Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas quarta, 20 de outubro de 2021

O CULTO DO MAR (CRÔNICA DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

O CULTO DO MAR

João do Rio

 

 

 

O Culto do Mar é praticado pelos pescadores das nossas praias. É um culto variado, cosmólatra e fantasista, cm que entram a lua e alguns elementos divinizados.

- Não conhece os nossos pescadores? Gente tranqüila. Raramente se agridem e sempre por questão de pesca.

Os pescadores formam um corpo distinto, diverso dos catraeiros, dos marítimos, dessa população ambígua e viciada que anda no cais à beira das ondas perturbadoras. Não há canto da nossa baia que não tenha uma colônia de pescadores. Vivem todos muito calmos, sem saber do resto do mundo. Enfim, uma classe à parte, com festas próprias, que não se afasta do oceano e é unida pelo culto do mar. Os pescadores são os últimos idólatras das vagas. Conversar com eles é ter impressões absolutamente inéditas de moral, de filosofia e de religião.

- Mas essas colônias são brasileiras? - indaguei do meu informante.

- Não. Há colônias só de portugueses, como a de Santa Luzia e de Santo Cristo, de portugueses e brasileiros, como em Sepetiba, de italianos apenas, de brasileiros só. Uma série de núcleos ligados pela crença. São outros homens. Nascem de mães pescadoras, partejadas quase sempre por curiosas, vivem nas praias, nunca as abandonam. Aos quatro anos nadam, aos dez remam e acompanham os parentes às pescarias, e assim passam a existência, familiarizados apenas com as redes, os apetrechos de pesca e o calão, o pitoresco calão marítimo.

O oceano imprime-lhe um cunho especial, são propriedades do mar. Nunca reparaste nos pescadores? Têm os pés diferentes de todos, uns pés contráteis que se crispam nas pranchas como os dos macacos; andam a bambolear, balouçando como um barco, e a sua pele lustrosa tem o macio grosso dos veludos. A alma dessa gente conserva-se ondeante, maravilhosa e simples.

- Mas os pescadores são cristãos?

- Está claro. Mas cristãos puros é difícil encontrar hoje afora os evangelistas e os sírios.

- Lembro-me da festa de Nossa Senhora, na Lapa.

- É outra coisa.

- Vi em Santa Luzia a devoção de São Pedro.

- Era promessa de um rapaz que, por falta de meios não a continua. Deixemos N. Senhora e São Pedro. Falo de um culto que emana no intimo respeito das ondas. Todos os pesca-dores das praias e das ilhas próximas festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de devoção. Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os Tritões e não respeite a Lua. Conheço três manifestações desse culto. A Mãe-d'Água entre os pescadores de Santo Cristo e de Santa Luzia, a da Lua, e do Mar e a do Arco-Íris.

- O Arco-Íris?

- Em Sepetiba. É dos mais completos e dos mais belos, tendo como sacerdote uma mulher.

O Arco-Íris, a adoração de um deus que se curva nas nuvens policromo e vago, que ergue das ondas um facho de luzes brandas e desaparece, o terror daquilo que se desfaz, sem que se saiba como! Era uma fantasia! Mas os cosmólatras inventam tanta coisa para perfumar a sua ignorância, que bem podia ser.

- Não há dúvidas - disse o meu amigo. - O arco-íris, é uma antiqüíssima divindade, um anúncio dos céus. Lembra-te disso e acompanha-me.

Acompanhei-o, durante um inverno, muito úmido e muito estrelado. Os pescadores têm um temor incalculável da polícia. Desde que um curioso aparece, guardam segredo das suas crenças e negam toda e qualquer co-participação em religião que não seja a católica. Como são primitivos e rudimentares, porém, a bondade que têm é fundamental, transforma-os e não há nenhum que não acabe confiante e falador, exagerando para espantar os mistérios cosmológicos. Esses mistérios são de uma beleza delicada e antiga, de uma beleza de rapsodos que relembra as fantasias escandinavas e helenas, um montão de lendas e de ritos enervantes. Há nas práticas e nas idéias trechos de Hesíodo, de Cristo e dos pretos-minas e a gente afunda-se, quando os quer guardar, num banho de cristal batido pelo sol.

Quase sempre os diretores das festas, os sacerdotes não são pescadores. Em Santo Cristo é o padeiro Carvalho, homem de posses - diz o meu amigo. Os sacrifícios são feitos geralmente à noite.

Vamos os dois interrogar os pescadores. Essa gente teme a Mãe-d'Água, tendo a longínqua recordação de que ela aparece vestida de branco seguida de homens barbados de verde. A aparição feminina grita de repente, apaga as luzes na barca, faz as cerrações, afasta os peixes, e às vezes canta.

- Como a Darclée?

- Como as sereias meu caro. Os pescadores têm que cair no fundo da barca tapando os ouvidos. Ulisses amarrava-se...

Para aplacar a deusa do mar, ser impalpável e lindo, os pescadores fazem o sacrifício de um carneiro. Matam o bicho à beira do oceano; o sangue cai numa cova aberta na areia. Depois partem canoas levando pedaços do animal com presentes que deixam cair no fundo da baía com uma oração votiva.

Um rapazola, lindo como o Apolo do Belveder, responde às nossas perguntas:

- Eu fui batizado, patrão.

- Mas sabe a história da Mãe-d'Água?

- Sei, sim. Aqui, para Mãe-d'Água ser boa fazem-se despachos. Na ilha do Governador compram tudo do mais fino, põem a mesa à beira da praia, com talheres de prata, copos bonitos, a toalha alva e galinhas sem cabeça, para a santa comer.

- Que diferença há entre Nossa Senhora e a Mãe-d'Água? - indago interessado.

- Nossa Senhora está no céu. Mãe-d'Água é diferente; é a devoção, é como um santo do Mar... E sopra-me na cara uma baforada de fumo mau.

O meu amigo, cheio de literatura, declama logo:

- Não compreendes! A água é em toda a parte uma religião. O Nilo foi feito das lágrimas de Isis, o Ganges é o fator da crença da imortalidade, os gregos povoaram o mar de habitantes sagrados.

Lembra-te dos arías ao descer do planalto: - "ó mar, grande laboratório!..." Laboratório da vida da crença.

E leva-me a uma outra praia, a compreender como tudo depende do mar e da lua. Ele conhecia um velho pescador, José Belchior. O velho recebe-o com intimidade e conta-me o que pensa deste mundo. É curiosíssimo.

Para José o mar representa o homem, o princípio ativo. Por isso o mar é superior em tudo à terra, que como a mulher só serve para o descanso. O oceano circunda a terra num longo abraço. O mar só sofre uma influência, a da lua, que mostra a sua face de trinta em trinta dias e o faz inquieto e a arfar. Nela mora Nossa Senhora com o seu filho Jesus, e esse doce alampadário de ouro desencadeia os ventos, faz as tempestades, esconde os peixes, baixa as marés e guia as naves. Se Nossa Senhora quisesse, parava a lua quando ela vem cheia, e tudo seria então magnífico. Como as coisas não são assim, fazem-se promessas, pede-se aos santos para interceder e, nas noites de luar, fazem uma passeata em embarcações com velas de cera acesas na mão e rezando baixinho.

Todas essas pequenas modalidades reúnem-se em Sepetiba no culto geral do Arco-Íris. Há festas de três em três meses, despachos simples e uma grande solenidade, que já foi feita a 2 de fevereiro e atualmente se realiza em junho, no dia de S. Pedro.

Estive lá nesse dia. A sacerdotisa é uma portuguesa reforçada, que se chama Maria Matos da Silva. Só são permitidos na festa pescadores, e os pescadores vão de toda a parte ao culto singular. A casa de Maria da Silva fica mesmo no ponto dos bondes, e nos dias de festa está toda adornada de folhagens e galhardetes. Todos, lavados e de roupas claras, a dona da devoção manda buscar os negros feiticeiros para preparar os ebós e fazer a matança dos animais.

Ela própria deita as cartas para saber quem deve ir levar os sacrifícios e os desejos sutis do Arco-íris.

No interior da casa, onde ardem velas, é proibida a entrada com exceção das que tomam parte nos sacrifícios. Em frente os pescadores bebem, cantam e dançam o cateretê. Se por acaso no céu se curvam as cores do espectro, prosternam-se todos radiosos clamando pelo milagre. O milagre porém, como todo o milagre, é raro.

Maria da Silva tem sempre a seu lado o coronel Rodrigues, velho guarda nacional, que com os pés metidos em grossos tamancos, sentencia máximas morais para a assembléia. Os pescadores que apanham na rede um boto, levam-no à mulher do culto para preparo do azeite das festas sagradas.

Vou pela praia, alanhada por um vento álgido. No céu aparecem nuvens, na areia descansam três barcas enfeitadas. Um rapazola guarda-as. E ele quem nos dá informações a respeito da gente que dança. Reina entre estas criaturas uma perfeita amoralidade. Como não há barulhos graves, não se vai à polícia. Conselhos dão os velhos. A mulher serve para procriar, obedece cegamente ao homem, cose, trabalha, é inferior. O macho domina. O respeito aos anciãos existe, porque estes sabem das manhas dos peixes, anunciam as tempestades, ensinam. Quanto ao amor, deve ser muito diverso do nosso...

- E as festas, quem as faz?

- Para as festas concorrem todos.

Das três barcas que eu via, a primeira era para o Arco-íris, a segunda para a Mãe-d'Água e a terceira acompanharia as duas formando a trilogia, duas na frente e uma atrás.

O meu amigo, lembrando mitologias diversas, quis saber a razão desse triângulo. O rapaz respondeu apenas:

- É costume.

É costume também pagar em todas as religiões. Tanto os feiticeiros como os condutores das barcas recebem dinheiro. Os remadores pertencentes ao Arco-Íris têm seis mil réis, os da Mãe-d'Água três e os acompanhadores nove. À noite, já no céu negro o crescente lunar, depois dos búzios e dos baralhos terem indicado os dias em que não se poderá pescar, começa o sacrifício.

Forçado a ficar de longe, embrulhado num paletó em que tiritava, vi sair da casa da Maria uma teoria de camisolas brancas com as lanternas de azeite de boto na mão, acompanhando dois homens, um vestido de seda, outro de cetim.

O primeiro era o voga da canoa do Arco-íris, o segundo ia dirigir a da Mãe-d'Água. As canoas foram arrastadas para o mar. Na do Arco-Íris iam os mais finos presentes com os despachos, na da Mãe-d'Água objetos caros e femininos. Quando as canoas partiram em direção ao Norte, levando aqueles estranhos remadores vestidos de morim branco, os que ficaram na praia levantaram os braços, e a Maria da Silva, na turba, sorria como quem se desobriga de uma promessa sagrada.

- E ao voltarem, que há? - indaguei ao rapaz.

- Voltam de costas, de frente para o mar, entram assim em casa; os remadores, menos os do Arco-íris, batem com a cabeça no chão, e a festa continua.

- Mas que é o Arco-íris, afinal?

- O Arco-íris indica se a gente está bem com Deus. É um aviso, o sinal da união, o único meio por que o mar se deixa ver... e a crença.

Olhei mais o oceano soluçante sob o vento álgido.

As barcas todas acesas de luzes frouxas perdiam-se na fosforência lunar; os remadores cantavam, e eu ouvia como a copla de uma barcarola nostálgica. Em frente da casa de Maria, o cateretê delirava e sombras de adolescentes desciam a praia ágeis e finas.

A Maria, sentada, sorrindo, era indecifrável.

E para que decifrá-la? O seu culto era o culto de todas as épocas e de todos os homens. O mar continua a ser o grande mistério. Para os espíritos simples que temem o diabo e guardam na alma crenças acumuladas, só a Lua com a imagem de Nossa Senhora pode explicar a angústia do mar e só as sete cores do arco do céu podem simbolizar o vago mistério da união do oceano e do homem.


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