandou chamar um médico amigo, seguia-lhe as prescrições à risca, com altas doses de quinino, e a pequenita deu de piorar. Era um erro de diagnóstico, o tratamento contrário, a morte. Em casa havia uma balbúrdia. Aurélia, incapaz de resistir, dormia nas cadeiras. As irmãs e a mãe, inteiramente inúteis, julgavam a criança perdida e apostavam o dia da sua morte. Ele nem mais dormia, nem mais comia, aflito, louco, com a pequenita nos braços, sem consentir que a tocassem.

— Deixem! Tenho esperanças! Uma grande esperança...

E a velha muito sincera:

— Qual! aqui só o milagre!

Começaram as conferências. Os remédios enchiam os consolos da sala. Um dia, fora de si, ele chamou o médico.

— Está perdida?

— Meu pobre amigo...

— Está?

— Infelizmente.

— Pois bem. Peço-lhe um grande obséquio de camarada. Venha apenas passar o atestado. Não lhe demos mais medicamentos. Custa-lhe tanto! Ela faz uma cara tão feinha. Eu fico a acalenta-la até a morte. Talvez o meu amor...

— Sim, talvez, fez o médico a sorrir com descrença.

E ele ficou, no escândalo condenador de toda a casa, a passear a filha, a dar-lhe gotas de leite, a anima-la, a incutir-lhe com toda a força da sua vontade o desejo de vê-la viver, de vê-la renascida. Assim passaram quarenta dias. Quando ao cabo desse século de dor e de tensão nervosa, viu a pequena sorrir-lhe sem febre, sã, de aparência sã, mirou-se num espelho por acaso, ao passar, e notou então que tinha ainda envelhecido. O médico chamado confirmou:

— Sim, com efeito, a reação... Mas como sofreste, meu amigo! Estás mais branco.

— Que queres? É a vida, fez ele a rir para os outros que sorriam. E querer bem custa tanto!

A doença da filha viera desorganisar-lhe a vida do lar, se é que tinha isso. Aurélia cada vez mais nervosa, de pior humor, estava realmente doente e não se sentia senão irritada contra a filha. João não podendo conceber esse coração, dividia-se entre as duas, atenuava, mas à proporção que o amor da filha mais se enraigava, a mágoa da esposa aumentava. Maria, a petiza, tinha uma saúde de vidro. O pai fazia-lhe uma atmosfera de suavidades. Foi ele quem lhe ensinou os primeiros passos, foi ele quem a fez repetir as duas primeiras sílabas formando sentido e quem toda noite até Maria ter cinco anos a adormecia numa vasta cadeira de balanço a cantar baixinho velhas canções de embalar crianças. Aurélia, indignada, à hora de ir ao teatro, surgia.

— Mas é espantoso! Adormecer ao colo uma pequena de cinco anos! Bem diz a mamã que as tuas maluquices estragam a menina!

João deitava a filha recomendando à criada mil precauções. No teatro ou onde estivesse a conduzir a esposa, apanhava sempre alguns minutos, tomava um tilburi, ia até a casa ver se Maria dormia bem.

Esses cuidados, o amor incomparável faziam a petiza grata, com a gratidão das crianças que é de tão grande egoísmo. Como a avó levava a fazer-lhe censuras com o pretexto de a educar assim como as tias, Maria odiava os parentes. Como a mãe nos seus acessos neurastênicos dava razão à família e batia-lhe, tinha pela mãe um sentimento muito vizinho do medo. O pai era bem tudo, resumia todos os amores na sua permanente carícia, e fazia-lhe todas as vontades, comprava-lhe brinquedos, brincava com ela, e nada mais agradável para os seus curtos instantes de descanso do que ir fazer com a filha o «chicote queimado», fingir que não descobria um lenço escondido e vê-la rir, rir como riem as crianças, pondo um pouco do céu sobre a terra. Enfim ele realizara a felicidade. Havia um ente por quem se sacrificava mas que só no mundo a ele via com amor! E a cada achaque de moléstia, a cada febre violenta da menina, ficava aí perto do leito, sem pregar olho, olhando-a, exigindo que ela vivesse, com medo dos médicos, da família, de todos. Dos sete anos porém para diante, Maria só adoecera duas vezes e ele estava já pensando num fenômeno de saúde, já descansado, já com o sonho de um futuro risonho ao ver a filha linda, corada, sadia, quando ao entrar em casa encontrava-a assim, a arder em febre. Seria grave? Seria coisa de nada? Maria continuava a agitar a cabecita, os dois olhos injetados.

Então João suspirou de novo. Teria coragem de ir até ao fim, teria energia para vencer nessa nova luta? E foi ao encontro do Guimarães, que entrava acompanhado da Jesuina.

— A Maria, sabes, aquelas coisas... Parece-me sério.

— Vamos a ver. Não te aflijas.

Entrou, começou a examinar a doentinha, demorou o exame num profundo silêncio, em que João parecia de mármore para não deixar transparecer a sua angústia. Depois, pensou.

— É difícil um diagnóstico. Por enquanto vamos dar-lhe um laxativo e um pouco de quinino para combater a febre.

— Quinino! Ela tem horror ao quinino.

— Ora, João, deixa de tolices. Como queres tu combater a febre? Ela tem trinta e nove e oito décimos.

Foi-se a receitar, e como amigo da casa, ordenou a Jesuina levar a receita.

— Volto à tarde. Até logo. Não te aflijas, homem.

João ficou no quarto, tal qual tinha entrado, com o chapéu na cabeça, a sobrecasaca aberta. Era como se tivesse recebido a notícia de que o mundo ia a desaparecer. Então a sua filha doente? E grave, grave! Sim. Estava grave! A pequena no leito crescia da agitação, erguendo os braços, sacudindo a cabeça nas travesseiras. De repente, ergueu-se atirando longe as cobertas, sentou-se.

— Minha filha, que é isso?

— Já é tarde, vou vestir-me.

— Não podes; estás doente.

— Ah! quanto fogo! É um fogo de artifício. Espera. Onde estão as botinas?

— Maria! Maria! olha teu pai.

— Ah! as baratas, as aranhas. Que porção de baratas! Vamos mata-las, vamos. As botinas...

Era o delírio. Sem forças para rete-la, temendo magoa-la, João acompanhou-a. A pequena corria a casa, ele precipitava-se para fechar uma ou outra janela, para amparar-lhe os passos titubeantes. Era o delírio. Era a morte. Oh! sim, era a morte! Maria entretanto não caminhou muito. Súbito esmoreceram-lhe as pernas, e ele levou-a ao colo para o leito, aconchegou-a bem, ajoelhou na borda da cama.

— Maria, descansa; não morras, minha filha, não morras porque eu não resisto!

E sentiu que chorava, que pela primeira vez na vida chorava na presciência da fatalidade inexorável. Mas era preciso lutar, arrancar o seu entesinho ao irremediável. Enxugou as lágrimas, as idéias um tanto confusas. Aquela calma de amor com que reagia sempre outrora se transformara numa agitação febril em que a sua vontade se perdia. Quando os medicamentos chegaram, foi ele mesmo a administra-los. A febre continuava.

Para o jantar Aurélia entrou, e ainda toda enfeitada no quarto:

— Então que é isso?

A Aurélia mal, desde que saíste, parece.

— Não há de ser nada.

— É grave. Já delirou, está delirando. Maria, minha filha...

— Se mandássemos prevenir a mamã?

— Faze o que quiseres, deixa-me, deixa-me!

Ao escurecer, o doutor Guimarães reapareceu. A febre não cedera, antes aumentara. O médico balançou a cabeça. Era impossível fazer ainda um diagnóstico, mas o estado da menina inspirava cuidados. Se não tinham confiança nele, poderiam chamar outro para uma conferência, e mesmo não o preferir... De resto a casa já tinha esse aspecto que precede as tragédias, como se o inanimado, os móveis, os muros, os quadros, os objetos sentissem antes dos homens o arrepio da morte, a passagem da ceifadora. A família de Aurélia aparecera. A velha dogmática arrasava Guimarães e queria outro médico. As irmãs já asseguravam o caso perdido, como de costume. A vontade de João sossobrava. Ele queria estar apenas perto de Maria, não se tirar dali, ser o único a cuida-la. Então foi pela casa, dirigida pelas mulheres, como um vento de ensandecimento. A primeira conferência relegara Guimarães. Um outro médico moderno e célebre aparecera, imaginando banhos quentes e injeções hipodérmicas de quinino, enchendo os aparadores de frascos e de caixetas. Batiam à porta sinistramente os fornecedores. Uma grande banheira foi instalada no quarto. Para enche-la, cada um trazia o seu jarro d'água a ferver. João calafetava as portas, despia com uma delicadeza infinita a pobre Maria, tomava-a ao colo, depositava-a na banheira com um arrepio, como se estivesse a matar a filha, enquanto o médico contava os minutos. Tomava a pegar da criança, enxugava-a, envolvia-a nos cobertores, quedava-se, com os olhos muito abertos, um vinco de angústia entenebrecendo-lhe a boca. E o médico tomava da agulha, enterrava-a no ventre da filha, indiferente, conversando. Como apesar dos laxativos, o ventre continuava átono, recorreram aos clisteres. Ele os dava só, sabia de todos os remédios e passava a noite, aos pés da cama, olhando a filha. Quando ela dormia, chorava, e murmurava tão baixo que só a sua dor o ouvia.

— Não me deixes, Maria, não me deixes... Ah! não que eu morro, que eu morro! Por que vieste, hein? Por que? Para me fazer sofrer? E de uma vez em que estava assim, com a face molhada de lágrimas, ouviu a voz da filha:

— Ah! paisinho! Quanto trabalho está tendo comigo!

— Maria!

— E não vale a pena...

— Meu amor, não fales, ouviste? dorme. Estás muito melhor.

Tocou-lhe nas mãos, e, com efeito, sentiu-as menos quentes. A febre declinara. Uma chama de esperança brotou-lhe no coração. Esperou ansioso a manhã, e quando o médico chegou, disse-lhe quase a sorrir

— Está melhor. A febre diminuiu.

— Acontece. É do curso da moléstia. Tem trinta e oito graus de febre.

— Então?

— O perigo ainda não desapareceu, meu caro. Sua filha tem uma grave moléstia com períodos fatais. Há quanto tempo caiu? Há oito dias. Desde esse momento os dias tem se conservado firmes, de sol. Esperemos que assim continue o tempo mais uma semana e eu garanto a vida da pobre criança. Mas, se por acaso tivermos uma brusca mudança meteorológica, uma tempestade, o abaixamento da temperatura -é difícil dizer qualquer coisa.

— Então, se o tempo conservar-se firme?...

— E se houver a tempestade...

Certo João Duarte nunca na sua vida se sentira tão a braços com o destino triste. Ouvira falar de moléstias em que a variação atmosférica influi perniciosamente, sabia mesmo o nome de algumas, mas a hiperestesiada sua angústia, a tensão nêurica em que o mantinha a iminência do desastre, aquele ror de noites passadas em claro, o esforço físico de andar com a petiza ao colo já tão crescida, e esse martírio de sofrer na alma todos os cruciantes sofrimentos físicos da filhinha faziam-no perder a noção nítida das coisas, esbatiam a vida em torno do grande problema: salvar Maria. A idéia da tempestade entrou-lhe no cérebro de matemático, de homem de ciência sem abusões, sem crendices, como o anúncio da catástrofe que era preciso evitar a todo transe. Um tremor convulsivo tomou-o, e a sua atenção bipartiu-se entre o céu e a filha com o pavor de um primitivo diante dos elementos. Se chovesse, se no céu lindo rolasse o fragor do trovão e nuvens negras toldassem o azul do firmamento, toda a razão de ser da sua existência naufragaria porque a filha não poderia escapar. Não se tirou mais do quarto. Passava a velar Maria e a ir de vez em quando levantar a cortina para olhar o céu, com um medo supersticioso. Era em novembro, no começo do verão, nessa época de bruscas tempestades em que amainavam os grandes calores. A temperatura subia, o sol era um disco de fogo no azul de cobalto, do céu sem nuvens; e as noites se diluíam num escandaloso luar cor de ouro e cor de opala. Estavam a findar os dias do plenilúnio, iam entrar na minguante. Talvez mudasse o tempo. A febre não cessara, queimando a fogo lento os membros emagrecidos de Maria. A nevrose da casa tivera um hiato de cansaço, à espera do acontecimento. A família dormia pelas salas, sem pouso. Aurélia tivera dois ataques com gritos despedaçadores que faziam no seu leito a doentinha contrair o semblante numa inédita angústia de cadáver horrorizado subitamente voltado à agonia. Ele quedava-se, ouvindo o crepitar da lamparina e o tic-tac do relógio na sala de jantar a coser o tempo no pesponto certo dos segundos. Qualquer outro rumor, o arrastar de uma cadeira na casa vizinha, as vassouradas dos varredores pela madrugada, faziam-no pensar em trovões ao longe, em quedas d'água. Corria então à janela, levantava a cortina, perscrutava o céu calmo. Ah! se não chovesse! Se o milagre se desse! Se Deus quisesse! Até mesmo em Deus ele acreditava, pondo a reger aqueles fenômenos que a sua ciência conhecia, um ser sobrenatural e todo poderoso. E assim os dias passaram. Um, dois, três, quatro dias que eram para ele a corrida do seu coração, o galope dos sentidos por um túnel de treva à procura da luz anúncio da vida, dias de que contava as horas e os minutos e os segundos como se os sorvesse sedentamente num contador de fel, dias que lhe chupavam das artérias anos de existência.

— Façam uma promessa, segredava às mulheres, vocês que acreditam. Façam uma grande promessa. Eu cumprirei...

As criaturas, incapazes de sentir assim, estavam afinal tocadas de respeito, lamentando tanto a criança como aquela energia humilde que a seu lado se finava por ama-la demais. Os santos surgiam. Havia oratórios na sala de visitas, no quarto de Aurélia, com velas a crepitar. E a febre continuava a ressecar a pele branca de Maria, sempre, sempre, sem descontinuar. No quarto dia -era de madrugada e já João fora varias vezes olhar o céu- estava sentado a olhar o sono tenebroso da filha, quando pelos seus olhos passou um relâmpago. Não, era de certo alucinação da fraqueza. Correu à cortina e quedou-se com um arrepio de horror. Grossas nuvens vinham vindo do ocidente. A luz da lua era de uma intensidade cegadora, envolvendo de tal sorte o casario que parecia libra-lo numa atmosfera de sol azul, coroando-o de icebergues de flocos. Na linha do horizonte, porém sucediam-se clarões como os que fazem os canhões ao longe a detonar. Era mesmo um canhoneio de chamas, de que ainda não se ouvia o barulho mas que barravam a barra do céu de putrefações luminosas.

João Duarte correu à filha, apalpou-lhe o braço descarnado, que ardia. Nesse momento ouviu-se um grande fragor pelo céu todo. Era o trovão. João passou várias vezes a mão pelo rosto. Era impossível! Era impossível! Talvez ele estivesse tentando os elementos, com a idéia permanente da chuva. Procurou alhear-se, pensar noutra coisa, arquitetou frases vagas, com os ouvidos à escuta, os olhos dilatados.

Esteve assim um instante que lhe pareceu um século. Não resistiu, voltou á janela. Já o céu de um azul de vidro se achamalotava e se rendava de nuvens cor de cinamono. Qual! Era verdade! A chuva vinha, era fatal! Nunca na sua vida o destino sorrira senão para lhe lançar mais veneno na alma. Assistiria de pé à hecatombe. E depois estalaria, estalaria como estalara o trovão.

Que fazer? O céu em pouco foi todo um licor que baixava, empedrado de nuvens, empurradas pelo vento. A rua, minutos antes banhada de luz, escurecia em treva. Grossos pingos d'água começaram de bater na vidraça onde João tinha a face colada. Em pouco os pingos redobraram saraivando nos vidros, e os trovões tonitroavam, trovoavam, fragoravam no arquejo despedaçante do vento alanhando o negror do espaço de coriscos súbitos que rachavam a treva. E, àquela violência, João, como um náufrago, ainda tinha esperança, ainda pensava, que após o temporal voltasse o tempo firme definitivamente, e ainda houvesse um meio. Qual! Aquilo ia acabar, tinha de acabar. Era chuva de durar pouco! Mas a chuva caía, jorrava do espaço violenta e brutal, inundando a rua.

João olhou então a filha. A pobrinha mostrava apenas a face de cera entre os caracóis dos cabelos. As olheiras eram roxas e o nariz afilava na sombra do para-luz. Pobresita! Estava a descansar. Ele ficaria ali, contra o elemento, proibindo-o de entrar, impedindo-o de passar. As idéias fugiam do seu pobre cérebro sempre resignado. Abriu os braços nos portais, ficou assim longo tempo, pensando, pensando na tempestade, na filha, na tempestade que ia acabar, na filha que não podia morrer. Quanto tempo levou assim? Era impossível saber. Um zumbido tomara-lhe os ouvidos na recordação dos trovões, as fontes latejavam-lhe, e tinha as mãos frias como se as tivesse passado em gelo. Só deu acordo quando viu uma luz baça vir surgindo no espaço e viu que a chuva continuava lentamente, sem fim. Era das que não acabam! Deixou cair a cortina, veio na ponta dos pés até o leito, apalpou o corpo da filha. Estava sem febre, sim! sem febre alguma. Dera-se o prodígio? Seria possível? Então a chuva, a tempestade?... Apalpou bem a testa, o peito, os braços, os pés. Os pés estavam até frios. Ora esta! Um sorriso de satisfação abriu-lhe a boca, onde só a dor deixara vincos. Foi buscar um outro cobertor para os pés da queridinha, envolveu-os bem, e de novo apalpou as mãos. Estavam também a esfriar. Hein? Que era isso? Talvez o corpo, desacostumado da temperatura normal... Qual! Era idiota o que dizia! Chamou a filha, baixinho:

— Maria, ó Maria, melhorzinha?

A pobre não respondeu. Também tão fraca! Nem de certo escutara... Chamou mais alto:

— Maria, então? queres deixar o pai do seu coração sem uma resposta? Não vês? Estou só, eu só aqui, eu que sofro contigo. Maria.

Estava atormentando-a com certeza. Ah! que bruto era, que mau! As mãos, porém, esfriavam. Oh! Uma nova complicação na noite, mais dores, mais males, mais horrores. Que seria? Foi até a cômoda, acendeu uma vela, veio ver de perto a sua adoração.

Maria tinha os olhos abertos, bem abertos, grandes, largos, abertos. Qualquer coisa de vidro cristalizava-lhe o brilho. E os lábios descerrados mostravam entre os dentes uns filamentos brancos, secos, uns filamentos que nunca vira. À luz da vela as pálpebras não bateram. Uma grossa lágrima rolava-lhe pela face. Já se lhe não sentia o respiração.

João Duarte deixou a vela ao lado, na cadeira, virou-se para um lado, virou-se para outro, passou as duas mãos pela cara, esmagando os dedos de encontro aos olhos, quis falar, quis chamar. Parou, pousou de novo o olhar no olhar que se embaciava, olhou, olhou a filha. Um tremor tomou-o, sacudiu-o, abriu-lhe a boca, como que lhe esgarçou os músculos. As mãos crisparam-se-lhe. E, de chofre, caiu para frente, sem apoio, no chão, com a face de encontro ao pé da cama, estalado de muito amar desgraçadamente.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 15 de janeiro de 2021

INGLESINHA BARCELOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A INGLESINHA BARCELOS

Machado de Assis
(Grafia original)

 

Eram trintonas. Cândida era casada, Joaninha solteira. Antes deste dia de março de 1886, viram-se pela primeira vez em 1874, em casa de uma professora de piano. Quase iguais de feições, que eram miúdas, meãs de estatura, ambas claras, ambas alegres, havia entre elas a diferença dos olhos; os de Cândida eram pretos, os de Joaninha azuis.

Esta cor era o encanto da mãe de Joaninha, viúva do capitão Barcelos, que lhe chamava por isso “. — Como vai a sua inglesa? perguntavam-lhe as pessoas que a queriam lisonjear. E a boa senhora ria-se d’água, Joaninha não viu morte física nem moral; não achou meio de fugir a este mundo, e contentou-se com ele. Da crise, porém, nasceu uma situação moral nova. Joaninha conformou-se com o celibato, abriu mão de esperanças inúteis, compreendeu que estragara a vida por suas próprias mãos.

— Acabou-se a inglesinha Barcelos, disse consigo, resoluta.

E de fato, a transformação foi completa. Joaninha recolheu-se a si mesma e não quis saber de namoros. Tal foi a mudança que a própria mãe deu por ela, ao cabo de alguns meses. Supôs que ninguém já aparecia; mas em breve reparou que ela própria não saía à porta do castelo para ver se vinha alguém. Ficou triste, o desejo de vê-la casada não chegaria a cumprir-se. Não viu remédio próximo nem remoto; era viver e morrer, e deixála neste mundo, entregue aos lances da fortuna.

Ninguém mais falou na inglesinha Barcelos. A namoradeira passou de moda. Alguns rapazes ainda lhe deitavam os olhos; a figura da moça não perdera a graça dos dezessete anos, mas nem passava disso, nem ela os animava a mais. Joaninha fez-se devota. Começou a ir à igreja mais vezes que dantes; à missa ou só orar. A mãe não lhe negava nada.

— Talvez pense em pegar-se com Deus, dizia ela consigo; há de ser alguma promessa.

Foi por esse tempo que lhe apareceu um namorado, o único que verdadeiramente a amou, e queria desposá-la; mas tal foi a sorte da moça, ou o seu desazo, que não chegou a falar-lhe nunca. Era um guarda-livros, Arsênio Caldas, que a encontrou uma vez na igreja de S. Francisco de Paula, onde fora ouvir uma missa de sétimo dia. Joaninha estava apenas orando. Caldas viu-a ir de altar em altar, ajoelhando-se diante de cada um, e achou-lhe um ar de tristeza que lhe entrou na alma. Os guarda-livros, geralmente, não são romanescos, mas este Caldas era-o, tinha até composto, entre dezesseis e vinte anos, quando era simples ajudante de escrita, alguns versos tristes e lacrimosos, e um breve poema sobre a origem da lua. A lua era uma concha, que perdera a pérola, e todos os meses abria-se toda para receber a pérola; mas a pérola não vinha, porque Deus, que a achara linda, tinha feito dela uma lágrima. Que lágrima? A que ela verteu um dia, por não vê-lo a ele. Que ele e que ela? Ninguém; uma dessas paixões vagas, que atravessam a adolescência, como ensaios de outras mais fixas e concretas. A concepção, entretanto, dava idéia da alma do rapaz, e a imaginação, se não extraordinária, mal se podia crer que viçasse entre o diário e a razão.

Com efeito, este Caldas era sentimental. Não era bonito, nem feio, não tinha expressão.

Sem relações, tímido, vivia com os livros durante o dia, e à noite ia ao teatro ou a algum bilhar ou botequim. Via passar mulheres; no teatro, não deixava de as esperar no saguão; depois ia tomar chá, dormia e sonhava com elas. Às vezes, tentava algum soneto, celebrando os braços de uma, os olhos de outra, chamando-lhes nomes bonitos, deusas, rainhas, anjos, santas, mas ficava nisso.

Contava trinta e um anos, quando sucedeu ver a inglesinha Barcelos na igreja de S.

Francisco. Talvez não fizesse nada, se não fosse a circunstância já dita de vê-la rezar a todos os altares. Imaginou logo, não devoção nem promessa, mas uma alma desesperada e solitária. A situação moral, se tal era, parecia-se com a dele; não foi preciso mais para que se inclinasse à moça, e a acompanhasse até Catumbi. A visão tornou com ele, sentou-se à escrivaninha, aninhou-se entre o deve e o há de haver, como uma rosa caída em moita de ervas bravias. Não é minha esta comparação; é do próprio Caldas, que nessa mesma noite tentou um soneto. A inspiração não acudiu ao chamado, mas a imagem da moça de Catumbi dormiu com ele e acordou com ele.

Daí em diante, o pobre Caldas freqüentou o bairro. Ia e vinha, passava muitas vezes, espreitava a hora em que pudesse ver Joaninha, às tardes. Joaninha aparecia à janela; mas, além de não ser já tão assídua como antes, era voluntariamente alheia à menor sombra de homem. Não fitava nenhum; não dava sequer um desses olhares que não custam nada e não deixam nada. Fizera-se uma espécie de freira leiga.

— Creio que ela hoje me viu, pensava consigo o guarda-livros, uma tarde, em que ele, como de uso, passara por baixo das janelas, levantando muito a cabeça.

A verdade é que ela tinha os olhos na erva que crescia à beira da calçada, e o Caldas, que ia passando, naturalmente entrou no campo da visão da moça; mas tão depressa ela o viu, levantou os olhos e estendeu-os à chaminé da casa fronteira. Caldas, porém, edificou sobre essa probabilidade um mundo de esperanças. Casariam talvez naquele mesmo ano. Não, ainda não; faltavam-lhe meios. Um ano depois. Até lá dar-lhe-iam interesse na casa. A casa era boa e próspera. Vieram cálculos de lucro. A contabilidade deu o braço à imaginação, e disseram muitas coisas bonitas uma à outra; algarismos e suspiros trabalharam em comum, tais como se fossem do mesmo oficio.

Mas o olhar não se repetiu naqueles dias próximos, e o desespero entrou na alma do guarda-livros.

A situação moral deste agravou-se. Os versos entraram a cair entre as contas, e os dinheiros entrados nos livros da casa mais pareciam sonetos que dinheiro. Não é que o guarda-livros os escriturasse em verso; mas alternava as inspirações com os lançamentos, e o patrão, um dia, foi achar entre duas páginas de um livro um soneto imitado de Bocage. O patrão não conhecia esse poeta nem outro, mas conhecia versos e sabia muito bem que não havia entre os seus devedores nenhum Lírio do céu, lírio caído em terra.

Perdoou o caso, mas entrou a observar o empregado. Este, por sua desgraça, ia de mal a pior. Um dia, quando menos esperava, disse-lhe o patrão que procurasse outra casa. Não lhe deu razões; o pobre-diabo, aliás tímido, tinha certo orgulho que lhe não permitiu ficar mais tempo e saiu logo.

Não há mau poeta, nem guarda-livros relaxado que não possa amar deveras; nem ruins versos tiraram jamais a sinceridade de um sentimento ou o fizeram menos forte. A paixão deste pobre moço desculpará os seus desazos comerciais e poéticos. Ela o levou por descaminhos inesperados; fê-lo passar crises tristíssimas. Tarde achou um mau emprego.

A necessidade fê-lo menos assíduo em Catumbi. Os empréstimos eram poucos e escassos; por muito que ele cortasse a comida (morava com um amigo, por favor), não lhe davam sempre para os colarinhos imaculados, nem as calças são eternas. Mas essas ausências longas não tiveram o condão de abafar ou atenuar um sentimento que, por outro lado, não era alimentado pela moça; novo emprego melhorou um tanto a situação do namorado. Voltou a ir lá mais vezes. Era fim do verão, as tardes tendiam a diminuir, e pouco tempo lhe restaria delas para dar um pulo a Catumbi. Com o inverno cessaram os passeios; Caldas desforrava-se aos domingos.

Não me pergunteis se tentou escrever a Joaninha; tentou, mas as cartas ficavam-lhe na algibeira; eram depois reduzidas a verso, para suprir as lacunas da inspiração. Recorreu aos bilhetes misteriosos, nos jornais, com alusões à moça de Catumbi, marcando dia e hora em que ela o veria passar. Joaninha parece que não lia jornais, ou não dava com os bilhetes. Um dia, por acaso, sucedeu achá-la à janela. Sucedeu também que ela sustentasse o olhar dele. Eram velhos costumes, jeitos de outro tempo, que os olhos não haviam perdido; a verdade é que ela não o viu. A ilusão, porém, foi imensa, e o pobre Caldas achou naquele movimento inconsciente da moça uma adesão, um convite, um perdão, quando menos, e do perdão à cumplicidade bem podia não ir mais que um passo.

Assim correram dias e dias, semanas e semanas. No fim do ano, Caldas achou a porta fechada. Cuidou que ela se houvesse mudado e indagou pela vizinhança. Soube que não; uma pessoa de amizade ou ainda parenta, levara a família para um sítio no interior.

— Por muito tempo? — Foram passar o verão.

Caldas esperou que o verão acabasse. O verão não andou mais depressa que de costume; quando começou o outono, Caldas foi um dia ao bairro e achou a porta aberta.

Não viu a moça, e achou esquisito que não regressava de lá, como antes, comido de desespero. Pôde ir ao teatro, pôde ir cear. Entrando em casa, recapitulou os longos meses de paixão não correspondida, pensou nas fomes passadas para poder atar uma gravata nova, chegou a recordar alguma coisa parecida com lágrimas. Foram porventura os seus melhores versos. Vexou-se desses, como já se vexara dos outros. Quis voltar a Catumbi, no domingo próximo, mas a história não guardou a causa que impediu esse projeto. Só guardou que ele tornou a ir ao teatro e a cear.

Um mês depois, como passasse pela Rua da Quitanda, viu paradas duas senhoras, diante de uma loja de fazendas. Era a inglesinha Barcelos e a mãe. Caldas chegou a parar um pouco adiante; não sentiu o alvoroço antigo, mas gostou de vê-la. Joaninha e a mãe entraram na loja; ele passou pela porta, olhou sem parar e foi adiante. Tinha de estar na praça às duas horas e faltavam cinco minutos. Joaninha não suspeitou sequer que ali passara o único homem a quem não correspondeu, e o único que verdadeiramente a amou.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 14 de janeiro de 2021

O CEMITÉRIO (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

O CEMITÉRIO 

Lima Barreto

 

Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas.

Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas - coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos traziam à lembrança nem um nome ilustre sequer; em vão procurei ler nelas celebridades, notabilidades mortas; não as encontrei. E de tal modo a nossa sociedade nos marca um tão profundo ponto, que até ali, naquele campo de mortos, mudo laboratório de decomposição, tive uma imagem dela, feita inconscientemente de um propósito, firmemente desenhada por aquele acesso de túmulos pobres e ricos, grotescos e nobres, de mármore e pedra, cobrindo vulgaridades iguais umas às outras por força estranha às suas vontades, a lutar...

Fomos indo. A carreta, empunhada pelas mãos profissionais dos empregados, ia dobrando as alamedas, tomando ruas, até que chegou à boca do soturno buraco, por onde se via fugir, para sempre do nosso olhar, a humildade e a tristeza do contínuo da Secretaria dos Cultos.

Antes que lá chegássemos, porém, detive-me um pouco num túmulo de límpidos mármores, ajeitados em capela gótica, com anjos e cruzes que a rematavam pretensiosamente.

Nos cantos da lápide, vasos com flores de biscuit e, debaixo de um vidro, à nívea altura da base da capelinha, em meio corpo, o retrato da morta que o túmulo engolira. Como se estivesse na Rua do Ouvidor, não pude suster um pensamento mau e quase exclamei:

— Bela mulher!

Estive a ver a fotografia e logo em seguida me veio à mente que aqueles olhos, que aquela boca provocadora de beijos, que aqueles seios túmidos, tentadores de longos contatos carnais, estariam àquela hora reduzidos a uma pasta fedorenta, debaixo de uma porção de terra embebida de gordura.

Que resultados teve a sua beleza na terra? Que coisas eternas criaram os homens que ela inspirou? Nada, ou talvez outros homens, para morrer e sofrer. Não passou disso, tudo mais se perdeu; tudo mais não teve existência, nem mesmo para ela e para os seus amados; foi breve, instantâneo, e fugaz.

Abalei-me! Eu que dizia a todo o mundo que amava a vida, eu que afirmava a minha admiração pelas coisas da sociedade - eu meditar como um cientista profeta hebraico! Era estranho! Remanescente de noções que se me infiltraram e cuja entrada em mim mesmo eu não percebera! Quem pode fugir a elas?

Continuando a andar, adivinhei as mãos da mulher, diáfanas e de dedos longos; compus o seu busto ereto e cheio, a cintura, os quadris, o pescoço, esguio e modelado, as espáduas brancas, o rosto sereno e iluminado por um par de olhos indefinidos de tristeza e desejos...

Já não era mais o retrato da mulher do túmulo; era de uma, viva, que me falava.

Com que surpresa, verifiquei isso.

Pois eu, eu que vivia desde os dezesseis anos, despreocupadamente, passando pelos meus olhos, na Rua do Ouvidor, todos os figurinos dos jornais de modas, eu me impressionar por aquela menina do cemitério! Era curioso.

E, por mais que procurasse explicar, não pude.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 13 de janeiro de 2021

A EPILÉTICA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A EPILÉTICA

Humberto de Campos

 

16 de janeiro.

- Estás, então, separado de tua esposa?

- É verdade; internei-a em uma casa de saúde.

E como se tratasse de uma palestra afetuosa, entre amigos que há muito se não viam, o mais moço dos dois, o Sr. Nataniel de Miranda, caixeiro viajante de uma conceituada casa da praça, justificou a sua conduta:

- A situação em que dia me colocou era intolerável. Eu seria um perverso, um miserável, um desumano, se conservasse na minha companhia uma senhora sabidamente enferma, perseguida por moléstia tão delicada.

- Era, então, doente?

- Doentíssima! - confirmou o esposo inconsolável.

E como se visse nos olhos do amigo uma interrogação luminosa, um desejo de conhecer, fase por fase, os detalhes daquela tragédia de coração, tomou-o pelo braço e, fazendo-o sentar-se em uma das mesas do botequim, principiou, calmo, a descrever-lhe o caso, deixando esfriar, entre voltas de fumaça, as duas xícaras de café.

- Há muito tempo eu andava desconfiado da moléstia da Luisinha. Afastado sempre de casa por exigência mesmo do meu gênero de vida, ora em excursão pelo interior de Minas, ora por S. Paulo, era com estranheza, com mágoa íntima, que eu observava, de mês para mês, a mudança nos modos de minha mulher. A transformação do seu caráter, das suas maneiras, do modo, enfim, por que definhava, a olhos vistos, fazia-me triste, aflito, preocupado, na suspeita de que alguma coisa de grave, de anormal, se estava passando na sua saúde. Em uma dessas viagens, com a alma carregada de preocupações, confessei a um parente meu, fazendeiro em Uberaba, a desconfiança, que eu tinha, de que ela sofria de ataques, na minha ausência. Ele escutou-me, pensou um momento, e, chamando-me para o interior da casa, perguntou-me porque eu não tirava a limpo essa dúvida, empregando, no caso, a experiência da tigela de leite.

- Da tigela de leite? - interrompeu o amigo.

- Da tigela de leite, sim.

E continuando:

- Esse fazendeiro explicou-me, então como era a prova. Pega-se uma tigela de leite, e põe-se debaixo da cama, em um lugar que corresponda ao meio do colchão. Em seguida, toma-se de uma colher, ou de uma vara de uns dois palmos, e amarra-se no estrado de arame, de ponta para baixo, exatamente sobre a tigela, de modo que, com o peso natural de uma pessoa, não chegue até o leite, mas de maneira que, com um movimento mais forte, como nos ataques de epilepsia, a colher, ou coisa semelhante, molhe a ponta no liquido da tigela, registrando o fenômeno.

- E fizeste a experiência?

- Espera aí. Chegado ao Rio, procurei um momento em que a Luisinha se achava ausente, e fiz o que me haviam aconselhado. com a diferença, apenas, da colher, que, por ser a cama um pouco alta, foi substituída na ocasião, por um batedor de doce, que encontrei na dispensa da casa. Feito isso, declarei que ia a São Paulo, e parti. Dois dias depois, voltei.

- E então? - indagou o amigo, ansioso, com a curiosidade nos olhos.

- O batedor tinha batido tanto, tanto, que a tigela...

- Que é que tem? - interrompeu o outro.

E o desgraçado, enxugando os olhos:

- Estava cheia... de manteiga!...


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 11 de janeiro de 2021

SIZENANDO NABUCO (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

SIZENANDO NABUCO

Aluísio Azevedo


(Grafia original)

 

Mais um homem de espírito que se recolheu à terra; mais um companheiro que desabou para sempre na infindável noite em que não há estrelas nem esperanças de aurora, mais uma parcela da grande e generosa alma brasileira, que se perdeu para a pátria nestes dolorosos períodos de angústia e desalento.

Sizenando Nabuco foi um lutador vitorioso como advogado público e como propagandista das mais santas e elevadas causas sociais; mas, como homem de talento, foi nada mais que uma vítima do seu meio e da desorientada época em que teve de decidir e traçar a sua carreira.

A natureza talhara-o para homem de letras; dera-lhe uma alma ardente e apaixonada de poeta; uma delicadíssima suscetibilidade nervosa, pronta sempre a vibrar sonoramente ao toque mais sutil da mais passageira asa de uma comoção.

O seu primeiro ideal foi a literatura, e durante os anos acadêmicos todo o seu esforço, todos o seus estudos fora do curso, foram a ela consagrados. Muito moço ainda, creio que aos dezenove anos, revelou-se com um drama A túnica de Nesso, que marcou a sua primeira vitória no teatro. Esse trabalho fez sensação. O Imperador chamou o autor no seu camarote, cumprimentou-o, deu-lhe conselhos.

Sizenando continuou a trabalhar, sempre com êxito, mas em breve reconheceu que no Brasil a literatura poderia ser um belo ideal de estudante, nunca porém um seguro e produtivo meio de vida para um homem de aspirações. E rejeitou as solicitações do seu talento literário, cortou as asas da sua imaginação, escondeu os seus manuscritos, e de um salto atirou-se à tribuna de advogado.

Como ao lado dos dotes de escritor, a natureza lhe pusera todos os dotes oratórios, fez rápida carreira na jurisprudência e ganhou logo o prestígio e a popularidade que o acompanharam até ao fim da sua vida de lutas sem tréguas.

Mas, já velho, enfarado dos seus triunfos jurídicos, convencido de que as glórias de um tribuno são como as fugitivas conquistas de um ator, cujo trabalho não vai além da geração que o ouviu, cansado dessa campanha da vida pela vida, em que vamos deixando dia a dia os farrapos da alma moída e esfalfada, era para os seus primitivos ideais que ele volvia os olhos desiludidos e saudosos.

– “Ah! tivera eu nascido em outro país, fora sempre e seria ainda um homem de letras!…” disse-me ele urna vez, com um triste sorriso, conversando-me sobre literatura.

Um dia de seus anos, há talvez cinco, Sizenando, sem ânimo para fazer uma festa, mas querendo viver um instante das alegrias do passado e embriagar-se por um momento com o vinho das suas primeiras ilusões, convidou um grupo de rapazes de letras para passarem algumas horas de palestra em sua casa.

Eu fui um deles.

Lá estavam o Valentim Magalhães, o Filinto de Almeida, o Urbano Duarte, o Raimundo Correia, o Luiz Murat, o Rouède, e outros.

Que noite deliciosa! O Sizenando parecia ter voltado aos seus vinte anos.

Falava de arte vertiginosamente, rindo, criticando, numa prodigalidade de pilhéria e de bom humor, que a todos nós se comunicava e que a todos nós seduzia. Com o seu espírito e com os segredos daquela prodigiosa e fascinante galanteria que era um dos mais belos privilégios do seu tipo, conseguiu transformar aquelas horas de simples palestra de rapazes no mais encantador serão literário.

Instado por todos nós, consentiu em ler alguma cousa de sua produção, mas exigiu que fosse obra do bom tempo, do tempo dos sonhos e das quimeras.

Trouxe uni manuscrito, assentou-se a uma mezinha ao centro da sala; assentamo-nos em torno dele, e começou a leitura

Sabeis de quê! De um drama tirado do célebre romance Monseur de Camors de Otávio Feuillet escrito em bom e nervoso francês, com estilo, com a naturalidade e a graça de quem escreve na própria língua.

Oh! como os seus olhos se acendiam, como a sua voz pujante se inflamava com aquelas frases apaixonadas! Como a sua bela alma romântica acordava aquela música do passado! Uma quente ressurreição de beijos da mocidade! Um delírio de amor e de mágoas sentimentais!

Depois leu outra obra, esta agora escrita em português. E de cada página o mesmo eflúvio de poesia se evolava, como um perfume dos tempos do romantismo. Aqueles manuscritos de letras amarelecidas eram as urnas de velhos bálsamo consagrados pelo sacrifício do seu talento de escritor, jaziam ali todas as suas ilusões, todos os seus sonhos de artista e todas as lágrimas da sua alma primitiva.

E quando voltei de lá, sentindo ainda cantar-me aos ouvidos a melancolia daquela vaporosa música do passado, tive assomos de amaldiçoar esta pátria burguesa, esta mãe desalmada, que não tem seios para acalentar os seus poetas.

E agora, quando me disseram que Sizenando Nabuco acabava de morrer, foi ainda a lembrança dessa noite de escavações literárias, essa noite de passeio pelos cemitérios do seu passado, que me veio ao coração como uma triste e pálida figura de saudade, assentar-se ao lado da palpitante dor de o saber morto.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 10 de janeiro de 2021

APÓLOGO BRASILEIRO, SEM VÉU DE ALEGORIA (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA

Alcântara Machado

 

O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro.

Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:

Vá pisar no inferno!

Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.

O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito.

Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari.

Porém aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele só dava uma folga no bocejo para cuspir.

Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz:

O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial?

O rapaz respondeu:

Não sei: nós estamos no escuro.

No escuro?

É.

Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:

Não tem luz?

Bocejo.

Não tem.

Cuspada.

Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:

O vagão está no escuro?

Está.

De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim:

Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!

E a luz não foi feita. Continuou berrando:

Luz! Luz! Luz!

Só a escuridão respondia.

Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:

Que é que há?

Baiano velho trovejou:

Não tem luz!

Vozes concordaram:

Pois não tem mesmo.

Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega fogo.

Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:

Ele é pobre como a gente.

Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos.

Foguetes também?

Foguetes também.

Be-le-za!

Mas João Virgulino observou:

Isso custa dinheiro.

Que é que se vai fazer então?

Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse:

Dois quilos de lombo!

Cortou outro e disse:

Quilo e meio de toicinho!

Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.

Quantas reses, Zé Bento?

Eu estou na quarta, Zé Bento!

Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando.

Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?

Baiano velho respondeu:

É por causa das trevas!

O chefe do trem suplicava:

Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.

João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.

Aqui ainda tem uns três quilos de coxão mole!

O chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às armas cidadãos! O taioquinha embrulhava no jornal a faca surrupiada na confusão.

Tocando a sineta o trem de Maguari fungou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe muito pálido.

Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um: Os passageiros no trem de Maguari amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.

Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:

Qual a causa verdadeira do motim?

O homem respondeu:

A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.

O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:

Quem encabeçou o movimento?

Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:

Quem encabeçou o movimento foi um cego!

Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 09 de janeiro de 2021

ANEDOTA DO CABRIOLET (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ANEDOTA DO CABRILET

Machado de Assis

 

— CABRIOLET está aí, sim senhor, dizia o preto que viera à matriz de S. José chamar o vigário para sacramentar dous moribundos.

A geração de hoje não viu a entrada e a saída do cabriolet no Rio de Janeiro. Também não saberá do tempo em que o cab e o tilbury vieram para o rol dos nossos veículos de praça ou particulares. O cab durou pouco. O tilbury, anterior aos dous, promete ir à destruição da cidade. Quando esta acabar e entrarem os cavadores de ruínas, achar-se-á um parado, com o cavalo e o cocheiro em ossos esperando o freguês do costume. A paciência será a mesma de hoje, por mais que chova, a melancolia maior, como quer que brilhe o sol, porque juntará a própria atual à do espectro dos tempos. O arqueólogo dirá cousas raras sobre os três esqueletos. O cabriolet não teve história; deixou apenas a anedota que vou dizer.

— Dous! exclamou o sacristão.

— Sim, senhor, dous, nhã Anunciada e nhô Pedrinho. Coitado de nhô Pedrinho! E nhã Anunciada, coitada! continuou o preto a gemer, andando de um lado para outro, aflito, fora de si.

Alguém que leia isto com a alma turva de dúvidas, é natural que pergunte se o preto sentia deveras, ou se queria picar a curiosidade do coadjutor e do sacristão. Eu estou que tudo se pode combinar neste mundo, como no outro. Creio que ele sentia deveras; não descreio que ansiasse por dizer alguma história terrível. Em todo caso, nem o coadjutor nem o sacristão lhe perguntavam nada.

Não é que o sacristão não fosse curioso. Em verdade, pouco mais era que isso. Trazia a paróquia de cor; sabia os nomes às devotas, a vida delas, a dos maridos e a dos pais, as prendas e os recursos de cada uma, e o que comiam, e o que bebiam, e o que diziam, os vestidos e as virtudes, os dotes das solteiras, o comportamento das casadas, as saudades das viúvas. Pesquisava tudo: nos intervalos ajudava a missa e o resto. Chamava-se João das Mercês, homem quarentão, pouca barba e grisalho, magro e meão.

“Que Pedrinho e que Anunciada serão esses?” dizia consigo, acompanhando o coadjutor.

Embora ardesse por sabê-los, a presença do coadjutor impediria qualquer pergunta. Este ia tão calado e pio, caminhando para a porta da igreja, que era força mostrar o mesmo silêncio e piedade que ele. Assim foram andando. O cabriolet esperava-os; o cocheiro desbarretou-se, os vizinhos e alguns passantes ajoelharam-se, enquanto o padre e o sacristão entravam e o veículo enfiava pela Rua da Misericórdia. O preto desandou o caminho a passo largo.

Que andem burros e pessoas na rua, e as nuvens no céu, se as há, e os pensamentos nas cabeças, se os têm. A do sacristão tinha-os vários e confusos. Não era acerca do Nosso- Pai, embora soubesse adorá-lo, nem da água benta e do hissope que levava; também não era acerca da hora, — oito e quarto da noite, — aliás, o céu estava claro e a lua ia aparecendo. O próprio cabriolet, que era novo na terra, e substituía neste caso a sege, esse mesmo veículo não ocupava o cérebro todo de João das Mercês, a não ser na parte que pegava com nhô Pedrinho e nhã Anunciada.

“Há de ser gente nova, ia pensando o sacristão, mas hóspede em alguma casa, decerto, porque não há casa vazia na praia, e o número é da do Comendador Brito. Parentes, serão? Que parentes, se nunca ouvi… ? Amigos, não sei; conhecidos, talvez, simples conhecidos. Mas então mandariam cabriolet? Este mesmo preto é novo na casa; há de ser escravo de um dos moribundos, ou de ambos.” Era assim que João das Mercês ia cogitando, e não foi por muito tempo. O cabriolet parou à porta de um sobrado, justamente a casa do Comendador Brito, José Martins de Brito. Já havia algumas pessoas embaixo com velas, o padre e o sacristão apearam-se e subiram a escada, acompanhados do comendador. A esposa deste, no patamar, beijou o anel ao padre. Gente grande, crianças, escravos, um burburinho surdo, meia claridade, e os dous moribundos à espera, cada um no seu quarto, ao fundo.

Tudo se passou, como é de uso e regra, em tais ocasiões. Nhô Pedrinho foi absolvido e ungido, nhã Anunciada também, e o coadjutor despediu-se da casa para tornar à matriz com o sacristão. Este não se despediu do comendador sem lhe perguntar ao ouvido se os dous eram parentes seus. Não, não eram parentes, respondeu Brito; eram amigos de um sobrinho que vivia em Campinas; uma história terrível… Os olhos de João das Mercês escutaram arregaladamente estas duas palavras, e disseram, sem falar, que viriam ouvir o resto — talvez naquela mesma noite. Tudo foi rápido, porque o padre descia a escada, era força ir com ele.

Foi tão curta a moda do cabriolet que este provavelmente não levou outro padre a moribundos. Ficou-lhe a anedota, que vou acabar já, tão escassa foi ela, uma anedota de nada. Não importa. Qualquer que fosse o tamanho ou a importância, era sempre uma fatia de vida para o sacristão, que ajudou o padre a guardar o pão sagrado, a despir a sobrepeliz, e a fazer tudo mais, antes de se despedir e sair. Saiu, enfim, a pé, rua acima, praia fora, até parar à porta do comendador.

Em caminho foi evocando toda a vida daquele homem, antes e depois da comenda.

Compôs o negócio, que era fornecimento de navios, creio eu, a família, as festas dadas, os cargos paroquiais, comerciais e eleitorais, e daqui aos boatos e anedotas não houve mais que um passo ou dois. A grande memória de João das Mercês guardava todas as cousas, máximas e mínimas, com tal nitidez que pareciam da véspera, e tão completas que nem o próprio objeto delas era capaz de as repetir iguais. Sabia-as como o padrenosso, isto é sem pensar nas palavras; ele rezava tal qual comia, mastigando a oração, que lhe saía dos queixos sem sentir. Se a regra mandasse rezar três dúzias de padrenossos seguidamente, João das Mercês os diria sem contar. Tal era com as vidas alheias; amava sabê-las, pesquisava-as, decorava-as, e nunca mais lhe saíam da memória.

Na paróquia todos lhe queriam bem, porque ele não enredava nem maldizia. Tinha o amor da arte pela arte. Muita vez nem era preciso perguntar nada. José dizia-lhe a vida de Antônio e Antônio a de José. O que ele fazia era ratificar ou retificar um com outro, e os dous com Sancho, Sancho com Martinho, e vice-versa, todos com todos. Assim é que enchia as horas vagas, que eram muitas. Alguma vez, à própria missa, recordava uma anedota da véspera, e, a princípio, pedia perdão a Deus; deixou de lho pedir quando refletiu que não falhava uma só palavra ou gesto do santo sacrifício, tão consubstanciados os trazia em si. A anedota que então revivia por instantes era como a andorinha que atravessa uma paisagem. A paisagem fica sendo a mesma, e a água, se há água, murmura o mesmo som. Esta comparação, que era dele, valia mais do que ele pensava, porque a andorinha, ainda voando, faz parte da paisagem, e a anedota fazia nele parte da pessoa, era um dos seus atos de viver.

Quando chegou à casa do comendador, tinha desfiado o rosário da vida deste, e entrou com o pé direito para não sair mal. Não pensou em sair cedo, por mais aflita que fosse a ocasião, e nisto a fortuna o ajudou. Brito estava na sala da frente, em conversa com a mulher, quando lhe vieram dizer que João das Mercês perguntava pelo estado dos moribundos. A esposa retirou-se da sala, o sacristão entrou pedindo desculpas e dizendo que era por pouco tempo; ia passando e lembrara-se de saber se os enfermos tinham ido para o céu, — ou se ainda eram deste mundo. Tudo o que dissesse respeito ao comendador seria ouvido por ele com interesse.

— Não morreram, nem sei se escaparão, quando menos, ela creio que morrerá, concluiu Brito.

— Parecem bem mal.

— Ela, principalmente; também é a que mais padece da febre. A febre os pegou aqui em nossa casa, logo que chegaram de Campinas, há dias.

— Já estavam aqui? perguntou o sacristão, pasmado de o não saber.

— Já; chegaram há quinze dias, — ou quatorze. Vieram com o meu sobrinho Carlos e aqui apanharam a doença…

Brito interrompeu o que ia dizendo; assim pareceu ao sacristão, que pôs no semblante toda a expressão de pessoa que espera o resto. Entretanto, como o outro estivesse a morder os beiços e a olhar para as paredes, não viu o gesto de espera, e ambos se detiveram calados. Brito acabou andando ao longo da sala, enquanto João das Mercês dizia consigo que havia alguma cousa mais que febre. A primeira idéia que lhe acudiu foi se os médicos teriam errado na doença ou no remédio, também pensou que podia ser outro mal escondido, a que deram o nome de febre para encobrir a verdade. Ia acompanhando com os olhos o comendador, enquanto este andava e desandava a sala toda, apagando os passos para não aborrecer mais os que estavam dentro. De lá vinha algum murmúrio de conversação, chamado, recado, porta que se abria ou fechava. Tudo isso era cousa nenhuma para quem tivesse outro cuidado, mas o nosso sacristão já agora não tinha mais que saber o que não sabia. Quando menos, a família dos enfermos, a posição, o atual estado, alguma página da vida deles, tudo era conhecer algo, por mais arredado que fosse da paróquia.

— Ah! exclamou Brito estacando o passo.

Parecia haver nele o desejo impaciente de referir um caso, — a “história terrível”, que anunciara ao sacristão, pouco antes; mas nem este ousava pedi-la nem aquele dizê-la, e o comendador pegou a andar outra vez.

João das Mercês sentou-se. Viu bem que em tal situação cumpria despedir-se com boas palavras de esperança ou de conforto, e voltar no dia seguinte; preferiu sentar-se e aguardar. Não viu na cara do outro nenhum sinal de reprovação do seu gesto; ao contrário, ele parou defronte e suspirou com grande cansaço.

— Triste, sim, triste, concordou João das Mercês. Boas pessoas, não? — Iam casar.

— Casar? Noivos um do outro? Brito confirmou de cabeça. A nota era melancólica, mas não havia sinal da história terrível anunciada, e o sacristão esperou por ela. Observou consigo que era a primeira vez que ouvia alguma cousa de gente que absolutamente não conhecia. As caras, vistas há pouco eram o único sinal dessas pessoas. Nem por isso se sentia menos curioso. Iam casar… Podia ser que a história terrível fosse isso mesmo. Em verdade, atacados de um mal na véspera de um bem, o mal devia ser terrível. Noivos e moribundos…

Vieram trazer recado ao dono da casa; este pediu licença ao sacristão, tão depressa que nem deu tempo a que ele se despedisse e saísse. Correu para dentro, e lá ficou cinqüenta minutos. Ao cabo, chegou à sala um pranto sufocado; logo após, tornou o comendador.

— Que lhe dizia eu, há pouco? Quando menos, ela ia morrer; morreu.

Brito disse isto sem lágrimas e quase sem tristeza. Conhecia a defunta de pouco tempo.

As lágrimas, segundo referiu, eram do sobrinho de Campinas e de uma parenta da defunta, que morava em Mata-porcos. Daí a supor que o sobrinho do comendador gostasse da noiva do moribundo foi um instante para o sacristão, mas não se lhe pegou a idéia por muito tempo; não era forçoso, e depois se ele próprio os acompanhara…

Talvez fosse padrinho de casamento. Quis saber, e era natural, — o nome da defunta. O dono da casa, — ou por não querer dar-lho, — ou porque outra idéia lhe tomasse agora a cabeça, — não declarou o nome da noiva, nem do noivo. Ambas as causas seriam.

— Iam casar…

— Deus a receberá em sua santa guarda, e a ele também, se vier a expirar, disse o sacristão cheio de melancolia.

E esta palavra bastou a arrancar metade do segredo que parece ansiava por sair da boca do fornecedor de navios. Quando João das Mercês lhe viu a expressão dos olhos, o gesto com que o levou janela, e o pedido que lhe fez de jurar,– jurou por todas as almas dos seus que ouviria e calaria tudo. Nem era homem de assoalhar as confidências alheias, mormente as de pessoas gradas e honradas como era o comendador. Ao que este se deu por satisfeito e animado, e então lhe confiou a primeira metade do segredo, a qual era que os dous noivos, criados juntos, vinham casar aqui quando souberam, pela parenta de Mata-porcos, uma notícia abominável…

— E foi…? precipitou-se em dizer João das Mercês, sentindo alguma hesitação no comendador.

— Que eram irmãos.

— Irmãos como? Irmãos de verdade? — De verdade; irmãos por parte de mãe. O pai é que não era o mesmo. A parenta não lhes disse tudo nem claro, mas jurou que era assim, e eles ficaram fulminados durante um dia ou mais…

João das Mercês não ficou menos espantado que eles; dispôs-se a não sair dali sem saber o resto. Ouviu dez horas, ouviria todas as demais da noite, velaria o cadáver de um ou de ambos, uma vez que pudesse juntar mais esta página às outras da paróquia, embora não fosse da paróquia.

— E vamos, vamos, foi então que a febre os tomou…? Brito cerrou os dentes para não dizer mais nada. Como, porém, o viessem chamar de dentro, acudiu depressa, e meia hora depois estava de volta, com a nova do segundo passamento. O choro, agora mais fraco, posto que mais esperado, não havendo já de quem o esconder, trouxera a notícia ao sacristão.

— Lá se foi o outro, o irmão, o noivo. . . Que Deus lhes perdoe! Saiba agora tudo, meu amigo. Saiba que eles se queriam tanto que alguns dias depois de conhecido o impedimento natural e canônico do consórcio, pegaram de si e, fiados em serem apenas meios irmãos e não irmãos inteiros, meteram-se em um cabriolet e fugiram de casa.

Dado logo o alarma, alcançamos pegar o cabriolet em caminho da Cidade Nova, e eles ficaram tão pungidos e vexados da captura que adoeceram de febre e acabam de morrer.

Não se pode escrever o que sentiu o sacristão, ouvindo-lhe este caso. Guardou-o por algum tempo, com dificuldade. Soube os nomes das pessoas pelo obituário dos jornais, e combinou as circunstâncias ouvidas ao comendador com outras. Enfim, sem se ter por indiscreto, espalhou a história, só com esconder os nomes e contá-la a um amigo, que a passou a outro, este a outros, e todos a todos. Fez mais; meteu-se-lhe em cabeça que o cabriolet da fuga podia ser o mesmo dos últimos sacramentos; foi à cocheira, conversou familiarmente com um empregado, e descobriu que sim. Donde veio chamar-se a esta página a “anedota do cabriolet.”


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 08 de janeiro de 2021

O BOI VELHO (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

O BOI VELHO

Rubem Braga

 

Uma das coisas mais ingênuas e comoventes da vida do Barão do Rio Branco era o seu sonho de fazendeiro. Homem nascido e vivido em cidade, traça de bibliotecas, urbano até a medula, cada vez que uma coisa o aborrecia em meio às batalhas diplomáticas, seu desabafo era o mesmo, em carta a algum amigo: “Penso em largar tudo, ir para São Paulo, comprar uma fazenda de café, me meter lá para o resto da vida…”

Nunca foi, naturalmente; mas viveu muito à custa desse sonho infantil, que era um consolo permanente.

Por que não confessar que agora mesmo, neste último carnaval, visitando a fazenda de um amigo, eu, pela décima vez, também não me deixei sonhar o mesmo sonho? Com fazenda não, isso não sonhei; os pobres têm o sonho curto; sonhei com o mesmo que sonham todos os oficiais administrativos, todos os pilotos de aviação comercial, todos os desenhistas de publicidade, todos os bichos urbanos mais ou menos pobres, mais ou menos remediados: pegar um dinheirinho, comprar um sítio jeitoso, ir melhorando a casa e a lavoura, vai ver que no primeiro ano dava para se pagar, depois quem sabe daria uma renda modesta, mas suficiente para uma pessoa viver sossegada; com o tempo comprar, talvez mais uns alqueires…

Meu pai foi durante algum tempo sitiante, minha mãe era filha de fazendeiro, meus tios eram todos da lavoura… Mas que brasileiro não é mais ou menos assim, não guarda alguma coisa da roça e não tem a melancólica fantasia, de vez em quando, de voltar?

Aqui estou eu, falso fazendeiro, montado no meu cavalo, a olhar minhas terras. Chego até o curral, um camarada está ordenhando as vacas. Suas mãos hábeis fazem cruzar-se dois jatos finos de leite que se perdem na espuma alva do balde. Parece tão fácil, sei que não é. Deixo-me ficar entre os mugidos e o cheiro de estrume, assisto à primeira aula de um boizinho que estão experimentando para ver se é bom para carro. Seu professor não é o carreiro que vai tocando as juntas nem o pretinho candeeiro que vai na frente com a vara: é um outro boi, da guia, que suporta com paciência suas más-criações, obrigando-o a levantar-se quando se deita de pirraça, arrasta-o quando é preciso, não deixa que ele desgarre, ensina-lhe ordem e paciência.

No coice há um boi amarelo que me parece mais bonito que os outros. O carreiro explica que aquele é seu melhor boi de carro, mas tem inimizade àquele zebu branco vindo de Montes Claros, seu companheiro de canga; implica aliás com todos esses bois brancos vindos de Montes Claros. O caboclo sabe o nome, o sestro, as simpatias e os problemas de cada boi, sabe agradar a cada um com uma palavra especial de carinho, sabe ameaçar um teimoso – “Mando te vender para o corte, desgraçado!” – com seriedade e segurança.

Ah, não dou para fazendeiro; sinto-me um boi velho, qualquer dia um novo diretor de revista acha que já vou arrastando devagar demais o carro de boi de minha crônica, imagina se minhas arrobas já não valem mais que meu serviço, manda-me vender para o corte…


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 07 de janeiro de 2021

GEOMETRIA DOS VENTOS (POEMA DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)

GEOMETRIA DOS VENTOS

Rachel de Queiroz

 

Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 06 de janeiro de 2021

COMO A PESCADA (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

COMO A PESCADA

Olavo Bilac

 

Casados há três meses, — já o arrufo, já o ciúme, já a resigna... E Clélia quer que o marido, o Álvaro, lhe ponha já para ali toda a verdade: se foi de fato noivo de Laura, e por que é que foi expulso da casa de Laura, e por que não casou com Laura, e por que é que a família de Laura lhe tem tanta raiva...

— Mas, filhinha, sê sensata; não nos casamos? não somos felizes? não te amo como um louco? que queres mais? beijemo-nos que me importa a mim a lembrança de Laura, se é a ti que amo, se te pertenço, se sou o teu maridinho carinhoso? — suspira Álvaro, procurando com os lábios ansiosos os lábios da arrufada Clélia...

— Não, senhor! não, senhor! — diz a teimosa, repelindo-o — Não, senhor! quero saber tudo! vamos a isso! foi ou não foi noivo de Laura?

— Ai! — geme o marido — já que não há remédio... fui, queridinha, fui...

— Bem! e por que não casou com ela?

— Porque... porque o pai preferiu casá-la com o Borba, comendador Borba, sabes? aquele muito rico e muito sujo, sabes?

— Sei... Mas isso não explica o motivo por que o pai de Laura tem tanto ódio ao senhor...

— É que... é que, compreendes... tinha havido tanta intimidade entre mim e a filha dele...

— Que intimidade? vamos, diga tudo! o senhor costumava ficar sozinho com ela?

— Às vezes, às vezes...

— E abraçava-a?

— Às vezes...

— E beijava-a?

— Às vezes...

— E chegava-se muito para ela?

— Sim, sim... Mas não falemos nisso! que temos nós com o passado, se nos amamos, se estamos casados, se...

— Nada! nada! — insiste Clélia — quero saber tudo, tudo! vamos! e depois?

— Depois? mais nada, filhinha, mais nada...

Clélia, porém, com um brilho singular da curiosidade maliciosa nos grandes olhos azuis, insiste ainda:

— Confesse! confesse! ela... ela não lhe resistiu? não é assim?

— ...

— Diga-o! confesse! — e abraça o marido, adulando-o...

— Pois bem! é verdade! — responde ele — mas acabou, passou... Que importa o que houve entre mim e Laura, se nesse tempo ainda eu não te conhecia, a ti, tão pura, a ti, tão boa, a ti que, enquanto foste minha noiva, nem um só beijo me deste?

 

 

Clélia, muito séria, reflete... E, de repente:

— Mas, escuta, Alvaro! como foi que o pai soube?

— Por ela mesma, por ela mesma! A tola contou-lhe tudo...

— Ah! Ah! Ah! — e Clélia ri como uma louca, mostrando todas as pérolas da boca — ah! ah! ah! então foi ela quem... que idiota! que idiota! ah! ah! ah! Ora já se viu que pamonha? aí está uma cousa que eu não teria feito! — uma asneira em que não caí nunca...

— Como? como? — exclama o marido, aterrado — uma asneira em que não caíste?!

— Mas, certamente, queridinho, certamente! há cousas que se fazem mas não se dizem...

 

 

E, enquanto Álvaro, acabrunhado, apalpa a testa — lá fora, na rua, ao luar, um violão tange o fado e a voz do fadista canta:

"Homem que casa não sabe Qual o destino que o espera... Há gente como a pescada, Que antes de o ser já o era..."


Literatura - Contos e Crônicas terça, 05 de janeiro de 2021

A GALERIA SUPERIOR (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A GALERIA SUPERIOR

João do Rio

(Grafia original)

 

A galeria superior é dividida por um tapume com portas de espaço a espaço para o livre trânsito dos guardas. Os presos não podem ver os cubículos fronteiros. Os olhos abrangem apenas os muros brancos e a divisão de madeira que barra a cal das paredes. Quando a vigilância diminui, falam de cubículo para cubículo, atiram por cima do tapume jornais, cartas, recordações.

Estão atualmente na galeria 238 detentos. A aglomeração torna-os hostis. Há confabulações de ódio, murmúrios de raiva, risos que cortam como navalhas. Com o sentido auditivo educadíssimo, basta que se dirija a palavra baixo a alguém do primeiro cubículo para que o saibam no último. E então surgem todos, agarram-se às grades, com o olhar escarninho dos bandidos e a curiosidade má que lhes decompõe a cara.

Ah! Essa galeria! Tem qualquer coisa de sinistro e de canalha, um ar de hospedaria da infâmia à beira da vida. Nos cubículos há, às vezes, 19 homens, condenados por crimes diversos, desde os defloradores de senhoras de 18 anos até os ladrões assassinos. A promiscuidade enoja. No espaço estreito, uns lavam o chão, outros jogam, outros manipulam, com miolo de pão, santos, flores e pedras de dominó, e há ainda os que escrevem planos de fuga, os professores de roubo, os iniciadores dos vícios, os íntimos passando pelos ombros dos amigos o braço caricioso... Quantos crimes se premeditam ali? Quantas perversidades rebentam na luz suja dos cárceres preventivos? Saciados da premeditação, há os jornais que lhes citam os nomes, há o desejo de possuir uma arma, desejo capaz de os fazer aguçar asas de caneca, o aço que prende a piaçava das vassouras, as colheres de sopa, e há ainda o jogo. Nesses cubículos joga-se mais de 40 espécies de jogos. Eu só contei 37, dos quais os mais originais – o camaleão, a mosca, o periquito, o tigre, a escova, o osso, a sueca, o laço, as três chapas – são prodígios de malandragem. E nenhum deles se recusa ao parceiro. Quando algum desconhecido passa, deixam tudo, precipitam-se, alguns nus, outros em ceroulas, e há como um diorama sinistro e caótico – negros degenerados, mulatos com contrações de símios, caras de velhos solenes, caras torpes de gatunos, cretinos babando um riso alvar, agitados, delirantes, e as mãos, mãos estranhas de delinquentes, finas e tortas umas, grossas alguma, moles e tenras outras, que se grudam nos varões de ferro com o embate furiosos de um vagalhão.

Vive naquela jaula o Crime multiforme. O guarda aponta o Cecílio Urbano Reis, assassino, na Saúde, de uma mulher que lhe resistira; o João Dedone, facínora cínico; matadores ocasionais, como Joaquim Santana Araújo, quase demente; o Mirandinha, mulato, passador de moeda falsa, que se faz passar por advogado, o Barãozinho, gatuno; Bouças Passos, ladrão, assassino; Salvador Machado, o íntimo criado de Tina Tatti; negros capangas com as bocas sujas, que resistem à prisão com fúria; desordeiros temíveis, como o Eduardinho da Saúde, retorcendo os bigodes, cheio de langores; sátiros moços e velhos violadores; o célebre Pitoca, que tem 66 entradas; rapazes estelionatários e até desvairados, com João Manoel Soares, acusado de tentativa de morte na pessoa do senhor Cantuária, que leva, numa agitação perpétua, a dizer:

– Eu sei, foi o bicho... Foi por causa do bicho, hein? Está claro!

Dois baixos-relevos alucinadores, dois frisos da história do crime de uma cidade, ora alegres, ora sinistros, como se fossem nascidos da colaboração macabra de um Forain ou de um Goya, dois grandes painéis a gotejar sangue, treva, pus, onde perpassam, com um aspecto de bichos lendários, os estupradores de duas crianças, de 7 e 10 anos...

Encontro ao lado de respeitáveis assassinos, de gatunos conhecidos, na tropa lamentável dos recidivos, crianças ingênuas, rapazes do comércio, vendedores de jornais, uma enorme quantidade de seres que o desleixo das pretorias torna criminosos. Quase todos estão inclusos, ou no artigo 393 (crime de vadiagem), ou no 313 (ofensas físicas). Os primeiros não podem ficar presos mais de 30 dias, os segundos, sendo menores, mais de sete meses. Os processos, porém, não dão custas, e as pretorias deixam dormir em paz a formação da culpa, enquanto na indolência dos cubículos, no contacto do crime, rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas.

Nessa enorme galeria, onde uma eterna luz lívida espalha um vago horror, vejo caixeirinhos portugueses com o lápis atrás da orelha, os olhos cheios de angústia; italianos vendedores de jornais, encolhidos; garçons de restaurants; operários, entre as caras cínicas dos pivetes reincidentes, e os porteiros do vício, que são os chefes dos cubículos. Todos invariavelmente têm uma frase dolorosa:

– É a primeira vez que entro aqui!

E apelam para os guardas, sôfregos, interrogam os outros, trazem o testemunho dos chefes.

Por que estão presos? José, por exemplo, deu com uma correia na mão de um filho do cabo de um delegado; Pedro e Joaquim, ao saírem do café onde estão empregados, discutiram um pouco mais alto; Antônio atirou uma tapona na cara de Jorge. Há na nossa sociedade moços valentes, cujo esporte preferido é provocar desordens; diariamente, senhores respeitáveis atracam-se a sopapos; jornalistas velho-gênero ameaçam-se de vez em quando pelas gazetas, falando de chicote e de pau a propósito de problemas sociais ou estéticos, inteiramente opostos a esses aviltantes instrumentos da razão bárbara. Nem os moços valentes, nem os senhores respeitáveis, nem os jornalistas vão sequer à delegacia.

Os desprotegidos da sorte, trabalhadores humildes, entram para a Detenção com razões ainda menos fundadas.

E a Detenção é a escola de todas as perdições e de todas as degenerescências.

O ócio dos cubículos é preenchido pelas lições de roubo, pelas perversões do instinto, pelas histórias exageradas e mentirosas. Um negro, assassino e gatuno, pertencente a qualquer quadrilha de ladrões, perde um cubículo inteiro, inventando crimes para impressionar, imaginando armas de asas de lata, criando jogos, arando rolos. Oito dias depois de dar entrada numa dessas prisões, as pobres vítimas da justiça, quase sempre espíritos incultos, sabem a técnica e o palavreado dos chicanistas de porta de xadrez para iludir o júri, leem com avidez as notícias de crimes romantizados pelos repórteres, e o pavor da pena é o mais sugestionador de reincidência. Não há um ladrão que, interrogado sobre as origens da vocação, não responda:

– Onde aprendi? Foi aqui mesmo, no cubículo.

Recolhida à sombra, nesse venenoso jardim, onde desabrocham todos os delírios, todas as neuroses, é certo que a criança sem apoio lá fora, hostilizada brutalmente pela sorte, acabará voltando. Mais de uma vez, na cerimônia indiferente e glacial da saída dos presos, eu ouvi o chefe dos guardas dizer:

– Vá, e vamos ver se não volta.

Como mais de uma vez ouvi o mesmo guarda, quando chegavam novas levas, dizer para umas caras já sem-vergonha:

– Outra vez, seu patife, hein?

Mas que fazer, Deus misericordioso? Nunca, entre nós, ninguém se ocupou com o grande problema da penitenciária. Há bem pouco tempo, a Detenção, suja e imunda, com cerca de 900 presos à disposição de bacharéis delegados, era horrível. Passear pelas galerias era passear como o Dante pelos círculos do inferno, e antes do senhor Meira Lima, cuja competência não necessita mais de elogios, o cargo de administrador estava destinado a cidadão protegidos, sem a mínima noção do que vem a ser um estabelecimento de detenção.

Qual deve ser o papel da polícia numa cidade civilizada? Em todos os congressos penitenciários, até agora tão úteis como o nosso último latino-americano, ficou claramente determinado. A polícia é uma instituição preventiva, agindo com o seu poder de intimidação, e o doutor Guillaume e o doutor Baker chegaram, em Estocolmo, às conclusões de que uma boa polícia tem mais força que o código penal e mais influência que a prisão.

A nossa polícia é o contrário. Para que a detenção dê resultados, faz-se necessário seja conforme ao fim predominante da pena, com o firme desejo de reformar e erguer a moral do culpado. Que fazemos nós? Agarramos uma criança de 14 anos porque deu um cascudo no vizinho, e calma, indiferente, cinicamente, começamos a levantar a moral desse petiz dando-lhe como companheiros, durante os dias de uma detenção pouco séria, o Velhinho, punguista conhecido, o Bexiga Farta, batedor de carteira, e um punhado de desordeiros da Saúde!

A princípio tomei-lhes os nomes: Manuel Fernandes, Antônio Oliveira, Francisco Queiroz, Martins, Francisco Visconti, Antônio Gomes...

Mas era inútil. Para que, se o crime está na própria organização da polícia? Estão marcados! E eu ia deixar esse canto de jardim sinistro, quando vi uma pobre criancinha, magra, encostada à parede, o olhar já a se encher de sombra.

– Como te chamas?

– José Bento.

Tinha 14 anos, e era acusado de crime de morte. Fora por acaso, o outro dissera-lhe um palavrão... Quem sabe lá? Talvez fosse. E, cheio de piedade, perguntei:

– Vamos lá, diga o que o menino quer. Prometo dar.

– Eu? Ah! Os outros são maus... São valentes, sim, senhor, metem raiva à gente... Até têm armas escondidas! A gente tem de se defender... Eu tinha vontade...de uma faca...

E cobriu o rosto com as mãos trêmulas.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 04 de janeiro de 2021

A PROMESSA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A PROMESSA

(Humberto de Campos)

 

 

Foi um alvoroço na vila quando se soube que alguns rapazes do lugar haviam sido sorteados para o Exército. Há meses, andara por lá, tomando nota dos nomes, um capitão, que levara o endereço de todos; e ninguém se lembrava mais dele, nem da sua farda, quando chegou aquela notícia, alarmando as mães, afligindo as noivas, mas entusiasmando, ao mesmo tempo, a mocidade vigorosa da terra, atingida pela convocação.
 
— No tempo do Paraguai — diziam os velhos, cachimbando monotonamente à sombra fresca das latadas, — o remédio era o mato. Ou, então, passar o facão na mão direita e cortar uns dois dedos para não puxar o gatilho.
 
E enumeravam-se os que, por esse modo, haviam fugido ao recrutamento:
 
— Foi assim que escaparam o Bernardo Viúvo, o Joaquim André, o defunto Casimiro, o defunto Rogério e o falecido Manuel Simeão, pai de Sotero Boa-Vista.
 
A contribuição humana lançada, de chofre, sobre a vila do Araçá, era, porém, de molde a não permitir deserções. Nada menos de oito rapazes tinham sido chamados ao serviço das armas, para o qual todos se apresentaram sem temor ou constrangimento, antes com alegria, com vivacidade arrogante, como se esperassem de há muito aquele apelo ao seu brio patriótico. Para festejar o acontecimento, foi formada, na véspera da partida dos conscritos, uma passeata, que percorreu as quatro ruas do lugarejo, puxada por uma banda de música. Oradores fizeram-se ouvir, concitando aqueles conterrâneos à prática de atos heroicos, elevando o nome da sua vila natal na disciplina dos quartéis e nos campos de batalha. E, na manhã seguinte, metidos na sua melhor roupa de cassineta ou de brim, montando os melhores cavalos do município e acompanhados por numerosos cavaleiros amigos, os rapazes partiram a galope, a fim de tomar o trem dezoito quilômetros adiante, com destino à capital.
 
 
CAPÍTULO II
 
Entre as mães que ficaram chorando, nenhuma, porém, chorava tanto, como a velha Maria Inácia, mãe do João Vicente. Pobre, vivendo menos do trabalho do que do amor daquele filho, era ele tudo na sua vida obscura. Quando o capitão passara pela vila, tomando o nome aos rapazes, tinha ela mais uma filha e um filho. O filho havia morrido e a filha casara-se. E, a partir desse dia, João Vicente, o mais novo, se tornara o seu tesouro e o seu mundo. Era um rapagão forte, claro, vistoso. Alegre e brincalhão, passava as noites em festas e serenatas, fazendo sonhar as moças do lugar. Exímio tocador de violão, não havia noite de lua que ele não a atravessasse acordado, indo cantar e tocar, com outros, companheiros de infância e de mocidade, nas proximidades dos prédios em que havia raparigas bonitas. E os dias, passava-os em casa, ajudando a mãe a tratar da chácara pequena, ou a ensaiar modinhas chorosas para as distrações boêmias da noite. Por isso mesmo, por vê-lo criança, infantil, aos vinte anos, era que a mãe sentia mais a sua falta. Pessoas amigas haviam-lhe dito, que, tratando-se do filho único, lhe seria fácil conseguir a sua dispensa do serviço militar; de tal maneira, porém, o João Vicente se opusera a essa ideia, ameaçando até de a abandonar na sua velhice sem arrimo de coração, que a mísera se viu na contingência de sufocar o choro da alma, deixando-o partir, animoso, galhardo, risonho, entre as palmas das moças, e o soluço comovido das outras mães.
 
 
CAPÍTULO III
 
Seis meses tinham decorrido após a partida do Araçá, quando chegou ao quartel a ordem de aprestar o batalhão. A rebelião no sul havia estalado, assumindo proporções inesperadas pelo governo, e reclamando a remessa, para a região conflagrada, de novas unidades militares. Vários regimentos haviam sido já dizimados, de um lado, e de outro. Os feridos enchiam os hospitais, pondo um forte cheiro de sangue na atmosfera.
 
E o batalhão partiu.
 
Doze dias depois, estavam as forças de que era um dos componentes acampadas nas vizinhanças de uma pequena cidade do interior, na zona de guerra, quando o João Vicente recebeu, com a sua companhia, munição de combate. Em torno do corpo, nos bolsos do cinturão forte, os cartuchos punham um peso novo, que, no entanto, pouco o afligia. E eram nove horas da manhã quando o batalhão, após uma pequena marcha de dois quilômetros, teve ordem de desalojar os rebeldes de uma trincheira, entre o serrote e o rio. Sob a fuzilaria do inimigo, e, principalmente, sob o fogo de uma metralhadora mascarada por um monte de pedras, o batalhão investiu, a peito descoberto. Dois companheiros ficaram no chão, feridos. A uma ordem de comando, os soldados deitaram-se, e começou a avançada lenta, morosa, ventre na terra, o queixo arrastando na grama, avançada de répteis, de animais coleantes, cuspindo fogo pelo cano escuro dos fuzis.
 
Dentes cerrados, olhos ardentes, a mão crispada na arma, carregando-a e descarregando-a continuamente, João Vicente avançava, palmo a palmo, sob o fogo do inimigo. À grande fila que se formara no instante da investida tornava-se cada vez mais curta e mais rala. As balas zuniam sobre a sua cabeça como uma agulha diabólica, que costurasse a atmosfera. Se olhasse para trás, para o caminho percorrido de bruços, desanimaria, talvez, ao ver o campo semeado de corpos, — uns estorcendo-se sob as dores dos ferimentos, outros paralisados, já, pela morte instantânea, os olhos vidrados, a boca escancarada, golfando sangue. João Vicente não sabia, porém, naquele momento, se tinha companheiros, ou se avançava só. A metralhadora estalava na sua frente, como a motocicleta da morte. O seu leque de balas varria tudo. Estava ele, mesmo assim, quase a vinte metros do monte de pedras. Mais dez metros e, se não fosse descoberto, estaria, pela posição, fora do alcance da arma terrível. O suor descia-lhe da testa, cegando-o. Mais cinco metros foram vencidos... Mais três... E outros, ainda. A quatro metros não se conteve mais: abandonando o fuzil, o sabre na mão, deu um salto de tigre, atirando-se, com todo o peso do corpo, como uma bala de canhão, sobre a pilha de granito, que se desmoronou com estrondo para o fosso da trincheira, levando de roldão o assaltante, a metralhadora, e, de mistura, com os blocos de pedra, os dois atiradores que a manejavam!
 
Calada por essa maneira a arma que mais os hostilizava, os assaltantes, desprezando a fuzilaria, puseram-se de pé e investiram contra a trincheira, rangendo os dentes. E, em breve, após um curto combate à arma branca, em que homens da mesma pátria se retalhavam, se dilaceravam, se estraçalhavam com fúria sanguinária, tomavam os legalistas posse do reduto, onde o sangue coagulado se misturava, repugnante, entre zumbidos de moscas, com dejeções humanas e com a lama da chuva da véspera.
 
Promovido a cabo, João Vicente tomou, ainda, parte em dois combates e em diversos reconhecimentos. Bravo, calmo, destemido, portara-se sempre, em uns e em outros, a contento do comandante, que lhe havia prometido, já, as fitas de sargento. Não era, porém, mais, aquele rapagão claro das serenatas do Araçá. A barba forte, que raspava toda antigamente, tomava-lhe agora o rosto, envelhecendo-o, dando-lhe os ares daqueles cangaceiros do nordeste, que via passar, às vezes, a cavalo, pela vila, com a faca de um lado, a garrucha de outro, e o clavinote na lua da sela. A vida militar absorvera o boêmio. Era, agora, um soldado.
 
 
CAPÍTULO IV
 
Com a partida dos sorteados, o Araçá era como um organismo que tivesse sofrido uma sangria. Sem as suas festas dos sábados e as suas serenatas das noites de lua, as casas passaram a fechar mais cedo e a abrir mais tarde parecia que aqueles oito rapazolas enchiam, sozinhos, as ruas da vila. Por toda parte reinava uma tristeza de morte.
 
Ao chegarem à capital, ao quartel, alguns escreveram. E as cartas, ligeiras e simples, passavam de mão em mão como relíquias, que eram. O coração da vila acompanhava-os; até que uma grande emoção a abalou, meses depois, com a notícia de que o batalhão em que haviam sido incorporados, partira, entre festas da população da cidade, para as campanhas fratricidas do sul.
 
De quantas almas sangravam no Calvário da Saudade, nenhuma havia, porém, como a da velha Maria Inácia, mãe de João Vicente. Desde o momento em que o filho partiu, acendera ela uma lamparina de azeite em frente ao oratório tosco, forrado de azul, onde a Senhora das Dores chorava, o coração transpassado por uma espada. De joelhos, as mãos juntas, os olhos súplices, postos no rosto consolado da imagem, prometera, no arrebatamento da sua fé e do seu temor:
 
— Minha Mãe Santíssima! vós, que sois mãe, velai pelo meu filho! Guiai-o através de todos os males, preservando-o da morte e dos perigos do mundo! E eu vos prometo trazer sempre acesa, dia e noite, esta luz aos vossos pés!
 
E dia e noite não faltou, jamais, aquela chama votiva aos pés da Senhora das Dores. Três, quatro, cinco vezes, nas horas de sono, levantava-se a velhinha, no seu xale preto, para examinar se ainda havia azeite no copo e se a pequena rodela de cera e cortiça daria, ainda, até de manhã. Parecia-lhe ao coração alarmado que aquela chama era a própria vida do seu filho e que, se se apagasse, a sua existência se apagaria com ela. E, nesse delírio, redobrava de cuidado, vigiando a chama tímida como se velasse à cabeceira de um enfermo, sob a ronda traiçoeira da morte.
 
Até que, uma noite, foi um desespero. Fatigada pelas vigílias contínuas, a velhinha adormeceu mais profundamente na cadeira, ao lado do oratório. Quando despertou, madrugada alta, o quarto estava escuro.
 
— Meu Deus! meu filho morreu!... gritou, num acesso de terror, os olhos arregalados na treva, as mãos tateando, trêmulas, a caixa de fósforos na mesinha do oratório.
 
A velha criada que lhe fazia companhia acorreu, tropeçando nos móveis, e, riscando o fósforo, reacendeu a lamparina.
 
— Luíza, meu filho morreu!... O João morreu, Luíza!... gritou, abraçando-se à velha serviçal.
 
— Sossegue, "nhá" Nacinha! sossegue: não morreu, não! Tenha fé em Deus! — pedia a outra, procurando tranquilizá-la, tendo embora a alma assustada por aquele prenúncio.
 
A datar desse dia, a vida de Maria Inácia passou a ser uma agonia contínua, entrecortada de preces, diante do oratório. As promessas multiplicaram-se. Até que, uma noite, em um momento de maior aflição, ofereceu, com toda a sua alma devota:
 
— Minha Senhora das Dores! trazei meu filho são, e salvo, ainda uma vez, à minha vista, que eu vos dou a minha vida!
 
E com todo o fervor da contrição, num acesso de choro:
 
— A minha vida pela dele, minha Mãe Santíssima!... A minha vida pela dele!... Mas que eu ainda veja meu filho!...
 
 
CAPÍTULO V
 
Dois meses depois da promessa, e oito da partida dos sorteados, com as primeiras chuvas do inverno, a vila do Araçá se tornou toda festiva, como nas suas solenidades religiosas. No adro da igreja, com os músicos vestidos de branco, a filarmônica esperava o momento de romper com toda a sonoridade dos metais, quebrando o silêncio dos campos vizinhos com um dos seus "dobrados" retumbantes. As crianças corriam pelo capim espontante, molhando os pés nas gotas de sereno, ou da chuva da noite. Comerciantes, fazendeiros, agricultores, trajando as roupas domingueiras, conversavam à porta dos estabelecimentos. É que voltavam ao Araçá, em gozo de licença, quatro dos oito conscritos do ano, que se haviam portado heroicamente em campanha. E, entre eles, já no posto de sargento, vinha, queimado do sol e com os sinais da fadiga no semblante, o João Vicente, filho de Maria Inácia. De repente, um grito:
 
— Lá vêm eles!...
 
Na extremidade do caminho, longe, levantava-se uma nuvem de poeira. E, momentos depois, penetrava na praça, de roldão, a cavalhada luzidia dos parentes e dos amigos com os quatro soldados à frente, ao mesmo tempo que, tornando mais comunicativo o arrepio de entusiasmo, a banda de música atacava, com toda fúria dos instrumentos, o "dobrado" mais ruidoso do repertório.
 
 
CAPÍTULO VI
 
Aproximava-se o dia do regresso dos rapazes. Todo aquele mês havia sido de festas, de homenagens aos bravos soldados conterrâneos. E à medida que se escoavam as horas, mais se confrangia a alma de Maria Inácia. O seu coração não se saciava de acariciar o filho. As noites, levava-as acordada, passando-lhe as mãos pelos cabelos, cobrindo-o com o lençol, beijando-lhe a cabeça adormecida. Nos primeiros dias, estava certa de que a Senhora das Dores consideraria uma loucura a promessa que lhe fizera, e a perdoaria. Pouco a pouco, porém, a proporção que se aproximava o dia do regresso, foi a su'alma se inquietando. Prometera dar a sua vida pela do filho, se ainda o abraçasse uma vez. Deus o trouxera aos seus braços, ao seu carinho, à sua presença. Devia cumprir o voto? E, se não cumprisse, Deus não a castigaria no coração, arrebatando-o ao mundo, nos novos combates em que tomasse parte?
 
Esse pensamento afligia-a. Até que, de repente, resolveu:
 
— Não, eu devo cumprir a promessa. Devo, sim. Antes eu do que meu filho. E eu resistiria, acaso, à dor de perdê-lo, se o perdesse por culpa minha, por falta minha perante Deus?
 
 
CAPÍTULO VII
 
Os dias que antecederam o regresso dos rapazes à sede da guarnição tinham sido de chuvas torrenciais. Na serra, principalmente, havia chovido muito. E, avolumado pelos riachos da montanha, o rio Araçá rolava agora transformado em torrente, arrastando galhos de árvores e moitas de aninga no turbilhão das suas águas escachoantes. Comprimido pelas ribanceiras, que ia lambendo numa volúpia furiosa de sátiro, fazia vertigem vê-lo. De quando em quando, um ruído cavo alarmava os moradores ribeirinhos. Era a queda de um barranco, de uma barreira da margem, que logo se dissolvia em rodopios, na retorta diabólica daquelas águas.
 
A viagem estava marcada para as nove da manhã seguinte. Amorosa, meiga, solícita, Maria Inácia passou todo o dia ao lado do filho, extremando-se em cuidados, em meiguice, em desvelos. Beijava-o de instante a instante, abraçando-o com toda a força da sua fraqueza, como se quisesse apegar-se a ele, e não o soltar mais.
 
À noite houve uma festa de despedida em casa de um dos licenciados. Maria Inácia ficou em casa, ajoelhada diante do oratório, rezando. Pela madrugada, o João entrou. Vinha suado, cansado, exausto de dançar.
 
— Despe-te, meu filho, e dorme, — disse-lhe a velha, abençoando-o.
 
Os galos amiudavam. Uma brisa fresca sacudia as árvores, fazendo estalar no chão os pingos da chuva acumulados nas folhas. Pé ante pé, o xale ao ombro, Maria Inácia entrou no quarto do João. Ajoelhou-se à sua cabeceira, beijou-lhe a testa, os cabelos, a mão abandonada para fora da cama. Ergueu-se, tomando o rumo da porta, e, de lá, enviando um último olhar ao filho adormecido, saiu como uma sombra.
 
À margem do rio, parou, olhando a torrente. As águas gorgolejavam sinistramente lá embaixo, no escuro. Ajoelhou-se, persignou-se, e balbuciou, trêmula, a oração dos mortos. Chegou o xale mais para o corpo magro, num arrepio. E, fechando os olhos, deixou-se rolar, como um fardo, pelo declive da ribanceira...
 
Só dois dias depois, três léguas abaixo da vila, entre duas pedras, foi pescado o cadáver. As mãos, que tanto haviam rezado, tinham sido, já, devoradas pelos peixes.

Literatura - Contos e Crônicas domingo, 03 de janeiro de 2021

DUAS RAINHAS (RESUMO DE CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

 

Narrado em terceira pessoa, é a estória de duas
irmãs, pra lá de gordas, que vivem juntas e não conseguem
parar de comer e engordar.

Augusta reclama de Rosa, “A Rosa é muito tirana”
por ela ter desfeito os seus noivados. Mas o último dos três noivos
conquista a Augusta e apesar da irmã opor-se instalaram-se na casa dos
pais.

Glauco, proíbe Augusta de ir aos bailes e não
deixa que ela o acompanhe até o portão. Ficam fechados o tempo
todo dentro do quarto e Rosa reclama com sua mãe ” — Já se
viu (…) que pouca-vergonha?”

O marido quase não dorme, enquanto observa Augusta que
ronca. Ela perde alguns quilos e Rosa engorda.

Saem para fazer compras e Rosa é confundida como se estivesse
grávida.

Com isso, Glauco começa a beber.

“— Você tem vergonha de mim — choraminga Augusta.”

“— Se ao menos evitasse bolinha no vestido.”

Rosa tripudia pois não acreditava no casamento da irmã.

Glauco briga com a irmã, com o sogro e a sogra. As irmãs
continuam sempre nas gulodices e anunciando o regime para o dia de amanhã.
Têm sonhos com bichos, Augusta adora um elefante branco. Uma tarde explode
o escândalo. Dona Sofia e Augusta vão ao dentista, na volta encontram
Rosa em prantos. Glauco investiu e derrubou-a no sofá, aos gritos e beijos:

“— Minha rainha das pombinhas!”

Augusta só quer morrer e agora as duas ficam no quarto
de casal e o marido no quarto de hóspedes. Bebe feito condenado enquanto
as irmãs engordam mais. Reclamam da magreza de Glauco:

“Viu o Glauco? — Magro que dá pena (…)

— Não sei onde está com a cabeça.

— Gente magra é tão feia!”

“Contemplam-se orgulhosas…”

Acaba o conto as irmãs juntas, apoiando uma em cada janela
da casa e prometendo que amanhã farão regime.

“— Amanhã dia de regime (…) — Que tal pedacinho
de goiabada? (…)”

“Derrete-se a guloseima na língua. Rosa tremelica
o papo rubicundo. Suspendendo a perna com duas mãos, Augusta cruza os
joelhos.”

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 02 de janeiro de 2021

ESCRITORA, SIM; INTELECTUAL, NÃO (CRÔNICA DE A UCRANIANA BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

 

“Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade. 

[…] Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?

O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 01 de janeiro de 2021

A BATALHA DOS LIVROS (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

A BATALHA DOS LIVROS

Raul Pompéia

(Grafia original)

 

Foi um sábio, Aristóteles de Souza. Recebera na pia batismal um nome significativo, vaticínio de encomenda dos pais, sem grave ofensa à modéstia porque vinha logo atenuar, os compromissos a restrição chué do sobrenome.

Aristóteles, entretanto, ficava sendo, embora de Souza. Dominava-o a avidez de conhecer como um vício insaciável. Tinha sede de idéias, fome de páginas; havia alguma cousa de traça no seu apetite. Oh! não lhe ser dado viver entre a compressão erudita de dous capítulos de um livro fechado, tranqüilo e só, roendo, roendo as saborosas folhas

Dormia pouco, comia menos, não bebia nada, excetuando o abuso da água do pote a que se entregava periodicamente em cristalinas orgias de asceta. Não tinha afeições pessoais, porque a aplicação o distraía de ter sentimento; detestava o bulício do mundo e a preocupação dos negócios.

Pura massa de sábio: nos livros, dos livros, para os livros.

Muito rico, confiara a direção inteira dos seus interesses a um raro procurador honrado e, alto, no platô das Paineiras, sobre os rumores da cidade e sobre as intrigas dos homens, desfrutava a sensualidade espiritual dos estudos, encerrado em um grande prédio que lá mandara construir.

Com Aristóteles, morava um sobrinho, o Sancho, rapaz amável, bem apessoado de carnes, com um ventrezinho de jovialidade cativante, pouco inteligente, falador, encarregado de receber as visitas, entretê-las com a melhor hospitalidade e despachá-las atenciosamente, antes que lhes ocorresse a idéia de ir perturbar o sábio na sua sabedoria.

Aristóteles falava raramente ao sobrinho. Não se dignava. Sancho, em compensação, venerava-o, acatando profundamente essa desdenhosa reserva como o nicho do seu ídolo. Aos criados o sábio não dirigia palavra. Gesticulava os seus desejos e era compreendido às maravilhas.

Uma vez por semana dava audiência, para quem o quisesse consultar sobre elevados motivos técnicos.

Traço complementar: era fisicamente a ressurreição magra do velho Littré.

Um

LEXICON

Dos esdrúxulos portugueses seguido de um breve tratado dos adjetivos científicos derivados do grego, e vantagem do seu emprego no discurso, para o fim de dar precisão, sonoridade e prestígio às frases.

Granjeara-lhe a reputação unânime de profundo em que era tido.

Tinha publicado também uma monografia entre industrial e científica sobre as Cidades peixeiras do Brasil, ou piscicultura nacional e futuro deste ramo de aplicação da indústria humana com a continuação do tempo e o progresso da navegação. Esta segunda obra, que lhe valera um diploma de membro do Instituto Histórico, provava, jogando com as estatísticas dos mercados de peixe, que o incremento da atividade náutica fazia desaparecerem os peixes, afugentados pelo rumor das rodas e hélices dos paquetes, para regiões afastadas e mais tranqüilas do oceano.

Apesar do diploma e da nomeada, Aristóteles não estava satisfeito consigo. Aclamasse-o o mundo inteiro, posteridade inclusive, aclamasse-o sábio, com hipoteca segura sobre uma dúzia de centenários glorificadores, Aristóteles, no seu bom senso, estava a contragosto, desconfiando que não passava de uma besta. Aristóteles... ora, ora! - de Souza!...

É que, de todos os seus estudos copiosos nunca lhe fora possível fazer um organismo unificado e harmonioso: o Problema da classificação dos conhecimentos escapava-lhe ao cérebro, intangível e sutil, em meio de todo aquele tumulto de noções anarquizadas, como o espírito do Senhor no caos dos primeiros dias do mundo. O espírito onipotente da síntese, obstinava-se em recusar o fiat às trevas daquela desordem.

Que desespero! Ter consciência de que sabia, de que lhe haviam entrado de enfiada no cérebro os conhecimentos matemáticos, lingüísticos, históricos, geográficos, astronômicos, e a física, e a química, e a história natural, desde a investigação microscópica até ao reconhecimento hábil e prático dos mais difíceis espécimes dos três remos da natureza; conhecer descritivamente todas as filosofias, desde Aristóteles, o outro, até Aristóteles, ele mesmo, ter meditado, uma por uma, as crenças e as religiões de todos os tempos e lugares, sem falar de uma leitura completa impossível de todas as literaturas em original, desde os poemas da neve escandinava até os poemas do sol do Himalaia, que desespero ser erudito, erudito, erudito! e não poder ligar, na rapsódia de uma concepção cosmogônica do universo, tanto retalho precioso!

Os sistemas filosóficos eram engenhosos, lógicos, concatenados. Mas não serviam porque, sendo razoáveis, eram diversos! O que é múltiplo em opinião não é verdadeiro. A luz é uma só e indiscutível. Aristóteles tinha por falsos todos os princípios debatidos. E, como a filosofia é uma polêmica, lá ia ele atordoado por entre as escolas como um bêbado.

Mas ardia por ver em que ficavam os pensadores para então filiar-se em remorsos à escola unânime e universal dos perfeitos sábios. Quando chegaria para esta solução o Messias mestre?

Infelizmente, não dispunha da necessária força, ele, Aristóteles de Souza, para fazer a paz entre os princípios. Só havia talvez resignar-se a morrer, dolorosa contingência! sem conhecer o advento bendito da Luz indiscutível e única.

Para compensar a tristeza da decepção, Aristóteles atirava-se aos livros com redobrada fúria, tentando embriagar-se com a contemplação dos fatos isolados.

 

O cenáculo dos seus excessos de erudito esfaimado, era o templo.

Templo chamava Aristóteles à biblioteca, situada no centro da casa. Estava-se aí em um retiro de completo sossego. A luz penetrava verticalmente por uma clarabóia de vidros foscos, e se dispersava, silenciosa e igual, descendo pelo lombo colorido dos volumes ao soalho tapetado, onde caía maciamente, como receando perturbar a paz absoluta do interior.

A sala era hexagonal, de uma arquitetura graciosa e opulenta. Seis estantes uniformes de madeira lavrada e fosca encobriam as paredes e cercavam o local, tocando os frisos do teto com os emblemas do estudo que as adornavam, globos terrestres, teodolitos, lunetas, tinteiros, troféus de penas e réguas artisticamente arranjados, panóplias completas dos combates do espírito, sobre alfarrábios amarrotados de páginas enormes - tudo primorosamente talhado em carvalho.

Duas portas comunicavam a biblioteca com os outros aposentos da casa. Sobre as portas desabavam amplos reposteiros da cor da madeira das estantes. A cada um dos seis ângulos, formados pelo encontro das estantes, havia uma estátua.

Quatro destas pequenas, ladeando as portas.

D. Quixote, de ponto em branco, magríssimo, sentado, espada de cavaleiro à cinta, heróico, cravando, na encadernação inofensiva dos livros do lado oposto, o desafio do olhar nobre e triste de vingador de agravos.

Hamleto, de pé, um gracioso descanso sobre um quadril, em traje ligeiro de jovem fidalgo, deixando ver até à coxa as longas meias do tempo, a mão esquerda sobre a espada, a direita fechada à altura do queixo, em gesto de fervorosa contensão meditativa.

Pela colocação da estátua, o olhar do príncipe sombrio ia direito às faces cavadas e aos longos bigodes desanimados de D. Quixote.

Fausto, o pobre filósofo, preocupado simultaneamente pela decepção espiritual e pelo amor intenso à vida, simbolizada em Margarida.

Mefistófeles, ao lado de Fausto, perseguindo-o ali mesmo na ornamentação da biblioteca, inseparável mentor das trevas, com o seu vestuário de pajem, o gorro, e a petulante pena oblíqua, e a ironia satânica.

As duas outras estátuas eram colossais. Aristóteles e Shakespeare.

As quatro primeiras descansavam sobre colunas de ferro negro, as duas últimas sobre peanhas quadrangulares de madeira pintada de branco.

Todas de bronze.

A de Aristóteles envolvia-se nas dobras simples e majestosas de um manto grego. Shakespeare trajava, segundo uma gravura muito conhecida que o representa perante a corte de Inglaterra.

O cone luminoso, baixando da clarabóia, chegava em toda luz aos nomes gravados nas peanhas. O corpo das figuras desenhava-se num crepúsculo que escurecia gradualmente para o teto; a fronte delas mal se distinguia no círculo de sombra que rodeava a clarabóia.

Em meio dessa sombra, como dentro de uma nuvem, percebiam-se confusamente rostos que olhavam para baixo fixamente - retratos de homens ilustres, obra rara de arte, pintados no teto sobre medalhões apensos às volutas do estuque, frondosamente distribuído para todos os lados, em torno do foco luminoso da clarabóia.

No centro da sala achava-se uma grande mesa cercada de divãs.

Aí se entregava Aristóteles aos seus furores de aplicação.

Como lhe sabia o estudo, ai na calma do isolamento, não ouvindo, sequer, o murmúrio farfalhado das árvores da serra, na íntima convivência dos livros, aspirando o cheiro das encadernações novas, ou a sagrada emanação dos infólios, perfume dos séculos!

Como era agradável passar as horas absorto, com as suas obras prediletas, ferozmente excitado pela febre de conhecer; ou, por desenfado, reclinar-se em um divã e permutar olhares de inteligência com os rostos vivos do teto, Dante, Petrarca, Moliêre, Klopstock, Cervantes, Byron, Guttemberg, Kepler, Beethoven, Miguel Ángelo, Kant, Cesar, Sócrates, Lafontaine, Ariosto, Hegel, Descartes, Darwin, Leão X, Spencer, cem figurões do espírito, com os quais privava o nosso sábio!

Que nobre entusiasmo lhe produziam então as estátuas! Como se entendiam bem Aristóteles e aqueles homens de bronze, que representavam a imortalidade do gênio e das obras geniais! Em êxtase de vaidade, mirando as esculturas, o sábio chegava a sentir-se digno também de uma transfiguração. Encontrava mesmo em si alguma cousa que o aproximava da natureza daquelas estátuas. O destino de um sábio é acabar estátua tarde ou cedo. No meio daquelas figuras, Aristóteles sentia-se um pouco monumento, como elas. Uma dormência estranha tomava-lhe as pernas, beribéri da glória! e ele sentia-se já metade bronze, bronze até à cintura, como aquele personagem das Mil e uma noites!

De súbito caía em si. Como pensar em estátua, um pobre diabo que não chegara a consolidar em um sistema os próprios conhecimentos, o triste sábio dos retalhos, avesso à síntese?!

Assaltavam-no assim inopinadamente dolorosos momentos de desânimo, no meio das preocupações do estudo.

Ele queria escapar à obsessão... Lã estava a síntese impassível, a rir sarcasticamente no Mefistófeles de bronze, a rir para ele, o espírito da classificação, como a zombaria da própria inépcia, fechando-lhe a estrada das aspirações!

 

Por mais que tentasse não foi possível a Aristóteles de Souza dominar a preocupação enferma.

A grande obra estava por fazer... Ele sentiu-se arrastado a acometê-la.

Estava perdido. Galgara a Babel do saber, e a ciência, a altura incalculável dos problemas, talhados a pique como precipícios, produzia vertigens tais ao seu espírito, que lhe fora preciso cerrar os olhos ao pensamento, para escapar ao desastre.

Bem o tentou, mas não foi possível. A idéia fixa escravizou-o. A dificuldade teimosa da solução passou a acabrunhá-lo como uma desgraça.

Até que um dia as cousas mudaram.

Ultimamente, à noite trancava-se Aristóteles na biblioteca, a meditar até muito tarde.

Certa noite, como de costume, dirigiu-se ele para o seu lugar de trabalho. A biblioteca estava fechada. Aristóteles parou à porta.

O sobrinho Sancho que, desde a hora do jantar, notava modos extraordinários no tio, viu-o espiar pela fechadura como se quisesse lobrigar alguma cousa no interior da biblioteca, cousa impossível aliás, por estar a sala sem luz e o reposteiro corrido.

Convencendo-se de que nada poderia ver, o sábio colou o ouvido ao orifício da fechadura. Esta nova observação não foi infrutífera; porque Aristóteles ali ficou um tempo imenso, curvado, dobrado, com as mãos nos joelhos, imóvel naquela auscultação absurda, como na observação tenaz do mais interessante fenômeno.

Vendo que se fazia tarde, incomodado pela insistência do sábio, o sobrinho acercou-se dele e receoso de causar desagrado perguntou muito docemente:

- Não deseja descansar, meu ti.?... Já é tarde...

O velho não ouviu; Sancho repetiu o convite.

Como se lhe disparasse dentro uma mola elétrica, Aristóteles empertigou-se bruscamente contra o sobrinho; e, rijo, teso, imperioso, formidável, apontou com a mão magra para a saída da ante-sala onde se achavam, rangendo entre dentes, com a voz surda e as sílabas trincadas:

- Retira-te!

Meio amedrontado, meio compadecido, o moço afastou se. Tinha certeza de que o tio era vítima de um desarranjo cerebral. Conservou-se à distância, observando-lhe a atitude.

Quase ao romper do dia, Sancho o viu retirar-se da porta da biblioteca, passar em silêncio como um espectro e recolher-se vagarosamente ao dormitório.

No dia seguinte um respeitável médico, chamado às Paineiras por Sancho, observou a repetição do estranho fato e constatou-se a loucura do sábio.

- Tanto esforço mental... explicou o facultativo com proficiência.

 

E um ano passou.

A loucura de Aristóteles, traduzindo-se por uma inofensiva mania, não tornara necessária a mudança do enfermo para um hospício. Limitava-se o velho a passar os dias embrutecido em um idiotismo inerte, contristador, desenvolvendo a ação da sua vontade unicamente para impedir, por meio de uma proibição assombrosamente enérgica, que se abrissem as portas da biblioteca.

À noite, invariavelmente, postava-se junto da porta do templo e levava horas e horas imóvel, extático, manifestando, na fisionomia, o gozo de um prazer imenso.

Conformados com a desgraça, o sobrinho de Aristóteles e os amigos adotaram o estado patológico do sábio como uma simples metamorfose das esquisitices do velho; e não viram, afinal, diferença nenhuma entre a nova mania de escutar à noite o silêncio da biblioteca e a antiga avidez maníaca de ciência e literatura. Dous capítulos coerentes da história vulgar de um sábio.

Em compensação, que profundíssimo desdém lhes votava Aristóteles! Espíritos rudes e escuros, não lhes era dado se quer desconfiar em que vertiginosas alturas andavam os condores do seu pensamento. E certo não valia a pena comunicar-lhes as grandes cousas que lhe vibravam ao ouvido, nas preciosas horas contemplativas.

Aristóteles sentia-se engrandecer.

Um clarão novo convulsionava-lhe o cérebro como uma batalha de relâmpagos. Rebentava uma florescência de estrelas, na escuridão caótica das suas idéias. Venturosa primavera de irradiações! Era ele! era ele o predestinado!

Narrava a Bíblia o conflito meteórico dos átomos conflagrados, antes da gênese divina da Ordem. Aristóteles sentia fabulosas as dimensões do seu crânio. Dispersos, odiando-se mutuamente, cercados de uma escuridão compacta, flutuavam-lhes as idéias adquiridas nos longos labores do estudo, rebeldes a qualquer tentativa de harmonização filosófica. Repentinamente toda essa escuridão se crivara de astros cada vez mais numerosos e mais brilhantes. As células educadas do seu cérebro, outrora inimigas, sorriam umas as outras, com a chegada da luz. Havia um ano essa tendência simpática progredia em intensidade no seu espírito.

Devia ser ele Aristóteles de Souza o pregoeiro bendito da paz universal do pensamento! Era impossível que depois de tanta exacerbação mental não lhe saltasse da cabeça, a Minerva armada e invencível da sabedoria única e evidente.

Por isso ouvia no templo aquela epopéia de rumores, cada noite mais assombrosa e mais vasta.

Maravilha! Os livros que Aristóteles descera das estantes para os estudos preparatórios da confecção de um fabuloso dicionário dos conhecimentos humanos e dispersara em desordem, cobrindo o tapete da biblioteca, subindo dous palmos pelo pedestal das estátuas, todo esse mundo de volumes abriam as páginas como mandíbulas e vociferavam. Aristóteles escutava extasiado o concerto estupendo das vozes.

Clamavam as filosofias, clamavam os apostolados da crença, estertoravam os mártires. Cadenciando o vozear desordenado das opiniões ardentes, ouvia-se a palavra calma dos livros didáticos, a proferir preceitos. Os geógrafos narravam viagens; os astrônomos revelavam descobertas. Prestando bastante atenção percebia-se o desmoronar longínquo dos impérios; de momento a momento uma página repetia as palavras de Baltazar; ouvia-se caírem os dias e os acontecimentos como as folhas das árvores: era o rumo da História.

À primeira noite Aristóteles de Souza fora impressionado por um ligeiro barulho. Encostando o ouvido à fechadura, pareceu-lhe sentir um tropel desordenado de ratos, folgando na biblioteca em trevas. Continuando a escutar, o rumor avolumou-se como o brado crescente de um trovão nos espaços.

Cresceu e transformou-se, ganhou modulações, ramificou-se em tumultos parciais confundidos por fim em uma erupção incalculável de clamores, como se uma batalha estanha se empenhasse entre os capítulos e as doutrinas.

Aristóteles gozava, exultando, a inaudita impressão daquela sinfonia de vulcões a contorcer para todos os lados os tentáculos da lava rugidora e espantando o universo com o bramir anárquico das crateras.

Sobre o turbilhão das ciências, dos princípios, das opiniões e dos fatos, reinava a soberania das artes. Pareciam estranhas à tempestade inferior. As obras de arte exalavam harmonias arrebatadoras, dominando às vezes a peleja colossal dos fatos e das doutrinas. Inteira bonança, lá em cima. As estrofes serenas pairavam na altura, como garças sobre o oceano revolto.

Às vezes um artista descia, destacando-se da suprema placidez; então baixava como um arcanjo vingador, esgrimindo um estardalhaço de raios e reerguia-se à eminência, deixando a desolação no torvelinho das opiniões, das tiranias, ou das vergonhas.

 

Esta contemplação estupenda acabrunhava Aristóteles. Não era impunemente que ele fruia esta audição de assombros. Cada vez que saboreava o seu estranho deleite, uma prostração mais pesada obrigava a procurar o leito.

Mas entregava-se a acessos de furor, se alguém tentava dissuadi-lo da fatigante penitência que se impusera.

Um belo dia, a debilidade não permitiu mais que ele se fosse postar no seu observatório do costume. O velho sábio implorou com lágrimas de desespero que o carregassem até à porta do templo.

Arranjaram-lhe aí uma cadeira confortável e Aristóteles ainda uma vez pôde chegar até o seu querido posto de observação.

Entretanto o sobrinho, um médico e alguns amigos presentes não viram mais acender-se o olhar do sábio como nas noites de entusiasmo. Ele colou o ouvido à fechadura, mas uma expressão dolorida de desapontamento foi o único ritos que lhe agitou a face.

Voltou para a cama mais abatido do que nunca. Com o olhar fixo e morto, os lábios entreabertos e os membros abandonados em contristadora flacidez passou ele o dia seguinte. Embalde lhe foram proporcionados excitantes, Aristóteles parecia extinguir-se de uma vez irremissivelmente.

À noite levaram-no carregado até à porta da biblioteca. Este recurso extremo foi sem resultado. O templo, dias antes, povoado pelo rumor incrível da batalha dos livros, estava silencioso agora. Tristíssimo silêncio.

- Ah! exclamou Aristóteles em um hausto de agonia, agitando a cabeça que lhe tombava em abandono para o peito. Nada mais ouço! nada, nada mais!...

A voz fraquíssima saía como soluços.

Poucos momentos depois, ali mesmo na cadeira expirou, abraçado com o sobrinho, que o cobria de lágrimas.

Expirou, coitado! quando provavelmente ia resolver o grande problema da paz das escolas. Porque não era crível que, de tão luminosa febre cerebral, não explodisse a verdade decisiva, mediadora eficaz do conflito dos espíritos.

 

Quando, depois das cerimônias fúnebres, abriram-se as portas da biblioteca, que por mais de um ano jazera trancada, encontraram-se os livros em miserável estado. Uma turma diligente de ratos devastara a livraria. Meia dúzia de volumes, se tanto, haviam escapado à sanha dos roedores.

Pobre Aristóteles! Não lhe sobreviveram os queridos livros!

Lá estavam esparsos, fragmentados, pulverizados, desfeitos, os seus companheiros de cinqüenta anos de trabalho.

Lá estavam os seus problemas aos pedaços, as suas teorias, feitas poeira de papel roído!

Lá estavam aos montes, conspurcados e miserandos, os destroços do vigor cerebral dos homens e da sabedoria dos séculos.

Sobre aquela devastação erguiam-se inalteráveis as estátuas com a mesma expressão que lhes dera o escultor à face de bronze, Hamleto, tenebroso e irônico, Fausto meditativo e preocupado, D. Quixote a fitar bravamente as estantes vazias, Mefistófeles, de riso cruel, e as figuras colossais do Filósofo e do Poeta, com a fronte perdida no escuro do alto, em meio da ramagem florestal do estuque e dos retratos admiráveis de grandes homens.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 31 de dezembro de 2020

DUAS CRIATURAS (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO )

DUAS CRIATURAS

João do Rio
(Grafia original)

 

O grande hall do hotel estava repleto. Pelas janelas semicerradas, na suave ondulação das cortinas brancas, entrava um vago perfume de violeta e de rosa. Lá fora, entre os tufos de verdura do jardim e o céu muito azul, devia esplender a pálida luz de um sol de inverno. As mesas, todas ocupadas e cintilantes de cristais, prolongavam-se até o fundo numa orquestração de tons brancos, que iam do branco de prata ao branco gris nos lugares mais em sombra.

Os criados passavam apressados, erguendo numa azáfama os pratos de metal. Ao alto, os ventiladores faziam um rumor de colmeias. Senhoras e cavalheiros, perfeitamente felizes, as senhoras quase todas com largos "boas" de plumas brancas, chalravam e sorriam. Estávamos bem na bizarra sociedade de entalhe que é o escol dos hotéis. Alta, longa, comprida, com uma cintura de esmaltes translúcidos e o ar empoado de uma íntima do general Lafayette, a escritora americana, cuja admiração por Gonçalves Dias chegara a fazê-la estudar o Brasil, mastigava gravemente. Logo ao lado, um grupo de engenheiros, também americanos, bebia, com gargalhadas brutais e decerto inconvenientes, champagne Munn. Mais adiante a encantadora viúva do milionário Guedes, com o seu perfil de Luigni, de que tanto mal se dizia, sorria num vago sonho para a senhora Alda, a formosa divorciada do dia; Alda Paes anteontem, Alda Pereira hoje, como há cinco anos, antes de casar... De vez em quando parava à porta um novo hóspede, hesitava, percorria com o olhar a extensa fila de mesas onde o debinage se acalorava. A um canto, Mlles. Péres, filhas de um rico argentino, Yatch-recordeman nas horas vagas e vendedor de gado nas outras, perlavam risadinhas de flirt, para o solitário e divino Alberto Guerra, seguro dos seus biceps, dos seus brilhantes e quiçá dos seus versos.

Bem ao centro, o nosso vasto ministro em Honduras desdobrava a sua simpática adiposidade numa roda de mocitos elegantes, ferozes pretendentes ao secretariado diplomático, e, de vez em quando, cortando o zumbido elegante do grande hall, retinia imperiosamente o som de uma campainha elétrica.

Estávamos a almoçar cinco ou seis, convidados pelo barão Belfort, esse velho dândi sempre impecável, que dizia as coisas mais horrendas com uma perfeita distinção. E fora de certo uma extravagância aquele demorado almoço, a fazer horas para um match de foot-ball, a que seria impossível deixar de assistir O barão, de veia, com a sua voz de navalha, recortava na pele dos presentes as caricaturas perversas. Nós já tínhamos rido muito e entrávamos com apetite num vulgaríssimo salmis de coelho, quando de repente um dos nossos companheiros exclamou:

- Olha, a chilena aqui!

À porta surgiu uma triunfal figura de Céres, com o cabelo cor-de-ouro e o verde olhar coado por umas negras pestanas de azeviche. O seu lindo corpo era como que modelado pelo vestido de Irlanda e rendas verdadeiras. Nos dedos afilados e tênues, como as pétalas esguias dos crisântemos, três ou quatro pérolas rosas; nos lóbulos das orelhas, duas negras pérolas e por sobre a gola leve de rendas brancas um virginal colar de pérolas. Acompanhavam-na um cachorrinho branco de neve, de focinho impertinente, e um cavalheiro, baixo, gordo, cheio de jóias, enfiado num redingote azul.

- A chilena! A chilena aqui! Mas que sociedade é esta? bradou o mais jovem dos convivas.

O barão teve um sorriso cético.

- Meu caro, o Rio tem, como Paris ou Londres ou mesmo Montevidéu, a sua season. season começa regularmente com a chegada do primeiro mambembe estrangeiro, mambembe naturalmente insuportável, e fecha com os calores da primavera, na abertura do salão de pintura. É a época do luxo, da exibição, do sacrifício para aparecer, da tagarelice, em que toda a gente fala mal do próximo e entende de arte, é a época escolhida pelos que pretendem tomar lugar na sociedade. Nós somos uma sociedade em formação - a mais atraente, a que mais tenta por conseqüência, não só pelas suas taras, que há vinte anos não eram julgadas mal, como pelo nosso fundo meio ingênuo de aceitar tudo o que brilha, seja diamantino ou seja montana. Anualmente, de envolta com os políticos, os fazendeiros, os estrangeiros exploradores, aparecem essas figuras com um passado estranho, decididas a dominar, a entrar nos lugares honestos, a serem respeitadas.

São figuras de invernos. Querem dominar. E olhe que aqui, quase todos têm a sua história: as demoiselles Péres, talvez enteadas de um rei morto, o wildeano conde Rossi, lá longe, com o seu excepcional secretário cubano; Alberto Guerra, o sedutor irmão de D. Juan e também de Shylock, porque vive de emprestar a juros; a viscondessa Guilhermina, que chegou de Vichy e só está aqui de passagem; a Alda, a baronesa...

- Barão, cale-se, por favor! Cale-se! Figuras de inverno, não duvido. Mas a chilena é menos que isso.

- Ora, a chilena já não usa esse pseudônimo tão picante e ao mesmo tempo tão significativo para os guerreiros do Rio Grande. Todos vocês sabem a história de vício dessas três que cerca de dez anos amaram e arruinaram várias criaturas. Mas tinham de ter um nome honesto. As duas primeiras casaram. Esta é hoje a esposa do cônsul do Haiti no Pará.

- Então o homenzinho?...

- Um explorador riquíssimo que se presta a ser cônsul, auferindo todos os lucros do cargo. Deve ter uma fortuna superior a cinco mil contos. Tivemos relações em Belém e em Paris. É um caso de embrutecimento passional.

- Mas são realmente casados?

- Não há dúvida. Vocês conhecem a história das chilenas, três lindas criaturas da fronteira que se diziam chilenas por picante e a que os riograndenses chamavam chilenas como lembrança de certos estribos em que os pés ficam à vontade e toda a gente pode usar. Elas tinham topete, beleza, audácia. Para ser o vício arrasador não precisava muito outrora no Rio. Chegaram e logo a fama irradiou. De um dia para o outro, os fazendeiros ricos sentiram a necessidade de dar-lhes palácios, os banqueiros ofereceram-lhes as carteiras, os amorosos sem vintém prometeram vigor e paixão. As gaúchas ardentes, ardentes mesmo demais, faziam grandes loucuras sensuais, mas prestavam atenção ao futuro. Há mulheres que podem se entregar com frenesi a vida inteira sem conseguirem ser prostitutas. Elas tinham o frenesi, não, tinham o sinal de profissão, e depois, haviam nascido sob as estrelas complacentes. A Luíza partiu com um fazendeiro, e se engana é com os cometas, raramente. Natália recolheu com um negociante riquíssimo. Ficou apenas Maria, que diriam um caso anormal de luxúria, malbaratando dinheiro, embriagando-se, tripudiando no torvelinho da vida. Ora, Azevedo apaixonou-se pela Maria, há sete anos, vendo-a guiar uma parelha de cavalos zebrados que foram acabar no Jardim Zoológico como raridade. Maria atravessava uma das suas crises, devendo a casa, as mobílias, os cavalos, os criados, e até mesmo o adolescente robusto que fazia de Angias no fundo do palacete e de Automedonte à tarde, no passeio. Azevedo foi seringueiro ou coisa que o valha. Precisamente voltara do Amazonas, esfomeado de mulher e cheio de dinheiro. Teve o deslumbramento diante da beleza que Maria tornava provocante. Tentou o assalto, deixou-se prender, pôr o freio, montar, esvaziar. A opinião geral - e aliás alegre, era que Maria arruinaria o marchante selvagem. A sorte porém de Azevedo era intensa. Quanto mais dava, quanto mais pagava, mais ganhava. Isso devia ter concorrido poderosamente para a paixão do animal, fetiche como todos os simples, e irritar Maria, inimiga dos pagadores como todas as boêmias. Azevedo empolgou-a inteiramente. Ela, até então a Vênus vingadora, que arruina, arrasa, domina, de gênio voluntarioso, só encontrava uma satisfação: enganá-lo, traí-lo, roubar-lhe o corpo para o banquete dos esfomeados. Era uma performance entre a paixão cega e a raiva de fugir dessa paixão. Ao cabo de quatro meses, Maria proibiu-lhe a entrada, despediu-o. Estava coberta de jóias, com o cofre cheio e enfarada, aborrecida excedida pela convivência do pobre homem apaixonado e pagador. Meteu-se na grande orgia, para se convencer de que estava livre, livre por completo. Mas Azevedo, aguilhoado por aquela despedida, sentira de repente que perdia a sua carne e a sua sorte e recorria a todos os meios imagináveis para de novo apanhá-la, peitando consciências, interessando na sua desgraça à custa de bilhetes de banco as amigas da Maria, convencendo os camaradas de que era preciso fazer mudar de opinião Maria, aquela louquinha incapaz de pensar no futuro. Logo a chilena sentiu em tomo, cada vez mais presente, o fantasma do Azevedo. Falavam nas pândegas as amigas, por acaso: Ah! se aqui estivesse o Azevedo! Falava a cartomante que de oito em oito dias lhe deitava as cartas: vejo aqui um homem sério que muito a ama e agora afastado voltará a fazê-la feliz! Falavam os criados: Coitado do patrão; passou hoje por aqui, olhando muito... Falavam até os camaradas de cama e mesa: Afinal o Azevedo é um bom homem. E Maria viu que tendo despedido o Azevedo agora é que o tinha a todo o instante na lembrança, sem poder fazer-lhe mal, sem poder vingar-se, quase a convencer-se de que o idiota era bom. Certa vez disseram-lhe: o Azevedo parece resignado: vai montar casa para a Benevente. Maria teve um grande ódio e no outro dia Azevedo estava de dentro outra vez, louco de amor e ainda mais perdulário.

- Maria resignara-se?

- Para a obra da vingança, tornando-o epicamente ridículo. Não importava a pessoa, a questão era do ato. Ah! Eu imagino sempre, quando o meu egoísmo quer eternizar o amor, o desespero de um pobre ente sem poder livrar-se de outro que se molda e curva e dá tudo, e é passivo e é humilde. Há torturas, imperceptíveis à maioria dos mortais, que são dantescas. E nenhuma como essa em que o ambiente, a fatalidade, o destino forçam a vitória do mais fraco dando-lhe o que deseja; fazendo-o realizar o seu fim, impondo-o a outro corpo, a gozá-lo, a senti-lo, apalpá-lo. A grande desgraça do amor, a maior desgraça é essa, porque laça ao mesmo horror duas almas. Maria devia ter crises de desespero e de lágrimas, e quanto Azevedo devia sofrer na sua muda humildade de cão sedento de carícias! E quando levou-a para o Pará, a chilena tinha a nevrose de enganá-lo. Ora, imaginem vocês, em Belém, terra pequena, onde Azevedo tinha posição evidente! As denúncias anônimas choveram exigindo vergonha, mais pudor, mais brio. O grosso Azevedo lia e calava, porque, se revelasse uma palavra das cartas, Maria fechava-lhe a porta semanas e semanas. Uma vez, entretanto, como recebesse uma denúncia violenta, Azevedo teve tensões de ciúmes e foi encontrá-la como a princesa Falconière da Dalila, cantando num barco com certo tenor de zarzuela. Não havia dúvida! O cônsul do Haiti berrou de cólera, o tenor deu às gâmbias, a polícia apareceu. O escândalo, porém, permitiu a Maria um desses cinismos épicos. Agarrou o Azevedo pelo casaco, meteu-o dentro do carro sem dizer palavra, ofegante, e ao chegar a casa mediu-o de alto a baixo e teve esta frase, célebre há cinco anos: - O senhor é um indigno! Desconfia de mim!

É preciso pensar o alcance, a extensão moral de uma dessas frases num cérebro, obsedado pela idéia de não perder uma carne cada vez mais desejada. Maria dissera por cinismo profissional. Ele sentiu-se comovido a princípio. Afinal se enganava, procurava não o afrontar. Já era uma consideração. E depois enganá-lo-ia ela? Há tantos inocentes condenados mesmo com provas visíveis comprometedoras! E o tenor sem querer, foi a pedra angular do casamento.

- Oh! não...

- Quinze dias depois da cena Azevedo sentiu que nem de negócio e de borracha poderia entender mais. Maria, muda, grave, solene, vivia com o quarto fechado sem responder primeiro aos seus insultos, depois às suas ironias, depois aos desesperos e já agora aos rogos, porque Azevedo vivia como à espera da notícia de ter um mal irremediável, sem dormir, sem descansar, só pensando que de novo ela o deixaria. E dessa vez para sempre. Então caiu de joelhos, suplicou, pedindo perdão, jurando que não vira nada, que jamais acreditaria na calúnia... Há entre os sexos um ódio latente. Quando um se humilha a outro, esse outro toma crueldades de tirano, refocila em perversidades e em excessos. A chilena percebeu a excelência do momento, teve um assomo de dignidade, borrifada de lágrimas: Cale-se, Azevedo! O senhor é um ingrato! Nunca mais serei sua! Desconfiar de mim. Só se me der uma grande prova de confiança, o seu nome, a sua mão...

Na roda correu um desabalado riso, que fez voltar-se o grupo aspirante ao secretariado diplomático. O barão limpou o seu monóculo de cristal e continuou tranqüilamente:

- Ela nesse tempo era mais magra e tinha os cabelos castanhos, mas de um castanho que às vezes era quase negro e de outras vezes se tornava quase louro. Esse cabelo era sua alma. Azevedo, coitado! refletiu vinte dias, torturou-se vinte dias. E nesses vinte dias, a Maria lutou, em arte e manha, mais que um diplomata, graduando sabiamente as concessões que dessem ao velho apaixonado uma vaga idéia do que poderia ser o lar com uma doce criatura meiga, boa, fiel, sem azedumes, sem neurastenias. Os amigos, sabedores do desastre, reuniram-se para salvar Azevedo. Todos os meios falhavam; ou antes redundavam a favor da Maria. Um rapaz, Teofano de Abreu, se bem me recordo, latagão inteligente e bem colocado da colônia portuguesa, com certo desejo na Maria, prestou-se a um sacrifício colossal: fazer-lhe a corte, conseguir possui-la e vir contar depois para o Azevedo o fato. A Maria não resistiu, e Teofano, apesar de ter gostado, sacrificou-se:

"Azevedo, disse em presença de várias testemunhas, não podes casar com a Maria." - "Por quê?" - "Porque te engana." - "Não admito que insultem uma mulher que vive comigo." - "Mas foi comigo, venho agora de lá. Ela será incapaz de negar na minha cara. E se faço este ato indigno é para te salvar de uma horrível e irremediável indignidade." Azevedo fez-se pálido, correu casa e no outro dia não cumprimentou mais nenhum dos seus amigos. Era fatal. E afinal, para de novo possuir Maria, casou...

Fui encontrá-los em Paris, elegantemente instalados numa das avenidas da Etoile, um palácio discreto. Maria tinha carruagens, coupé elétrico, arrastava à noite pelos pequenos teatros maravilhosas capas de peles de muitos bilhetes de mil e freqüentava vários lugares maus porque vendo-a um dia a pé a rodar um bistrô, lembrei-me que bem podia estar de paixão por algum jovem apache, que os apaches são os homens belos de Paris. E mesmo provável que tivessem deixado Paris, quando já Maria dava uns chás a alguns vagos titulares internacionais, por alguma chantagem de escândalo, que o Azevedo teve de saber e pagar.

Mas isso não era nada! As exigências e o descaro de Maria cresceram na proporção do embrutecimento do marido. Quando voltaram de Paris, ela exigiu no seu palacete toda a ala direita mobiliada à indiana, com autênticos bambus de Calcutá, ponches de cobre de Benarés, deuses bramânicos de porcelana e de metal. O seu quarto tinha guarnições de seda verde pregadas a grampos de coral; os cortinados eram de gaze de Dekan, a mais leve gaze do mundo. Aos pés da cama, um Vichnou de marfim, o deus dos ricos, olhava-a a dormir. Freqüentava-os por essa ocasião uma turba-multa de homens sem preconceitos e rapazes bem-dispostos, que forneciam as traições ao Azevedo. Maria era uma pilha de nervos. Não se resignara ao pobre cônsul; e a sua neurastenia explodia em desejos de humilhações e um desenfreado apetite de sedução. À mesa, fazia o cônsul levantar-se, ir buscar o seu leque ao segundo andar, para beijar o conviva, principalmente quando o jantar era a três. De outras vezes, marcava-lhe a hora da entrada: - Preciso estar só. Apareça depois da meia-noite. E nesses dias sempre alguém conhecia a pele de tigre real com forro de brocado rubro que havia na terceira sala da ala esquerda, onde se amontoava a coleção de armas usadas por todos os soldados dos rajás imagináveis. Vocês riem! Eu afinal tenho pena. Esse homem ganhava rios de dinheiro, gozava de boas relações... Julguei-o um indigno. Não era. Era e é um ser que ama. Qual de nós não tem o seu segredo inconfessável e um desejo irreprimível? O amor é o desejo, mas o desejo da completa satisfação, dessa ilusão dos sentidos. Quando se quer assim, somos arrastados como por uma corrente. Há casos piores a que apertamos a mão...

- Mas, agora, que fazem eles?

- Não os vejo há dois anos. Naturalmente ela quer ser família. É uma aspiração natural. Vi-a com ele, na abertura da Câmara, numa pose de duquesa pintada pelo La Gandara. Decerto já se resignou ao Azevedo e estão ambos aqui, a gozar o inverno, a dar a impressão de que são felizes. E entretanto a Maria é a alma envenenada, agrilhoada a um corpo que detesta, desejando, no desequilíbrio de carne, a tropa dos homens, desejando, no desequilíbrio de moral, a posição e o respeito; o Azevedo é o pobre bruto sacrificando tudo, a honra, o dinheiro, a vergonha, rastejando o ignóbil só para que lho consintam um pouco de amor pela criatura que lhe agradou aos sentidos. E ambos desgraçados, desvairados, seguem a vida, com o sorriso no lábio e a vaga inquietação no olhar febril.

Nesse momento, a bela chilena, Maria de Azevedo, ergueu-se. O impertinente fraldiqueiro saltou da cadeira. O homenzinho baixo também, de outra. Ela viu o barão, que se levantou, curvou-se. Azevedo abriu os braços.

- Oh! você! Há dois anos!

- Donde vem?

E os dois homens abraçaram-se. Ele parecia velho, meio desconfiado. Ela, sob a luz opalizada das cortinas brancas, sorria, um sorriso misto de inexprimível ironia e de vaga satisfação, enquanto os seus olhos pousavam, como uma perturbadora carícia, na mesa em que Alberto Guerra continuava. a almoçar, seguro dos seus biceps, dos seus brilhantes e talvez dos seus versos, no brouhaha entontecedor do vasto hall.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 30 de dezembro de 2020

A DESEJADA DAS GENTES (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A DESEJADA DAS GENTES

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 - Ah! Conselheiro, aí começa a falar em verso.

- Todos os homens devem ter uma lira no coração, - ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda a hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu, mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? é porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está o outeiro célebre... Adiante há uma casa...

- Vamos andando.

- Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

- Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

- Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

- Isso. Que fim levou?

- Morreu em 1859. Vinte de abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado, tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci?

- Se foi em 1855...

-  Em 1855.

- Devia ter vinte anos.

- Tinha trinta.

- Trinta?

- Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria a confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava dos vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

- Mau, nada de ironias; olhe que a ironia não faz boa cama com a saudade.

- Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.

- Mas se os olhos não tinham mistérios...

- Tanto não os tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante, e da primeira roda. Mas um dia, no antigo Teatro Provisório entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dois confessaram haver tentado alguma coisa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessavam tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.

- Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

- No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando, calado. - Aposto que a namoras? perguntei-lhe. - Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma coisa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada, ou ela nos põe na rua, e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. - Estás falando sério? - Muito sério. - Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: - Escuta, nem divinizar o dinheiro, nem também bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma coisa e até muita coisa, - este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.

- Conselheiro, a confissão é grave, foi assim brincando...?

- Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros freqüentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.

- Brigados?

- Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que nos enfeitiçou a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio, nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.

- Começo a ver uma pontinha do drama...

- Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falara das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

- Menos a pistola.

- Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma coisa parecido com isso, foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

- Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo.

- Quintília não deixava ninguém estar só em campo, - não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali tomar um cálice de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro, mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luva das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, - coisa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, com receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

- Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

- Vai ver que não.

- O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

- ...Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos.

- Mas conversavam de quê?

- De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou parecia ser.

- A razão é clara: achava a sua conversação menos insossa que a dos outros homens.

- Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais freqüentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada, tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela...

- Mas que era isso senão amor?

- Assim o cri, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da Rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali, achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

- Enfim!

- No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

- E então?

- Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. - Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. - Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de coisas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que, posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficamos, sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos a ambos, não valia a pena que chegássemos a tal ponto. - A senhora diz isso porque não sente a mesma coisa. - Mas então é um delírio? - Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma coisa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. - Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. - É impossível; pede-me coisa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocamos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

- Treme-lhe ainda...

- E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas, mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha, que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília.

- Oh!

- Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos, e dizia coisas meigas e graves. Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; com a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.

- Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.

- Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

- Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correr à casa dele.

- Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois, o demônio da esperança veio pousar outra vez no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. Os boatos de nosso casamento correram mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei que, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma coisa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.

- De que moléstia padecia?

- Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegamos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito; teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir, ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. - Perdida, não, murmurou o médico. - Jura que não estou perdida? - Ele hesitou, ela agradeceu-lho. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

- Casou com o senhor, aposto?

- Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de abril ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez feita cadáver.

- Tudo isso é bem esquisito.

- Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meio defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 29 de dezembro de 2020

NUMA E NINFA (UM ENSAIO SOBRE A HIPOCRISIA, DO CARIOCA LIMA BARRETO)

NUMA E NINFA 

Lima Barreto

(Um ensaio sobre a hipocrisia)

 

“Numa e a Ninfa”, de Lima Barreto, é um romance linear, que trata de um casal, Numa e Edgarda, em torno de quem circulam personagens que identificam a ordem política e social do início da República Velha. Há também indícios de uma inegável desordem moral. É o mundo da mediocridade. De todos os romances de Lima Barreto, “Numa e a Ninfa” é o que possui o maior corte de profundidade psicológica. O desfecho do livro é inusitado. É impactante. Provoca uma imediata releitura inconsciente de todo o texto. Tem-se um “flasback” involuntário, uma prestação de contas para a qual o leitor é conduzido pela trama narrativa de Lima Barreto.

Numa é de uma família pobre. Obcecado com a ascensão social, esforça-se muito e consegue frequentar a faculdade de direito. O anel de rubi e o diploma lhe garantem a posição de bacharel. Resolvido. Com o casamento (por interesse, não poderia ser de outra forma) casa-se com Edgarda, filha de Neves Coutinho, viúvo, um político muito influente. Edgarda era leitora fiel de Anatole France. Numa elegeu-se deputado, às custas das ordens do sogro. Edgarda escrevia os discursos para Numa, que lutava contra os inimigos do padrinho, que era seu sogro. Dependia integralmente da esposa. Aceitou inclusive ser traído. Não sobreviveria de outra forma.

Era o tempo das eleições a bico de pena, um tempo em que coronéis (inclusive de batina) determinavam o resultado dos pleitos. Desafetos que por algum descuido conseguissem mais votos eram degolados. Isto é, a votação não era reconhecida pela Comissão Verificadora dos Poderes, que o grupo no poder controlava. A Comissão foi substituída pela Justiça Eleitoral. Além de Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto) o escritor sergipano Gilberto Amado também estudou o assunto (Eleição e Representação). Um tempo de elitismo, marcado por nacionalismo que não passava de forma disfarçada de romantismo. Uma irresponsabilidade. Ainda pagamos. Até quando?

Nesse belíssimo livro o leitor contempla uma descrição minuciosa dos vícios e costumes de uma sociedade que vivia de aparências. Lima Barreto denuncia a distribuição de cargos em troca de favores, a hipocrisia institucional, os privilégios dos militares, a injustiça (Lima narra um caso dramático, relativo à viúva de um bombeiro que pretendia receber uma pensão), o problema da fidelidade partidária, os conchavos políticos, a violência urbana que já sacudia o Rio de Janeiro, o pedantismo acadêmico e a fidelidade partidária (Numa sempre votava com o partido). Invocava com o montepio que beneficiava as filhas de militares, as viúvas que viviam em casas do Estado sem pagar aluguel e filhos que tinham colégios de graça. Não se conformava.

“Numa e a Ninfa” é um romance de crítica ao positivismo, ao bacharelismo, ao Judiciário, ao direito e ao modo como as leis eram discutidas e votadas. A principal função do governo era desagradar; exceto aos governantes, naturalmente. Há também reflexões sobre o papel da mulher na sociedade da República Velha. É de um personagem a lembrança de que “enquanto mulher parir, não há homem valente”.

Na opinião de Lilia Moritz Schwartz, competentíssima biógrafa de Lima Barreto, em “Numa e a Ninfa” o escritor “brinca com os pressupostos políticos falastrões, para quem os indígenas não passavam de inimigos internos, retardatários da natureza que deviam ficar bem longe da ‘civilização’”. Lima Barreto também denuncia o racismo; não como vítima, mas como analista social que bem sabia que uma sociedade racista é podre e diminuída, porque uma sociedade racista é imunda e desinformada. Não há raças. Somos seres humanos. Basta.

A galeria de personagens é uma recolha dos tipos da época. Numa (Dr. Numa Pompílio de Castro) é um velhaco, um arranjador de empregos. Um inoperante. Passou longos meses dormindo na bancada, era o deputado ideal, sua opinião era sabida com antecedência; era a opinião de seu sogro. Edgarda é uma mulher infeliz, para quem o adultério era também forma de sobrevivência, como o leitor poderá descobrir ao virar a última página do livro.

O general Bentes é o protótipo do ditador. Bastos é o chefe político, que nos lembra Pinheiro Machado, o caudilho gaúcho que mandou na política nacional, até ser assassinado por Manso de Paiva, no Hotel dos Estrangeiros, no Rio de Janeiro. Fuas Bandeira, diretor do Diário Mercantil, era também “professor de velocípede”. Xistoso, não? Em matéria de amor, era curioso, o Fuas “não conquistava, não namorava, não flertava, não amava: comprava”. Tinha um ar atrevido de pirata argelino.

O Lucrécio Barba-de-Bode é o exemplo mais acabado do servilismo sabujo. Há também o general Forfaible, cuja “jovem mulher empregava o ócio matrimonial fazendo visitas, correndo casas de modas, assistindo a sessões cinematográficas”.

Há também o Xandu, Ministro do Fomento Nacional, que está em todos os lugares, principalmente nos dias de hoje. Vangloriava-se de ter assinado, em único dia, 1.557 decretos. O Doutor Bogóloff é o estrangeiro aproveitador. Dona Alice era “virtuosa e casta; tinha, entretanto, as ridículas arrogâncias de nossa nobreza campestre – uma dureza e um certo desdém em tratar os inferiores, um sentimento de propriedade sobre eles e um séquito atroz de pequeninos preconceitos e superstições”. Era mãe do senador. E o que dizer de seu amante, o Dr. Felicianinho, pouco mais de 20 anos. Dona Alice orçava 70 anos. Por que nos assustamos com a diferença de idade, quando pende em desfavor da mulher, e raramente o contrário? Lembremo-nos de Chiquinha Gonzaga.

Penso que Lima Barreto também era um psicólogo. Demonstra, ao longo de algumas passagens, a deterioração das relações humanas. É o tema da rixa, que resulta em disputas inconsequentes entre pessoas que um dia se amaram. A rixa, nesse sentido, é pura manifestação de frustrações e decepções recíprocas. Lima Barreto é um turismólogo também; descreveu o bairro do Botafogo, como “aquele em que mais agradável é o amanhecer”. Uma carioca que festejava a cidade, ainda que confinado a seus bairros mais humildes. Nesse livro Lima Barreto além disso investiga o problema do plágio, até mesmo o plágio dentro do plágio: é o enigma da trama.

“Numa e a Ninfa” é uma leitura dignificante. Uma experiência estética saborosa. Um curso de sociopatologia brasileira. Uma rigorosa análise de nossos preconceitos. E um aviso. Lima Barreto sabia quem somos.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 28 de dezembro de 2020

O TROCO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O TROCO

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

12 de janeiro.

O Joaquim P'reira acabava de chegar da "terra" com o seu chapelão de abas largas e seu sólido jaquetão de veludo, quando "sô" Manoel Guimarães, proprietário da Padaria "Flor de Braga", o convidou para caixeiro.

- O essencial - avisou, entretanto, "sô" Manoel, - é que sejas honesto. O outro rapaz que eu cá tinha, pu-lo eu ontem na rua por m'haver deitado fora dois mil réis que dele não eram. Toma tu juízo, que, cá, comigo, prosp'rarás.

O Joaquim prometeu não bulir, jamais, em dinheiro da casa, e, dois dias depois, era admitido, com todos os sacramentos da rosca e da farinha de trigo, como caixeiro da "Flor de Braga". E estava já há uma semana no emprego, quando "sô" Manoel o chamou:

- "Sô" P'reira?

- Cá 'stou! - acudiu o Joaquim.

- Vá à casa do Almeida, no principio da rua, e receba esta conta de vinte mil réis.

E recomendou, prudente:

- Cuidado com o dinheiro!

O Joaquim pegou na conta, foi à casa indicada, recebeu uma cédula de vinte mil réis, e vinha, reto, no rumo da padaria, quando se encontrou com um conterrâneo, o Zé Moreira, a quem não tinha visto desde a chegada. Trocados os primeiros abraços, o Moreira convidou:

- Vamos solenizar o encontro! Arre, lá! Vamos cá à cervejaria!

Aceito o convite, foram os dois, beberam duas garrafas, trocaram notícias e saudades, e ia o Joaquim despedir-se, quando o Zé reclamou:

- E quem paga isso?

- Tu; ora essa!

- Mas eu cá não tenho um vintém; e se não pagares tu, iremos os dois bater à cadeia, o que é pior!

Amedrontado e arrependido, o Joaquim arrancou do bolso a cédula de vinte, pagou os mil e seiscentos da cerveja, recebeu dezoito mil e quatrocentos de troco, e ia pensando no meio de justificar-se perante "sô" Manoel, quando teve uma idéia, que pôs em pratica. Entrou na padaria pela porta lateral e, chamando o "Leão", um canzarrão que tomava conta da casa, pôs-se a brincar com ele, aos pulos, até que, de repente, soltou um grito.

- Que é isso lá? - trovejou "sô" Manoel, acorrendo.

Com os olhos em lágrimas, o P'reira contou o desastre:

- Foi uma desgraça, patrão! Imagine o senhôre, que eu vinha cá com o dinheiro na mão, uma cédula de vinte mil réis, e o cachorro avançou-me neles, e engoliu-os!

"Sô" Manoel franziu a testa, calculou o prejuízo, e, de um salto, estava diante do "Leão", empunhando uma garrafa de óleo de rícino. Auxiliado pelo Joaquim, abriu a boca ao animal, e, depois de purgá-lo, recomendou ao rapaz:

- Agora, fica-te cá, junto do bicho, à espera do dinheiro. Logo que ele o deite, segura-o. Meia hora depois estava "sô" Manoel de volta, a saber noticias do purgante:

- Já deitou o dinheiro? indagou do empregado.

O Joaquim, que esperava, ansioso, por esse momento, abriu a mão, e mostrou, desafogado:

- Todo, todo, não senhôre; até agora só deitou 18$400!

E entregou o troco da cerveja.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 26 de dezembro de 2020

HENRIQUE VENCESLAU (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

HENRIQUE VENCESLAU 

Aluísio Azevedo

 

Acabamos neste instante de ler a notável tese do Dr. Henrique Venceslau, e é ainda sob a mais bela impressão que vamos falar desse trabalho.

Afastando-se dos processos comuns em geral empregado na elaboração desse gênero de estudo, quase sempre feitos a contragosto, para cumprir uma formalidade de curso, e quase sempre mal escritos e insuportavelmente impregnados do cheiro de banco de academia, este novo médico imprimiu à sua tese inaugural um franco desenvolvimento de obra espontânea e até certo cunho de individualidade crítica, que lhe dão especial valor.

Quis fazer uma simples tese e fez afinal um livro, que se lê com interesse de princípio a fim, graças à fina observação, e à sinceridade com que o autor acompanha todas as fases do desenvolvimento orgânico da mulher, não com a pose fria de um médico que se compraz em acachapar o leitor sob uma chuva de termos técnicos e complicados, mas com a clareza elegante de um analista literário, que se enamora do seu assunto e toma pela mão e faz carinhosamente assentar-se a seu lado a débil e feminil criatura que observa.

Não se limita porém ao drama fisiológico que tem por teatro o delicado corpo de uma mulher; drama encantador que começa com a alvorada cor-de-rosa da puberdade e vai crescendo e atravessando todo o vermelho e fecundo período catamenial, e que acaba no frio e pálido crepúsculo da menopausa; drama singelo, como a vida de urna flor, que desabotoa, e acorda e abre sorrindo para o céu as suas pétalas mimosas, e atrai com o perfume e com o brilho das suas cores o namorado inseto, portador do pólen fecundante; e que afinal, ao cair da noite, pende da haste, emurchecida e inútil, sem nunca mais erguer o colo para o sol e para o amor.

Não se limita o autor a estudar esse drama simples que é a vida das mulheres e das rosas, entra vitoriosamente pelo mundo moral, e acompanha o outro drama da constituição íntima, o drama complicado e infernal dos fenômenos psíquicos, que são a antítese daquele.

Ou muito nos enganamos, ou nesse moço observador e nesse médico comovido e talentoso que acaba de sair da academia, atirando ao público um livro que impressiona, há estofo para fazer um escritor de primeira ordem.

Esperamos que Henrique Venceslau não seja para o futuro inteiramente absorvido pela clínica e venha ainda a enriquecer a nossa ciência e a nossa literatura, dando-nos livros que instruam e deleitem ao mesmo tempo.

A sua bela tese, se é o fecho de um curso, é também o início de uma nova carreira.

Parabéns à medicina e às letras.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 25 de dezembro de 2020

AMOR E SANGUE (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

AMOR E SANGUE

Alcântara Machado

 

Sua impressão: a rua é que andava, não ele. Passou entre o verdureiro de grandes bigodes e a mulher de cabelo despenteado.

- Vá roubar no inferno, Seu Corrado!

Vá sofrer no inferno, Seu Nicolino! Foi o que ele ouviu de si mesmo.

- Pronto! Fica por quatrocentão.

- Mas é tomate podre, Seu Corrado!

Ia indo na manhã. A professora pública estranhou aquele ar tão triste. As bananas na porta da QUITANDA TRIPOLI ITALIANA eram de ouro por causa do sol. O Ford derrapou, maxixou, continuou bamboleando. E as chaminés das fábricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado.

Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra.


- Ei, Nicolino! NICOLINO!

- Que é?

- Você está ficando surdo, rapaz! A Grazia passou agorinha mesmo.

- Des-gra-ça-da!

- Deixa de fita. Você joga amanhã contra o Esmeralda?

- Não sei ainda.

- Não sabe? Deixa de fita, rapaz! Você...

- Ciao.

- Veja lá, hein! Não vá tirar o corpo na hora. Você é a garantia da defesa.

A desgraçada já havia passado.


Ao Barbeiro Submarino. Barba: 300 réis. Cabelo: 600 Réis. Serviço Garantido.


- Bom dia!

Nicolino Fior d'Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó, enfiando outro branco, se sentando no fundo a espera dos fregueses. Sem dar confiança. Também Seu Salvador nem ligou.

A navalha ia e vinha no couro esticado.

- São Paulo corre hoje! É o cem contos!

O Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho.

- Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você leu no Estado o crime de Ontem, Salvador? Banditismo indecente.

- Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça.

- Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma. E amanhã está solto. Privações de sentidos. Júri indecente, meu Deus do Céu! Salvador, Salvador... - cuidado aí que tem uma espinha - ... este país está perdido!

- Todos dizem.

Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza.


As fábricas apitavam.

Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua.

- Espera aí, sua fingida.

- Não quero mais falar com você.

- Não faça mais assim pra mim, Grazia. Deixa que eu vá com você. Estou ficando louco, Grazia. Escuta. Olha, Grazia! Grazia! Se você não falar mais comigo eu me mato mesmo. Escuta. Fala alguma cousa por favor.

- Me deixa! Pensa que eu sou aquela fedida da Rua Cruz Branca?

- O quê?

- É isso mesmo.

E foi almoçar correndo.

Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes.


As fábricas apitavam.

Grazia ria com a Rosa.

- Meu irmão foi e deu uma bruta surra na cara dele.

- Bem feito! Você é uma danada, Rosa. Xi!...

Nicolino deu um pulo monstro.

- Você não quer mesmo mais falar comigo, sua desgraçada?

- Desista!

- Mas você me paga, sua desgraçada!

- Nã-ã-o!

A punhalada derrubou-a.

- Pega! Pega! Pega!


- Eu matei ela porque estava louco, Seu Delegado!

Todos os jornais registraram essa frase que foi dita chorando.

Eu estava louco ---------------
Seu Delegado! ----------------
Matei por isso! ---------------- Bis
Sou um desgraçado! --------

O estribilho do Assassino por amor (Canção da atualidade para ser cantada coma música do "FUBÁ", letra de Spartaco Novais Panini) causou furor na zona.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 24 de dezembro de 2020

O ALIENISTA - RESUMO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O ALIENISTA

Machado de Assis

(Resumo)

 

O alienista é um tipo de relato em que os acontecimentos não são estritamente realistas, no sentido da verossimilhança, mas que, a exemplo de uma fábula, ilustram, simbolizam e criticam os valores da sua época.


Argumento:


Simão Bacamarte, médico formado em Portugal, instala-se em Itaguaí, no interior do Rio de Janeiro com o objetivo de estudar a loucura e sua classificação. Ou como ele próprio dizia: “A ciência, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.” Vem daí a sua idéia de confinar os loucos no mesmo local. Com apoio da Câmara Municipal, constrói um hospício, designado pelo nome de Casa Verde. Num primeiro momento, Bacamarte confina os loucos mansos, os furiosos e os monomaníacos, isto é, aqueles que a própria comunidade julgava perturbados. Num segundo momento, após muitas leituras e meditações científicas, o Dr. Bacamarte comunica a seu melhor amigo, o boticário Crispim Soares, a idéia de que “a loucura era até agora uma ilha perdida no oceano da razão;” e que ele começava a suspeitar que ela fosse um continente…


A partir de então o alienista (médico de alienados mentais) põe-se a levar para a Casa Verde cidadãos estimados e respeitados em Itaguaí. Pessoas aparentemente ajuizadas, mas que, segundo as teorias do cientista, revelavam distúrbios mentais. O terror se dissemina na pequena cidade. Ninguém mais sabe quem está são ou quem está doido. Atemorizados, os que ainda não tinham sido conduzidos para o hospício tramam uma rebelião.


O barbeiro Porfírio, cuja alcunha era Canjica, passa por cima da Câmara de Vereadores, que não ousa indispor-se com o alienista, e marcha à frente de uma multidão, rumo à Casa Verde. O levante popular – que mais tarde ficaria conhecido como a revolta dos Canjicas – termina em frente ao hospício. O Dr. Bacamarte recebe a massa rebelada com a autoridade e a coragem do grande cientista que julga ser, deixando o povo perplexo com sua serena superioridade intelectual. Nesse momento, chegam a Itaguaí os dragões (soldados) do Rei, para restaurar a ordem. No meio da confusão, os dragões acabam aderindo aos revoltosos e a revolução triunfa, tendo o barbeiro Porfírio como chefe.


Em seguida, Porfírio procura o Dr. Simão Bacamarte e diz que não pretende mais destruir o hospício. Que bastava uma revisão nos conceitos de loucura do médico, liberando os enfermos que estavam quase curados e os maníacos de pouca monta. Que isso bastaria ao povo. O alienista ouve o barbeiro, fazendo-lhe algumas perguntas sobre o que tinha acontecido nas ruas e conclui que também o líder dos Canjicas estava louco, assim como aqueles que o aclamavam. Em cinco dias, o Dr. Bacamarte mete na Casa Verde cerca de cinqüenta adeptos do novo governo, gerando outra grande indignação popular, que só termina quando entra na vila uma força militar, enviada pelo vice-rei.


A partir daí há uma “coleta desenfreada” para o hospício. Quase ninguém escapa. Tudo é loucura para o Dr. Bacamarte. O barbeiro, o boticário Crispim, o presidente da Câmara e a própria esposa do alienista, D. Evarista, são recolhidos para tratamento. Quatro quintos da população de Itaguaí já estavam “agasalhados” no seu estabelecimento, quando o médico volta a surpreender a vila, anunciando ter concluído que a verdadeira doutrina sobre a loucura não podia ser aquela e sim a oposta. Ou seja, todos os que até ali tinham sido considerados loucos eram sãos; e os sãos, loucos.


Loucos agora são aqueles que gozam de perfeito e ininterrupto equilíbrio mental. Os que têm retidão de sentimentos, generosidade, boa-fé, inclusive o padre Lopes, que sempre defendera o médico, ou um advogado que “possuía um tal conjunto de qualidades morais que era perigoso deixá-lo na rua.” Os novos alienados mentais são divididos por classes. A dos modestos, a dos tolerantes, a dos sinceros, a dos bondosos, etc.


Assim, em seu processo de cura, o Dr. Bacamarte pode “atacar de frente a qualidade predominante de cada um”. O modesto aprende o valor da vaidade; o generoso, o valor do egoísmo; o honesto, o valor da corrupção. Nunca doenças mentais tinham sido curadas tão rapidamente. Antes de um ano, todos os pacientes recebem alta. Itaguaí está livre da loucura.


Porém, no final de tudo, o alienista dá-se conta de um fato terrível: ele, Simão Bacamarte, não possuía vigor moral, amor à ciência, sagacidade e lealdade? E estas não eram as características de um verdadeiro mentecapto? Portanto o último louco da vila é ele mesmo. Então, o alienista tranca-se na Casa Verde, em busca da cura de si próprio, morrendo dezessete meses depois, “no mesmo estado em que entrou”.




Literatura - Contos e Crônicas quarta, 23 de dezembro de 2020

O PADEIRO (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA) VÍDEO

 

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 22 de dezembro de 2020

AMOR ACIDENTADO (CRÔNICA DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)

AMOR ACIDENTADO

Rachel de Queiroz

 

ACONTECEU ultimamente um caso que tem chamado atenção. Estava um moço noivo, de casamento marcado para daí a poucos dias, quando de repente, ao atravessar aquela avenida de mau agouro a que por isso mesmo teimam em chamar Getúlio Vargas, caiu-lhe em cima um automóvel desabrido, desses que não procuram saber se o cristão à sua frente é noivo ou é nada – querem é passante jeitoso para derrubar, como de fato este o derrubou. O mundo não é assim mesmo, incerto e enganoso? De nada vale um homem alimentar no seu coração qualquer espécie de sonhos preciosos ou de esperanças; nem vale o alto juízo que ele faça de si ou sequer o juízo que dele façam os outros; o destino está aí na sua frente, de boca aberta e dentes afiados, na figura de um automóvel, de um micróbio, de uma onda de mar, e tanto vai para o buraco o sonhador rico de promessas como o pobre desesperado para o qual a morte já chegou tarde.

Felizmente o nosso moço não chegou a ir para o buraco. Andou perto nas primeiras horas, rebentou muito osso e deitou muito sangue – mas foi socorrido a tempo, e parece que com bastante gaze, gesso e paciência acaba ficando tão perfeito ou quase tão perfeito quanto antes do desastre.

E agora chegando à parte que chama atenção e que todo mundo acha bonito: segundo foi dito antes, estava a vítima de casamento justo, juiz apalavrado, padre tratado. A noiva de vestido feito, os doces no forno e o champanha na geladeira. Em vista disso, achou o noivo que, acidentado ou não acidentado, não seria um simples capricho do chofer que iria inutilizar tantos preparativos. E pois não desdisse nada, não adiou os convites: apenas transferiu a cerimônia para a enfermaria do hospital, e em torno do seu leito de dores se procedeu ao enlace, completo e sem atraso de um minuto.

Bem fazem os que se admiram e acham bonito, porque nestes tempos cínicos e desesperados um caso assim é um sinal tangível de que o amor ainda existe no mundo na sua forma mais pura; e passados nove séculos sobre os túmulos de Abelardo e Heloísa, ainda os encontramos reencarnados na mesma fortaleza de paixão e na mesma integridade de sentimento.

Porque diante daquele homem incógnito, enfaixado, todo revestido de gesso, a moça não hesitou em encontrar o seu amado, o seu escolhido, o único que lhe serve e lhe apela à alma no meio dos bilhões de seres do planeta. Afinal, com isso se prova que o que ela amava não era o simples corpo que o automóvel massacrou – não eram aquelas pernas agora entaladas, aquelas costelas em colete de gesso, o rosto, os lábios, os olhos que a gaze está encobrindo, e que ela não pode jurar que sairão os mesmos da aventura. De tudo que havia dentro ou fora daquele corpo e desse corpo fazendo parte, é evidente que ela amava especialmente o escondido coração dentro do peito, ou a flama imortal e imponderável que sob o nome de alma costumamos dizer que mora dentro do coração.

Ele, por seu lado, ninguém pode dizer que amasse menos. Porque um indivíduo que sofreu tal subversão corpórea, mesmo que retorne à vida sem aparente alteração no seu aspecto físico, não é possível que ressurja para a vida com as mesmas disposições de espírito que costumava usar antes. O lógico é que o rapaz atrevido que caiu debaixo das quatro rodas assassinas saia do hospital um senhor morigerado, que olha duas vezes para cada esquina antes de a atravessar. E no entanto esse homem novo está pronto a endossar os compromissos do homem antigo, e não hesita e corre para o que deseja, sem faixa ou tala que o prenda – por quê? Só porque ama, porque acima da dor, e do receio físico e da preocupação com o conserto que lhe estão fazendo os doutores no triste corpo, estão as necessidades, as exigências da alma.

Vivemos em terra de muitos acidentes, e pois o problema do amor com acidentado deve estar entre nós constantemente se propondo; por isso damos publicidade ao caso do casamento no hospital e o apresentamos à meditação dos interessados. Todos nós poderemos, mais cedo ou mais tarde, estar na situação do moço ou da moça da história: e se a meditação não nos ajudar a fugir da sanha matadora do automóvel desconhecido, pelo menos nos ensinará a não perder as esperanças, e até – quem sabe – no meio da desilusão e da tristeza, de repente ver brotar um milagre.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 20 de dezembro de 2020

AS CRIANÇAS QUE MATAM (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

AS CRIANÇAS QUE MATAM

João do Rio

(Grafia original)

 

É assombrosa a proporção do crime nesta cidade, e principalmente do crime praticado por crianças! Estamos a precisar de uma liga para a proteção das crianças, como a imaginava o velho Júlio Vallés…

– Que houve de mais? – indagou Sertório de Azambuja, estirando-se no largo divã forrado de brocado cor de ouro velho.

– Vê o jornal. Na Saúde, um bandido de treze anos acaba de assassinar um garotinho de nove. É horrível!

O meu amigo teve um gesto displicente.

– Crime sem interesse… A menos que não se dê um caso de genialidade, um homem só pode cometer um belo crime, um assassinato digno, depois dos dezesseis anos. Uma criança está sempre sujeita aos desatinos da idade. Ora, o assassinato só se torna admirável quando o assassino fica impune e realiza integralmente a sua obra. Desde Caim nós temos na pele o gosto apavorador do assassinato. Não estejas a olhar para mim assim assustado. As mais frágeis criaturas procuram nos jornais a notícia das cenas de sangue. Não há homem que, durante um segundo ao menos, não pense em matar sem ser preso. E o assassínio é de tal forma a inutilidade necessária ao prazer imaginativo da humanidade, que ninguém se abala para ver um homem morto de morte natural, mas toda gente corre ao necrotério ou ao local do crime para admirar a cabeça degolada ou a prova inicial do crime. Dado o grau de civilização atual, civilização que tem em germe todas as decadências, o crime tende a aumentar, como aumentam os orçamentos das grandes potências, e com uma percentagem cada vez maior de impunidade. Lembra-te das reflexões de Thomas de Quincey na sua pedagogia do crime. É dele esta frase profunda: “O público que lê jornais contenta-se com qualquer coisa sangrenta; os espíritos superiores exigem alguma coisa mais…”

Humilhadamente, dobrei o jornal:

– Então só os espíritos superiores?…

– Podem realizar um crime brilhante. Esse caso da Saúde não tem importância alguma. É antes um exemplo comum da influência do bairro, desse bairro rubro, cuja história sombria passa através dos anos encharcada de sangue. Nunca foste ao bairro rubro? Queres lá ir agora? São oito horas. Vamos? Vem daí…

Descemos. Estava uma noite ameaçadora. No céu escuro, carregado de nuvens, relâmpagos acendiam clarões fugazes. A atmosfera abafava. Uma agonia vaga pairava na luz dos combustores.

Sertário de Azambuja ia de chapéu mole, com um lenço de seda à guisa de gravata. Ao chegar ao Largo do Machado, chamou um carro, mandou tocar para o começo da Rua da Imperatriz.

– Que te parece o nosso passeio? Estamos como Dorian Gray, partindo para o vício inconfessável. Lord Henry dizia: “Curar os sentidos por meio da alma e a alma por meio dos sentidos”. Vamos entrar no outro mundo..

Eu atirara-me para o fundo da vitória de praça e via vaga-mente a iluminação das casas, os grandes panos de sombra das ruas pouco iluminadas, a multidão, na escuridão às vezes, às vezes queimada na fulguração de uma luz intensa, os risos, os gritos, o barulho de uma cidade que se atravessa. Na Rua Marechal Floriano, Sertório pagou ao cocheiro, dizendo:

– Saltaremos em movimento.

E para mim:

– Não vale dar na vista…

Um instante depois saltou. Acompanhei-o. O carro continuou a rodar. O bairro rubro não é um distrito, uma freguesia: é uma reunião de ruas pertencentes a diversos distritos, mas que misteriosamente, para além das forças humanas, conseguiu criar a rede tenebrosa, o encadeamento lúgubre da miséria e do crime, insaciáveis. A Rua da Imperatriz é um dos corredores de entrada.

O bairro onde o assassinato é natural abraça a Rua da Saúde, com todos os becos, vielas e pequenos cais que dela partem, a Rua da Harmonia, a do Propósito, a do Conselheiro Zacarias, que são paralelas à da Gamboa, a do Santo Cristo, a do Livramento e a atual Rua do Acre. Naturalmente as ruas que as limitam ou que nelas terminam – São Jorge, Conceição, Costa, Senador Pompeu, América, Vidal de Negreiros e a Praia do Saco – participam do estado de alma dominante.

Toda essa parte da cidade, uma das mais antigas, ainda cheia de recordações coloniais, tem, a cada passo, um traço de história lúgubre. A Rua da Gamboa é escura, cheia de pó, com um cemitério entre a casaria; a da Harmonia já se chamou do Cemitério, por ter aí existido a necrópole dos escravos vindos da costa da África; a da Saúde, cheia de trapiches, irradiando ruelas e becos, trepando morro acima os seus tentáculos, é o caminho do desespero; a da Prainha, mesmo hoje aberta, com prédios novos, causa, à noite, uma impressão de susto.

Como dizia o meu guia, estávamos num novo mundo…

A Rua da Imperatriz, às oito e meia, com uma porção de casas comerciais velhas e tão juntas, tão trepadas na calçada, que parecem despejadas na rua, estava em plena febre. Os botequins reles, as barbearias sujas, as tascas imundas gargulejavam gente, e essa gente era curiosa – trabalhadores em mangas de camisa, carroceiros, carregadores, fumando mata-ratos infectos, cuspinhando cachaça em altos berros, num calão de imprevisto, e rapazes mulatos, brancos, de grandes calças a balão, chapéu ao alto, a se arrastarem bamboleando o passo, ou em tabernas barulhentas. A nossa passagem era acompanhada com um olhar de ironia, e bastava parar dois segundos defronte de uma taberna, para que dentro todos os olhos se cravassem em nós.

Eu sentia acentuar-se um mal-estar bizarro. Sertório ria.

– A vulgaridade da populaça! Há por aqui, entre esses marçanos fortes, gente boa. Há também ruim. Estão fatalmente destinados ou a apanhar ou a dar, desde crianças. É a vida. Alguns são perversos: provocam, matam. Vais ver. Nasceram aqui, de pais trabalhadores…

Tínhamos chegado à Rua Camerino, esquina da da Saúde. Há aí uma venda com um pequeno terraço de entrada. O prédio desfaz-se, mas dentro redemoinha uma turba estranha: negralhões às guinadas, inteiramente bêbedos, adolescentes ricos de músculos, embarcadiços, foguistas.

Fala-se uma língua babélica, com termos da África, expressões portuguesas, frases inglesas. Uns cantam, outros rouquejam insultos. Sertório aproxima-se de um grupo. Há um mulato de tamancos, que parece um arenque ensalmonado, no meio da roda. O mulato cuspinha:

– Go on, go on… yeah. farewell! yeah!

É brasileiro. Está aprendendo todas essas línguas estrangeiras com os práticos ingleses.

Há um venerável ancião, da Colônia do Cabo, tão alcoolizado que não consegue senão fazer um gesto de enjôo; há um copta, apanhado por um navio de carga no Mar Vermelho; há dois negrinhos retintos, com os dentes de uma alvura estranha, que bradam:

– Eh oui, petit monsieur, nous sommes du Congo. Étudiés avec pères blancs…

Todos incondicionalmente abominam o Rio: querem partir.

Sertório paga maduros; eles fazem roda. O mulato brasileiro está delicado.

– Hip! Hip! Cambada! Para mostrar a vocês que cá na terra há gente para embrulhar língua direito! Agüente, negrada!
– Sai burrique! – grunhe o ancião.

Dando guinadas com os copos a escorrer o líquido sujo do maduro, essa tropa parecia toda vacilar com a casa, com as luzes, com os caixeiros. Saí antes, meio tonto. Sertório livrava-se da matilha distribuindo níqueis.

Quando conseguiu não ser acompanhado, meteu-se pelo beco. Segui-o e, de repente, nós demos nos trechos silenciosos e lúgubres. Nas ruas, a escuridão era quase completa. Um transeunte ao longe anunciava-se pelo ruído dos passos.

De vez em quando uma rótula aberta e dentro uma sombra. Que lugares eram aqueles? O outro mundo! A outra cidade! A atmosfera era aquecida pelo cheiro penetrante e pesado dos grandes trapiches. Em alguns trechos, a treva era total. Na passagem da estrada de ferro, a luz elétrica, muito fraca, espalhava-se como um sudário de angústias.

Foi então que começamos a encontrar em cada esquina, ou sentados nas soleiras das portas, ou em plena calçada, uns rapazes, alguns crescidos, outros pequenos. À nossa passagem calavam-se, riam. Mas nós íamos seguindo, cada vez mais curiosos.

Afinal, demos no Largo da Harmonia, deserto e lamentável. À porta da igreja uma outra roda, maior que as outras, confabulava. Aproximamo-nos.

– Boa noite!

– Boa noite! – respondeu um pretalhão, erguendo-se com os tamancos na mão.

Os outros ficaram hesitantes, desconfiando da amabilidade.

– Que fazem vocês aí?

– Nós? – indagou um rapazola já de buço, gingando o corpo – Contamos histórias: ora aí tem! Interessa-lhe muito?

– Histórias! Mas eu gosto de histórias. Quem as conta?

– Isso é costume cá no bairro. Há rapazes que sabem contar que até dá gosto. Aqui quem estava contando era o José, este caturrita…

Era um pequeno franzino, magro, com uma estranha luz nos olhos.

Talvez matasse amanha, talvez roubasse! Estava ingenuamente contando histórias…

Sertório insistia, entretanto, para ouvi-lo. Ele não se fez de rogado. Tossiu, pôs as mãos nos joelhos…

– Era uma vez uma princesa, que tinha uma estrela de briIhantes na testa.

A roda caíra de novo num silêncio atento. A escuridão parecia aumentar, e, involuntariamente, ou e o meu amigo sentimos na alma a emoção inenarrável que a bondade do que julgamos mau sempre nos causa…


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 19 de dezembro de 2020

A NOIVA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A NOIVA

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

Após um dia de trabalho intenso, consumido no manuseio de velhos volumes adquiridos nos alfarrabistas para uma obra erudição, o poeta Silvestre de Morais vira desabrochar nas alturas, através da janela aberta, as primeiras estrelas daquela da noite de verão. Fora, no jardim, as árvores repousavam, imóveis, como se rezassem, mudas, preparando-se para adormecer. De espaço a espaço, um morcego cortava com a lâmina da asa o manto espesso da noite, como um pequenino aeroplano sinistro que se exercitasse, rápido, em funambulescos vôos de fantasia.

Com os dedos da mão esquerda mergulhados nos cabelos revoltos, o poeta lia, debruçado sobre o volume, à luz da lâmpada suavemente velada, aquelas histórias de fogo e de sangue, quando, de repente, os seus olhos se contraíram diante de uma surpresa. Abaixou mais a cabeça, escancarou mais o livro, e viu: entre as duas páginas abertas, fulgia, como um risco de ouro, um fio de cabelo, brilhante, fino, quase imperceptível. Encantado com a descoberta, o sonhador arrancou-o, com a ponta de um alfinete, do esconderijo em que o tempo o sepultara, estendeu-o, cuidadoso, ao comprido da página lida, e quedou-se a olhar aquela réstia de luz cristalizada, admirando-lhe a maciez, o brilho, a delicadeza.

- De onde teria vindo aquele misterioso raio de sol? Como teria caído ali, entre as páginas daquele volume de tragédias? Que cabeça feminina se teria curvado sobre aquelas folhas tenebrosas que reviviam, passados tantos séculos, os mais terríveis dramas de amor?

Meditava assim o poeta, com os olhos fitos no faiscante fio de ouro, quando as suas pálpebras se cerraram, tocadas pelas mãos invisíveis do sono. E, como sempre acontece aos que sonham sem dormir, o sonho, continuou, no sono, o encanto da realidade.

De olhos fechados, Silvestre de Morais continuava, por isso, a ver, como se os tivesse abertos, o dourado fio de seda. Olhava-o e, não sabe como, via-o, aos poucos, crescer, desdobrar-se, multiplicar-se. Intrigado, fitou melhor o raiozinho fulgurante, e recuou, com espanto. Agora não era mais o livro, o que via: em lugar da página amarelecida, o que lhe aparecia, cortado pelo cabelo de ouro, era um rosto feminino muito pálido, muito triste, macerado, como o das monjas. Atentou melhor, e viu, mais detidamente: diante dele, olhos em lágrimas, cabelos de ouro esparsos pela fronte úmida, havia uma mulher, jovem e linda, que lhe pedia, as mãos estendidas:

- Meu senhor, eu venho buscar, convosco, a salvação da minh'alma. Há dois séculos espero, ansiosa, esta hora, este momento, o volver desta página, de que dependeu, até hoje, a minha felicidade. O meu destino está, neste instante, nas vossas mãos. E, por Deus, sede generoso!

Atônito, maravilhado, sem compreender aquela aparição subitânea, Silvestre olhava, com a interrogação nas pupilas, a visão dolorosa, como a pedir-lhe, em silêncio, a explicação do mistério. Faces em lágrimas, olhos súplices, a moça adivinhou a inquietação, porque, de pronto, lhe explicou, estendendo para ele, como dois lírios de oratório, as mãos pequeninas e pálidas;

- Tende piedade do meu infortúnio, meu senhor! Para que servirá, tão humilde, entre vossos dedos, esse fio de cabelo? Dai-mo, pois que me dareis, com ele, a minha salvação!

Insensibilizado pela surpresa, e, não menos, pela graça triste daquela aflição infantil, o poeta quedou-se, imóvel, sem uma palavra de recusa ou de assentimento. E foi diante da sua insensibilidade que a visão maravilhosa lhe contou, sem conter as lágrimas nem recolher as mãos de pétala murcha, a história da sua infelicidade e o segredo da sua angústia.

- Eu sou uma noiva que paga, meu senhor, num castigo que se eterniza, o tributo da sua ventura passageira. Meu noivo era um poeta, como vós. Um dia, líamos, os dois, como Paolo e Francesca, o livro que tendes em mão, quando um fio do meu cabelo voou, indiscreto, e pousou nos seus dedos. Galanteador e apaixonado, ele o levou aos lábios, beijou-o, e como nos chamassem do jardim onde líamos à claridade do crepúsculo, ele marcou, com o fio imprudente, a página do livro que nos encantava. No dia seguinte, porém, meu noivo adoeceu, e morreu, sem que eu o visse. Amedrontados com a sua morte repentina, os seus parentes dispersaram os seus móveis, as suas roupas, os seus livros, distribuindo-os pelos pobres. E, entre os volumes atirados ao oceano do mundo, foi esse que se acha, hoje, em vosso poder.

- Continua... Continua... - pediu o poeta, pálido, com tremores nas mãos tateantes.

- Anos depois, - prosseguiu a visão, nervosa, aflita, precipitando as palavras, - anos depois, eu, por minha vez, morri e fui, pelos anjos, levada à presença de Deus misericordioso. Era pura e havia, na terra, espalhado pelos humildes, pelos simples, pelos pobres, as flores do meu coração. O Senhor fitou-me, porém, severo, e perguntou onde estava um dos fios do meu cabelo. E como lhe contasse como o perdera, ele me fulminou com a sentença terrível: eu só entraria na mansão do eterno repouso, da perfeita bem-aventurança, no dia em que voltasse com o fio desaparecido; porque, nenhuma virgem é digna de viver entre os anjos, gozando as doçuras do paraíso, tendo deixado nas mãos de um homem um fio, que seja, do seu cabelo!

- E por que não te apoderaste dele há mais tempo? - indagou, mais tranqüilo, o poeta.

- Não foi possível, meu senhor. Há duzentos anos, quase, eu acompanho a marcha deste livro. Durante oitenta anos fiquei a seu lado, em uma biblioteca, esperando que alguém o pedisse, o abrisse, libertando o fio do meu cabelo. Ninguém o pediu, ninguém o abriu, ninguém o leu. Atravessei com ele o mar. Vi-o em várias mãos, sem que alguém, entretanto, folheasse a página de que dependia o meu destino. Sois vós o primeiro. Se, depois, recusardes o que vos suplico, morrerá, para mim, a última esperança de paz e libertação!

E torcendo as mãozinhas murchas, pálidas, como duas flores de cera:

- Tende piedade, meu senhor! Dai-me o fio do meu cabelo!

Comovido, abalado pelo espetáculo daquela angústia, Silvestre estendeu-lhe, na ponta dos dedos, o raiozito de sol pedido com tanta sofreguidão, com tanta doçura, com tanta insistência, pela visão dolorida.

- Toma. Leva-o... - disse, entregando-lho.

Com o vento fresco da madrugada, o poeta acordou. Olhou o livro aberto, sobre o qual pousava, ainda, espalmada, a sua mão emagrecida. Procurou o fio de ouro, que vira marcando a página, antes de adormecer. Não o encontrou.

O vento, com certeza, o havia levado...


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 18 de dezembro de 2020

DOIS VELHINHOS (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

DOIS VELHINHOS

Dalton Trevisan

 

Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.

Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.

Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:

— Um cachorro ergue a perninha no poste.

Mais tarde:

— Uma menina de vestido branco pulando corda.

Ou ainda:

— Agora é um enterro de luxo.

Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.

Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.

Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 17 de dezembro de 2020

O AMBICIOSO (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

O AMBICIOSO

Coelho Neto

(Grafia original)

 

De volta ao cemitério, onde, sem uma lágrima, deixara o corpo do pai, Felício recolheu-se à casa deserta, e como havia luar, nem acendeu a candeia, para poupar o azeite.

 

 
Sentando sob o alpendre, pôs-se a olhar o arvoredo frondoso, cuja folhagem reluzia à claridade, e, mais longe, ondulando, o canavial e o milho.
 
O velho aproveitara toda a terra lavradia, respeitando apenas o pequeno bosque, em que se abrigava a fonte, e onde, ele e os camaradas iam recolher os galhos secos com que alimentavam o lume.
 
Seis homens robustos trabalhavam como jornaleiros, ajudando-os no áspero labor agrícola — uns ao arado, outros na carpa, ou colhendo, ou plantando.
 
As mulheres cuidavam do serviço doméstico, e ainda raspavam a mandioca, debulhavam o milho, batiam o feijão, retiravam o mel dos favos, e reuniam, à tarde, as aves.
 
As próprias crianças eram aproveitadas, — umas guiando o gado aos pastos, outras levando a comida aos trabalhadores, à roça; e como havia fartura, era um encanto a vida no sítio que prosperava a olhos vistos.
 
Sabia-se que o velho tinha haveres; nem ele fazia mistério disso; antes afirmava com garbo, para estimular os homens ao trabalho: “O pouco que tenho, deu-me a terra, assim o ganhareis, se trabalhardes com perseverança. Eu não vos engano — tendes de mim o que mereceis. O bem que fizerdes vos será contado e pago.”
 
E assim era.
 
Felício, porém, não se continha aos sábados; mal sopitava a raiva quando o pai pagava as férias aos camaradas.
 
Aquele dinheiro, passando a mãos alheias, doía-lhe, como se fosse a suas próprias carne tirada aos tassalhos; e, sempre que se recolhia ao leito, murmurava com avareza:
 
— Hei de acabar com isto! Para que tanta gente? Um só homem basta, e esse serei eu!
 
Assim pensou, e assim fez.
 
No dia seguinte ao enterro do velho, Felício chamou os camaradas, fez-lhes as contas, e despediu-os.
 
*** 
 
Quando se viu só, Felício esfregou as mãos contente, dizendo:
 
— Agora sim! Tudo quanto fizer será meu. Não tenho mais quem coma o que eu planto, nem quem leve os meus lucros!
 
Os mesmos cães, que guardavam a roça, dando caça aos animais daninhos, foram enxotados à pedrada; e o ambicioso ficou solitário, olhando a lavoura exuberante que se desenvolvia ao sol.
 
Vieram, porém, as chuvas, e a terra entrou a produzir doidamente. O mato apontou, cresceu, invadindo as culturas, cobrindo os caminhos que desapareciam; e Felício, levantando-se muito cedo, ainda com as estrelas a luzirem no céu, saía, e lá se punha a capinar com ânsia.
 
Por não ouvir as vozes dos animais que alegravam o sítio, — um boi a mugir, uma ovelha a balar, aqui uma galinha cacarejando aos pintos, adiante a pata, com a pequenina frota penugenta dos patinhos, — ficou preocupado.
 
Por onde andariam? Talvez no pasto. Era melhor assim: não só lhe poupavam o trabalho de os tratar, como ainda, alimentando-se com o que buscavam — e avia tanta erva e eram tantos os bichinhos! — livravam-no de despesas.
 
E voltava à terra com desespero.
 
Para não perder tempo em fazer lume, almoçava uma fruta, e continuava a trabalhar, casmurro.
 
Todo seu esforço, porém, não conseguia conter a invasão. As ervas más apareciam em toda a parte; e, apenas a enxada deixava um talhão, logo os rebentos abrolhavam.
 
Às vezes, ele sentava-se à borda das rampas alagado de suor, os braços doloridos, e ficava ali inerte, com a alma cheia de desânimo, revoltado contra aquela vegetação perniciosa que lhe comprometia a lavoura. Logo, porém, excitado pela ambição, retomava a enxada e prosseguia o trabalho.
 
Em pouco tempo, a linda, viçosa lavoura de outrora desapareceu, suplantada pelo ervaçal bravio; e, onde o milho lourejava com a sua espiga de ouro desnastrada ao sol, cresceram arbustos agrestes e palhegal farfalhante, por entre os quais as cobras venenosas rastejavam chocalhando.
 
Os animais, mal a noite baixava, saíam das tocas, devorando e destruindo a plantação. Todas as manhãs, Felício parava, pesaroso, diante das covas que eles abriram à noite, e ainda achava restos de mandioca, batatas, raízes de aipim abandonadas à flor da terra.
 
Já começava a desesperar; mas sempre ambicioso, não se resolvia a recorrer aos jornaleiros.
 
Se chamasse alguns homens, tudo voltaria ao antigo viço; mas teria de lhes pagar. Não quis, insistiu no labor inútil que só o alquebrava, e, quando caía prostrado, arquejando, logo ouvia os bem-te-vis, que, das árvores, pareciam vaiá-lo e rir da sua pretensão ridícula.
 
Levantava-se, enfurecido, indignado, blasfemando, atribuindo a sua desgraça aos invejosos que haviam lançado maus olhos ao sítio.
 
Um dia, sentiu na água um sabor estranho e logo suspeitou que o andavam envenenando.
 
Subiu ao bosque para examinar a fonte. Dificilmente deu com ela, tão cheia estava de folhas e ramos podres; até cadáveres de animais boiavam em suas águas antes tão límpidas, porque o velho, de quando em quando, mandava um dos camaradas limpar a fonte para evitar que se formassem balseiros.
 
Então, lá em cima, lançando os olhos à planície, viu toda a grandeza de sua desgraça: — a roça era um mato intenso, e já em torno da casa os espinheiros cresciam e os juás davam os seus venenosos frutos de ouro.
 
As lágrimas saltaram-lhe dos olhos; e, compreendendo a sua impotência, deixou-se cair em terra Humilhado, certo que, sozinho, jamais conseguiria por cobro àquele mal que era uma vingança da terra.
 
Lembrou-se, então, dos homens, os leais trabalhadores que haviam ajudado o velho a ganhar o dinheiro que lá estava, em boas moedas, no fundo da arca.
 
Ah! Se todos ali estivessem... as árvores estariam cobertas de flores, as canas estariam crescidas em touceiras, os milhos ostentariam as gordas espigas, e o gado reluziria nédio.
 
O gado... onde andariam os seus bois, as suas ovelhas, as suas cabras, os seus cevados e bacorinhos e as aves? Fosse ele procurá-los!
 
Com um arrancado suspiro desceu vagarosamente à planície.
 
À Noite, preocupado e sem sono, pôs-se a andar pela casa deserta.
 
Saindo no alpendre, pareceu-lhe ver o velho pai sentado no banco, em que costumava ficar à noite, fumando o seu cachimbo, a olhar distraidamente as estrelas luminosas.
 
Atentou a visão, e reconheceu o defunto. Felício pôs-se a tremer, agarrado a um dos esteios, e ouviu o pai que, em voz triste, lhe disse:
 
É a ambição que te vai levando à miséria, meu filho! Quiseste, por avareza, fazer o impossível e com ânsia de tudo aproveitar, tudo perdeste. Se não houvesses despedido os auxiliares que aqui deixei, não estarias agora a lamentar o prejuízo: onde há mato haveria flor, a água correria livremente e pura, as roças estariam viçosas, e sentirias a companhia do teu semelhante, e ouvirias, no teu repouso, as vozes dos animais. Fazendo felizes serias venturoso. O muito querer é sempre prejudicial. Quem dá trabalho enriquece sorrindo; quem, do seu pão, dá uma migalha ao pobre, farta-se e faz ventura. Que conseguiste com a ambição?
 
Antes de lavrar, terão os homens que desbastar; e assim vais a pagar o teu pecado com as moedas do cofre e ainda com a humilhação. Ficaste isolado, e a urze da terra saiu a acompanhar-te. Se não quiseres que o mal entre no teu coração, enche-o de bondade: a alma virtuosa não aceita o pecado, é como a leira bem plantada e cuidada, onde não cresce o espinhal. Nos espíritos vazios, como nas terras sem cultura, nascem os maus pensamentos como rebentam os cardos. Quiseste, só com teus braços, fazer a tarefa de seis homens, e nem a tua levaste a termo: porque, mal acabavas a carpa, logo as ervas renasciam. Chama os que despediste, dá-lhes trabalho, e não penses que eles te furtam o pão, acrescentam-no e abençoam-no. O egoísta é como o areal solitário, que, por não dar vida à planta, sofre todos os rigores do sol sem o fresco dos arroios e o gozo da mais pequenina sombra. O mundo é de todos, e só é verdadeiramente feliz quando se é bom. Chama os que partiram, recebe-os na tua casa, paga-lhes o trabalho que fizerem, e eles o renovarão o que a avareza destruiu e tornarás a ver os frutos, a ouvir os gados, e outras moedas se irão juntar às que deixei na arca!
 
Felício ficou um momento amparado ao esteio, mas o silêncio não foi mais interrompido: o velho desaparecera.
 
O velho!... Teria sido ele, ou a própria consciência do avarento que assim se manifestara?... Mistério!...
 
*** 
 
Na manhã seguinte, começavam a cantar os passarinhos quando Felício desceu à vila para contratar jornaleiros.
 
Hoje, o sítio é o mais belo do lugar. A casa é nova, e, em torno dela, outras avultam; e, entre as árvores frondosas, é, da manhã à tarde, um alegre cantar de lavradores.
 
E os milhos crescem, cresce o canavial, o pomar é todo fruto, e Felício prospera, contente, vendo à volta da sua felicidade tanta gente feliz bendizê-lo.

Literatura - Contos e Crônicas quarta, 16 de dezembro de 2020

DAS VANTAGENS DE SER BOBO (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

DAS VANTAGENS DE SER BOBO

Clarice Lispector

 

 
 
"O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”
 
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
 
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
 
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco.
 
Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo.
 
Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
 
Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?”
 
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
 
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
 
Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo."


Literatura - Contos e Crônicas terça, 15 de dezembro de 2020

A ANDORINHA DA TORRE (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

A ANDORINHA DA TORRE

Raul Pompéia

(Grafia original)

 

Cada um tem no seu espírito as suas recordações, classificadas, arranjadas, superpostas, as mais recentes por cima, as mais antigas por baixo, numa ordem admirável, que apenas ligeiramente é perturbada pelo decurso de um grande tempo, suprimindo-se algumas lembranças ou deslocando-se outras. Basta, porém, que uma causa desperte a adormecida reminiscência, para que venha por assim dizer, à tona do espírito a mais antiga imagem do passado. Esta causa pode ser qualquer, uma harmonia que se ouviu outrora e que novamente se ouve, um lugar por onde algum dia, passou-se e que se torna a ver, um painel, uma voz, uma fisionomia, um aspecto... que lembram-nos pela semelhança ou pelo contraste um aspecto, uma fisionomia, um painel que noutro tempo nos impressionaram...

Sempre que ouço a música de bronze que as torres derramam pelo espaço, turbilhões de uma sonoridade grave, solene, religiosa, ou alegres, esfuziadas, frescas e agudas como gritos de criança, caprichosas e várias como vôos de andorinha; sempre que chega-me a voz dos sinos, cantando saudosamente na linha azul do horizonte, como um vago psalmear flutuando ao vento, não é da missa que eu me lembro, nem das suntuosidades católicas de veludo franjado a ensanefarem as arcarias do templo; nem da fita de fumo com que o turíbulo vai escrevendo cousas fantásticas no ar; nem do dorso do padre recamado de florões de ouro sobre cetim branco ou roxo; nem da coroinha feita a navalha, redonda como as hóstias mostrando a pele branca veiada de azul, que sobe e desce, à medida que dobram-se ou levantam-se as reverências do oficiante; o sino de nada disso me faz lembrar, nem mesmo das carinhas pálidas das meninas que cantam ao coro, nem do semblante desenxabido e choramingas das santas de pau mal talhado...

 

Desde muito tempo que o serviço da torre da Igreja de X estava confiado ao velho Emílio...

Era aquele homem de barbas longas e brancas, espécie dessas figuras com que se costuma fazer a imagem mítica dos grandes rios, era aquele velho que via-se de tarde, à janela da torre sob a cúpula enorme do sino grande, olhando vagamente para o espaço, sem dar atenção ao burburinho da cidade, que circulava nas ruas lá embaixo...

Os mais antigos moradores do lugar lembravam-se de que Emílio fora sempre o mesmo homem de barbas longas e brancas, o mesmo, como a ruína consagrada pelo tempo, que nunca fica mais velha. Respeitava-se muito ao velho sineiro. Era o mais honrado dos homens e, além disso, era o avô da mais galante criança que se tem visto.

Por aqueles cinco quarteirões em volta não havia quem não gostasse da andorinha da torre. Festejavam-na muito, davam-lhe doces e beijos que não havia mãos a medir; sentiam só que ela fugisse tanto a meter-se na torre com o avô e esquecesse pelos velhos amigos de bronze que moravam lá no alto as pessoas da cidade que tanto a queriam.

Mas como havia de ser se ela amava perdidamente os seus sinos e o seu avô?... Achava os sinos frios demais e pachorrentos como uns homens de idade, mas, em compensação, admirava-os, quando vovô Emílio despertava-lhes a sanha e os fazia pularem, voltearem como clowns, precipitarem-se no espaço como se fossem desabar e ressurgirem para o alto, com a boca largamente aberta, como um sorriso de gigante satisfeito.

Pareciam mudos, no silêncio do repouso, como pareciam imóveis e inabaláveis; a um gesto, entretanto, do velho Emílio, toda aquela imobilidade movia-se em viravoltas céleres e vertiginosas, toda aquela mudez vociferava, em sonorosos estampidos e envolvia a torre numa trovoada de harmonias gigantescas.

A pequena Rita admirava os sinos. Esta admiração transformava-se em amorosa simpatia. Estranhava no fundo do espírito aqueles monstros boquiabertos que sabiam ser igualmente a imobilidade e o turbilhão, o silêncio e a trovoada; ajudava o avô a tratá-los, limpar-lhes o bojo profundo e escuro, clarear-lhes os dourados de fora, esgravatar-lhes os interstícios dos relevos que os enfeitavam...

Havia amor de família naquele pequeno mundo que vivia na torre.

Uma vez, na Semana Santa de 18..., a pequena Rita, a andorinha da torre (como lhe chamavam, pelo seu costume de passar os dias no alto da igreja em companhia de Emílio) adoeceu gravemente.

Caiu de cama, prostrada por uma violenta febre, na quarta-feira de trevas; exatamente quando emudecem os sinos.

Do quarto onde ela estava, na casinha do avô que ficava a trinta passos da igreja, via-se por cima dos telhados o perfil a prumo da torre. Rita, aos intervalos da febre, olhava com saudade para a janela do sino grande, onde tantas vezes estivera a seguir com os olhos a revoada dos passarinhos, que cortavam o ar de mil modos e enfiavam-se por um lado da torre para sair pelo outro, gorjeando risadas joviais.

Sofria a nostalgia da altura e do horizonte imenso; queria tornar a ver de perto os queridos sinos.

Por maior infelicidade, havia dous dias que os sinos coaservavam-se desesperadamente calados...

Emílio não saía um só instante da cabeceira da doente. Apavorava-o a idéia de perder aquela criança, que era a recordação viva da filha e do genro que a fatalidade lhe roubara. Este pensamento enlouquecia-o.

No Sábado de Aleluia, Rita sentiu-se extraordinariamente bem. Sentou-se no leito, para ver melhor a torre...

Uma alegria sobretudo agitava-a deliciosameate.

O sacristão viera prevenir o avô de que a Aleluia romperia ao meio-dia em ponto e que era necessário que o velho fosse tomar o seu posto.

Rita ia ouvir novamente a voz dos sinos!...

 

Certo de que eram reais as melhoras da netinha, tranqüilizado pela afirmação de um médico que dissera que a menina estava salva, sorrindo à idéia de que a neta se havia regozijar com os repiques da Aleluia, o velho Emílio beijou amorosamente a testa da criança, deixou-a entregue aos cuidados de uma boa mulher que lhe fazia de caseira e foi alojar-se na torre.

Da janela do sino grande, avistava o interior da área da sua casinha e a janela do quarto de Rita.

A vidraça descida e o escuro do aposento não permitiam que ele distinguisse o leito da neta. Emílio estava, entretanto a vê-la com todos os seus sorrisos bons e brandos; parecia-lhe até que ela acenava-lhe para romper a Aleluia antes da hora.

Eram onze horas e meia. Emílio estava impaciente. Os minutos passavam longos, como se em vez de minutos fossem horas...

Do alto da torre, o sineiro olhava para o oceano de telhados, que ondulava-se lá embaixo em agudas cumeeiras que repetiam-se indefinidamente pela cidade afora. As ruas cobriam-se de multidão vestida de preto que corria aos ofícios religiosos; por entre os telhados que vistos de cima pareciam enormes livros de capa entreaberta e lombo voltado para o céu, devassavam-se os quintais e os terraços, com grandes montes de lixo; coradouros alastrados de roupa branca onde o sol brilhava deslumbrante, o olhar indiscreto via em flagrante os interiores desarranjados e obscuros, as mocinhas em roupas caseiras, correndo daqui para ali, as cozinhas em movimento, muito pretas de fumo; um formigueiro de atividade doméstica, especial, muito distinto do formigueiro das ruas, reproduzindo-se por todos os lados até onde a vista alcançava; cobrindo tudo o tênue nevoeiro alimentado pelas chaminés fumegantes e um vago perfume de assados e fermentos que subiam da cidade como o anúncio evidente de que estava a findar à última hora dos magros dias da quaresma.

O velho Emílio passou distraidamente a vista por todo aquele conjunto indistinto e complicado de minuciosidades que os altos pontos de vista desvendam numa cidade, e voltou a fixar os olhos na vidraça do quartinho de Rita...

Um movimento de espanto fê-lo recuar da janela...

Estava suspensa a vidraça do quarto da netinha. A mulher a cujos cuidados ele confiara a criança estava à janela e agitava desesperadamente um lenço em direção à torre.

Acenava-lhe, sem dúvida.

Mas o que significava o aceno? Talvez ela estivesse gritando; Emílio, porém, era quase surdo em virtude da sua profissão; talvez tivesse no rosto uma expressão qualquer que explicaria tudo; mas, com a idade, a vista de Emílio era fraca demais para reconhecer essa expressão.

O lenço frenético significava alegria? significava terror?... Urgia saber-se!

Emílio ia correr, esquecendo o toque de Aleluia, quando emerge ofegante pela escada da torre o sacristão a gritar:

- Olha o sino!... Olha o sino!... já passa da hora... Já cantaram a Glória!

Emílio, atordoado, desvairado, precipita-se sobre o feixe das cordas que punham em movimento o carrilhão. Toma-as, desvairado, e agita os sinos como um doudo, confundindo o dobre de finados com os repiques alegres, badalando precipitadamente, sem compasso, levantando na torre uma tempestade de detonações incríveis, infernais.

- Não há memória de uma Aleluia tão ruidosa e alegre, dizem as pessoas que ouviram-na.

Depois de um quarto de hora de frenesi, o pobre Emílio inclinou-se na janela do sino grande e observou a vidraça do quarto da netinha. Estava suspensa como antes da Aleluia e ninguém mais se via.

- Quem sabe se o lenço fazia-me sinal para tocar os sinos?... pensou o velho...

E, mais tranqüilo, embora prostrado pela comoção que sofrera e pelo excesso que acabava de fazer, Emílio desceu da torre. Na escada, teve de sentar-se muitas vezes, antes de chegar ao último degrau.

- Vamos ver a Ritinha, dizia consigo, deve estar satisfeita comigo... Nunca toquei tão forte...

 

Em casa, encontrou morta a pequena Rita.

- Morreu sorrindo e atenta ao rumor dos seus queridos sinos, disse a mulher a quem Emílio confiara a guarda da criança.

O velho apertou o peito com ambas as mãos, lançou um olhar seco, terrível pela janela do quarto para a torre e para o espaço profundo, e caiu.

Na rua e no céu, reinava a ruidosa alegria das Aleluias e a tirania deslumbrante do sol.

É esta pequena história que conheci casualmente no quando chega-me aos ouvidos linha azul do horizonte como passado que me vem à mente, a voz dos sinos, cantando na um vago psalmear flutuante...


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 14 de dezembro de 2020

HISTÓRIA DE GENTE ALEGRE (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

HISTÓRIA DE GENTE ALEGRE

João do Rio

(Grafia original)

 

- O terraço era admirável. A casa toda parecia mesmo ali pousada à beira dos horizontes sem fim como para admirá-los, e a luz dos pavimentos térreos, a iluminação dos salões de cima contrastava violenta com o macio esmaecer da tarde. Estávamos no Sman-Club, estávamos ambos no terraço do Smart-Club, esse maravilhoso terraço de vila do Estoril, dominando um lindo sítio da praia do Russel - as avenidas largas, o mar, a linha ardente do cais e o céu que tinha luminosidades polidas de faiança persa. Eram sete horas. Com o ardente verão ninguém tinha vontade de jantar. Tomava-se um aperitivo qualquer, embebendo os olhos na beleza confusa das cores do ocaso e no banho viride de todo aquele verde em redor. As salas lá em cima estavam vazias; a grande mesa de bacará, onde algumas pequenas e alguns pequenos derretiam notas do banco - a descansar. O soalho envernizado brilhava. Os divãs modorravam em fila encostados às paredes - os divãs que nesses clubes não têm muito trabalho. Os criados, vindos todos de Buenos Aires e de S. Paulo, criados italianos, marca registrada como a melhor em Londres, no Cairo, em New York, empertigavam-se. E a viração era tão macia, um cheiro de salsugem polvilhava a atmosfera tão levemente, que a vontade era de ficar ali muito tempo, sem fazer nada. Mas a noite já estendia o seu negro brocado picado de estrelas e no plein-air do terraço começavam a chegar os smart-diners. Que curioso aspecto! Havia franceses condecorados, de gestos vulgares, ingleses de smoking e parasita à lapela, americanos de casaca e também de brim branco com sapatos de jogar o foot-ball e o lawn-tennis, os elegantes cariocas com risos artificiais, risos postiços, gestos a contragosto do corpo, todos bonecos vítimas da diversão chantecler, os noceurs habituais, e os michés ricos ou jogadores, cuja primeira refeição deve ser o jantar, e que apareciam de olheiras, a voz pastosa, pensando no bac chemin de fer; no 9 de cara e nos pedidos do último béguin. O prédio, mais uma "vila' da bacia do Mediterrâneo, ardia na noite serena, parecia a miragem dos astros do alto; as toalhas brancas, os cristais, os baldes de cristofle tinham reflexos. Por sobre as mesas corria como uma farândola fantasista de pequenas velas com capuchons coloridos, e vinha de cima uma valsa lânguida, uma dessas valsas de lento inebriar, que adejam vôos de mariposas e têm fermatas que parecem espasmos. No meio daquela roda de homens, que se cumprimentavam rápidos, dizendo apenas as últimas sílabas das palavras: - B'jour; Plo... deus! goo, iam chegando as cocottes, as modernas Aspásias da insignificância. Algumas vinham a arrastar vestidos de cinco mil francos; outras tinham atitudes simplistas dos primitivos italianos. Havia na sombra do terraço, um desfilar de figuras que lembravam Rossetti e Helleu, Mirande e Hermann-Paul, Capielo e Sem, Julião e também Abel Faivre, porque havia cocottes gordas, muito gordas e pintadas, ajaezadas de jóias, suando e praguejando. Falavam todas as línguas estrangeiras - o espanhol, o francês, o italiano, até o alemão com o predomínio do parigot, do argot, da langue verte. Só se falava mesmo calão de boulevard. Fora, à entrada, paravam as lanternas carbunculantes dos autos, havia fonfons roucos, arrancos bruscos de máquinas H.P 6o. Aquele ambiente de internacionalismo à parisiense cheio do rumor de risos, de gluglus de garrafas, de piadas, era uma excitação para a gente chique. O barão André de Belfort, elegantíssimo na sua casaca impecável, convidara-me para um jantar a dois em que se conversasse de arte antiga - porque ele tinha estudos pessoais sobre a noção da linha na Grécia de Péricles. Evidentemente, antes de terminar o jantar teríamos a mesa guarnecida por alguma daquelas figurinhas escapas de Tanagra ou qualquer dos gordos monstros circulantes...

De súbito, porém na alegria do terraço ouvi por trás de mim, uma voz de mulher dizer:

- Pois então não sabes que a Elsa morreu hoje de madrugada?

Não me voltei. A mulher conversava noutra mesa. Mas senti um pasmo assustado. Elsa! Seria a Elsa d'Aragon, uma carnação maravilhosa de dezoito anos, lançada havia apenas um mês por um manager de music hall, cuja especialidade sexual era desvirginar meninas púberes? Seria ela com os seus olhos verdes, a pele veludosa de rosa-chá e aquela esplêndida cabeleira negra de azeviche? E morrer em plena apoteose, cheia de jóias e de apaixonados! Indaguei do meu conviva:

- Morreu a Elsa d'Aragon?

O barão Belfort encomendava enfim o cardápio. Acabou tranqüilamente agrave operação, descansou o monóculo em cima da mesa.

- Exatamente. Parece que a apreciavas? Pobre rapariga! Foi com efeito ela. Morreu esta madrugada.

- De repente?

- Com certeza. Devia ter sido uma linda morte. Beleza horrível. Não se fala noutra coisa hoje nas pensões de artistas, em todos os conventilhos elegantes patronados pelas velhas cocottes ricas, nas rodas dos jogadores. A Elsa era muito nature, com a fobia do artificio, mas soube morrer furiosamente.

- Como foi?

Neste momento chegara a "bisque" e o balde com a Moet, brut imperiale, que o velho dândi bebe sempre desde o começo do jantar.

O barão atacou a "bisque", deu não sei que ordem ao maitre-d' hôtel, e murmurou:

- É uma história interessante. Você decerto ainda não quis fazer a psicologia da mulher alegre atirando-se a todos os excessos por enervamento de não ter o que fazer? Quase todas essas criaturas, altamente cotadas ou apenas da calçada, são, como direi? as excedidas das preocupações. Estão sempre enervadas, paroxismadas. O meio é atrozmente artificial, a gargalhada, o champagne, a pintura encobrem uma lamentável pobreza de sentimentos e de sensações. Ao demais, a vida tem um regulamento geral de excessos, e elas fatalmente pela lei, têm que fazer pagar caro e arruinar os idiotas, têm de amar um rapazola miserável que lhes coma a chelpa e as bata, têm que embriagar-se e discutir os homens, os negócios das outras, tudo mais ou menos exorbitando. Uma paixão de cocotte é sempre caricatural, é sempre para além do natural, do verdadeiro, e a sua pobre vida, tenha ela centenas de contos ou viva sem um real pelas bodegas reles, é sempre uma hipótese falsificada de vida, uma espécie de fjord num copo d'água, à luz elétrica. Todas amam de modo excepcional, jogam excessivamente, embriagam-se em vez de beber, põem dinheiro pela janela afora em vez de gastar, quando choram, não choram, uivam, ganem, cascateiam lágrimas. Se têm filhos, quando os vão ver fazem tais excessos que deixam de ser mães, mesmo porque não o são. Duas horas depois os pequenos estão esquecidos. Se amam, praticam tais loucuras que deixam de ser amantes, mesmo porque não o são. Elas têm várias paixões na vida. Cinco anos de profissão acabam com a alma das galantes criaturinhas. Não há mais nada de verdadeiro. Uma interessante pequena pode se resumir: nome falso, crispação de nervos igual à exploração dos "gigolôs" e das proprietárias, mais dinheiro apanhado e beijos dados. São fantoches da loucura movidos por quatro cordelins da miséria humana.

- A Elsa, então?

- A Elsa foi atirada subitamente numa pensão do Catete. Sabes o que é a vida em casas de tal espécie. Elas acordam para o almoço, em que aparecem vários homens ricos. O almoço é muito em conta, os vinhos são caríssimos.

A obrigação é fazer vir vinhos. Desde manhã elas bebem champagne e licores complicados. Nesses almoços discute-se a generosidade, a tolice, ou a voracidade dos machos. A tarde é dada a um ou a dois. Às cinco toilette e o passeio obrigatório. À noite, o jantar em que é preciso fazer muito barulho, dançar entre cada serviço ou mesmo durante, dizer tolices. Depois o passeio aos music-halls, com os quais têm contrato as proprietárias, e a obrigação de ir a um certo club aquecer o jogo. Cada uma delas tem o seu cachet por esse serviço e são multadas quando vão a outro - que, como é de prever, paga a multa. O resto é ainda o homem até dormir. Nesse fantochismo lantejoulado há vários gêneros: o doidivana, o sério, o reservado, o nature, o romântico, e para encher o vazio, os vícios bizarros surgem. Elas ou tomam ópio, ou cheiram éter, ou se picam com morfina, e ainda assim, nos paraísos artificiais são muito mais para rir, coitadas! mais malucas no manicômio obrigatório da luxúria. A Elsa era do gênero nature. Ancas largas, pele sensível, animal sem vícios. Tentou os petimetres, os banqueiros fatigados, os rapazes calvos e, com oito dias estava com os nervos esgarçados, estava excedida. Mesmo porque, desde a primeira hora olhava-a com seu olhar de mona a Elisa, a interessante Elisa.

- Ah!

- Elisa é um tipo talvez normal nesse ambiente. Tem os cabelos cortados, usa eternamente um gorro de lontra. Nunca a vi com uma jóia e sem o seu tailleur cor-de-castanha. É feia, não deve agradar aos homens, mas presta-se a todos os pequenos serviços dessas damas. Escreve cartas, arranja entrevistas, tem conhecimentos, e dizem-na com todos os vícios, desde o abuso do éter até o unissexualismo. Ora, era Elisa com os seus dois olhos mortos e velados que olhava Elsa, e Elsa sentia uma extraordinária repugnância, um nojo em que havia medo ao mais simples contato. Elisa sorria, a Elisa que está sempre nesses lugares, sem colete com o seu corpo de andrógino morto. E era em toda parte aquele mesmo olhar acompanhando Elsa, pregando-se a todos os seus gestos, lambendo cada atitude da criatura. Uma noite, as duas Lacroix Ducerny, as que vestem sempre iguais e fazem fortuna em comum, asseguraram-me que Elisa já não servia para nada, perdida, louca de paixão; e, com grande pasmo meu ao entrar num club ultra-infame, eu vi a Elsa com um conhecido banqueiro e, muito naturalmente, Elisa ao lado. Era a aproximação...

- Safa!

- Meu caro, nada de repugnâncias. Prove este faisão. Está magnífico. Ora, ontem, no Casino, como a pobre Elsa estava totalmente fora dos nervos e com um vestido verdadeiramente admirável, tive prazer em ir apertar-lhe a mão. - "Então, como vai com esta vida?" - "Como vê, muito bem." - Mas está nervosa." - "Há de ser de falta de hábito. Acabo por acostumar." - 'Com um tão belo físico..." - "Não seja mau, deixe os cumprimentos." E de súbito: - "Diga-me, barão, não há um meio da gente se ver livre disto? Não posso, não tenho mais liberdade, já não sou eu. Hoje, por exemplo, tinha uma imensa vontade de chorar." - "Chore, é uma questão de nervos. Ficará decerto aliviada." - "Mas não é isso, não é isso, homem!" - "Se a menina continua a gritar, participo-lhe que vou embora." - "Não, meu amigo, perdoe. E que eu estou tão nervosa! tanto! tanto... Queria que me desse um conselho." - "Para quê?" - "Para aliviar-me."

- "É difícil. Você sofre de um mal comum, a surmenagem do artifício. Eu podia dizer-lhe: recolha-se a um convento. Mas pareceria brincadeira e talvez viesse a morrer mística, a conversar com os anjos, como Swdenborg. Conheci algumas que acabaram assim. Podia também, se fosse um idiota, aconselhar a vida honesta. Mas isso seria impossível porque o pesar de ter saído desta em que o desperdício é a norma, a saudade e as lembranças deixá-la-iam amargurada. Depois não tem recursos e teria sempre que pôr em circulação o seu lindo capital."

- "Barão, por quem é, fale-me sinceramente."

- "Então, minha filha, aconselho uma paixão ou um excesso, um belo rapaz ou uma extravagância." - "Nesta roda não há belos rapazes." - "De acordo, há quando muito velhos recém-nascidos. Mas é recorrer à multidão, passar uma noite percorrendo os bairros pobres, experimentar. Ou então, minha cara, um grande excesso: champagne, éter ou morfina..." Voltei-me para a sala. Num camarote fronteiro a Elisa olhava com os seus dois olhos de morta. "E se não a repugna muito uma grande mestra dos paraísos artificiais, a Elisa." - "Não fale alto, que ela percebe." - "Então já a sabia lá?"

"Corri-a ontem do meu quarto. É um demônio." - "Mas você precisa de um demônio."

- "O que ela faz..." - "Já sei, toda a gente faz. Mas naturalmente ela é excepcional." - "Barão, vá embora." - "Adeus, minha querida." Quando dei a volta para falar a Elisa, já esta deixara vazio o camarote.

- E então, como morreu a linda criatura?

- Aceitando o meu conselho. A sua morte pertence ao mistério do quarto, mas devia ser horrível. Elsa partiu do music-hall diretamente para casa, pretextando ao banqueiro que lhe ia pôr um pequeno palácio, a forte dor de cabeça - a clássica migraine das cocottes enfaradas ou excedidas. E apareceu na ceia da pensão como uma louca, a mandar abrir champagne por conta própria. Quando por volta de uma hora apareceu a figura de larva da Elisa, deu um pulo da cadeira, agarrou-lhe o pulso: "Vem; tu hoje és minha!" Houve uma grande gargalhada. Essas damas e mais esses cavalheiros tinham uma grande complacência com a Elisa, e aquela vitória excitava-os. Elisa molemente sentou-se ao lado da Elsa, que bebia mais champagne, sentia afrontações e torcia os dedos da apaixonada por baixo da mesa. Era o desespero. Mimi Gonzaga assegurou-me que ela recebera uma carta da mãe logo pela manhã. No fim, Elsa, pálida e ardente, dizia: "Viens, mon chéri, que e te baise!" e mordia raivosamente o pescoço da Elisa. Via-se a repugnância, raiva com que ela fazia a cena de Lesbos - pobre rapariga sem inversões e estetismos a Safo... A ceia acabou em espetáculo, e acabaria com todos os espectadores, se algumas mulheres com ciúmes dos seus senhores - ah! como elas são idiotas! - não os tivessem levado. Elsa às duas e meia fez erguer-se a Elisa, calada e misteriosamente fria. "Vão tomar morfina?" interrogou um dos assistentes, "cuidado, hem?" Elsa deu de ombros, sorriu, saiu arrastando a outra. E a desaparição foi teatral ainda. Os olhos verdes da Elisa bistrados, a sua cabeleira desnastra, agarrando com um desespero de bacante a pastosidade oleosa e aloirada da miserável que a queria.

- Que horror!

- A coitadinha aturdia-se. E o processo habitual. Para mostrar a sua livre vontade caía na extravagância, agarrava o tipo que a repugnava, para mergulhar inteiramente no horror. Estive quase a acreditar que tivesse recebido alguma lembrança dos parentes, e imaginei um instante a cena sinistramente atroz do quarto enfim, como uma larva diabólica, o polvo loiro da roda iria arrancar um pouco de vida àquela linda criatura ardente, ainda com uns restos d'alma de mulher... Nunca porém pensei no fim súbito.

- Pelas cinco horas da manhã, a pensão acordava a uns gemidos roucos, que vinham do quarto de Elsa. Eram bem gritos estertorados de socorro. As mulheres desceram em fralda, os criados ergueram-se com o sorriso cínico habituado àquelas madrugadas agitadas de ataques e de delírios histéricos. A porta do quarto estava fechada. Bateram, bateram muito, enquanto lá dentro o som rouco rouquejava. Foi preciso arrombar a porta. E a cena fez recuar no primeiro momento a tropa do alcouce. Como luz havia apenas a lamparina numa redoma rosa. O quarto, cheio de sombra, mostrava, em cima das poltronas, as sedas e os dessous de renda da Elsa. Um frasco de éter aberto, empestava o ambiente. A Elisa, o corpo da Elisa estava de joelhos à beira da cama. Os braços pendiam como dois tentáculos cortados. Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros amarrados ao alto como um casco de ébano, Elsa d'Aragon, as pernas em compasso, a face contraída ainda sentada garrava com as duas mãos numa crispação atroz, a cabeça da Elisa. Era Elisa que rouquejava. Elsa estava bem morta, o corpo já frio. Devia ter havido luta, resistência de Elsa, triunfo da mulher loira e por fim sem fim até a morte. enquanto a outra se estorcia, apertava-a, arrancava-lhe os cabe1os, machucava-lhe o rosto - aquele horror. Elsa entrara do nada debatendo-se, vitima de um suplício diabólico, mas no último espasmo as suas mãos agarram a assassina. Quando esta afinal satisfeita quis erguer-se, sentiu-se presa pelos cabelos, tentou lutar, viu que a pobre era cadáver. E passou-se então para o monstro o momento do indizível terror, o momento em que se vê para sempre o mundo perdido porque ficou imóvel rouquejando, de joelhos, a cabeça no regaço do cadáver, que mantinha nas mãos cerradas a massa dos seus cabelos de ouro. Os dedos de resto pareciam de aço. Uma das mulheres recorreu à tesoura para despegar a cabeça de Elisa das mãos do cadáver. Quando o corpo tombou no leito com um punhado de cabeleira nas mãos, o bando estremunhado viu surgir a face de Elisa, tão decomposta, tão velha que parecia outra, como que aparvalhada.

Houve um silêncio. O criado servia frutas geladas, esplêndidas pêras de Espanha e uvas das regiões vinhateiras da Burgonha, grandes uvas negras. O barão trincou de uma pêra.

- Foi uma complicação para afastar a polícia e impedir noticias nos jornais que desmoralizariam a casa. Elisa seguiu horas depois para o hospício, babando e estertorando. A Elsa devia ter sido enterrada hoje à tarde. Estive lá a ver o cadáver. Tinha ainda nas mãos cerradas fios de cabelos loiros, como se quisesse arrancar para o túmulo a prova desesperada da sua morte horrível.

E mordeu com apetite a pêra. No salão de cima uma valsa lenta, chorada pelos violinos, enlanguecia o ar. Das mesas do terraço entre a iluminação bizantina das velas de capuchons coloridos subia o zumbido alegre feito de risos e de gorjeios de todas aquelas mulheres que o jantar alegrava.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 13 de dezembro de 2020

MISS EDITH E SEU TIO (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

 

MISS EDITH E SEU TIO

Lima Barreto

 

A pensão familiar "Boa Vista" ocupava uma grande casa da praia do Flamengo, muito feia de fachada, com dois pavimentos, possuindo bons quartos, uns nascidos com o prédio e outros que a adaptação ao seu novo destino fizera surgir com a divisão de antigas salas e a amputação de outros aposentos.

Tinha boas paredes de sólida alvenaria de tijolos e pequenas janelas de portadas de granito e linha reta, que olhavam para o mar e para uma rua lateral, à esquerda.

A construção devia datar de cerca de sessenta anos atrás e, nos seus bons tempos, certamente possuiria, como complemento, uma chácara que se estendia para o lado direito e para os fundos, chácara desaparecida, em cujo chão se erguem atualmente prédios modernos, muito pelintras e enfezados, ao lado da velha, forte e pesadona edificação dos outros tempos.

Os aposentos e corredores da obsoleta moradia tinham uma luz especial, uma quase penumbra, esse toque de sombra do interior das velhas casas, no seio da qual flutuam sugestões e lembranças.

O prédio sofrera acréscimos e mutilações. Da antiga chácara, das mangueiras que a "viração" todas as tardes penteava a alta cabeleira verde, das jaqueiras, de ramos desorientados, das jabuticabeiras, dos sapotizeiros tristes, só restava um tamarineiro no fundo do exíguo quintal, para abrigar nos posmerídios de canícula, sob os ramos que caíam lentamente como lágrimas, algum hóspede sedentário e amoroso da sombra maternal das grandes árvores.

O grande salão da frente - a sala de honra das recepções e bailes - estava dividido em fatias de quartos e dele só ficara, para lembrar o seu antigo e nobre mister, um corredor acanhado, onde os hóspedes se reuniam, após o jantar, conversando sentados em cadeiras de vime, ignobilmente mercenárias.

Dirigia a pensão Mme. Barbosa, uma respeitável viúva de seus cinqüenta anos, um tanto gorda e atochada, amável como todas as donas de casas de hóspedes e ainda bem conservada, se bem que houvesse sido mãe muitas vezes, tendo até em sua companhia uma filha solteira, de vinte e poucos anos por aí, Mlle. Irene, que teimava em ficar noiva, de onde em onde, de um dos hóspedes de sua progenitora.

Mlle. Irene, ou melhor: Dona Irene escolhia com muito cuidado os noivos. Procurava-os sempre entre os estudantes que residiam na pensão, e, entre estes, aqueles que estivessem nos últimos anos do curso, para que o noivado não se prolongasse e o noivo não deixasse de pagar a mensalidade à sua mãe.

Isto não impedia, entretanto, que o insucesso viesse coroar os seus esforços. Já fora noiva de um estudante de direito, de um outro de medicina, de um de engenharia e descera até um de dentista sem, contudo, ser levada à presença do pretor por qualquer deles.

Voltara-se agora para os empregados públicos e toda a gente na pensão esperava o seu próximo enlace com o Senhor Magalhães, escriturário da alfândega, hóspede também da "Boa Vista", moço muito estimado pelos chefes, não só pela assiduidade ao emprego como pela competência em cousas de sua burocracia aduaneira e outras mais distantes.

Irene caíra do seu ideal de doutor até aceitar um burocrata, sem saltos, suavemente; e consolava-se interiormente com essa degradação do seu sonho matrimonial, sentindo que o seu namorado era tão ilustrado como muitos doutores e tinha razoáveis vencimentos.

Na mesa, quando a conversa se generalizava, ela via com orgulho Magalhães discutir Gramática com o doutor Benevente, um moço formado que escrevia nos jornais, levá-lo à parede e explicar-lhe tropos de Camões.

E não era só nesse ponto que o seu próximo noivo demonstrava ser forte; ele o era também em Matemática, como provara questionando com um estudante da Politécnica sobre Geometria e com o doutorando Alves altercava sobre a eficácia da vacina, dando a entender que conhecia alguma cousa de Medicina.

Não era, pois, por esse lado do saber que lhe vinha a ponta de descontentamento. De resto, em que pode interessar a uma noiva o saber do noivo?

Aborrecia-lhe um pouco a pequenez do Magalhães, verdadeiramente ridícula e, ainda por cima, o seu canhestrismo de maneiras e vestuário.

Não que ela fosse muito alta, como se pode supor; porém, algo mais do que ele, era Irene fina de talhe, longa de pescoço, ao contrário do futuro noivo que, grosso de corpo e curto de pescoço, ainda parecia mais baixo.

Naquela manhã, quando já se ia em meio dos preparativos do almoço, o tímpano elétrico anunciou estrepitosamente um visitante.

Mme. Barbosa, que superintendia na cozinha o preparo da primeira refeição dos seus hóspedes, àquele apelo da campainha elétrica, de lá mesmo gritou à Angélica:

— Vá ver quem está, Angélica!

Essa Angélica era o braço direito da patroa. Cozinheira, copeira, arrumadeira e lavadeira, exercia alternativamente cada um dos ofícios, quando não dois e mais a um só tempo.

Muito nova, viera para a casa de Mme. Barbosa ao tempo em que esta não era ainda dona de pensão; e, em companhia dela, ia envelhecendo sem revoltas, nem desgostos ou maiores desejos.

Confidente da patroa e, tendo visto crianças todos os seus filhos, partilhando as alegrias e agruras da casa, recebendo por isso festas e palavras doces de todos, não se julgava bem uma criada, mas uma parenta pobre, a quem as mais ricas haviam recolhido e posto a coberto dos azares da vida inexorável.

Cultivava por Mme. Barbosa uma gratidão ilimitada e procurava com o seu auxílio humilde minorar as dificuldades da protetora.

Tinha guardado uma ingenuidade e uma simplicidade de criança que, de modo algum, diminuíam a atividade pouco metódica e interesseira dos seus quarenta e tantos anos.

Se faltava a cozinheira, lá estava ela na cozinha; se bruscamente se despedia a lavadeira, lá ia para o tanque; se não havia cozinheira e copeiro, Angélica fazia o serviço de uma e de outro; e sempre alegre, sempre agradecida à Mme. Barbosa, Dona Sinhá, como ela chamava e gostava de chamar, não sei por que irreprimível manifestação de ternura e intimidade.

A preta andava lá pelo primeiro andar na faina de arrumar os quartos dos hóspedes mais madrugadores e não ouviu nem o tinir do tímpano, nem a ordem da patroa. Não tardou que a campainha soasse outra vez e desta, imperiosa e autoritária, forte e rude, dando a entender que falava por ela a própria alma impaciente e voluntariosa da pessoa que a tocava.

Sentiu a dona da pensão que o estúpido aparelho lhe queria dizer qualquer cousa importante e não mais esperou a mansa Angélica. Foi em pessoa ver quem batia. Quando atravessou o "salão", reparou um instante na arrumação e ainda ajeitou a palmeirita que, no seu pote de faiança, se esforçava por embelezar a mesa do centro e fazer gracioso todo o aposento.

Prontificou-se em abrir a porta envidraçada e logo encontrou um casal de aparência estrangeira. Sem mais preâmbulos, o cavalheiro foi dizendo com voz breve e de comando:

— Mim quer quarto.

Percebeu Mme. Barbosa que lidava com ingleses e, com essa descoberta, muito se alegrou porque, como todos nós, ela tinha também a imprecisa e parva admiração que os ingleses, com a sua arrogância e língua pouco compreendida, souberam nos inspirar. De resto, os ingleses têm fama de dispor de muito dinheiro e ganhem duzentos, trezentos, quinhentos mil-réis por mês, todos nós logo os supomos dispondo dos milhões dos Rothschilds.

Mme. Barbosa alegrou-se, portanto, com a distinção social de tais hóspedes e com a perspectiva dos extraordinários lucros, que certamente lhe daria a riqueza deles. Apressou-se em ir pessoalmente mostrar a tão nobres personagens os cômodos que havia vagos.

Subiram ao primeiro andar e a dona da pensão apresentou com os maiores gabos um amplo quarto com vista para a entrada da baía - um rasgão na tela mutável do oceano infinito.

— Creio que servirá este. Aqui morou o doutor Elesbão, deputado por Sergipe. Conhecem?

— Oh, não, fez o inglês, secamente.

— Mando pôr uma cama de casal...

Ia continuando Mme. Barbosa, quando o cidadão britânico interrompeu-a, como se estivesse zangado:

— Oh! Mim não é casada. Miss aqui, meu sobrinha.

miss por aí baixou os olhos cheios de candura e inocência; Mme. Barbosa arrependeu-se da culpa que não tinha, e desculpou-se:

— Perdoe-me... Não sabia...

E ajuntou logo:

— Então querem dois quartos?

A companheira do inglês, até aí muda, respondeu com calor pouco britânico:

— Oh! sim, senhora!

Mme. Barbosa prontificou-se:

— Tenho, além deste quarto, um outro.

— Where? perguntou o inglês.

— Como? fez a proprietária.

— Onde? traduziu miss.

— Ali.

E Mme. Barbosa indicou uma porta quase fronteira à do aposento que mostrara em primeiro lugar. Os olhos do inglês fuzilaram bruscamente de alegria e, nos de miss, houve um relâmpago de satisfação. A um tempo, exclamaram:

— Muito bom!

— All right!

Examinaram com pressa os aposentos e já se dispunham a descer quando, no patamar da escada, se encontraram com a Angélica. A preta olhou-os demorada e fixamente, com espanto e respeito; parou extática, como em face de uma visão radiante. A luz mortiça da clarabóia empoeirada, ela viu, naqueles rostos muito alvos, naqueles cabelos louros, naqueles olhos azuis, de um azul tão doce e imaterial, santos, gênios, alguma cousa de oratório, de igreja, da mitologia de suas crenças híbridas e ainda selvagens.

Ao fim de instantes de muda contemplação, continuou o seu caminho, carregando baldes, jarros, moringues, inebriada na visão, enquanto a sua patroa e os ingleses iniciaram a descida, durante a qual não se cansou Mme. Barbosa de elogiar o sossego e o respeito que havia na sua casa. Mister dizia - yes; e miss também- yes.

Prometeram mandar as malas no dia seguinte e a dona da pensão, tão comovida e honrada com a futura presença de tão soberbos hóspedes, que nem lhes falou no pagamento adiantado ou fiança.

Na porta da rua, ainda madame se deixou ficar embevecida, contemplando os ingleses. Viu-os entrar no bonde; admirou-lhes o império verdadeiramente britânico com que ordenaram a parada do veículo e a segurança com que se colocaram nele; e só depois de perdê-los de vista foi que leu o cartão que o cavalheiro lhe dera:

— George T. Mac. Nabs—C. E.

Radiante, certa da prosperidade de sua pensão, antevendo a sua futura riqueza e descanso dos seus velhos dias, Dona Sinhá, no carinhoso tratamento da Angélica, penetrou pelo interior do casarão adentro com um demorado sorriso nos lábios e uma grande satisfação no olhar.

Quando chegou a hora do almoço, logo que os hóspedes se reuniram na sala de jantar, Mme. Barbosa procurou um pretexto para anunciar aos seus comensais a boa nova, a notícia maravilhosamente feliz da vinda de dois ingleses para a sua casa de pensão.

Olhando a sala, escolhera a mesa que destinaria ao tio e sobrinha. Ficaria a um canto, bem junto à última janela, que dava para a rua, ao lado, e à primeira que se voltava para o quintal. Era o lugar mais fresco da sala e também o mais cômodo, por ficar bem distante das outras mesas. E, pensando nessa homenagem aos seus novos fregueses, de pé na sala, encostada ao imenso étagère, foi que Mme. Barbosa recomendou ao copeiro em voz alta:

— Pedro, amanhã reserve a "mesa das janelas" para os novos hóspedes.

A sala de jantar da Pensão "Boa Vista" tinha a clássica mesa de centro e outras pequenas ao redor. Forrada de papel cor-de-rosa com ramagens, era decorada com umas velhas e empoeiradas oleogravuras, representando peças de caça, mortas, entre as quais um coelho que teimava em voltar o ventre encardido para fora do quadro, dando aos fregueses de Mme. Barbosa sugestões de festins luculescos. Havia também algumas de frutas e um espelho oval. Era dos poucos compartimentos da casa que não sofrera alteração o mais bem iluminado. Tinha três janelas que davam para a rua, à esquerda, e duas outras, com uma porta ao centro, que miravam o quintal, além das comunicações interiores.

Ouvindo tão imprevista recomendação, os hóspedes todos dirigiram o olhar para ela, cheios de estranheza, como querendo perguntar quem eram os hóspedes merecedores de tão excessiva homenagem; mas a pergunta que estava em todos os olhos só foi feita por Dona Sofia. Sendo a mais antiga hóspede e possuindo uma razoável renda em prédios e apólices, gozava esta última senhora de uma tal ou qual intimidade com a proprietária. Dessa forma, sem rodeios, suspendendo um instante a refeição já começada, perguntou:

— Quem são esses príncipes, madame?

Mme. Barbosa retrucou bem alto e com certo orgulho:

— Uns ingleses ricos—tio e sobrinha.

Dona Sofia, que farejava desconfiada o contentamento da viúva Barbosa com os novos inquilinos, não pôde evitar um movimento de mau humor: arrebitou mais o nariz, já de si arrebitado, deu um muxoxo e observou:

— Não gosto desses estrangeiros.

Dona Sofia havia sido casada com um negociante português que a deixara viúva rica; por isso, e muito naturalmente, não gostava desses estrangeiros; mas teve logo, para contrariá-la, a opinião do doutor Benevente.

— Não diga tal, Dona Sofia. O que nós precisamos é de estrangeiros... Que venham... Demais, os ingleses são, por todos os títulos, credores da nossa admiração.

De há muito, o doutor procurava captar a simpatia da rica viúva, cuja abastança, famosa na pensão, atraía-o, embora a vulgaridade dela devesse repeli-lo.

Dona Sofia não respondeu à contestação do bacharel e continuou a almoçar, cheia do mais absoluto desdém.

Magalhães, no entanto, julgou-se obrigado a dizer qualquer cousa, e o fez nestes termos:

— O doutor gosta dos ingleses; pois olhe: não simpatizo com eles... Um povo frio, egoísta. `

— E um engano, veio com pressa Benevente. A Inglaterra está cheia de grandes estabelecimentos de caridade, de instrução, criados e mantidos pela iniciativa particular... Os ingleses não são esses egoístas que dizem. O que eles não são é esses sentimentais piegas que nós somos, choramingas e incapazes. São fortes e...

— Fortes! Uns ladrões! Uns usurpadores! exclamou o Major Meto.

Meto era um empregado público, promovido, guindado pela República, que impressionava à primeira vista pelo seu aspecto de candidato à apoplexia. Quem lhe visse o rosto sangüíneo, o pescoço taurino, não lhe podia vaticinar outro fim. Morava com a mulher na pensão, desde que casara as filhas; e, tendo sido auxiliar, ou cousa que valha do Marechal Floriano, guardava no espírito aquele jacobinismo do 93, jacobinismo de exclamações e objurgatórias, que era o seu modo habitual de falar.

Benevente, muito calmo, sorrindo com ironia superior, como se estivesse a discutir numa academia, com outro confrade, foi ao encontro do adversário furioso:

— Meu caro senhor; é do mundo: os fortes devem vencer os fracos. Estamos condenados...

O bacharel usava e abusava desse fácil darwinismo de segunda mão; era o seu sistema favorito, com o qual se dava ares de erudição superior. A bem dizer, nunca lera Darwin e confundia o que o próprio sábio inglês chama de metáforas, com realidades, existências, verdades inconcussas. Do que a crítica tem oposto aos exageros dos discípulos de Darwin, dos seus amplificadores literários ou sociais, do que, enfim, se vem chamando as limitações do darwinismo, ele nada sabia, mas falava com a segurança de inovador de há quarenta anos passados e ênfase de bacharel recente, sem as hesitações e dúvidas do verdadeiro estudioso, como se tivesse entre as mãos a explicação cabal do mistério da vida e das sociedades. Essa segurança, certamente inferior, dava-lhe força e o impunha aos tolos e néscios; e, só uma inteligência mais fina, mais apta a desmontar máquinas de embuste, seria capaz de fazer reservas discretas aos méritos de Benevente. Na pensão, porém, onde as não havia, todos recebiam aquelas afirmações como ousadias inteligentes, sábias e ultramodernas.

Melo, ouvindo a afirmação do doutor, não se conteve, exaltou-se e exclamou:

— E por isso que não progredimos... Homens há, como o senhor, que dizem tais cousas... Nós precisávamos de Floriano... Aquele sim...

O nome de Floriano era para Melo uma espécie de amuleto patriótico, de égide da nacionalidade. O seu gênio político seria capaz de fazer todos os milagres, de realizar todos os progressos e modificações na índole do país.

Benevente não lhe deixou muito tempo e objetou, pondo de lado a parte de Floriano:

— E um fato, meu caro senhor. O nosso amor à verdade leva-nos a tal convicção. Que se há de fazer? A ciência prova.

A palavra altissonante de ciência, pronunciada naquela sala mediocremente espiritual, ressoou com estridências de clarim a anunciar vitória. Dona Sofia virou-se e olhou com espanto o bacharel; Magalhães abaixou afirmativamente a cabeça; Irene arregalou os olhos; e Mme. Barbosa deixou de arrumar as xícaras de chá no étugère.

Melo não discutiu mais e Benevente continuou a exaltar as virtudes dos ingleses. Todos concordaram com ele sobre os grandes méritos do povo britânico: a sua capacidade de iniciativa, a sua audácia comercial, industrial e financeira, a sua honestidade, a sua lealdade e, sobretudo, rematou Florentino: a sua moralidade.

— Na Inglaterra, afirmou este último, os rapazes se casam tão puros como as raparigas.

Irene enrubesceu ligeiramente e Dona Sofia levantou-se estrepitosamente, arrastando a cadeira em que estava sentada.

Florentino, hóspede quase sempre mudo, era um velho juiz de direito aposentado, espiritista convencido, que vagava no mundo o olhar perdido de quem perscruta o invisível.

Não percebeu que a sua afirmação havia escandalizado as senhoras e continuou serenamente:

— Lá não há esse nosso desregramento, essa falta de respeito, essa impudicícia de costumes... Há moral... O senhor quer ver uma cousa: outro dia fui ao teatro. Quer saber o que me aconteceu? Não pude ficar lá... Era tal a imoralidade que...

— Que peça era, doutor?—indagou Mme. Barbosa.

— Não sei bem... Era Iaiá me deixe.

— Ainda não vi, disse candidamente Irene.

— Pois não vá, menina! fez com indignação o doutor Florentino. Não se esqueça do que Marcos diz: "Qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, e minha irmã, e minha mãe, isto é, de Jesus."

Florentino gostava dos Evangelhos e os citava a cada passo, com ou sem propósito.

Alguns hóspedes levantaram-se, muitos já se tinham retirado. A sala esvaziava-se e não tardou que o jovem Benevente se erguesse também e saísse. Antes passeou pela sala o seu olhar de pequeno símio, cheio de pequeninas espertezas, rematou sentenciosamente:

— Todos os povos fortes, como os homens, são morais, isto é, são castos, doutor Florentino. Concordo com o senhor.

Conforme tinham prometido, no dia seguinte, vieram as malas dos ingleses; mas não apareceram nesse dia na sala de jantar, nem em outras partes da pensão se mostraram aos hóspedes. Só no outro dia imediato, pela manhã, à hora do almoço, foram vistos. Entraram sem descansar o olhar sobre ninguém; cumprimentaram entre os dentes e foram sentar-se no lugar que Mme. Barbosa lhes indicou.

Como parecessem não gostar dos pratos que lhes foram apresentados, Dona Sinhá apressou-se em ir receber as suas ordens e logo se pôs a par de suas exigências e correu à cozinha para as providências necessárias.

Miss Edith, como se sonhe mais tarde chamar-se a moça inglesa, e o tio comiam calados, lendo cada um para o seu lado, desinteressados de toda a sala.

Vendo Dona Sofia os rapapés que a dona da pensão fazia ao par albiônico, não pôde deixar de dar um muxoxo, que era o seu modo costumeiro de criticar e desprezar.

Todos, porém, olhavam de soslaio para os dois, sem animo de dirigir-lhes a palavra ou fixá-los mais demoradamente. Assim foi o primeiro e nos dias que se seguiram. A sala fez-se silenciosa; as conversas bulhentos cessaram; e, se alguém queria pedir qualquer cousa ao copeiro, falava baixo. Era como se de todos se tivesse apossado a emoção que a presença dos ingleses trouxera ao débil e infantil espírito da preta Angélica.

Os hóspedes acharam neles não sei o que de superior, de superterrestre; deslumbraram-se e acharam-se de um respeito religioso diante daquelas banalíssimas criaturas nascidas numa ilha da Europa ocidental.

A moça, mais que o homem, inspirava esse respeito. Ela não tinha a fealdade habitual das inglesas de exportação. Era até bem gentil de rosto, com uma boca leve e uns lindos cabelos louros, a puxar para o veneziano de fogo. As suas atitudes eram graves e os seus movimentos lentos, sem preguiça ou indolência. Vestia-se com simplicidade e discreta elegância.

O inglês era outra coisa: brutal de modos e fisionomia. Posava sempre de Lord Nelson ou Duque de Wellington; olhava todos com desdém e superioridade esmagadora e realçava essa sua superioridade não usando ceroulas, ou vestindo blusas de jogadores de golf ou bebendo cerveja com rum.

Não se ligaram a ninguém na pensão e todos suportavam aquele desprezo como justo e digno de entes tão superiores.

Nem mesmo à tarde, quando, após o jantar, vinham todos, ou quase, para a sala da frente, eles se dignavam trocar palavras com os companheiros de casa. Afastavam-se e iam para a porta da rua, onde se mantinham geralmente calados: o inglês fumando, com os olhos semicerrados, como se incubasse pensamentos transcendentes; e Miss Edith, com o cotovelo direito apoiado no braço da cadeira e a mão na face, olhando as nuvens, o céu, as montanhas, o mar, todos esses mistérios fundidos na hora misteriosa do crepúsculo, como se o quisesse absorver, decifrá-lo e tirar dele o segredo das cousas futuras. Os poetas que passassem no bonde, certamente, veriam nela uma casta druidesa, uma Veleda, descobrindo naquele instante imperecível o que havia de ser pelos dias vindouros em fora.

Eram assim na pensão, onde faziam trabalhar as imaginações no imenso campo do sonho. Benevente julgava-os nobres, um duque e sobrinha; tinham o ar de raça, maneiras de comando, depósito da hereditariedade secular dos seus ancestrais, começando por algum vagabundo companheiro de Guilherme da Normandia; Magalhães pensava-os parentes dos Rothschilds; Mme. Barbosa supunha Mr. Mac. Nabs gerente de um banco, metendo todos os dias as mãos em tesouros da gruta de Ali-Babá; Irene admitia que ele fosse um almirante, viajando por todos os mares da terra, a bordo de poderoso couraçado; Florentino, que consultara os espaços, sabia-os protegidos por um espírito superior; e o próprio Meio calara a sua indignação jacobina para admirar as fortes botas do inglês, que pareciam durar a eternidade.

Todo o tempo em que estiveram na pensão, o sentimento, que a respeito deles dominava os seus companheiros de casa, não se modificou. Até em alguns cresceu, solidificou-se, cristalizou-se em uma admiração beata e a própria Dona Sofia, vendo que a sua consideração na casa não diminuía, partilhou a admiração geral.

Em Angélica, a cousa tomara feição intensamente religiosa. Pela manhã, quando levava chocolate ao quarto da miss, a pobre preta entrava medrosa, tímida, sem saber como tratar a moça, se de dona, se de moça, se de patroa, se de minha Nossa Senhora.

Muitas vezes temia interromper-lhe o sono, quebrar-lhe o sereno encanto do rosto adormecido na moldura dos cabelos louros. Deixava o chocolate sobre a mesa de cabeceira; a infusão esfriava e a pobre negra era mais tarde repreendida, em uma algaravia ininteligível, pela deusa que ela adorava. Não se emendava, porém; e, se encontrava a inglesa dormindo, a emoção do momento apagava a lembrança da repreensão. Angélica deixava o chocolate a esfriar, não despertava a moça e era de novo repreendida.

Em uma dessas manhãs, em que a preta foi levar o chocolate à sobrinha de Mr. George, com grande surpresa sua, não a encontrou no quarto. Em começo pensou que estivesse no banheiro; mas havia passado por ele e o vira aberto. Onde estaria? Farejou um milagre, uma ascensão aos céus, por entre nuvens douradas; e a miss bem o merecia, com o seu rosto tão puramente oval e aqueles olhos de céu sem nuvens...

Premida pelo serviço, Angélica saiu do aposento da inglesa; e foi nesse instante que viu a santa sair do quarto do tio, em trajes de dormir. O espanto foi imenso, a sua ingenuidade dissipou-se e a verdade queimou-lhe os olhos. Deixou-a entrar no quarto e, cá no corredor, mal equilibrando a bandeja nas mãos, a deslumbrada criada murmurou entre os dentes:

— Que pouca vergonha! Vá a gente fiar-se nesses estrangeiros... Eles são como nós...

E continuou pelos quartos, no seu humilde e desprezado mister.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 12 de dezembro de 2020

A CAUSA SECRETA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A CAUSA SECRETA

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.

Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.

- Já aí vem um, acudiu alguém.

Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.

- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.

- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.

- Não, nunca o vi. Quem é?

- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.

- Não sei quem é.

Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.

Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.

- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.

Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.

O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.

Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.

Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.

- Sabe que estou casado?

- Não sabia.

- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.

- Domingo?

- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.

Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.

- Não, respondeu a moça.

- Vai ouvir uma ação bonita.

- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.

Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.

" Singular homem!" pensou Garcia.

Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

- Valeu? perguntou Fortunato.

- Valeu o quê?

- Vamos fundar uma casa de saúde?

- Não valeu nada; estou brincando.

- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.

Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.

Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.

- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.

No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.

- Mas a senhora mesma...

Maria Luísa acudiu, sorrindo:

- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...

Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.

- Deixe ver o pulso.

- Não tenho nada.

Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.

Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.

- Que é? perguntou-lhe.

- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

- Mate-o logo! disse-lhe.

- Já vai.

E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha  medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.

Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".

Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

- Fracalhona!

E voltando-se para o médico:

- Há de crer que quase desmaiou?

Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.

Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.

Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.

De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.

- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.

Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.

Olhou assombrado, mordendo os beiços.

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 11 de dezembro de 2020

A BILHA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A BILHA

Humberto de Campos

 

Sentado em um banco de madeira tosca, colocado por ele próprio diante da sua chácara do "Bom Retiro", a dois quilômetros de São Fidelis, olha o coronel Saturnino as grandes águas do Paraíba, que rola, sereno e inchado, no rumo de São João da Barra.

 

 A cinco metros do honrado fazendeiro, no leito do rio, emergem duas cabeças queridas: a do filho, o Alfredinho, um pirralho louro, forte, vivaz, de quatro anos, feitos em setembro, e a da sua segunda esposa, D. Florinda, cujos cabelos castanhos, soltos e molhados, lhe orlam, como um capuz de freira, o formoso rosto moreno. O fazendeiro olha, sorrindo, os dois banhistas que lhe enchem o coração, e dá ordens:

- Não vá para longe, Alfredo. Fique aí mesmo.

E para a esposa:

- Mergulhe, Lindinha. Está com medo?

 

A moça dá um mergulho ligeiro, e aparece mais distante, com os lindos olhos fechados, para que lhe escorra melhor sobre o colo forte, como pérolas dissolvidas, a água que lhe encharca os cabelos.

 

Diverte-se o coronel, assim, com os dois anjos que lhe constituem a família, quando, tomando uma bilha velha e inservível que se achava próxima, se põe de pé, e a atira, longe, um exercício dos músculos vigorosos, na corrente do rio. Apanhada pela correnteza, a vasilha de barro começa a descer, rápida, rodopiando, arrebatada pelas águas. De repente, porém, com a boca para cima, começa a encher-se, afundando-se pouco a pouco, até que desaparece, sem deixar vestígio, no tumulto um redemoinho fervente.

 

Alfredinho olha, atento, a viagem da vasilha, e, vendo-a desaparecer na voragem, franze o cenho infantil, perguntando, intrigado, ao velho:

- Papai, por que é que a bilha foi para o fundo?

- Porque entrou água; está claro! - Explicou o coronel.

- Ela não estava com a boca para cima?

- Estava, sim.

- E como entrou água?

- Porque estava furada, - tornou o velho.

 

O pequeno meditou um instante, franziu a testazinha inteligente, e, olhando Dona Florinda, que se encaminhava com o rosto fora d’água, para o meio do rio, gritou, alto, alarmado, com a vozinha fina:

- Mamãe, venha mais p'ra beira!...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 09 de dezembro de 2020

FRANÇA JÚNIOR (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

FRANÇA JÚNIOR

Aluísio Azevedo

 

 

Se a nação tivesse de eleger um brasileiro de bom gosto para representá-la lá fora, eu votaria nele.

Votaria, por uma razão muito simples: porque, de todos os brasileiros que eu conheço, ele é que tem uma compreensão mais lúcida do que vem a ser isto de "bom gosto".

Conheço muitos patrícios elegantes, distintos, com o paladar bem educado, não há dúvida alguma; mas é que, em geral, quando um sabe ver não sabe ouvir, quando outro sabe dizer, não sabe sentir.

E o França, vê, diz, ouve e sente.

Pode ser que alguém o faça isoladamente melhor do que ele; porém, mais afinadamente, isso é que não.

Sua toilette, sua filosofia, seu espírito, seus hábitos, suas: relações, seu humor, tudo está dominado pela mesma corrente de originalidade e perfeitamente afinado entre si.

Ele não se parece com pessoa alguma, o que é bom; e ninguém procura se parecer com ele, o que é melhor.

Quem quisesse provar que não tem espírito de espécie alguma, não precisava ouvir as conferências da Glória, ou levar o desespero a ponto de ler os A pedidos do jornal do sr. Castro. Não! Bastava antipatizar com o França.

O França é homem que, visto pela primeira vez, nos faz vontade de ouvi-lo; ouvindo-o temos desejo de ouvi-lo mais, e, se o ouvimos mais, acabou-se... ficamos amigos.

Então, se fala sobre belas-artes!... adeus, minhas encomendas!

Basta dizer que o diabo do homem correu todos os museus da Europa, freqüentou salões, câmaras políticas, clubes, teatros, ateliers, bondoirs, o inferno!

Para cada fato opõe uma anedota; para cada tipo um bom dito; e para cada mulher um galanteio.

E é sempre o mesmo gentleman em toda a parte. Sabe tão bem conduzir uma questão política pela imprensa, como escrever um folhetim literário, dissertar sobre um Corrégio, ou conduzir uma senhora na valsa.

Com o seu bom humor, com a sua vigorosa mocidade, descobre sempre em todas as cousas um lado alegre, que o faz sorrir.

Por intermédio de seus numerosos folhetins de fina observação e graciosa crítica, vive em todas as províncias do Brasil, e convive com toda a parte da população fluminense que sabe ler.

Mas a sua veia principal é a comédia. Seria um grande comediógrafo, se o nosso teatro não fosse uma grande mentira. Contudo, com o que ele fez até hoje, deixa adivinhar o que seria capaz de fazer.

A literatura para ele foi sempre um diletantismo elegante; nunca esperou que ela lhe dispensasse alguma cousa em troca do muito que ele lhe tem dado.

E, além de tudo isso, não sua.

Seus colarinhos e seus punhos têm sempre a mesma irrepreensibilidade aristocrática.

Nunca perde a linha.

Detesta o chinelo e tem horror ao bocejo. Não usa corrente no relógio; veste-se de acordo com a estação e fala cinco ou seis línguas, correntemente.

Uma ocasião, na Tijuca, um português, que trabalhava em uma pedreira, exclamou ao vê-lo aproximar-se:

- Mussiu, não passa agora. Mim vai lasca fogo na pedra.

...........................................................................

Ah! dizem também que é um magistrado de mão cheia.

Pode ser.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 08 de dezembro de 2020

A SOCIEDADE (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

A SOCIEDADE

Alcântara Machado

 

 Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia — uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!

— O que você está fazendo aí no terraço, menina.

— Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

— Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

— Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

— Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

— Não!

— Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

...mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

— Meu pai quer fazer um negócio com o seu.

— Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou!

— Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

— Já sei, mulher, já sei.

Mas era coisa muito diversa.

Cavaliere ufficciale Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta.

— O doutor...

— Eu não sou doutor, Senhor Melli.

— Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. Io resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Coisas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cavaliere ufficciale tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cavaliere ufficciale com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.

— É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível...

— Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.

— Dopoo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.

— Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.

— Francese? Não é feio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer coisa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.

— Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.

— Sei, sei... O seu filho?

— Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cavaliere ufficciale na direção da porta.

— Repito un'altra vez: O doutor pense bem.

O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.

— E então? O que devo responder ao homem?

— Faça como entender, Bonifácio...

— Eu acho que devo aceitar.

— Pois aceite.

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 07 de dezembro de 2020

UMA ÁGUIA SEM ASAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UMA ÁGUIA SEM ASAS

Machado de Assis

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

Era uma tarde de agosto. Caía o sol, e soprava um vento fresco e brando, como para compensar o dia que estivera extremamente calmoso. A noite prometia ser excelente.

 

Se a leitora quer ir comigo ao Rio Comprido, entraremos juntos na chácara do Sr. James Hope, comerciante inglês desta praça, como se diz em linguagem técnica.

 

James Hope viera para o Brasil em 1830, com pouco mais de 20 anos, e começou imediatamente uma brilhante carreira comercial. Casou pouco depois com a filha de um compatriota, já nascida aqui, e mais tarde fez-se cidadão brasileiro, não só no papel, como no coração.Do seu matrimônio, teve um filho e uma filha; o primeiro, chamado Carlos Hope, seguia a carreira do pai, e contava 26 anos ao tempo em que começa este romance; a filha recebeu o nome de Sara e tinha 22 anos.

 

Sara Hope era solteira. Por quê? A sua beleza era incontestável; reunia a graça brasileira à gravidade britânica, e em tudo parecia destinada a dominar os homens; a voz, o olhar, as maneiras, tudo possuía um misterioso condão fascinador. Além disto, era rica e ocupava uma invejável posição na sociedade. Dizia-se à boca pequena que algumas paixões havia já inspirado a interessante moça; mas não constava que ela as houvesse tido em sua vida.

 

Por quê?

 

Esta pergunta todos a faziam, até o pai que, apesar de robusto e sadio, previa algum acontecimento que viesse a deixar a família sem chefe, e desejava ver casada a sua querida Sara.

 

Na tarde em que começa esta narrativa, estavam todos assentados no jardim, em companhia de mais três rapazes da cidade que tinham ido jantar em casa de James Hope. Dispensem-me de lhes pintar as visitas do velho comerciante. Bastará dizer que um deles, o mais alto, era advogado principiante, dispondo de algum dinheiro do pai; chamava-se Jorge; o segundo, cujo nome era Mateus, era comerciante, sócio de um tio que dirigia uma grande casa; o mais baixo não era coisa nenhuma, tinha algum pecúlio, e chamava-se Andrade. Estudara medicina, mas não tratava doentes, por glória da ciência e sossego da humanidade.

 

James Hope estava extremamente alegre e bem disposto, e todos os mais pareciam gozar o mesmo beatífico estado. Quem entrasse subitamente no jardim, sem ser pressentido, podia descobrir que os três rapazes procuravam obter as boas graças de Sara, tão visivelmente que, não só os pais da moça o percebiam, mas até não podiam encobrir eles mesmos, uns aos outros, as suas pretensões.

 

Se isto era assim, escusado é dizer que a mesma Sara conhecia o jogo dos três rapazes, porque em geral a mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.

 

Longe de parecer incomodada com o fogo dos três exércitos, Sara os tratava com tanta bondade e graça que parecia indicar uma criatura coquete e frívola. Mas quem atentasse alguns largos minutos, conheceria que ela era mais irônica que sincera, e, por isso mesmo que os igualava, os desprezava a todos.

 

James Hope acabava de contar uma anedota da sua mocidade, ocorrida em Inglaterra. A anedota era interessante, e o James sabia narrar, talento difícil e raro. Entusiasmado com os vários pormenores de costumes ingleses a que James Hope teve de aludir, o advogado manifestou o grande desejo que nutria de ver a Inglaterra, e em geral o desejo de viajar toda a Europa.

 

— Há de gostar, disse Hope. As viagens deleitam muito; e além disso, nunca devemos desprezar as coisas estranhas. Eu iria de boa vontade à Inglaterra, durante alguns meses, mas creio que já não posso viver sem o nosso Brasil.

 

— É o que me acontece, acudiu Andrade; acredito que lá fora haja muita coisa melhor do que cá; mas nós cá temos coisas melhores do que lá. Umas compensam as outras; e por isso não valeria a pena de uma viagem.

 

Mateus e Jorge não foram absolutamente desta idéia. Ambos protestaram que dariam algum dia um pulo ao velho mundo.

 

— Mas por que não faz isso que diz, Sr. Hope? perguntou Mateus. Ninguém melhor do que o senhor pode realizar esse desejo.

 

— Sim, mas há um obstáculo...

 

— Não sou eu, acudiu rindo Carlos Hope.

 

— Não és tu, disse o pai, é Sara.

 

— Ah! disseram os rapazes.

 

— Eu, meu pai? perguntou a moça.

 

— Três vezes tenho tentado a viagem, mas Sara opõe sempre algumas razões, e não vou. Creio que descobri a causa da resistência dela.

 

— E qual é? perguntou Sara, rindo.

 

— Sara tem medo do mar.

 

— Medo! exclamou a moça, franzindo as sobrancelhas.

 

O tom com que ela proferiu esta simples exclamação impressionou o auditório. Bastava aquilo para pintar um caráter. Houve alguns segundos de silêncio durante os quais contemplavam a bela Sara, cujo rosto pouco a pouco readquiriu a calma habitual.

 

— Ofendi-te, Sara? perguntou James.

 

— Ah! isso não se diz, meu pai! exclamou a moça com todas as harmonias de sua voz. Não podia haver ofensa; houve apenas uma tal ou qual impressão de espanto, quando ouvi falar de medo. Meu pai sabe que eu não tenho medo...

 

— Sei que não, e já me deste provas disso; mas uma criatura pode ser valorosa e ter medo ao mar...

 

— Pois não é esse o meu caso, interrompeu Sara; se lhe dei algumas razões, é porque me pareceram aceitáveis...

 

— Pela minha parte, interrompeu Andrade, penso que foi um erro que o Sr. Hope aceitasse tais razões. Era conveniente, e mais do que conveniente, era indispensável, que a Inglaterra visse que flores pode dar uma planta sua, quando transplantada às regiões americanas. Miss Hope seria lá o mais brilhante símbolo desta aliança de duas raças vivaces...

 

Miss Hope sorriu ouvindo este cumprimento, e a conversa tomou diversos caminhos.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

Nessa mesma noite, foram os três rapazes cear no Hotel Provençaux, depois de terem passado duas horas no Ginásio. Havia já dois ou três meses que andavam naquela campanha sem se comunicarem uns aos outros as impressões ou as esperanças que tinham. Estas, porém, se alguma vez as tiveram, começavam a diminuir, pelo que não tardaria muito que os três pretendentes se abrissem francamente e dissessem todas as suas idéias a respeito de Sara.

 

Aquela noite foi tacitamente escolhida pelos três para as confidências recíprocas. Estavam numa sala particular onde ninguém os perturbaria. As revelações começaram por alusões vagas, mas não tardou que assumissem um ar de franqueza.

 

— Por que negaremos a verdade? disse Mateus depois de alguns remoques recíprocos; todos três gostamos dela; é claríssimo. E o que também me parece claro é que ela ainda não se manifestou por nenhum.

 

— Nem se manifestará, respondeu Jorge.

 

— Por quê?

 

— Porque é uma namoradeira e nada mais; gosta que lhe façam a corte, e não passa disso. É uma mulher de gelo. Que te parece, Andrade?

 

— Não concordo contigo, acudiu este. Não me parece namoradeira. Pelo contrário, cuido que é uma mulher superior, e que...

 

Estacou. Entrou nesse momento um criado trazendo umas costeletas pedidas. Quando o criado saiu, os outros dois rapazes insistiram para que Andrade concluísse o pensamento.

 

— E quê? disseram eles.

 

Andrade não deu resposta.

 

— Conclui a tua idéia, Andrade, insistiu Mateus.

 

— Creio que ela ainda não encontrou um homem como imagina, explicou Andrade. É romanesca, e só se casará com alguém que lhe realize um tipo ideal; toda a questão é saber que tipo é esse; porque, desde que o soubéssemos, tudo estava decidido. Cada um de nós procuraria ser a reprodução material dessa idealidade desconhecida...

 

— Talvez tenhas razão, observou Jorge; bem pode ser isso; mas, nesse caso, estamos nós em pleno romance.

 

— Sem nenhuma dúvida.

 

Mateus discordou dos outros.

 

— Talvez não seja assim, disse ele; o Andrade terá razão em parte. Creio que o meio de lhe vencer a esquivança é corresponder, não a um tipo ideal, mas a um sentimento próprio, a um traço de caráter, a uma expressão de temperamento. Neste caso, o vencedor será aquele que melhor disser com o gênio dela. Por outras palavras, cumpre saber se ela quer ser amada por um poeta, se por um homem de ciência, etc.

 

— Isso ainda pior, observou Andrade.

 

— Pior será, creio, mas grande vantagem é sabê-lo. Que lhes parece a minha opinião?

 

Concordaram os dois com esta opinião.

 

— Ora bem, continuou Mateus, pois que assentamos nisto, sejamos francos. Se algum de nós sente uma paixão exclusiva por ela, deve dizê-lo; a verdade antes de tudo...

 

— Paixões, respondeu Jorge, eu já as conheci; amei aos 16 anos. Hoje, tenho o coração frio como uma lauda das Ordenações. Desejo casar-me para descansar, e se há de ser com uma mulher vulgar, melhor é que seja com uma formosa e inteligente criatura... Isto quer dizer que nenhum ódio votarei àquele que for mais feliz do que eu.

 

— Minha idéia é outra, disse Andrade; caso por curiosidade. Uns dizem que o casamento é delicioso, outros que aborrecido; e todavia os casamentos não acabam nunca. Tenho curiosidade de saber se é mau ou bom. O Mateus é que me parece verdadeiramente apaixonado.

 

— Eu? disse Mateus deitando vinho no cálice; nem por sombras. Confesso, porém, que lhe tenho alguma simpatia e certa coisa a que chamamos adoração...

 

— Nesse caso... disseram os dois.

 

— Oh! continuou Mateus. Nada disto é amor, pelo menos amor como eu imagino...

 

Dizendo isto, bebeu de um trago o cálice de vinho.

 

— Estamos pois concordes, disse ele. Cada um de nós deve estudar o caráter de Sara Hope, e aquele que atinar com as suas preferências será o feliz...

 

— Fazemos um steeple-chase, disse Andrade.

 

— Não fazemos só isto, observou Mateus; ganhamos tempo e não nos prejudicamos uns aos outros. Aquele que se julgar vencedor, declare-o logo; e os outros deixarão o campo livre. Assim entendidos, conservaremos a nossa recíproca estima.

 

Concordes neste plano, os nossos rapazes gastaram o resto da noite em assuntos diferentes, até que cada um se foi para casa, disposto a morrer ou vencer.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Algum leitor achará este pacto romanesco demais, e um pouco fora dos nossos costumes. Todavia, o fato é verdadeiro. Não direi quem mo referiu, porque não quero fazer mal a um cidadão honrado.

 

Celebrado o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de Sara.

 

Jorge foi o primeiro que supôs tê-lo descoberto. Miss Hope lia muito e era entusiasta dos grandes nomes literários da época. Quase se pode dizer que nenhum livro, mais ou menos falado, lhe era desconhecido. E não só lia, discutia, criticava, analisava, exceto as obras poéticas.

 

— A poesia, dizia ela, não se analisa, sente-se ou esquece-se.

 

Seria esse o ponto vulnerável da moça?

 

Jorge procurou sabê-lo e não esqueceu nenhum meio necessário para isso. Conversaram de literatura longas horas, e Jorge dava largas a um entusiasmo poético mais ou menos real. Notou Sara esse prurido literário do rapaz, mas sem indagar as causas dele, tratou de o aproveitar no sentido das suas preferências.

 

Sem nenhuma ofensa à pessoa de Jorge, posso dizer que ele não era grande conhecedor em matéria literária, pelo que não poucas vezes lhe acontecia tropeçar desastradamente. Por outro lado, sentia necessidade de alguma fórmula mais elevada para o seu entusiasmo e andou catando na memória aforismos deste jaez:

 

— A poesia é a linguagem dos anjos.

 

— O amor e as musas nasceram no mesmo dia.

 

— A poesia e o amor são os dois olhos de Deus.

 

E outras coisas mais que a moça ouvia sem admirar muito o espírito inventivo do jovem advogado.

 

Aconteceu que um domingo de tarde, andando os dois passeando no jardim, um pouco separados do resto da família, Sara pregou os olhos no céu tingido com as rubras cores do ocaso.

 

Esteve assim calada durante longo tempo.

 

— Contempla a sua pátria? perguntou-lhe com meiguice Jorge.

 

— A minha pátria? disse a moça sem perceber a idéia do rapaz.

 

— É a bela hora do poente, continuou este, a hora melancólica da saudade e do amor. O dia é mais alegre, a noite mais terrível; só a tarde é a verdadeira hora das almas melancólicas... Ah! tarde! Oh! poesia! oh! amor!

 

Sara conteve o riso que esteve a ponto de lhe rebentar dos lábios ao ouvir o tom e ao ver a atitude com que Jorge proferiu aquelas palavras.

 

— Gosta então muito da tarde? perguntou ela com um tom irônico que não escaparia a outro.

 

— Ah! muito! respondeu Jorge. A tarde é a hora em que a natureza parece convidar os homens ao amor, à meditação, à saudade, ao arroubo, aos suspiros, a cantar com os anjos, a conversar com Deus. Posso dizer com o grande poeta, mas variando um pouco a sua fórmula: tirai a tarde ao mundo, e o mundo será um ermo.

 

— Isto é sublime! exclamou a moça, batendo palmas.

 

Jorge parecia contente de si. Deitou à moça um olhar lânguido e amoroso e foi o único agradecimento que deu ao elogio de Sara.

 

A moça compreendeu que a conversa podia seguir um caminho menos agradável. Parecia-lhe ver já dançando nos lábios do rapaz uma confissão intempestiva.

 

— Creio que meu pai me chama, disse ela; vamos.

 

Jorge foi obrigado a acompanhar a moça, que se aproximou da família.

 

Os outros dois pretendentes viram o ar alegre de Jorge, e concluíram que ele estava no caminho da felicidade. Sara, entretanto, não mostrava a confusão própria de uma moça que acaba de ouvir uma confissão de amor. Olhava muitas vezes para Jorge, mas era com uns longes de ironia, e em todo caso perfeitamente tranqüila.

 

— Não tem que ver, dizia Jorge consigo, acertei-lhe com a corda; a rapariga é romanesca; tem vocação literária; gosta de exaltações poéticas...

 

Não se deteve o jovem advogado; a essa descoberta seguiu-se logo uma carta ardente, poética, nebulosa, carta que nem um filósofo alemão chegaria a entender.

 

Poupo aos leitores a íntegra desse documento; mas não resisto à intenção de lhes transcrever aqui um período, que bem o merece:

 

“... Sim, minha loura estrela da noite, a vida é uma aspiração constante para a região serena dos espíritos, um desejo, uma ambição, uma sede de poesia! Quando duas almas da mesma índole se encontram, como as nossas, já isto não é terra, é céu, céu puríssimo e diáfano, céu que os serafins povoam de encantadas estrofes!... Vem, meu anjo, passemos uma vida assim! Inspira-me, e eu serei maior que Petrarca e Dante, porque tu vales mais que Laura e Beatriz!...”

 

E cinco ou seis páginas neste gosto.

 

Esta carta foi entregue, num domingo, à saída do Rio Comprido, sem que a moça tivesse ocasião de perguntar o que aquilo era.

 

Digamos a verdade toda.

 

Jorge passou a noite sobressaltado.

 

Sonhou que entrava com Miss Hope em um riquíssimo castelo de ouro e esmeraldas, cuja porta era guardada por dois arcanjos de longas asas abertas; depois sonhou que o mundo inteiro, por meio de uma comissão, o coroava poeta, rival de Homero. Sonhou muitas coisas neste sentido, até que veio a sonhar com um chafariz, que deitava, em vez de água, espingardas de agulha, verdadeiro disparate que só Morfeu sabe criar.

 

Três dias depois foi procurado pelo irmão de Sara.

 

— Minha demora é pequena, disse o rapaz; venho por parte de minha mana.

 

— Ah!

 

— E peço-lhe que não veja nisto nada de ofensivo.

 

— Nisto quê?

 

— Minha mana quis por força que eu viesse restituir-lhe esta carta; e que lhe dissesse... Em suma, isto é bastante; aqui tem a carta. Ainda uma vez, não há ofensa, e a coisa fica entre nós...

 

Jorge não achava palavra para responder. Estava pálido e vexado. Carlos não poupou expressões nem carícias para provar ao rapaz que não desejava a menor alteração na amizade que se votavam um ao outro.

 

— Minha mana é caprichosa, dizia ele, é por isso...

 

— Concordo que foi um ato de loucura, disse enfim Jorge, animado pelas maneiras do irmão de Sara; mas o senhor compreenderá que um amor...

 

— Compreendo tudo, disse Carlos; e é por isso que lhe peço esqueça isto, e ao mesmo tempo posso afirmar-lhe que Sara não tem nenhum ressentimento disto... Portanto, amigos como dantes.

 

E saiu.

 

Jorge ficou só.

 

Estava acabrunhado, envergonhado, desesperado.

 

Não lamentava tanto a derrota como as circunstâncias dela. Entretanto, era preciso mostrar boa cara à sua fortuna, e o rapaz não hesitou em confessar a derrota aos dois adversários.

 

— Safa! disse Andrade, essa agora é pior! Se ela está disposta a devolver todas as cartas pelo irmão, é provável que o rapaz se não empregue em outra coisa.

 

— Não sei disto, respondeu Jorge; confesso-me vencido, eis tudo.

 

Durante esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não estavam ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto fraco na couraça de Sara.

 

Qual deles acertaria?

 

Vamos sabê-lo nas páginas que nos restam.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

Mais curta foi a campanha de Mateus; imaginara ele que a moça amaria loucamente a quem lhe desse sinais de bravura. Concluía isto da exclamação que lhe ouvira, quando James Hope disse que ela tinha medo do mar.

 

Tudo empregou Mateus para seduzir Miss Hope por esse lado. Em vão! a moça parecia cada vez mais recalcitrante.

 

Não houve proeza que o candidato não referisse como glória sua, e algumas fê-las ele mesmo com sobrescrito para ela.

 

Sara era uma rocha.

 

A nada cedia.

 

Arriscar uma carta seria loucura, depois do fiasco de Jorge; Mateus julgou prudente abater as armas.

 

Restava Andrade.

 

Teria ele descoberto alguma coisa? Parecia que não. Todavia, era dos três o mais atilado, e se a causa de isenção da moça fosse a que eles apontavam não havia dúvida de que Andrade atinaria com ela.

 

Durante esse tempo, ocorreu uma circunstância que vinha transtornar os planos do rapaz. Sara, acusada pelo pai de ter medo do mar, o induzira a uma viagem à Europa.

 

James Hope participou alegre esta notícia aos três moços.

 

— Mas vão já? perguntou Andrade quando o pai de Sara lhe disse isto na rua.

 

— Daqui a dois meses, respondeu o velho.

 

— Valha-nos isso! pensou Andrade.

 

Dois meses! Devia vencer ou morrer dentro daquele prazo.

 

Andrade auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com atenção religiosa, tudo examinava cuidadosamente.

 

Um domingo em que lá se achavam na chácara todos, em companhia de algumas moças da vizinhança, falava-se de modas e cada uma dava a sua opinião.

 

Andrade conversava alegremente e também discutia o assunto da conversa, mas o seu olhar, a sua atenção estavam voltados para a bela Sara.

 

A distração da moça era evidente.

 

Em que pensaria ela?

 

De repente, entra pelo jardim o filho de James, que ficara na cidade para aviar uns negócios do paquete.

 

— Sabem a novidade? disse ele.

 

— Que é? perguntaram todos.

 

— Caiu o ministério.

 

— Deveras? disse James.

 

— Que temos nós com o ministério? perguntou uma das moças.

 

— O mundo caminha bem sem o ministério, observou outra.

 

— Oremos pelo ministério, acrescentou piedosamente uma terceira.

 

Não se falou mais nisto. Aparentemente, era uma coisa insignificante, um incidente sem resultado, na vida aprazível daquela abençoada solidão.

 

Assim seria para os outros.

 

Para Andrade foi um raio de luz, — ou pelo menos um indício veemente.

 

Notou ele que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois ficara algum tanto pensativa.

 

Por quê?

 

Tomou nota do incidente.

 

Noutra ocasião foi surpreendê-la a ler um livro.

 

— Que livro será esse? perguntou ele sorrindo.

 

— Veja, respondeu ela apresentando-lhe o livro.

 

Era uma história de Catarina de Médicis.

 

Isto seria insignificante para outro; para o nosso candidato era um vestígio preciosíssimo.

 

Com os apontamentos que tinha, já Andrade podia conhecer a situação; mas, como era prudente, buscou esclarecê-la melhor.

 

Um dia mandou uma cartinha a James Hope, concebida nestes termos:

 

“Empurraram-me alguns bilhetes de teatro: é um espetáculo em benefício de um homem pobre. Sei como o senhor é caridoso, e por isso aí lhe remeto um camarote. A peça é excelente.”

 

A peça era o Pedro.

 

No dia aprazado, lá estava Andrade no Ginásio. Hope não faltou, com a família, ao espetáculo anunciado.

 

Nunca Andrade sentira tanto a beleza de Sara. Estava esplêndida, mas o que aumentava a beleza e o que lhe inspirava adoração maior, era o concerto de louvores que ele ouvia à roda de si. Se todos gostavam dela, não era natural que ela só lhe pertencesse a ele?

 

Pela razão de beleza, como por causa das observações que Andrade queria fazer, não tirou os olhos da moça durante a noite inteira.

 

Foi ao camarote dela no fim do segundo ato.

 

— Venha, disse-lhe Hope, deixe-me agradecer-lhe a ocasião que me proporcionou de ver Sara entusiasmada.

 

— Ah!

 

— É um excelente drama este Pedro, disse a moça apertando a mão de Andrade.

 

— Excelente só? perguntou ele.

 

— Diga-me, perguntou James, este Pedro sobe sempre até ao fim?

 

— Não o disse ele no primeiro ato? respondeu Andrade. Subir! subir! subir! Quando um homem sente em si uma grande ambição, não pode deixar de realizá-la, porque justamente nesse caso é que se deve aplicar o querer é poder.

 

— Tem razão, disse Sara.

 

— Pela minha parte, continuou Andrade, nunca deixei de admirar este caráter soberbo, natural, grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma! Que é a vida sem uma grande ambição?

 

Este arrojo de vaidade produziu o desejado efeito, eletrizou a moça, a cujos olhos parecia que Andrade se havia transfigurado.

 

Bem o percebeu Andrade, que coroava assim os seus esforços.

 

Adivinhara tudo.

 

Tudo o quê?

 

Adivinhara que Miss Hope era ambiciosa.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

Eram duas pessoas diferentes até aquele dia; daí a pouco pareciam entender-se, harmonizar-se, completar-se.

 

Tendo compreendido e sondado a situação, Andrade não deixou de prosseguir no ataque em regra. Sabia para onde iam as simpatias da moça; foi com elas, e tão cauteloso, e ao mesmo tempo tão audaz, que inspirou ao espírito de Sara pouco disfarçável entusiasmo.

 

Entusiasmo, digo, e era esse o sentimento que devia inspirar quem pretendesse o coração de Miss Hope.

 

Amor é bom para as almas angélicas.

 

Sara não era assim; a ambição não se contenta com flores e horizontes curtos. Não pelo amor, mas pelo entusiasmo, é que ela devia ser vencida.

 

Sara via Andrade com olhos de admiração. Ele soubera, a pouco e pouco, convencê-la de que era um homem essencialmente ambicioso, confiado na sua estrela, e seguro dos seus destinos.

 

Que mais queria a moça?

 

Ela era efetivamente ambiciosa e sedenta de honras e eminências. Se tivesse nascido nas imediações de um trono, poria esse trono em perigo.

 

Para que ela amasse alguém, era necessário que esse pudesse competir com ela no gênio, e lhe afiançasse a vinda de glórias futuras.

 

Andrade compreendera isso.

 

E tão hábil se houve que conseguira fascinar a moça.

 

Hábil, digo eu, e nada mais; porque, se houve jamais criatura desambiciosa neste mundo, espírito mais tímido, gênio menos desejoso de mando e poderio, esse foi sem dúvida o n osso Andrade.

 

A paz era para ele o ideal.

 

E a ambição não existe sem perpétua guerra.

 

Como conciliar, pois, este gênio natural com as esperanças que inspirara à ambiciosa Sara?

 

Deixava ao futuro?

 

Desenganá-la-ia, quando fosse conveniente?

 

A viagem à Europa foi ainda uma vez adiada, porque Andrade, competentemente autorizado pela moça, pediu-a em casamento ao honrado comerciante James Hope.

 

— Perco ainda uma vez a minha viagem, disse o velho, mas desta vez por um motivo legítimo e agradável; faço minha filha feliz.

 

— Parece-lhe que eu... murmurou Andrade.

 

— Ande lá, disse Hope batendo no ombro do futuro genro; minha filha morre pelo senhor.

 

O casamento foi celebrado dentro de um mês. Os noivos foram passar a lua-de-mel na Tijuca. Cinco meses depois estavam ambos na cidade, ocupando uma casa poética e romanesca em Andaraí.

 

Até então a vida foi um caminho semeado de flores. Mas o amor não podia tudo numa aliança iniciada pela ambição.

 

Andrade estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas, le naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do rapaz por uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.

 

Sara começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o marido. Lia alguns romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de casar, parecia destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de dormideira.

 

Tarde conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente este desengano.

 

Quis disfarçá-lo, mas não pôde.

 

E um dia disse a Andrade:

 

— Por que razão a águia perdeu as asas?

 

— Qual águia? perguntou ele.

 

Andrade compreendeu a intenção dela.

 

— A águia era apenas uma pomba, disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.

 

Sara recuou e foi encostar-se à janela.

 

Caía, então, a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.

 

— Suspiras? perguntou Andrade.

 

Não teve resposta.

 

Houve longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade que batia compassadamente no chão.

 

Afinal, levantou-se o rapaz.

 

— Olha, Sara, disse ele, vês este céu dourado e esta natureza tranqüila?

 

A moça não respondeu.

 

— Isto é a vida, isto é a verdadeira glória, continuou o marido. Tudo mais é manjar de almas doentias. Gozemos isto, que deste mundo é o melhor.

 

Deu-lhe um beijo na testa e saiu.

 

Sara ficou longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela vertesse alguma lágrima.

 

Verteu duas.

 

Uma pelas ambições abatidas e desfeitas.

 

Outra pelo erro em que estivera até então.

 

Porquanto, se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões, dizia-lhe o coração que a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica.

 

Que mais lhe direi para completar a narrativa?

 

Sara disse adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de desejos.

 

Quis Deus que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido poderá escrever-lhe na sepultura: Foi boa esposa e teve muitos filhos.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 06 de dezembro de 2020

O POMBO (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA

O POMBO

Rubem Braga

 


Vinícius de Moraes contava ter ouvido de uma sua tia-avó, senhora idosa muito boazinha, que um dia ela estava na sala de jantar, em sua casa do interior, quando um lindo pombo pousou na janela. A senhora foi se aproximando devagar e conseguiu pegar a ave. Viu então que em uma das patas havia um anel metálico onde estavam escritas umas coisas.
— Era um pombo-correio, titia.

–  Pois é. Era muito bonitinho e mansinho mesmo. Eu gosto muito de pombo.
— E o que foi que a senhora fez?


A senhora olhou Vinícius com ar de surpresa, como se a pergunta lhe parecesse pueril:

— Comi, uai.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 05 de dezembro de 2020

A VELHA AMIGA (CRÔNICA DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)

A VELHA AMIGA

Rachel de Queiroz

 

A Velha Amiga

Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.

Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.

Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.

Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.

E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.

Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.

A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.

E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.

Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.

(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo" - 13/01/2001)

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 04 de dezembro de 2020

A ENGUIA (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A ENGUIA

Olavo Bilac

 

Ao alvorecer, na pequenina aldeia, à beira-mar, padre João, ainda estremunhado de sono, vai seguindo a praia branca, a caminho da igrejinha, que parece ao longe, clara e alegre, levantando no nevoeiro a sua torre esbelta. Lá vai o bom pároco dizer a sua missa e pregar o seu sermão de quaresma... Velho e gordo, muito velho e muito gordo, padre João é muito amado de toda a gente do lugar. E os pescadores que o vêm, vão deixando as redes e vão também seguindo para a igreja. E o bom pároco abençoa as suas ovelhas, e vai sorrindo, sorrindo, com aquele sorriso todo bondade e todo indulgência... À porta da igreja, a Sra. Tomásia, velha devota que o adora, vem ao encontro dele: 
— Padre João! Aqui está um regalo que lhe quero oferecer para o seu almocinho de hoje... 
E tira do cabaz uma enguia, uma soberba enguia, grossa e apetitosa, viva, remexendo-se. 
— Deus te pague, filha! — diz o bom padre, — e os seus olhos fulguram, cheios de júbilo e gula. E segura a enguia, e vai entrando com ela na mão, seguido da velha devota. Que bela enguia! e padre João apalpa voluptuosamente o peixe... 
Mas já aí vem o sacristão. A igreja está cheia... A missa vai começar... Que há de fazer o padre João da sua formosa enguia? Deixá-la ali, expô-la ao apetite do padre Antônio, que também é guloso? Padre João não hesita: levanta a batina e com um barbante amarra a enguia em roda da cintura. 
A missa acaba. Padre João, comovido e grave, sobe ao púlpito rústico da igreja. E a sua voz pausada começa a narrar a delícia da abstinência e das privações: é preciso amar a Deus... é preciso evitar as torpezas do mundo... é preciso fugir das tentações da carne... E o auditório ouve com recolhimento a palavra suave do seu bom pároco. 
Mas, de repente, que é aquilo? Os homens abrem os olhos espantados; remexem-se as mulheres, levantando curiosamente os olhares para o púlpito... É que, na barriga do padre João, debaixo da batina, alguma coisa grossa está bolindo... E já na multidão de fiéis correm uns risinhos abafados... 
Padre João compreende. Pobre pároco! pobre pároco atrapalhado! cora até a raiz dos cabelos, balbucia, fica tonto e confuso. Depois, cria coragem e, vencendo a vergonha, exclama: 
— Não é nada do que pensais, filhas! Não é carne! É peixe! É peixe! Não é carne!... 
E sacode no ar, com a mão tremula, a enguia da senhora Tomásia...

Literatura - Contos e Crônicas quinta, 03 de dezembro de 2020

A AVENTURA DE ROZENDO MOURA (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A AVENTURA DE ROZENDO MOURA

João do Rio

(Grafia original)

 

Na rua era um fragor. As casas pareciam abaladas pelo barulho dos tambores, das cornetas, dos bombos, da vozearia infernal. Rozendo Moura, muito maldisposto, estava a vestir-se. No seu encantador gabinete de laca branca com estofo cor-de-rosa e uma infinidade de objetos de cristal e marfim por sobre os móveis, nós insistíamos.

- Não me deixarão vocês?

- Rozendo! Uma terça-feira de carnaval!

- Mas chove...

- Tanto melhor. A Berta Worms espera-nos!

- Essa mulher desagrada-me...

- Não há mulheres desagradáveis. As mulheres contentam-se com ser, como dizia o dramaturgo - a razão e o impedimento de todas as nossas obras...

- Pois eu julgo-as portadoras de fatalidade e nós, mesmo contra a vontade, as placas sensíveis dessas correntes de Mistério.

- A Berta dá então azar?

- A mim, pelo menos. Explico o meu caso. Pode dar sorte a outros. Comigo, há mulheres que, aproximadas, são motivo de prosperidade. Outras baralham-me a vida, por mais que me amem. Tenho de brigar a murros com desconhecidos, negócios quase realizados periclitam, a saúde fenece... Assim deve ser com vocês, com todos os homens. Infelizmente não sou excepcional. Há de resto uma espécie de mulheres pior - a que age sobre os homens como alucinação, fazendo-os participar da própria desgraça. Dessas, quem escapa uma vez, não toma...

- Fetiche!

- É que vocês nunca se lembram da mulher que os acompanha...

- A mulher fatal?

- Todas são fatais.

Houve uma pausa breve, enquanto Rozendo Moura dava o laço da gravata, diante do espelho.

- O Rozendo, já escapastes de alguma? indagou Jaques Ciro, um prodígio de ceticismo, porque tinha apenas vinte anos.

- Já. Olha. O carnaval faz-me lembrar a mais horrenda semana da minha vida, a semana em que eu participei integralmente da horrível fatalidade...

Nesse momento, o rumor vindo da rua tornou-se tão grande, que tivemos de ir à janela. Chovia a cântaros. Mas, embaixo, a multidão delirava. Eram gritos, uivos, gargalhadas, assobios, guinchos de cornetins, rufos de tambores, sacolejos de adufes, estalos de pratos. E os sons agoniantes dos bombos bombardeando as fachadas... Rozendo recolheu com desgosto, atirou-se no divã.

Não, positivamente não vou!...

- Recordaste a semana horrível? tornou Jaques Ciro.

- Sim. E tanto mais atroz, quanto até hoje não compreendo como e por que agi nesses oito dias. Foi há cinco anos e por mais que pense, não explico. Macabro. Misterioso. Assustador. Recorda-se você da Corina Gomes, uma rapariguita brasileira, que freqüentava os clubes?

- Há cinco anos, Rozendo? Não há memória que alcance uma rapariguita brasileira a cinco anos de distância. Depois eu estava na Europa...

- Felizardo!

- Infeliz, porque voltei...

- Pois a Corina era magra, lívida, tomava cocaína. Eu achava-a antipática. Nunca trocáramos senão monossílabas, o instinto dizia-me que essa mulher seria a desagradável aventura da minha vida. Como? Não sabia!

Ora, numa terça antes do carnaval, com a agitação da cidade, habitual em tais dias, sentia-me inquieto, indeciso, nervoso. Desejava voltar a casa e queria aborrecidamente beber champagne e ouvir gritos no clube - onde se anunciava uma ululante redoute. A porta do club ainda hesitei. Ia acontecer-me qualquer coisa de desagradável. Com certeza. Sem ter inimigos, apalpei o revólver no bolso da calça. Há desses instantes de polarização nervosa em que vagamente sentimos o que está no ar e vem... Veio. Veio como os ciclones. Ainda no vestiário senti uma voz de agonia:

- Leve-me daqui já ou estou perdida! Pela sua honra...

Voltei-me. Era um dominó.

- Que brincadeira é essa?

- Por piedade! Não posso falar aqui. Escute, venha cá...

Frágil, a sua força nervosa era tão intensa, que quase me arrastava para a rua.

- Você está doida, mulher?

- Pelo amor de Deus! Só a sua companhia até mais abaixo, Rozendo...

- Conhece-me?

- Sim, sim. Salve-me de morrer!

- Mas quer comprometer-me?

- Não. Quero a sua presença contra um covarde!

Na rua um táxi rodava vazio. Ela precipitou-se.

- Mande tocar já, já - para onde quiser...

Olhei em redor. Não havia ninguém suspeito. Tratava-se por conseqüência de uma aventura sem conseqüências.

Ela entregava-se, indo onde eu quisesse... Curvei-me para o motorista e, quase em segredo, dei-lhe uma direção vaga. Por quê? Até hoje não sei. Quando me voltei, o automóvel em marcha, o dominó levantou a máscara. Era Corina Gomes, os beiços trêmulos, lívida...

- Você? bradei colérico.

- A desgraça da minha vida! Não gosta de mim, bem sei. Mas não se trata de amor, Rozendo! Só o sr. poderá salvar-me.

- Eu?

- Há três anos suporto as torturas de um monstro. Tudo quanto ganho é dele. Quando vou ao club toma-me o dinheiro. Depois fecha o quarto todo, abre vários frascos de éter, põe-me inteiramente nua, prende-me os cabelos à gaveta da cômoda, e goza naquela atmosfera desvairante, gotejando sobre mim éter. Oh! não imagina! não imagina! Cada gota que cai dá-me um arrepio. Ao cabo de certo tempo é uma sensação de queimadura, queimadura de gelo até a insensibilidade... Ontem, não foi possível tolerá-lo mais. Protestei, gritei, contei tudo à gente da pensão. Dois homens que lá estavam puseram-no na rua a pontapés. Ele voltou. Não o recebi. Deu então para perseguir-me. Jurou que me matava. Ando a fugir. Vejo-o por todos os lados. É certo que me matará...

- E você incomoda-me por uma tolice dessas! Faça as pazes.

- É tarde. Não tenho coragem. Antes de ouvir-me, mata-me. Tenho a certeza. Os meus dias estão contados. Conheço-o.

Disse aquelas palavras com tal segurança que não hesitei um segundo. Também eu tinha a certeza da fatalidade que vence todos os obstáculos, também eu via aquela criatura morta...

- Mas que fazer?

- Se pudesse esconder-me uns dias, dar-me depois uma passagem? É inútil, porque ele acabará por encontrar-me. Mas eu tenho medo, muito medo. Falta-me a coragem de morrer, Rozendo!

Devia ter levado Corina à policia, denunciado o monstro. E, livre de responsabilidade, ir dormir em seguida. Assim faria um homem de bem no uso das suas faculdades.

- Sabe onde está ele?

- Por ai. Procura-me...

De repente senti que tinha ódio a Corina, com vontade de defendê-la. Perdera a noção do real, sabendo que a perdera. Era desejo de aniquilar o desconhecido e o medo vago desse enorme e vago desconhecido. Não disse que a defenderia. Levei-a para um quarto de hotel em rua escura com a resolução de embarcá-la no dia seguinte, ainda não sabia como. No hotel, Corina tremia tanto, quando tentei deixá-la, que fiquei. Dormimos um ao lado do outro, sem uma carícia - ela a delirar com medo; olhando a treva e maldizendo a aventura. E no dia seguinte verifiquei apenas o seguinte: perdera insensivelmente metade da energia. Como essas criaturas na iminência do desastre. Como os criminosos com medo à polícia. Andei dois dias assim, desconfiado, fraco, aterrado, sem agir. Corina não deixava o quarto, sem dizer palavra. Eu sentia que era preciso salvá-la, para salvar-me. Inexplicável estado da alma! Na sexta resolvi terminar, vendo os anúncios dos vapores.

- Embarcas amanhã para a Europa!

Corina despregou-se das persianas, onde passava o dia a espreitar a rua.

- Não é possível! Ele já descobriu.

- Como?

- Vi-o ainda há pouco ali em frente.

- Mas estás louca!

- Não me deixe só, Rozendo! Ele mata-me. Chamei o criado, com uma súbita intenção do perigo. Interroguei-o. Havia algum hóspede novo? Havia. Um homem louro, pálido, que alugara o quarto do outro corredor, e estivera a ler a lista dos hóspedes... Corina caíra sobre o leito. Os seus dentes batiam como se estivesse desabrigada, entre neves. Fiz um esforço:

- Esse homem já recolheu?

- Há pouco.

Era uma luta, devia ser uma luta, secreta e atroz, na sombra. Mandei buscar um automóvel. Consegui dominar o terror de Corina para que ela ao menos caminhasse. Saímos naturalmente, como quem vai a passeio. No meio do caminho trocamos de automóvel. Eu tremia de raiva.

- A culpa é tua! Tu é que o fazes vir, sempre a pensar nele!

- É sim, Rozendo. Sinto que ele vem e não posso, não posso, não posso...

- Acabo com isso eu! Vamos dormir em qualquer hospedaria e amanhã dou queixa à polícia...

Assim fiz. O delegado prometeu tomar providências, mandando dois agentes para o hotel onde estávamos. Mas, ao sair da policia, compreendi claramente que ele" sabia da minha resolução. "Ele" sim, o homem que eu desconhecia, com o qual a fatalidade me punha em conflito, o homem de que a Corina devia ser vítima. Essa criatura já decerto sabia, e ria com desprezo. Eu não precisava tê-lo visto para ter a certeza do seu conhecimento... Foi um pensador melancólico que escreveu: "não é só no céu e na terra, é principalmente em nós mesmos que há mais coisas do que podem conter todas as filosofias. "Não sei explicar o mistério daquelas correntes de sentimentos que chocavam. Tinha a certeza, porém. E era horrível, era angustioso! Tomei a mudar de hotel e não tive mais coragem de deixar só Corina. Fazia-me reflexo sensível daquela fatalidade feita mulher. Ela aos poucos desdobrava-se em mim. E como só pensava no seu algoz - naquele a quem o Destino lhe entregara a vida eu também só pensava nele. Passávamos horas a ouvir o rumor dos corredores. Onde estaria ele? Onde? Decerto perto. Talvez, à vossa porta, espreitando...

O meu delírio tinha entretanto intervalos de relativa lucidez. Domingo de carnaval perdi de súbito o medo.

- Corina, achei uma solução para o nosso caso.

- Qual? fez ela.

- Vamos aproveitar o carnaval! Não se pode contar com a policia. "Ele" ainda não apanhou a nossa pista. O essencial é pôr-te a andar, antes que de novo a descubra! E encontrei-me a planejar alto: Visto-me de qualquer coisa e saio. Vou até a casa, enfio o dominó e venho buscar-te. Sairemos pela porta dos fundos. Faço melhor. O meu criado tem uma rapariga mais ou menos com o teu corpo. Mando-os esperar em qualquer casa de máscaras. Lá eles enfiarão as nossas fantasias e virão para este quarto, enquanto nós estaremos livres para tomar o noturno de S. Paulo. Há quarta-feira em Santos um transatlântico para Buenos Aires e Valparaíso. Se o homem não estiver no vapor, estarás livre...

- Achas?

- É certo.

Saí a executar o plano. Executei-o exatamente. Na casa de máscaras, Corina pôs uma travesseirinha nas costas, armou uns seios muito grandes, amarrou com o lenço o rosto e colocou por cima uma espessa máscara de arame. Eu fiz um grande ventre sob o dominó e saí claudicando. Tudo isso, notem vocês, fazíamos sem ver nada anormal, sem a certeza senão vaga de que ele nos estivesse acompanhando...

Após, conseguimos um táxi. Estávamos prestes a dizer:

- Enfim, logrado!

Mas, curioso. Durante as duas horas em que rolamos por avenidas desertas nesse automóvel fechado a fazer horas para apanhar o comboio, não trocamos uma palavra. Era o grande momento decisivo. Corina apertava a minha mão, de vez em quando, tremendo. Apenas. Eu sentia que o seu medo voltava aos poucos a desequilibrar-me. Passávamos pela cidade em delírio, sem dar por isso. O nosso delírio era maior.

Quando chegamos à Central a confusão urbana tocava o auge. O grande hall da estação cheio de luz elétrica, a turba, os "cordões" com archotes a zambumbar, as danças, os gritos, as lutas de lança-perfumes e dos confet, o risco colorido das serpentinas... Metemo-nos por ali dentro para tomar o vagão. E de repente, os dois, no mesmo instante, vimos que estávamos perdidos.

Como explicar essa impressão extralúcida?

Fora caía um temporal desabrido. A estação estava atulhada. Homens suados, bandos alagados, máscaras passavam numa alucinação como galvanizados pela luz elétrica. Ninguém reparava em nós, ninguém decerto, ninguém, ninguém. E entretanto sentíamos que o perigo se aproximava seguro, com o passo firme. Onde estava ele? Era o homem do éter, o homem cuja fisionomia eu nem mesmo conhecia, ele com a sua cara, ou com uma máscara. E olhava-nos, e estava ali, e reconhecera-nos. Sim.

Devia estar, devia ter reconhecido. Que fazer? Que fazer? A vertigem apoderava-se de nós. Aquela mulher era decerto o pólo negativo a chamar misteriosamente, a atrair o horrendo ser. Ele adivinhava por uma revelação telepática. Sei lá! Sei lá! O fato é que Corina apoiou o corpo no meu braço:

- É o fim!

- Anda para frente, estafermo! rouquejei furioso.

- Não partimos mais, Rozendo.

- Partimos sim!

- Ele está no apeadeiro, sinto-o!

- Prendemo-lo.

- Ele vai tomar o trem conosco. Ele mata-me em viagem!

- Miserável, caminha ou largo-te!

- Voltemos, Rozendo. Ainda é possível escapar, se apanhamos ai um automóvel...

- Agora?

- Sim! Sim!

- Agora? repetia eu correndo, como diante do inexorável Destino. E não havia máscara ou cara suspeita!

Na praça deserta - faltavam as conduções. Só, ao longe, rebrilhavam as lanternas de um carro. Ela deitou a correr. Segui-a, olhando para trás. Ao chegarmos à beira do carro, um landau fechado, estávamos completamente alagados. A chuva redobrava.

- Para onde?

- Ande!

- É vinte mil-réis a corrida.

- Seja cem! Depressa!

- Para onde quiser!

O trem tomou o caminho do lado da Casa da Moeda.

- Vamos à delegacia, Rozendo?

- Queres?

- Se ainda for tempo!

Convencido de que não seria possível lutar só contra o horror invisível, gritei ao cocheiro:

- Polícia Central! A toda...

O carro, porém, parara.

- Que há?

- Raios o partam! Rebentaram as correias das bestas.

- Hem?

- Dos dois lados. Caiporismo!

- E agora?

- E esperar aqui, até que passe outro carro. Não posso guiar assim.

- Meu Deus!

Era no pedaço mais deserto da rua. Saltei para ver. As correias gastas tinham arrebentado naturalmente. Estávamos nas mãos do Destino. Só havia um alvitre: correr até a esquina, onde passavam bondes, onde havia movimento... Era o meio de escapar, e eu escaparia para sempre, porque no dia seguinte não me meteria mais à guarda daquela criatura.

- Vamos?

- Rozendo...

- Anda...

- Se tem de ser? fez ela. Tens razão.

Desceu, corremos os dois sob o temporal pelo meio da rua escura uns cinco metros, uns dez metros. Sei que ouvi um psiu e voltei-me, enquanto ela estacava. Sei que vi um sujeito que vinha para nós, talvez o cocheiro. Sei que o sujeito avançou para Corina com uma pequena máscara de chorão, ergueu o braço, e passou a mão pelos seios falsos da rapariga. Ia gritar. Deu-me um pescoção. Rolei na lama. Ele segurava-a, riscando-lhe o dominó com uma navalha.

De súbito ela deu um grito agudo. O único. Pareceu-me que desmaiara. Nas mãos do máscara lembrava um manequim. O homem em fúria continuava a brandir a navalha contra os enchimentos dos seios. Afinal atirou-se à máscara. Era de arame. O fio da arma rompeu-se no tecido espesso. Ouvi os triços gaspeados da lâmina no tecido de arame. Ergui-me de um pulo, saquei do revólver, detonei aos berros:

- Assassino! Assassino!

O tipo arrancava as roupas, a máscara da desgraçada. Eu continuava a detonar e a gritar. Gente corria. Vi cair o capuz à Corina, o assassino agarrá-la pelos cabelos, afundar-lhe a navalha no pescoço e deixá-la tombar num jato de sangue. A cena talvez tivesse durado dois minutos. Para mim foi longa como um século, rápida como um raio. De revólver em punho, fantasiado, meio estrangulado pelos cordões da máscara, eu delirava, presa de uma febre cerebral... Estive entre a vida e a morte, dois meses... E quando os médicos me declararam fora de perigo, tive a sensação absoluta do desastre de que escapara. Ela agira como os ciclones, que embora destinados a um certo sitio, desarvoram, matam, estragam o que se agita no limite da sua ação destruidora. Aquela criatura fora o ciclone. Longe dela ainda lhe sofrera a força fatal. Não morrera, mas estava desarvorado, como os barcos apanhados pela tromba terrível. E desde então, respeito muito essas coisas inexplicáveis que as mulheres representam. A semana de Corina fez-me compreender o horror do enigma dramático da vida...

Rozendo Moura reclinou-se inteiramente no divã. Tinha a fronte banhada em suor. Amigos desse excelente rapaz, nós ouvíamos a anedota e os comentários com paciência e sem prestar muita atenção. Jaques Ciro, o jovem cético, estava ainda na idade em que se toma interesse pelas histórias alheias. Às divagações de Rozendo, insistiu:

- E a Corina, morreu?

- É verdade, a Fatalidade desapareceu? sorriu outro.

- Não, fez Rozendo. Não estaria no meu princípio de que as mulheres são agentes do Destino contra ou a favor de certos indivíduos. Ela parecia a vítima do tal assassino. No fundo a vítima foi ele. Ele é que devia desaparecer para libertar-se...

- Rozendo!

- A própria opinião inconsciente dessa rapariga. Nem ele nem ela morreram. Ele foi condenado a vinte anos de prisão. O advogado tem apelado. Ela, com o pescoço costurado, a cara cheia de talhos, mais magra, mais lívida, vive numa hospedaria das proximidades da Detenção. Todo o dinheiro que arranja é para ele, para o seu antigo, para o seu assassino. Amam-se profundamente. Ela, porque sendo a expressão viva da fatalidade do pobre homem, não o deixará enquanto for possível fazer-lhe mal. Ele, porque ninguém foge à sua mulher, isto é, ao seu Destino... Outro dia encontrei Corina. Não a vira desde a noite trágica. Foi ela quem me falou. E, contando-me o seu amor, a sinceridade do "pobrezinho", exclamou: "Tudo por sua causa, Rozendo. Se não fosse o seu medo e a mania de meter-se na vida dos outros, o meu Roberto não estaria desgraçado".

- Decididamente, meus amigos, as mulheres!... Não valem o tempo que aqui perdemos, sentenciou grave Jaques Ciro.

- Vão vocês pois ao divertimento. Eu fico com medo à chuva e às rajadas do Destino, que são as inexoráveis mulheres...

- E Rozendo Moura ergueu-se, foi até o espelho desmanchar o laço da gravata. Estava só. Todos nós já descíamos as escadas. Corríamos às aventuras prováveis do baile de máscaras. O carnaval, sob a chuva, sacudia as urtigas dos desejos. Não era por conseqüência momento de refletir sobre as filosofias talvez verdadeiras de Rozendo. O mundo não seria o mundo, se fosse possível a qualquer humano evitar o que tem de ser...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 02 de dezembro de 2020

A MINA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A MINA

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

A notícia daquela descoberta correra célere por toda a comarca, por toda a província, por todo o país. Há muito tempo se suspeitava a existência de uma opulenta jazida de ouro ali mesmo, na encosta da serra, entre a linha de córregos, que desabava da montanha; ninguém se havia aventurado, todavia, a uma pesquisa mais demorada, mais completa, mais eficiente, até que chegou da África do Sul, via Londres, especialmente contratado para estudar o terreno, aquele engenheiro tostado do e de chapéu de cortiça, que espantara logo a vila com a excentricidade das suas roupas e a bizarria das suas maneiras.

Informado da exploração feita pelo inglês, ordenou o coronel Jesuíno Botelho que se iniciassem logo as escavações, para não perder tempo. Os maquinismos aperfeiçoados e modernos estavam, já, em viagem, pedidos por telegrama; enquanto, porém, não chegavam, iriam os homens perfurando o grande poço, em busca do veeiro, que ficava, na opinião do técnico, a oitenta metros da superfície.

O coronel Botelho não era, como a generalidade dos fazendeiros de Itaobara, um espírito refratário ao progresso, ao aperfeiçoamento do homem, aos empreendimentos suavizadores da vida. Educado em um seminário de Ouro-Preto, adquirira, com alguns professores leigos, uma noção positiva do mundo, e dos seus fenômenos; a disciplina religiosa ficara-lhe, porém, como lastro do espírito, e era assim que ele se conduzia pela terra, entre os ímpetos de conquistas e recuos de superstição. Por mais de uma vez havia tomado iniciativas atrevidas, importando arados, cultivando o melhor solo da fazenda; chegada, entretanto, a época da colheita, detinha-se em casa, no seu quarto, dias inteiros, mandando, daí, despachar os trabalhadores, e entregando o milho, o arroz, o feijão, as batatas, à fome das cotias, das pacas, das capivaras, dos tatus e dos papagaios irrequietos.

A alegria com que o coronel via, naquele ano, cavar a terra, no lugar da mina de ouro era, por isso, motivo de surpresa para toda a gente que o conhecia.

- É a tal coisa, - dizia um, perverso - para o milho, o feijão, o arroz, ele é religioso, e acha que se deve cuidar só da alma; fala-se, porém, em ouro, e esquece tudo. Agora só pensa na mina!

- E o buraco já está fundo! - informava outro.

E estava, de fato. Não obstante os aparelhos primitivos empregados na obra atrevida, o poço media, já, setenta metros de profundidade, faltando apenas dez para o ponto em que devia começar a galeria. E o coronel não desanimava, não se arrependia, demonstrava, timorato, o menor propósito de recuo.

- Agora, vai mesmo! - diziam os trabalhadores, fazendo subir, nas caçambas vagarosas, o barro, a areia, a pedra arrancada às entranhas virgens da terra.

- O homem está doido! - observavam outros com ironia, assinalando, admirados, o progresso dos trabalhos.

Certo dia, achava-se o coronel à mesa do almoço com a família, quando um operário lhe foi dizer, ansiado pela rapidez da marcha, que haviam dado com a mina. As primeiras estrias de ouro tinham aparecido, estando começada, já, a abertura da galeria. Boca escancarada, de que o bigode ralo era simples reposteiro, o fazendeiro deu um pulo, desamarrou o guardanapo, e saiu, correndo, no rumo do poço. E foi na mesma carreira que se atirou para o elevador primitivo e tosco, descendo, aos solavancos, os oitenta e quatro metros daquela perfuração audaciosa.

A emoção havia sido, porém, forte demais para os seus nervos abalados. Surpreendido pela notícia no momento da refeição, correra quase um quilômetro, sem parar. E era o efeito dessa temeridade que o coronel ia sentindo à medida que o aparelho descia, e que atingiu proporções assustadoras, antes, mesmo, de chegar ao fundo da escavação.

- Levem-me para cima! Levem-me! - pediu Botelho, metendo a mão no colarinho da camisa, rompendo-a com violência. - Levem-me daqui. Quero morrer lá em cima. Eu sufoco! Eu morro!

Vagaroso, como sempre, o elevador pôs-se, de novo, a subir. E tal era a morosidade da sua marcha, que, ao chegar no alto, o coronel jazia sem sentidos, agarrado por baixo dos braços pelos dois homens que o acompanhavam.

Dois dias e duas noites esteve o velho fazendeiro completamente desacordado. E no seu sono, entre a morte e a vida, teve um sonho sinistro, horrendo, desvairado, que o agitava, como num pesadelo.

A princípio, a sua fazenda era um grande navio, que navegava na noite e no silêncio, dirigido por um comandante alto e magro, que andava sempre embuçado, passeando, soturno, no tombadilho, de um lado para outro. Passageiro da embarcação-fantasma, ele, Botelho, tentara, por várias vezes, travar palestra com o capitão. Este afastara-se, porém, no mesmo passo, sem uma palavra, sem um gesto, sem um olhar. De uma das vezes, indignado, resolveu pedir-lhe explicações daquela descortesia: foi ao seu encontro, tomou-lhe o caminho, e intimou-o:

- Olhe para mim, ou eu o esbofeteio!

Pala em cima dos olhos, o comandante quedou-se, calmo. E, como não atendesse à segunda intimação, avançou Botelho no seu rumo, e, de um safanão, arrancou-lhe violentamente o boné. E recuou, com um grito: diante dele estava, crânio calvo, órbitas vazias, dentes à mostra num sorriso sinistro, um esqueleto, cujas mãos apareciam sob as mangas do capote, chocalhando todos os ossos!

- Quem és tu? - gemera o coronel, recuando, espavorido, até à amurada.

- Não me conheces? - respondeu, fanhoso, o espetro apavorante, movendo o queixo sem carnes. - Eu sou a Morte. E tu, que tanto me temes, um simples passageiro do meu navio!

E irônico:

- Já viste os teus companheiros de viagem? Desce; vai vê-los.

À imposição das falanges nuas, que lhe indicavam uma escada, ele descera um buraco semelhante àquele da mina, mas cortado, lá em baixo, por uma grande galeria, na qual se abriam, de um lado e de outro, numerosos camarotes, divididos em beliches. Diante de cada beliche havia, porém, uma cortina de veludo preto, com unia cruz de galão dourado. Suspendeu a primeira cortina, e recuou: o beliche era um caixão funerário, no qual repousava, estirado, um esqueleto. Ergueu outra cortina, e apresentou-se-lhe aos olhos o mesmo esquife, com o mesmo passageiro. Foi a outro camarote, a outro mais, e ainda a outro, e em cada um deles, quatro beliches, isto é, quatro caixões, e em cada caixão uma ossada. Cansado da peregrinação, queria, já, um beliche desocupado, quando despertou.

De salto, pôs-se de pé.

- E a mina? - indagou, pálido, mãos trêmulas, olhos arregalados.

- Está sendo aberta a galeria, - informou, alguém, da família.

- Tapem-na! Soterrem-na! Obstruam-na! - gritou, apavorado, as mãos na cabeça.

Nesta mesma noite, à luz de quarenta archotes, começava a ser enterrada, como uma enorme sepultura ao clarão de quarenta círios, a grande, a riquíssima, a famosa mina de Itaobara.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 01 de dezembro de 2020

CHOVE CHUVA (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

CHOVE CHUVA

Dalton Trevisan

 

 


A fumaça da chuva sobe pela chaminé das casas e se espalha sobre a cidade. Um fio de silêncio cai de cada gota. As gatas dengosas se viram de costas para dormir. Chove chuvinha, um lado da palmeira nunca se molha.


A casa das formigas não tem porta, e quando chove, não se afogam? Piam milhares de pardais entre as folhas do chorão. Não existe melhor conchego que um barzinho. Nada como a meia grossa de lã. Apaixonadas ou não, mocinhas espirram na fila do ônibus.

Neste instante há no mínimo três mil pessoas infelizes com o sapato furado. Basta que não chova eu me chamo Felipe, o Belo. Como pisar na lama, garotas da várzea, sem sujar as sapatilhas? Orelhas de piás são puxadas por brincarem na chuva. Os mascates que vendem maçã na rua, em desespero comem as maçãs?

Não estivesse chovendo eu teria sete filhos.

Guardas de trânsito abrem os braços na esquina e apitam: por que choves, Senhor? Chove que chuva, apaga o meu recado de amor no muro.

Mães pensam nos filhos tão longe, uns dedos trêmulos na vidraça: dona mãe, me deixa entrar. Em cada lata vazia repicam os sinos da chuva.

As mãos no bolso não esquentam. Alguns viúvos choram na fila, esse ônibus nunca vem. Ora, gotas de chuva, pensam os vizinhos. Todos querem esse guarda- -chuva esquecido num dia de sol, quando havia sol.

Os rabanetes no canteiro pulam as cabecinhas de fora.

Os armários das velhas casas estalam. Antigos baús são abertos, dia ruim para as traças. Há medo de vampiro na cidade.

Asinhas encharcadas, filhotes de pardais caem das árvores e se afogam nas poças.

As vovozinhas choram de frio na beira do fogão de lenha. Cães arranham a porta, licença para entrar. A sopa de caldo de feijão, epa! te queimou a língua.

Mesmo com chuva, há pares de namorados à sombra das árvores. Nem a chuva tira uma solteirona da janela.

Chapinhando as poças investe uma trinca de gordalhufas – pra cá pra lá, bundalhões hotentotes tremelicantes!

Senhor, tão bom se não chovesse. Ah, não chovesse, eu usaria barbicha. Não tivesse chovido eu casava com a Lia e não a Raquel.

Pra onde fogem os sorveteiros quando chove? Se chove, mais difícil enfrentar o vento sul sem perder o chapéu. Homens chegam em casa esfregam o pé no capacho e sentam para comer, dizendo: chuva desgracida.

Uma rosa no teu jardim abre as mil pálpebras do único olho.

O vento despenteia a cabeleira da chuva sobre os telhados.

Mesmo quando para a chuva, as árvores continuam chovendo.

A chuva lava o rosto dos teus mortos queridos.

Literatura - Contos e Crônicas segunda, 30 de novembro de 2020

A MORTE (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

A MORTE

Coelho Neto

 

Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.

Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.

Silêncio trágico continha a todos, suspensos.

Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?

Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.

De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:

— Que horas são?

Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina metálica: “Sete!”

Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.

Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura da luz.

O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para oratório buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.

E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.

Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.

Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.

Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo se apagar.

Alguém chamou por ele, em pranto.

Ai! de nós...

Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.

É um caixão que se fecha. Nada mais.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 29 de novembro de 2020

ATENÇÃO AO SÁBADO (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

ATENÇÃO AO SÁBADO

Clarice Lispector

 

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.

No sábado é que as formigas subiam pela pedra. Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho. De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana. Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?

No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde. Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais. Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.  Domingo de manhã também é a rosa da semana. Não é propriamente rosa que eu quero dizer.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 28 de novembro de 2020

50$0000 DE GRATIFICAÇÃO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

50$000 DE GRATIFICAÇÃO

Raul Pompeia

(Grafia original)

 

Fugiu no dia 11 do corrente o escravo Lino, pardo claro, de 27 anos de idade pouco mais ou menos, estatura regular, bons dentes, porém maltratados, pequenos bigodes e alguns cabelos no queixo, tem o olhar vivo, unhas roídas e é atrevido. É muito conhecido por ser cocheiro há muitos anos do Dr. Peçanha. Levou calça branca, paletó de brim pardo, chapéu preto pequeno e anda às vezes calçado.

Protesta-se com o vigor da Lei contra quem o açoitar e gratifica-se com a quantia acima a quem prendê-lo e levá-lo à alguma estação policial ou à casa de seu Senhor, Rua do... N...

Senhor Anunciante.

Mirando-me ao espelho, reconheci, no frontispício da minha obscura cabeça, os vigorosos traços descritivos, com que encheu este anúncio a pena abalizada do seu anônimo e simpático escritor. Linha por linha, incidente por incidente, lá vem a minha fotografia. Isso não é um anúncio, é um retrato! Mirando-me ao espelho e no anúncio, entrei a hesitar, até, sem saber qual dos dois era o anúncio e qual era o espelho...

"Pardo claro..." Sou pardo claro.

Quando Deus pintou-me, por sinal estavam no atelier, à espera da sua brochadela, alguns companheiros, que, mais tarde, no mundo foram exaltados pelo destino, aos quais, à medida que subiram na escala da grandeza, foi-se-lhe o colorido gastando, de sorte que não são mais, agora, os pardos claros que nasceram... Eu, infelizmente, fiquei tal qual.

"27 anos..." É a minha idade.

"Estatura regular..." Bem regular... gabo-me disso.

"Bons dentes..." Oh! obrigado! Isso me lisonjeia em extremo...

"Porém maltratados..." Lá isso, protesto!... Eu não sou porco!... Aqui há engano com certeza... Sempre tratei carinhosamente a minha dentadura!

"Pequeno bigode..." Sim senhor, não é muito grande.

"Alguns cabelos no queixo... Justinho! Rari nantes...

"O olhar vivo..." Apoiado! Vivíssimo!... Olho vivo é a melhor regra de bem viver.

"Unhas roídas!..." Roídas! que horror! Trago-as simplesmente aparadas rente. Há sempre um meio de se obscurecer, na linguagem, os predicados alheios. Aparada rente é a nossa unha roída, roída a unha aparada dos outros.

"Atrevido..." Com licença: atrevido é mais quem chama.

Verificada a identidade dos tipos, vamos ao resto do anúncio.

"É muito conhecido por ser cocheiro há muitos anos...” Oh, qualidade rara!... "do Dr. Peçanha..."

Exatamente! Sou muito conhecido. O Larousse cita-me o glorioso nome, no volume da letra L. E com razão! eu guiava certo as minhas parelhas, em direção à Posteridade, quando a conveniência urgente de tomar ares obrigou-me a cortar a bela carreira. Apesar disso, o anúncio não mente. Sou na verdade conhecido, sou um homem universalmente popular! Dou-me muito com o Pão de Açúcar; o Corcovado fala comigo; já tive estreitas relações com o Himalaia; a coluna Vendome, quando me vê, cumprimenta-me; as pirâmides tiram-me o chapéu; as esfinges já me ofereceram cigarros uma vez; os crocodilos da Índia têm sorrisos amáveis para mim, pedem-me fogo com intimidade... Quanto aos homens, não falemos. O meu nome monopoliza perpetuamente a atenção do público, no Cairo, em Malta, em Nazaré, no Egito...

Este precioso anúncio, que me chegou às mãos inesperadamente, veio despertar-me saudades do Rio de Janeiro. Neste remoto asilo da paz onde habito, só muito raro chegam notícias do bulício do mundo. Planto café e gozo a existência bucólica e sossegada de quem tem certeza de que não faltam céus nem serras para a vida. A sede do ouro não me exaspera a garganta.

Este anúncio, todavia, que me veio lembrar a grande corte, abriu-me um pouco o apetite do ganho.

Pensei num negócio e o proponho.

Se os 50$ são oferecidos em letras gordas a quem me pagar, metade, pelo menos, o amável anunciante cederá, sem dúvida, àquele que disser ao certo o lugar onde me acho.

Vou informar eu mesmo. Tenho direito à gorjeta. Mande-a pelo correio.

Estou no Ceará, vulgo Terra da luz!

Acoutou-me a hospitaleira serra de Baturité. Proteste-se contra ela com todo o rigor da chapa.

E olha esse cobre que saia!

Serra de Baturité... de... de 1885.

Lino, agricultor.

Chegou do Norte a esta folha essa curiosa carta acompanhada do anúncio transcrito. Vinha no envelope um pedido de publicação; publico a cópia fiel.

O referido anúncio é um avulso que se distribuiu há tempos, nesta cidade, sem responsabilidade do autor, sem declaração de tipografia, à maneira desses pobres papéis pornográficos impressos que conhecem o seu estado e não o lamentam como Nise.

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 27 de novembro de 2020

EMOÇÕES (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

EMOÇÕES

João do Rio

(Grafia original)

 

Ontem, às 6 horas da tarde, fui buscar ao club da rua do Passeio o velho barão Belfort, que me prometera mostrar, três dias antes, sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava e perdia com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez. Ao ver-me, disse amavelmente:

- Estamos a jogar. O Oswaldo ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro. Estou perdendo e apreciando este bom Oswaldo, que ainda tem emoções.

Os seus olhares seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Oswaldo, e, a cada cartada, tamborilando os dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito. De repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na mesa, e perguntou, enquanto mais pálido o moço estacava:

- E tu não jogas?

- Não.

- Fazes bem. Um escritor do tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o veneno da perdição. O veneno! ora vê tu, o veneno!

Sorriu com delicadeza.

- O Oswaldo permite? Vou embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar água de flor de laranja...

Levantou-se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o pleno verão tomara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para trás. O moço pendia a cabeça na sombra, e assim pálido, como um pálido crisântemo, os seus olhos tinham chispas de susto e de prazer.

Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé, e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor-de-pérola. Belfort aconchegou-se à almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em ouro e, enquanto o carro rodava, indagou:

- Que tal achaste o Oswaldo? É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava escandalosamente... Não lhe disse nada. Ainda é possível salvá-lo...

- Quer perdê-lo? indaguei habituado às excentridades desse álgido ser.

- Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser o bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes emoções de em tomo. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção.

- Oh! ser horrível e macabro!

- Seja; horrível, macabro, mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Oswaldo, quero apenas gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a perdê-lo, c'est tropfort...

- Pois não imagina o mal que fez ao pobre Oswaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!

- Tal qual como o outro. Que exemplar, meu caro! que caso admirável! Esse pequeno há seis meses odiava o víspora. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de perdição que ainda desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O Oswaldinho é tal qual o outro, o chinês, a minha última observação.

- O chinês?

Belfort soprou o fumo da cigarrilha, sorrindo.

- Imagina que vai para um ano fui apresentado a um rapaz chamado Praxedes, filho de uma chinesa e de um negociante português em Macau.

O homem falava inglês, estava no comércio e vinha de Shangai, com um carregamento de poterias e bronzes por contrabando, para vender. Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada instante frases amáveis e casara com uma interessante rapariga, a Clotilde - Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers, confessou o contrabando e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!

O Praxedes saía pela manhã, trabalhava, voltava para o jantar e não se largava mais de junto da Clô. Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legislativamente moral.

Uma noite em que o convidara para jantar, jogávamos. Adivinharia alguém que cratera esperava o momento de rebentar nessa alma tranqüila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu piano, com voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocupado - "Quer jogar?"

"Não sei". "É sempre agradável ensinar mesmo o vício". - "Então ensine". Pegou das cartas, olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos começaram a luzir. Jogamos outra. - "Mas isso assim sem dinheiro? Ponhamos dois tostões". - "Pois seja". Perdi. "Redobra se a parada? ""Oito tostões?"

"Sim". - "Pois seja". À meia-noite jogávamos a dez mil-réis, e Clotilde, muito cansada, já sem cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar à mesa.

Deitei-me sem conclusões, e só no dia seguinte, quando o chinês enleado apareceu pedindo outra partida, é que compreendi o assombro. A paixão estalara, - a paixão voraz, que corrói, escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, joguei e perdi. No outro dia, Praxedes voltou. Levei-o ao club à roleta, donde saiu a ganhar pela madrugada.

Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre iminente, de um abismo em vertigem. O chinês era patético. Com os dedos trêmulos, assoando-se de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Praxedes rouquejava num estertor silvante que parecia agarrar-se desesperadamente à bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e a alma do pobre esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o número desejado, num esforço que o tomava roxo...

Jantei no club só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também durante três dias e três noites. Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do club, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes. Ao cabo de uma semana, entretanto, a chance desandou. Praxedes começou a perder bruscamente com gestos de alucinado, espalhando as fichas como quem arranca pedaços da própria carne.

- "Calma, meu caro, dizia-lhe eu". " Impossível! impossível!" murmurava ele.

Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a outros, deram-lho. Pediu mais

deixou de ser o dom Praxedes, recebeu recusas brutas. Acabou não voltando mais ao club. Eu, porém, sentia-o em outros antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem de carregar na vida...

Certa noite, meses depois, encontrei-o numa batota da rua da Ajuda, com

o fato enrugado e a gravata de lado. Correu para mim, "Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar Isto de mirone não me serve. Empreste-me cinqüenta mil-réis para arrumar tudo no 00. Ah! está dando hoje escandalosamente. Faremos uma vaca? Vai dar pela certa."

Agarrou a nota como um desesperado, precipitou-se na roda que cercava o tableau da direita: "Tenho aqui cincoentão; esperem!" E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.

O duble-zero falhou. Ele voltou cínico: "É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá? Olhe, escute aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve?"

- Compreendi então a descabida vertigem daquela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força para a rua, fi-lo contar-me a vida. Estava desempregado, abandonara o emprego, vendera o mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mudara-se para uma casa menor e alugara a sala da frente. A cábula, a má sorte, a guigne perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável soluçava: - "Havemos de melhorar, empreste-me algum. Estou sem níquel!"

Deixei-o sem níquel, mas fui ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos vermelhos de chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro... - "E seu marido?" - "Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o vejo; hoje não comi..." - "Abandone-o!" - "Abandoná-lo eu? E a sociedade, e ele? Que seria dele?" - "Ora, ele!" -"Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas que quer? Veio-lhe a desgraça. As vezes brigo, mas ele diz-me: Ai! Clô, que hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que desenrolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos, por aí, tão triste, tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a pedir..."

É espantoso, pois não? O homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses seres especiais conseguem coisas tão difíceis!

Um instante o barão calou-se. O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por sobre o mar a talagarça fuliginosa das primeiras sombras. - Respeitei a Clotilde, por sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido. Ao outro dia, porém, Praxedes, com sorrisinhos equívocos na face escaveirada: "Esteve com a Clô, hem? Conservada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois não9 Recuei assombrado. Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a mulher, para arranjar dinheiro com que satisfazer as cartas e a roleta, mercandejava-a aberta, cínica, despejadamente. - "Que queres tu? indaguei áspero, tem vergonha, vai, some-te!"

"Eu hipoteco uma mobília. Só quinhentos, só quinhentos!"

Era a alucinação. Corri-o, e esperei ansioso, como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu encontro com o Oswaldo, li, na cama às 3 da manhã, este bilhete desesperado: "Venha. Praxedes matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. - Clô".

Ai! menino, não sei o que senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo. Precipitei-me. Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o Necrotério, Clotilde, desgrenhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus braços. - "Então, como foi isso?" "Sei lá como foi! Tinha que ser! A desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram semanais. Não arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele, lívido, embrulhando a casaca do casamento. Não sei o que me deu. - "Onde vais?"

- "Vou ver se arranjo uns cobres, respondeu. Preciso jogar, sinto uma ânsia, não posso mais." - "Estás doido!" Não estou, Clô, não estou, fez ele arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se vendes a casaca ficas sem roupa para o enterro. Ele parou. "Para o enterro? para o meu enterro? É melhor mesmo, é melhor mesmo, eu não posso mais!" E, de repente, desesperado, começou a bater com a cabeça pelas paredes. Praxedes! Praxedes! Não faças isso! Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio com mais força de encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda o ouço! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agarrei-o. Arrastou-me até à janela, voltou-se, deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o pescoço desesperadamente e rodou...

"Oh! o horror! salve-me! salve-me!"

Abri o grupo dos agentes, fui ver Praxedes. Estava cor-de-cera, com a cabeça fendida e os lábios coagulados de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada, pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.

Esse record de emoção desesperada prostrou-me. Nunca vi sentir tão vertiginosamente.

O carro parara. O barão saltou, subiu devagar as escadas de mármore, enquanto no interior do palacete retiniam campainhas elétricas.

- Preciso sentir vendo os outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só assim tenho emoções. Garanto-te que o Oswaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro meio - com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir demais!

E fomos jantar tranqüilamente na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 26 de novembro de 2020

A CARTOMANTE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A CARTOMANTE

Machado de Assis

 

HAMLET observa a Horácio que há mais causas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade.

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois.

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

- Onde é a casa?

- Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

- Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

- O senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tomar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

- Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...

- A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

- As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

- Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer causa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:

- Vá, vá, ragazzo inflamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 25 de novembro de 2020

A DOENÇA DE ANTUNES (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

 

A DOENÇA DO ANTUES

Lima Barreto

 

A fama do doutor Gedeão não cessava de crescer.

 

Não havia dia em que os jornais não dessem notícia de mais uma proeza por ele feita, dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia: “O doutor Gedeão, esse maravilhoso clínico e excelente goal-keeper, acaba de receber um honroso convite do Libertad Foot-ball Club, de São José de Costa Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Airoca Foot-ball Club, de Guatemala. Todo o mundo sabe a importância que tem esse desafio internacional e o convite ao nosso patrício representa uma alta homenagem à ciência brasileira e ao foot-ball nacional. O doutor Gedeão, porém, não pôde aceitar o convite, pois a sua atividade mental anda agora norteada para a descoberta da composição da Pomada Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos.”

 

O doutor Gedeão vivia mais citado nos jornais que o próprio presidente da república e o seu nome era encontrado em todas as seções dos cotidianos. A seção elegante de O Conservador, logo ao dia seguinte da notícia acima, ocupou-se do doutor Gedeão da seguinte maneira: “O doutor Gedeão Cavalcanti apareceu ontem no Lírico inteiramente fashionable. O milagroso clínico saltou do seu coupé completamente nu. Não se descreve o interesse das senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu fiquei babado de gozo.

 

A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em instantes de ser médico do bairro ou da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse, para ser o médico da cidade toda, o lente sábio, o literato ilegível à João de Barros, o herói do foot-ball, o obrigado papa-banquetes diários, o Cícero das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos, o dançador dos bailes de bom-tom, etc., etc.

 

O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de carnaval, e havia quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no, para as proezas de que os cinematógrafos são o teatro habitual.

 

Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e todas elas tinham garbo, orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam: – Estou me tratando com o doutor Gedeão.

 

Moças pobres sacrificavam os orçamentas domésticos para irem ao doutor Gedeão e muitas houve que deixavam de comprar o sapato ou o chapéu da moda para pagar a consulta do famoso doutor. De uma, eu sei que lá foi com enormes sacrifícios para curar-se de um defluxo; e curou-se, embora o doutor Gedeão não lhe tivesse receitado um xarope qualquer, mas um específico de nome arrevesado, grego ou copta, Anakati Tokotuta.

 

Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medicamentos vulgares; ele era original na botica que empregava.

 

O seu consultório ficava em uma rua central, bem perto da avenida, ocupando todo um primeiro andar. As antessalas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo pela parede quadros e mapas de coisas da arte de curar.

 

Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo e era de admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória o obrigava a ser conviva de banquetes diários, bem e fartamente regados.

 

Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso clínico, era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com antecedência, às vezes de dias. O preço era alto, para evitar que os viciosos do doutor Gedeão não atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam das luzes do célebre clínico.

 

Custava a consulta cinquenta mil-réis; mas, apesar de tão alto preço, o escritório da celebridade médica era objeto de uma verdadeira romaria e toda a cidade o tinha como uma espécie de Aparecida médica.

 

José Antunes Bulhões, sócio principal da firma Antunes Bulhões & Cia., estabelecido com armazém de secos e molhados, lá pelas bandas do Campo dos Cardosos, em Cascadura, andava sofrendo de umas dores no estômago que não o deixavam comer com toda liberdade o seu bom cozido, rico de couves e nabos, farto de toucinho e abóbora vermelho, nem mesmo saborear, a seu contento, o caldo que tantas saudades lhe dava da sua aldeia minhota.

 

Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais e não havia meio de lhe passar de todo aquela insuportável dorzinha que não o permitia comer o cozido, com satisfação e abundância, e tirava-lhe de qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e apreciava.

 

Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus pertences, muito cheiroso, rico de couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o, namorava-o e ele namorava o cozido sem ânimo de mastigá-lo, de devorá-lo, de engoli-lo com aquele ardor que a sua robustez e o seu desejo exigiam.

 

Antunes era solteiro e quase casto.

 

Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão tangido pela vida e pela sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado todas as satisfações da vida, o amor fecundo ou infecundo, o vestuário, os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar nos contos de réis que lhe dariam a forra mais tarde do seu quase ascetismo atual, no balcão de uma venda dos subúrbios.

 

À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência e gastava sem pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas batatas, no bacalhau que, depois de cozido, era o seu prato predileto.

 

Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordinariamente. Ele se privava do amor; mas que importava se, daqui a anos, ele pagaria para seu gozo, em dinheiro, em joia, em carruagem, em casamento até, corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados, os mais caros que houvesse, aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas finas, mas que importava se, dentro de alguns anos, ele poderia ir aos primeiros teatros daqui ou da Europa, com as mais caras mulheres que escolhesse; mas deixar de comer – isto não! Era preciso que o corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela faina de quatorze ou quinze horas, a servir o balcão, a ralhar com os caixeiros, a suportar desaforos dos fregueses e a ter cuidado com os calotes.

 

Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Gedeão Cavalcanti tinha tido permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes canhões do “Minas Gerais”.

 

Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer: “esse maravilhoso clínico e, certamente, um exímio artilheiro… ”

 

Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde conseguir recordar-se de que aquele nome já por ele fora lido em qualquer parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele o não curaria daquela dorzita ali, no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda adentro o Senhor Albano, empregado na Central, funcionário público, homem sério e pontual no pagamento.

 

Antunes foi-lhe logo perguntando:

 

— Senhor Albano, o senhor conhece o doutor Gedeão Cavalcanti?

 

— Gedeão – emendou o outro.

 

— Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Albano?

 

— Conheço.

 

— E bom médico?

 

— Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente orador, grande poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros…

 

— Então é um bom médico, não é, Senhor Albano?

 

— E. Foi quem salvou a Santinha, minha mulher. Custou-me caro… Duas consultas… Cinquenta mil-réis cada uma… Some.

 

Antunes guardou a informação, mas não se resolveu imediatamente a ir consultar o famoso taumaturgo urbano. Cinquenta mil-réis! E se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinquenta…

 

Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves, rico de toucinho e abóbora vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato sem poder amá-lo com o ardor e a paixão que o seu desejo pedia. Pensou dias e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir a opinião do doutor Gedeão Cavalcanti sobre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de onde em onde.

 

Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas, pôs o colete, o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a estrela de brilhantes, que parece ser o distintivo dos pequenos e grandes negociantes; e encaminhou-se para a estação da estrada de ferro.

 

Ei-lo no centro da cidade

 

Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do continuo do consultório, despedindo-se dos seus cinquenta mil-réis com a dor do pai que leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse seu freguês… Mas qual! Aqueles não voltariam mais…

 

Sentou-se entre cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou encarar os cavalheiros e teve medo das damas. Sentia bem o seu opróbrio, não de ser taberneiro, mas de só possuir de economias duas miseráveis dezenas de contos… Se tivesse algumas centenas—então, sim! — Ele poderia olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, do dinheiro, que havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.

 

Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco se demoravam. Antunes começou a ficar desconfiado… Diabo! Assim tão depressa?

 

Teriam todos pago cinquenta mil-réis?

 

Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso… Mas qual!

 

Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos filhos, como havia ele de pagar-lhe mestres? Cada um enriquece como pode…

 

Foi, por fim, à presença do doutor. Antunes gostou do homem. Tinha um olhar doce, os cabelos já grisalhos, apesar de sua fisionomia moça, umas mãos alvas, polidas…

 

Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz:

 

— Que sente o senhor?

 

Antunes foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago de que vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que desaparecia e aparecia mas que não o deixava nunca. O doutor Gedeão Cavalcanti fê-lo tirar o paletó, o colete, auscultou-o bem, examinou-o demoradamente, tanto de pé como deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante recompunha a sua modesta toilette.

 

Antunes sentou-se também, e esperou que o médico saísse de sua meditação.

 

Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda segurança:

 

— O senhor não tem nada.

 

Antunes ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou indignado:

 

— Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não tenho nada! Esta é boa! Noutra não caio eu!

 

E saiu furioso do consultório que merecia, da cidade, uma romaria semelhante à da milagrosa Lourdes.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 24 de novembro de 2020

A ROSA AZUL (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A ROSA AZUL

Humberto de Campos

 

O Comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha marquesa de São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a notícia alvissareira e mentirosa da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e confessou-me, em viagem:

 

— A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora, para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa para alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco.

 

Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com admiração:

 

— Não conhece, então, a lenda da rosa azul?

 

À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o Comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro da bengala, e contou:

 

— No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silêncio da nave, aos pés de um Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das roseiras, que ele próprio plantava e regava.

 

O Comendador interrompeu um momento a narrativa, recostou-se na almofada, e continuou:

 

A sua paciência de jardineiro era absorvida, entretanto, por uma ideia, que era um sonho: encontrar a rosa azul das legendas do Oriente, de que tivera notícia, uma noite, ao ler os poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de experiências e sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua rosa azul.

 

Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou:

 

— Em volta do santo velhinho, no catre do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada de boca em boca, foi a notícia ter a um convento das proximidades, onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e, além de formosa e moça, — fidalga e portuguesa, compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria, por ter nas mãos trêmulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!

 

O "taxi" parava no meio-fio da calçada, o Comendador acrescentou, estendendo-me a mão agradecida:

 

— Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a vida.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 22 de novembro de 2020

O TOURO NEGRO (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

O TOURO NEGRO

Aluísio Azevedo

 

 

A notícia de uma estrondosa corrida de touros, que se ia dar na velha cidade da Galiza, onde nessa época me achava, assanhou o povo como por encanto, pondo-lhe o ânimo num estado de alegria do qual estava eu bem longe de o supor capaz. Viria como primeiro Espada e chefe da "cuadrilla" o guapo Torbellino, dono então por alguns instantes da cruenta alma espanhola, sem conseguir, está claro, com esse passageiro namoro, distrai-la completamente da sua sádica paixão por Lagartijo e Frascuello.

À boa nova começou logo a chamar gente de todas as cidades e povoações vizinhas. Ninguém por ali em volta resistia ao sôfrego desejo de vir buscar o seu quinhão de sensações violentas, que tão grata tourada prometia, e gozar o seu bocado de sangue fresco, que havia tanto tempo já se não gozava por aquelas alturas. Dir-se-ia que os restos da sacrossanta Espanha de Torquemada e de Filipe II, não se podendo saciar como dantes, nos bons tempos como o capitoso sangue dos heréticos e dos ímpios, se contentava agora, em falta de melhor, com o inócuo sangue de bois e de cavalos, Sempre na esperança, todavia, de qualquer acaso feliz que viesse enriquecer a festa com o apreciável sangue de algum toureiro desastrado.

E já não havia meio de conter a sofreguidão pública pelo prometido regabofe, quando chegara afinal o grande dia, deslumbrante ao vivo sol de Agosto e aclamado ardentemente pelo povo como um dia de glória nacional. Houve salvas e toques de corneta ao romper d’alva. Das duas da tarde em diante, as principais ruas da cidade, no meio de uma poeirada de cegar, transformaram-se em estrepitosas torrentes de carruagens, carroças, ginetes, e peões de toda espécie, que lá iam, em ansioso alarido, desaguar na praça de touros..

À entrada do circo, donde vinha um quente. rumor de caldeira a ferver, homens de má catadura, com grandes tabuleiros amparados ao ventre e suspensos do pescoço por grossa correia do couro cru, ofereciam aos circunstantes, não refrescos, frutas e flores, mas navalhas e facas de todos os feitios e tamanhos. Mais adiante, viam-se outros a vender, em vez de doces e confeitos, chouriços, paios e lingüiças, e ouviam-se ainda outros, cercados de barris e garrafões, apregoar vinho, azeitonas e aguardente. Em volta dos felizes que entravam para assistir ao espetáculo, rilhava invejosa a matilha dos que ficavam cá de fora sem poder fazer outro tanto, e um enxame de mulheres, de laço de cor à cabeça, doidejava em redor dos sujeitos que se dirigiam aos corretores de bilhetes, suplicando-lhes, a sorrir ansiosas, uma senha de entrada em troca de tudo que elas lhes pudessem dar com o corpo, e mendigos berravam por outro lado, lanceando o espaço com os dedos hirtos, a reclamar esmolas como quem reclama justiça no meio de caifases, e atiravam para o ar o nome de Deus e das virgens num intenso diapasão de pragas; ao passo que os guardas civis, sombrios debaixo do seu reluzente chapéu de oleado em forma napoleônica e da sua enorme capa, rondavam de um lado para outro, cruzando-se com os chulos de facha encarnada e as manolas de trunfa alta, que também rondavam, mas com fins inteiramente opostos.

O corredor do anfiteatro estava ensalsichado de espectadores até a boca, e lá dentro, tanto do lado da sombra como do sol, não havia lugar vazio. Meu banco felizmente era à sombra, e eu via palpitar no lado contrário, em plena luz, os leques de milhares de espectadores de ambos os sexos, lembrando borboletas presas pelos pés e doidas por voar; as sombrinhas de todas as cores, as vistosas mantilhas e as roupas claras tinham, nessa vasta e iluminada banda do circo, um aspecto tão alucinador, que parecia ser a expressão palpável daquela infernal algazarra, feita da rixa e riso, e da qual os palavrões obscenos se destacavam, iguais a esses estalos mais fortes que rebentam por entre a constante crepitação de um incêndio na floresta virgem. Ouviam-se de todos os lados sonoras pragas e alegres exclamações de arrancar couro e cabelo; à minha esquerda, uma família em que havia meninas menores de quinze anos, manifestava o seu entusiasmo pelo mesmo depilatório sistema, e aqueles castos ouvidos recolhiam palavras capazes de fazer tremer a um soldado, que não fosse espanhol; à minha direita o chefe de outra família, sem dúvida não menos honesta que a da esquerda, empinava de vez em quando uma formidável borracha de vinho, a que ele chamava "bota", e fazia também beber aos seus por igual sorte, entremeando os sucessivos tragos com tarascadas de chouriço, partidas rente da boca por uma navalha, de inquietadoras proporções.

Cinco minutos antes das quatro horas, momento marcado a rigor para começar a função, a berraria recrudesceu, preparando-se já para protestar, mas o alcaide da cidade, pomposo nas suas insígnias, assomou logo no camarote de honra, acompanhado pelo presidente da corrida, cumprimentou cerimoniosamente o público, e uma vibrante cometa militar, acolhida com tumultuosos regozijos, deu o sinal de abertura. Rompeu então a banda de música a tanger uma marcha dobrada, escancararam-se as grades de um portão no lado oposto ao da entrada de espectadores; e entre aplausos gerais a "cuadrilla" fez a sua solene aparição na liça.

Vinha na frente, a cavalo, o Primeiro Espada, o guapo Torbellino, todo agaloado, com chapéu de plumas e botas de canhão empunhando senhorilmente o seu bastão de chefe; seguiam-se os bandarilheiros e capinhas, a dois e dois, numa vistosa ala de cinco pares, todos a gingar, brilhantes nos seus bordados trajos de jaqueta curta e calção justo, o braço esquerdo dobrado por debaixo da capa vermelha e o direito solto, acompanhando os requebros do corpo; fechavam o séquito os picadores, em número proporcional, formados de três a três, com brutais perneiras de chumbo e lanças formidáveis, cavalgando velhas alimárias, tristes e alquebradas, que ali vinham, depois de uma dura vida de trabalhos no campo ou nas cidades, para ser, em recompensa dos seus bons serviços, escorneados por companheiros de martírio.

Feita a apresentação, separados da "cuadrilla" os toureiros que tinham de ficar na praça e correr o primeiro touro, fechado de novo o portão por onde vieram, bem vendados os olhos aos cavalos dos picadores, para que não fugissem espavoridos ao perigo, a cometa deu novo sinal, abriu-se daquele mesmo lado uma cancela, e a vítima designada surgiu a galope, estacando logo, porém, em pleno circo, fascinada e aturdida no meio de toda aquela estrondosa berraria, a olhar perplexa para todos os lados, até que, como se só então desse pela presença dos capinhas, investiu contra um deles.

Estava travada a pugna.

E começaram a repetir-se defronte daqueles milhares de olhos ávidos as estafadas sortes e passes, que há séculos a Espanha vê e revê sempre com o mesmo entusiasmo, e que sempre aplaude com a mesma convicção patriótica. Os capinhas, como há cem anos, atormentavam a pobre besta, negaceando defronte dela com as suas irritantes e traiçoeiras capas vermelhas, ou os bandari1heiros lhe espetavam na espádua e no pescoço farpas carregadas de enfeites e às vezes também de fogo, ou então os picadores lhe apresentavam as ilhargas das suas deploráveis cavalgaduras para que o enfurecido animal as destripasse ferozmente e também como há cem anos, se o mísero cavalo não morresse logo à primeira agressão e ainda se pudesse equilibrar sobre as patas, recolham-lhe de novo ao ventre os intestinos, cosiam-lhe o couro com alguns pontos apressados, e de novo o ofereciam sempre com a venda nos olhos aos truculentos Cornos, e afinal, ainda como há cem anos, quando o touro se achasse já bem cansado e exausto, o matador se apresentava defronte dele com a sua gloriosa espada e lha enterrava na cerviz até matá-lo. Fidalgo, gesto que sempre teve o condão de arrancar do público espanhol delirantes manifestações de aplauso, traduzidas não só em brados de louvor e em flores, ali mesmo arrebatadas do próprio colo ou do próprio toucado pelas mulheres, mas muitas vezes também em ricos lenços de renda, finos leques e até jóias preciosas, que lá iam cair aos pés do triunfador de envolta com charutos, cigarros e moedas de prata arremessadas pelos homens.

Só a quinta e última corrida da tourada, graças ao imprevisto das circunstâncias que se deram nela, discrepou daquele venerável ramerrão, e por isso mesmo foi a única digna de ser contada.

O touro então a correr era um belo animal negro e reluzente, com os cornos curtos e afilados como os de um búfalo.

Ao abrirem-lhe a cancela, ele invadiu a praça num formidável e insólito galope, centrípeto e cerrado, e a circulou repetidas vezes, com tal velocidade e tamanha fúria, atropelando tudo por tal modo, que foi logo uma debandada geral em toda a arena; os capinhas e bandarilheiros voaram por cima da trincheira, sem quase lhe tocar com a mão, e os picadores, chumbados aos seus pretensos corcéis, abeiravam-se dela e eram às pressas colhidos lá de dentro e carregados no ar, a pulso, como manequins de pernas tesas, entretanto que os expiatórios rocinantes, abandonados e às cegas, iam recebendo cornadas por conta própria e pela de todos os lidadores que desertavam o campo. Eram três os míseros, e os três pouco tardaram a cair mortos, enchendo de sangue o chão já coalhado de restos das capas, sombreiros, lanças bandarilhas e outros despojos, que o touro espezinhava com raiva rugindo de cabeça erguida.

público, a patear e a trapejar com as bengalas, protestava em delírio contra a ausência dos toureadores no lugar do perigo, e reclamava, a berros loucos, novos cavalos na praça como estabelecia o regulamento das corridas E essa feroz reclamação de "chair-au-taureau" encheu muitos minutos, que foram até aí os mais estrepitosos da tourada.

Era tal o fragor, que o touro pela primeira vez se mostrou atordoado e se pôs a correr à toda, procurando instintivamente uma aberta qualquer, por onde fugir àquela diabólica tempestade que bramia em redor dele e parecia querer tragá-lo.

A tempestade se acalmou quando de novo se abriu o portão, para dar passagem a outra turma de três picadores, desta vez precedidos por todos os toureiros da "cuadrilla", que foram entrando de cambulhada e dispostos para tudo. Torbellino, agora vestido de seda cor de esmeralda recamada de galões de ouro, trazia consigo uma cadeira, cuja magistral sorte figurava no programa da corrida em letras garrafais.

Mas o tremendo adversário não lhes deu tempo para negaças, e de roldão foi investindo sobre um dos picadores, que logo desabou da sela como um S. Jorge, e ao qual era preciso acudir antes de mais nada e carregar prontamente dali, se o não queriam ver num ápice acabar nas pontas do touro. E para este distrair e arredar daquela zona durante a subtração do picador em apuros, armou-se em volta dele uma agitada tropelia, enquanto os outros dois cavaleiros, bem cientes do que os esperava, tratavam de chegar-se à salvadora trincheira, contra a qual de fato eram em poucos segundos arrojados impetuosamente com as suas cavalgaduras, apesar de receberem a ponta de lança o cornígero agressor.

Derreados os cavalos e eclipsados os picadores o touro fez-se de todo para os capinhas, que, aliás, não conseguiram capear uma só vez e quando muito só lograram enraivecê-lo ainda mais. De cada feita que o quadrúpede arremetia sobre um deles saíram-lhe os outros pelos lados, agitando as capas, sem lhe dar tempo a marear alvo para o assalto. Todo o empenho dos toureiros era fatigá-lo, a ver se desse modo alcançavam equilibrar as forças em ação e obtinham, para decoro profissional, realizar algumas sortes, embora das mais simples, como o passe da Verônica ou da Navarra.

O touro, com efeito, apesar de sempre árdego e rebelde, já dava mostras de cansaço e parecia já não acometer com a mesma veemência, tanto assim que Torbellino, sem se poder conformar com aquela vergonhosa corrida composta só de correrias de um para outro lado da praça e repetidas escaladas à trincheira resolveu salvar a situação com um golpe da. audácia e declarou que ia executar imediatamente a sua famosa sorte da cadeira.

O público aclamou-o de novo mas desde que ele, com um par de farpas na mão direita e a cadeira na outra se pôs a bater com aquelas, chamando o touro à cita., este, em vez de partir de cara, como era de esperar, torceu de banda, antecipando-se assim no ardiloso requebro que o toureiro contava fazer, e repontou-lhe pela esquerda, sem lhe dar tempo senão para fugir. De sorte que os papéis singularmente se trocaram, o toureiro não toureou e o touro toureara, e Torbellino lhe teria sentido o gosto dos cornos se não se livra tão depressa, abandonando ao adversário as farpas e a cadeira, que voou logo em estilhas pelos ares.

O pior, porém, é que o demônio do animal se lhe ferrou no encalço, e começou a persegui-lo a galope cerrado por toda a volta em redondo da praça, sem fazer caso dos capinhas que tentavam desviá-lo da porfia. Torbellíno, afinal, com inaudita destreza, agarrou-se na carreira que levava à borda da trincheira e a transpôs de um salto; o touro, porém, não menos destro, galgou-a atrás dele, rastejando-lhe a pista.

E então é que foram elas! No interior da trincheira havia como sempre refúgios e defesas, mas a tudo levava o touro de vencida, ameaçando até as primeiras filas de espectadores. O pavor não podia ser maior. Na inversão dos pontos de perigo, via-se agora encher-se a arena com os que a invadiam, saltando a trincheira falsa em busca de segurança, e era lá para dentro que acorriam os capinhas em perseguição do intourejável boi.

Ah! não havia dúvida que a quinta corrida, se, pelo seu imprevisto, ia bem para grande parte do público, ia positivamente muito mal para os toureiros. Das farpas e bandarilhas destinadas ao feroz bicho, nenhuma lhe chegara a picar o couro; das lanças dos picadores que o atingiram, a nenhuma foi dado conservar-se inteira, e dos últimos três cava]os sobrevindos, só um vivia ainda, e esse mesmo já ferido nas costelas e mal se podendo ter nas pernas.

Agora, o que os espectadores reclamavam nos seus implacáveis berros, era a presença do touro na praça; felizmente, porém, já lá dentro tinham conseguido encurralá-lo, e não tardou a que o restituíssem no público.

Vinha cansado e vinha colérico. ~ surgiu, entretanto, na liça, encapotou logo, assestando para frente, cornos afilados, e desembestou, tal qual ao iniciar a corrida, no seu centrípeto galope a que nada resistia.

A praça esvaziou-se inda uma vez, e o touro, bem senhor dela, como para completar a sua vitória. arremeteu contra cavalo já ferido de morte, único sopro de vida que ali respirava. A pobre cavalgadura jazia encostada à trincheira, com os olhos sempre vendados, e com o sangue a desfilar-lhe por entre as costelas partidas. Ao primeiro assalto caiu logo, mais de costa que de flanco, agitando as patas no ar. O touro acometeu-o de novo, engolfando-lhe no ventre os cornos por inteiro e revolvendo-lhe as entranhas que arrancou afinal de todo para fora.

O desviscerado escorjava-se, ululando, num tremor de todo o corpo, e o touro, a saciar nele a sua tremenda cólera, só recolhia as armas para as cravar de novo com mais fúria. Depois, não conseguindo nelas levantar a vítima e arrojá-la, como um despojo vil, por cima da trincheira, se desforrava em mergulhar de todo a cabeça no arrombado ventre do agonizante, esfocinhado lá dentro na sangrenta lameira dos intestinos.

O público, empolgado por tão cruenta ferocidade, esqueceu-se dos toureadores, para dar todo o seu entusiasmo ao touro. Os aplausos rebentaram do anfiteatro em peso mais delirantes do que nunca, e o inconsciente herói como se os compreendera, sacou a cabeça das entranhas do cavalo para encarar orgulhoso a multidão, apresentando-lhe uma hedionda máscara vermelha e verde, feita de estrabo e de sangue.

Redobrou o entusiasmo, e uma ânsia febril apoderou-se dos espectadores.

- Que lo maten! Que lo maten!

E a nuvem dos toureiros acudiu de novo à praça. O touro, na sua imediata investida, viu-se logo cercado por todos os lados, e, arquejante de cansaço, já sem força para os repelir, escamava a terra com as patas dianteiras.

- Que lo maten! Que lo maten!

Um lúgubre toque de cometa deu o sinal de morte. Pela primeira vez, fez-se no circo um pouco de calma quase silente na qual se sentia resfolegar a velha alma espanhola

E o guapo Torbellino na sua linda roupa cor de esmeralda, perfilou-se defronte do touro expondo-lhe a capa vermelha, debaixo da qual se escondia a lâmina fatal. O adversário, de cabeça baixa, a arfar com o corpo todo, recuava defronte dele, negando-se à provocação; mas os capinhas tanto o instigaram e tanto o enredaram nos seus mil ardis, que o condenado foi afinal colocar-se diante do Matador, em posição favorável para receber o supremo golpe.

Torbellino não deixou fugir a vez. Aprumou-se, mediu o bote e, com um gracioso salto de mestre, enterrou-lhe até os punhos a espada na raiz do pescoço, por entre os cornos.

A arma ficou no corpo do ferido, e este estacou, como surpreso do que se passava por dentro dele. O Matador aproximou-se então da sua vitima, puxou-lhe da cerviz à ensangüentada espada e bateu-lhe com ela desdenhosamente na cara.

O touro deu ainda um arranco, que era já de moribundo, a cambalear, cruzando as pernas da frente, e foi cair ao lado do último cavalo morto.

Levantou então a cabeça e abriu os seus olhos de animal vindo ao mundo para ser bom e forte. Da boca escorria-lhe sangue, mugiu soturnamente, e nesse mugido ia toda a lamentação de sua alma simples pelos campos verdes e amigos, que ele tivera de deixar para vir morrer ali tão cruamente nas mãos de bárbaros.

E por fim, deixando pender a cabeça sobre o flanco do companheiro de sorte, suspirou muito repousadamente como um ente humano quando adormece.


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