CONTO DE FADAS
Raul Pompéia
(Grafia original)
Contra-sensos de atavismo. Algumas vezes nascem príncipes da poeira humilde das ruas. Não da espécie dos conspiradores felizes, que fazem da própria nulidade original arma de guerra e lutam e sobem, cobrejando através dos conhecimentos até campear triunfantes sobre o domínio dos homens, não: verdadeiros príncipes, que o são ao nascer; que têm a púrpura do manto diluída em glóbulos de altivo sangue, absolutamente a salvo da embolia mortífera que a impureza do ambiente da sua miséria poderia ocasionar; príncipes nobilíssimos, que têm a força do emblemático cetro vertebrada em espinha dorsal, inflexível às humilhações da sorte, e no olhar firme, sem jaça, que lhes clareia a testa, a majestade dos diademas.
Podemos encontrá-los, ao dobrar uma esquina, em andrajos, face cavada pela necessidade e pelo suor, – lágrimas de fadiga.
Pesa-lhes mais que a ninguém a fatalidade arquitetônica do edifício social, que obriga a superposição dos andares e a inferioridade do baldrame.
São oriundos desta raça os piores criminosos e os revolucionários sublimes. Entre estes extremos há, porém, o meio termo, mais comum, dos obscuros que sucumbem, bloqueados na vaidade inflexível da imaginária realeza.
“Impossível! monologava Aristo. Com os diabos! É uma solução arrebatada, que não me entusiasma. Suprimir-me! É boa! e o meu lugar no refeitório da vida? Então não há um talher para cada um nesta mesa redonda, como não há, no campo, um figo para cada pássaro. Quem me privou do figo nesta partilha? Implorar… Mas haverá pássaros mendigos? Há criancinhas que esmolam cantando; nenhuma outra miséria conheço que cante; não há lágrimas aladas; a própria chuva, porque parece pranto, cai na terra. Não será, pois, a vida como o espaço, e as aspirações como um vôo? Ah! mas reflitamos com justeza.
E o que pensarão os figos, desta vida? Que opinião a deles sobre os pássaros e sobre as aspirações? Também, pobrezinhos, têm um coração que palpita insensivelmente. Abri um figo; vereis a polpa ouriçada de pontas sangrentas… Como não? os frutos sangram! Têm todos os direitos da maternidade… Não respeitais a maternidade?… inclusive o Santíssimo direito da dor! Percebo, percebo. Há homens-figos, há homens-pássaros. Sim! mas eu, figo!… uma figa! É preciso que um degrau se estenda embaixo, para que outro degrau se estenda em cima, e a escada suba?…
Eu trabalhei o ferro. Como me compreendia o másculo metal, parente da energia inflexível de meu gênio! Não me valeu a força de operário: faltou-me a habilidade de mendigo. Trabalhei então o pano. Homens do dispêndio, mantenedores da indústria, não sabeis de que tecido se fazem as ricas vestes. Passaram fibras de coração pelos teares; tingiram-se os padrões com as cores escuras da miséria. Conheceis os rebanhos humanos encurralados nas fábricas. O carneiro dá a lã. Toda essa lã puríssima: sensibilidade, delicadeza, pudor, altivez, de que se faz a superioridade moral, se apara ao rebanho humano.
Este precioso estofo: vedes esta rosa entre folhas, labiada em pétalas esplêndidas sobre a trama da tecelagem? É a honra de uma operária, a infâmia feita tinturaria. Não quiseram que eu visse o que eu vi, nem que, vendo-o sentisse.
Passei a ser compositor. Ia encontrar de frente o pensamento, como encontrara a indústria. Maravilhou-me a infinidade dos tipos nos caixotins, palavras reduzidas a migalhas, idéias pulverizadas! Criei amor ao estanho dos tipos. O estanho vale mais que o bronze; porque se de bronze se pode fazer o glorioso escritor, de estanho se faz o livro. Ao metal do gloriado prefiro o metal da glória.
Deram-me a compor esta frase de um poeta: Filosofia do mar: os menores peixes, devoram-nos os maiores. Assim os homens.
E nesse dia não compus mais. E odiei o estanho; voltei definitivamente às velhas simpatias pelo ferro.”
E Aristo amaciava na palma da mão o ferro de um punhal, com a alma varada pela meditação cruciante, sentindo rasgar-se-lhe aos pés a aberta por onde, mais dia menos dia, nos escapamos todos para a sombra.
– Aristo, vem comigo; disse-lhe alguém ao ouvido, – uma pequenina voz de mulher, áurea e musical.
Era uma visão de risos, trajando o vestido etéreo dos sonetos de Petrarca, maneando a haste leve de uma varinha de fadas. Donde vens, desertora gentil dos contos da infância, graciosa importuna do meu desespero?
– Anda comigo, Aristo. Partamos para a independência feliz.
E partiram, Aristo e a fada, para uma região fantástica e surpreendente.
Céu vasto, de transparência inexprimível. As alvas nuvens, por uma superfluidade de asseio iam, como esponjas, esfregando, uma a uma, as safiras limpas do céu. Cobria-se a terra de pedraria, poeira cintilante de gemas; erguiam-se taludes de facetado cristal. Estranha vegetação brotava. Perfeita floresta de ourivesaria. Troncos de ouro lavrado e folhagem soldada a fogo. Através dos ramos reluzentes, a viração ia e vinha, fria do contato metálico da selva, sem que o mais débil galho tremesse, sem que a mínima flor vacilasse no hastil. Às vezes, a um sopro mais forte, soltava-se um ramúsculo com um estalido seco de agulha partida, ou uma flor desarmava-se, e as pétalas caíam, produzindo o barulho de moedinhas pelo chão. Nenhum outro rumor, nem um perfume, nem uma vida, em toda a paisagem, imóvel e rutilante.
Desaparecera a fada com o rosto em risos e o vestido celeste, que descansavam a vista da crueza das cintilações.
Brilhava no ar, terrivelmente, a claridade verde dos reflexos combinados das safiras do céu e do ouro da floresta.
Horas passadas, Aristo teve fome; exacerbou-lhe a sede a secura cáustica do ambiente. Descobriu pomos no arvoredo, inchados de maturidade, e gotas de orvalho no cálice das flores. Mas, quando quis trincar os pomos, quebravam-se-lhe os dentes contra a rija resistência da casca dourada, e bebendo orvalho, puríssimos diamantes aliás, foram-lhe as arestas da pedra, ensangüentar o esôfago.
– Maldição! maldição! Que me trouxeram ao inferno da pureza e da inflexibilidade!
A fada, aparecendo:
– Eu sou, pobre Aristo, a fada Ironia. Guiei-te à pátria inexorável do teu orgulho.