Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas segunda, 02 de agosto de 2021

LONGE DOS OLHOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

LONGE DOS OLHOS

Machado de Assis

 

 

 

I

 

Na verdade, era pena que uma moça tão prendada de qualidades morais e físicas, como a filha do desembargador, nenhum sentimento inspirasse ao bacharel Aguiar. Mas não a lastime a leitora, porque o bacharel Aguiar nada dizia ao coração de Serafina, apesar dos seus talentos, da rara elegância das suas maneiras, de todos quantos dotes costumam adornar um herói de romance.

E não é romance isto, senão história verídica e real, pelo que, vai esta narrativa com as exíguas proporções de uma notícia, sem enfeites de estilo nem recheio de reflexões. O caso conto como o caso foi.

Sabido que os dois se não amavam nem pendiam para lá, convém saber mais que o gosto, o plano e não sei se também o interesse dos pais é que eles se amassem e casassem. Os pais punham uma coisa, e Deus dispunha outra. O comendador Aguiar, pai do bacharel, insistia ainda mais no casamento, pelo desejo que tinha de o meter na política, o que lhe parecia fácil desde que o filho se tornasse genro do desembargador, membro ativíssimo de um dos partidos e por agora deputado à assembléia geral.

O desembargador pela sua parte achava que lhe não fazia mal nenhum a filha participar da pingue herança que devia receber o filho do comendador, por morte deste.

Pena era que os dois jovens, esperanças de seus pais, derrubassem todos estes planos olhando um para o outro com a máxima indiferença. As famílias visitavam-se freqüentemente, as reuniões e as festas sucediam-se, mas nem Aguiar nem Serafina pareciam dar um passo para o outro. Tão grave caso exigia pronto remédio, e foi o comendador quem tomou a resolução de lho dar sondando o espírito do bacharel.

- João, disse o velho pai certa noite de domingo, depois do chá, achando-se com o filho a sós no gabinete: Acaso nunca pensaste em ser homem político?

- Oh! nunca! respondeu o bacharel espantado com a pergunta. Por que razão pensaria eu na política?

- Pela mesma razão porque outros pensam...

- Mas eu não tenho vocação.

- A vocação faz-se.

João sorriu.

O pai continuou.

- Não te faço esta pergunta à toa. Já houve quem me perguntasse a mesma coisa a teu respeito, eu não tive que responder porque a falar verdade as razões que me davam eram de peso.

- Quais eram?

- Diziam-me que tu andavas em colóquios e conferências com o desembargador.

- Eu? Mas naturalmente converso com ele; é pessoa da nossa amizade.

- Foi o que eu disse. A pessoa pareceu convencer-se da razão que eu lhe dava, e então imaginou outra coisa...

O bacharel arregalou os olhos à espera de ouvir outra coisa, enquanto o comendador acendia um charuto.

- Imaginou então, continuou o comendador puxando uma fumaça, que tu andavas... quero dizer... que pretendias... em suma, um namoro!

- Um namoro!

- É verdade.

- Com o desembargador?

- Velhaco! com a filha.

João Aguiar deu uma gargalhada. O pai pareceu rir também, mas reparando bem não era um riso, era uma careta.

Depois de um silêncio:

- Mas não vejo que houvesse alguma coisa de admirar, disse o comendador; tem-se visto namorar muito rapaz e muita moça. Tu estás na idade do casamento, ela também; nossas famílias visitam-se com freqüência; vocês falam-se com intimidade. Que admira que um estranho supusesse alguma coisa?

- Tem razão; mas não é verdade.

- Pois tanto melhor... ou tanto pior.

- Pior?

- Maganão! disse o velho pai afetando um ar galhofeiro, parece-te que a moça é algum peixe podre? Pela minha parte, entre as moças com que temos relações de família, nenhuma acho que se lhe compare.

- Oh!

- Oh! quê!

- Protesto.

- Protestas? Achas então que ela...

- Acho que é muito formosa e prendada, mas não acho que seja a mais formosa e prendada de todas as que conhecemos...

- Mostra-me alguma...

- Ora, há tantas!

Mostra-me uma.

- A Cecília por exemplo, a Cecília Rodrigues, para o meu gosto é muito mais bonita que a filha do desembargador.

- Não digas isso; uma lambisgóia!

- Meu pai! disse João Aguiar com um tom de ressentimento que fez pasmar o comendador.

- Que é? perguntou este.

João Aguiar não respondeu. O comendador arrugou a testa e interrogou o rosto mudo do filho. Não leu, mas adivinhou alguma coisa desastrosa; - desastrosa, entenda-se, para os seus cálculos conjugo-políticos ou político-conjugais, como melhor nome haja.

- Dar-se-á caso que... começou a dizer o comendador.

- Que eu a namore? interrompeu galhofeiramente o filho.

- Não era isso o que te ia perguntar, acudiu o comendador (que aliás não ia perguntar outra coisa), mas visto que tocaste nesse ponto, não era mau que me dissesses...

- A verdade?

- A singela verdade.

- Gosto dela, ela gosta de mim, e aproveito esta ocasião meu pai, para...

- Para nada, João!

O bacharel fez um gesto de espanto.

- Casar, não é? perguntou o comendador. Mas tu não vês a impossibilidade de semelhante coisa? Impossível, não digo que seja; tudo pode acontecer neste mundo, se a natureza o pede. Mas a sociedade tem suas leis que não devemos violar, e segundo elas esse casamento é impossível.

- Impossível!

- Tu levas-lhe em dote os meus bens, a tua carta de bacharel e um princípio de carreira. Que te traz ela? Nem sequer essa beleza que só tu lhe vês. Demais, e isto é o importante, não se dizem boas coisas daquela família.

- Calúnias!

- Pode ser, mas calúnias que correm e se acreditam; e visto que tu não podes fazer na véspera do casamento um manifesto aos povos desmentindo o que se diz e provando que nada é verdade, segue-se que as calúnias triunfarão.

Era a primeira vez que o bacharel conversava com o pai a respeito daquele grave ponto do seu coração. Aturdido com as objeções dele, não achou logo que responder e todo se limitou a interrompê-lo com um ou outro monossílabo. O comendador continuou no mesmo tom e concluiu dizendo que esperava dele não lhe desse um grave desgosto no fim da vida.

- Por que te não levou a fantasia à filha do desembargador ou outra nas mesmas condições? A Cecília, não, nunca será minha nora. Pode casar contigo, é verdade, mas então não serás meu filho.

João Aguiar não achou que responder ao pai. Ainda que achasse, não o poderia fazer porque quando deu acordo de si ele estava longe.

O bacharel foi para o seu quarto.

 

 

II

 

Entrando no quarto, João Aguiar fez alguns gestos de enfado e zanga e de si para si prometeu que, embora não agradasse ao pai, havia de casar com a formosa Cecília, cujo amor era para ele já uma necessidade da vida... O pobre rapaz tão depressa fez este protesto como entrou a ficar frio com a idéia de uma luta, que se lhe afigurava odiosa para ele e para o pai, em todo o caso triste para ambos. As palavras deste relativamente à família da namorada fizeram-lhe grave impressão no espírito; mas ele concluiu, que ainda sendo verdadeira a murmuração, nada tinha com isso a formosa Cecília, cujas qualidades morais estavam acima de todo o elogio.

A noite correu assim nestas e noutras reflexões até que o bacharel dormiu e na manhã seguinte alguma coisa se lhe havia dissipado das apreensões da véspera.

- Tudo se pode vencer, disse ele; o que é preciso é ser constante.

O comendador, porém, tinha dado o passo mais difícil que era falar no assunto ao filho; vencido o natural acanhamento que resultava da situação de ambos, aquele assunto tornou-se assunto obrigado de quase todos os dias. As visitas à casa do desembargador amiudaram-se; amiudaram-se igualmente as deste à casa do comendador. Os dois jovens foram assim metidos à casa um do outro; mas se João Aguiar parecia frio, Serafina parecia gélida. Os dois estimavam-se antes, e ainda se estimavam então; entretanto, a nova situação que lhes haviam criado, estabelecera entre ambos uma certa repulsa que a polidez mal disfarçava.

Porquanto, leitora amiga, o desembargador fizera à filha um discurso igual ao do comendador. As qualidades do bacharel foram postas em relevo com suma habilidade; as razões financeiras do casamento, melhor direi as vantagens dele foram levemente indicadas de maneira a desenhar aos olhos da moça um brilhante futuro de pérolas e carruagens.

Infelizmente, (tudo se conspirava contra os dois pais) infelizmente havia no coração de Serafina um obstáculo semelhante ao que João Aguiar tinha no seu, Serafina amava a outro. Não se atreveu a dizê-lo ao pai, mas foi dizê-lo a sua mãe, que não aprovou nem desaprovou a escolha visto que a senhora pensava pela boca do marido, a quem foi transmitida a revelação da filha.

- Isto é uma loucura, exclamou o desembargador; esse rapaz (o escolhido) é bom coração, tem carreira, mas a carreira está no princípio, e demais... creio que é um pouco leviano.

Serafina soube deste juízo do pai e chorou muito; mas nem o pai soube das lágrimas nem que soubesse mudaria de intenção. Um homem grave, quando resolve uma coisa, não deve expor-se ao ridículo, resolvendo outra unicamente levado de algumas lágrimas de mulher. Demais, a tenacidade é prova de caráter; o desembargador era e queria ser homem austero. Conclusão; a moça chorou à toa, e só violando as leis da obediência, poderia realizar os desejos do seu coração.

Que fez então ela? Recorreu ao tempo.

- Quando meu pai vir que eu sou constante, pensou Serafina, há de consentir no que pede o coração.

E dizendo isto, entrou a lembrar-se das amigas a quem acontecera o mesmo e que à força de paciência e tenacidade domaram os pais. O exemplo alentou-a; sua resolução era definitiva.

Outra esperança tinha a filha do desembargador; era que o filho do comendador se casasse, o que não era impossível nem improvável.

Nesse caso, cumpria-lhe ser com João Aguiar extremamente reservada a fim de que ele não viesse a conceber esperanças a seu respeito, o que tornaria muito precária a situação e daria triunfo ao pai. Ignorava a boa moça que João Aguiar fazia a mesma reflexão, e pelo mesmo motivo se mostrava frio com ela.

Um dia, andando as duas famílias na chácara da casa do comendador, em Andaraí, aconteceu encontrarem-se os dois numa alameda, quando justamente não passava ninguém. Ambos mostraram-se incomodados com aquele encontro e de boa vontade teriam recuado; mas não era natural nem bonito.

João Aguiar resolveu cumprimentá-la apenas e ir adiante, como quem levava o pensamento preocupado. Parece que isto foi fingido demais, porque no melhor do papel, João Aguiar tropeça num pedaço de cana que se achava no chão e cai.

A moça deu dois passos para ele, que apressadamente se levantou:

- Machucou-se? perguntou ela.

- Não, D. Serafina, não me machuquei, disse ele, limpando com o lenço os joelhos e as mãos.

- Papai está cansado de ralhar com o feitor; mas é o mesmo que nada.

João Aguiar apanhou o pedaço de cana e atirou-o para uma moita de bambus. Durante esse tempo vinha-se aproximando um moço, visita da casa, e Serafina pareceu um tanto confusa com a presença dele, não porque ele viesse mas por achá-la a conversar com o bacharel. A leitora, que é perspicaz, adivinhou já que é o namorado de Serafina; e João Aguiar, que não é menos perspicaz que a leitora, percebeu a coisa do mesmo modo.

- Ainda bem, disse ele consigo.

E cumprimentando a moça e o rapaz ia seguindo pela alameda fora quando Serafina amavelmente o chamou.

- Não nos acompanha? disse ela.

- Com muito gosto, balbuciou o bacharel.

Serafina fez um sinal ao namorado para que ele se tranqüilizasse, e os três seguiram a conversar de coisas que não interessam à nossa estória.

Não; há uma que interessa e não posso omitir. Tavares, o namorado da filha do desembargador, não compreendeu que ela, chamando o filho do comendador a seguir caminho com eles, tinha por fim evitar que o pai ou a mãe a encontrasse só com o namorado, o que agravaria singularmente a situação. Há namorados a quem é preciso dizer tudo; Tavares era um deles. Inteligente e atilado em todas as outras coisas, era neste particular uma verdadeira toupeira.

Por esse motivo, apenas ouviu o convite da moça, a cara, que já anunciava mau tempo, passou a anunciar temporal desfeito, o que também não escapou ao bacharel.

- Sabe que o Dr. Aguiar levou agora uma queda? disse Serafina olhando para Tavares.

- Ah!

- Não desastrosa, disse o bacharel, isto é, não me fez mal nenhum; mas... ridícula.

- Ah! protestou a moça.

- Uma queda é sempre ridícula, tornou João Aguiar em tom axiomático; e podem já imaginar o que seria do meu futuro, se eu fosse...

- O quê? perguntou Serafina.

- Seu namorado.

- Que idéia! exclamou Serafina.

- Que dúvida pode haver nisso? perguntou Tavares com um sorriso irônico.

Serafina estremeceu e baixou os olhos.

João Aguiar respondeu rindo:

- A coisa era possível, mas deplorável.

Serafina lançou um olhar de repreensão ao seu namorado e voltou-se rindo para o bacharel.

- Não diz isso por desdém, acho eu?

- Oh! por quem é! Digo isto porque...

- Aí vem Cecília! exclamou a irmã mais moça de Serafina, aparecendo no fim da alameda.

Serafina que estava a olhar para o filho do comendador viu-o estremecer e sorriu-se. O bacharel olhou para o lado de onde logo apareceu a dama dos seus pensamentos. A filha do desembargador inclinou-se para o ouvido de Tavares e murmurou:

- Ele diz isto... por causa daquilo.

Aquilo era a Cecília que chegava, não tão formosa quanto queria João Aguiar, nem tão pouco como parecia ao comendador.

Aquele encontro casual na alameda, aquela queda, aquela vinda de Tavares e de Cecília tão a propósito, tudo melhorou a situação e desafogou a alma dos dois jovens destinados por seus pais a um casamento que lhes parecia odioso.

 

 

III

 

De inimigos que deviam ser os dois condenados ao casamento passaram a ser naturalmente aliados. Esta aliança veio devagar, porque, apesar de tudo, ainda se passaram algumas semanas sem que nenhum deles comunicasse ao outro a situação em que se achava.

O bacharel foi o primeiro que falou, e não ficou pouco pasmado ao saber que o desembargador nutria a respeito da filha igual plano ao de seu pai. Haveria acordo dos dois pais? foi a primeira pergunta que ambos fizeram consigo mesmo; mas houvesse ou não, o perigo para eles não diminuía nem aumentava.

- Oh! sem dúvida, dizia João Aguiar, sem dúvida que eu seria muito feliz se os desejos de nossos pais correspondessem aos de nossos corações; mas há um abismo entre nós e a união seria...

- Uma desgraça, concluía afoitamente a moça. Pela minha parte, confio no tempo; confio sobretudo em mim; ninguém leva uma moça à força para a igreja e quando tal coisa se fizesse ninguém lhe podia arrancar dos lábios uma palavra por outra.

- Todavia, nada impede que à liga de nossos pais, disse João Aguiar, opuséssemos nós uma liga... nós quatro.

A moça abanou a cabeça.

- Para quê? disse ela.

- Mas...

- A verdadeira liga é a vontade. Sente-se com força de ceder? Então é que não ama...

- Oh! amo como se pode amar!

- Ah!...

- A senhora é bela; mas Cecília também o é, e o que eu vejo nela não é a beleza, quero dizer as graças físicas, é a alma incomparável que Deus lhe deu!

- Amam-se há muito?

- Há sete meses.

- Admira que ela nunca me dissesse nada.

- Talvez receio...

- De quê?

- De revelar o segredo do seu coração... Bem sei que não há crime nisto, todavia pode ser que por um sentimento de discrição exagerada.

- Tem razão, disse Serafina depois de alguns instantes; também eu nada lhe disse a meu respeito. Demais, entre nós não há grande intimidade.

- Mas deve haver, há de haver, disse o filho do comendador. Vê-se que nasceram para ser amigas; ambas tão igualmente boas e belas. Cecília é um anjo... Se soubesse o que me disse quando eu lhe contei a proposta de meu pai!

- Que disse?

- Estendeu-me a mão apenas; foi tudo quanto me disse; mas esse gesto era tão eloqüente! Eu traduzi-o por uma expressão de confiança.

- Foi mais feliz do que eu?

- Ah!

- Mas não falemos nisto. O essencial é que tanto eu como o senhor tenhamos feito uma boa escolha. O céu há de proteger-nos; estou certa disso.

A conversa continuou assim por este modo singelo e franco. Os dois pais, que ignoravam absolutamente o objeto da conversa deles, imaginavam que a natureza os ajudava no plano do casamento e, longe de impedir, lhes facilitavam as ocasiões.

Graças a este equívoco, os dois podiam repetir essas doces práticas em que cada um ouvia o seu próprio coração e falava do objeto escolhido por ele. Não era um diálogo, eram dois monólogos, algumas vezes interrompidos mas sempre longos e cheios de animação.

Com o tempo vieram eles a fazer-se confidentes mais íntimos; esperanças, arrufos, ciúmes, todas as alternativas de um namoro, comunicados um ao outro; um ao outro se consolavam e se aconselhavam em casos em que eram necessários consolação e conselho.

Um dia o comendador disse ao filho que era conhecido o namoro dele com a filha do desembargador, e que o casamento podia ser feito naquele ano.

João Aguiar caiu das nuvens. Compreendeu, porém, que a aparência enganava ao pai, e o mesmo podia acontecer às pessoas estranhas.

- Mas nada há, meu pai.

- Nada?

- Juro-lhe que...

- Retira-te e lembra-te do que te disse...

- Mas...

O comendador havia já voltado as costas. João Aguiar ficou só a braços com a nova dificuldade. Para ele, a necessidade de uma confidente era já invencível. E onde acharia melhor que a filha do desembargador? Era idêntica a situação de ambos, iguais os interesses; além disso, havia em Serafina uma soma de sensibilidade, uma reflexão, uma prudência, uma confiança, como ele não encontraria em nenhuma outra pessoa. Ainda quando a outra pessoa pudesse dizer-lhe as mesmas coisas que a filha do desembargador, não lhas diria com a mesma graça, e a mesma doçura; um não sei o que o levava a lastimar não poder fazê-la feliz.

- Meu pai tem razão, dizia ele às vezes consigo; se eu não amasse a outra, devia amar a esta, que é certamente comparável a Cecília. Mas é impossível; meu coração está preso a outros laços...

A situação, entretanto, complicava-se, toda a família de João Aguiar dizia-lhe que a sua verdadeira e melhor noiva era a filha do desembargador. Para acabar com todas essas insinuações, e seguir os impulsos do seu coração, teve o bacharel idéia de raptar Cecília, idéia extravagante e só filha do desespero, visto que o pai e a mãe da namorada nenhum obstáculo punham ao casamento deles. Ele mesmo reconheceu que o recurso era um despropósito. Ainda assim disse-o a Serafina, que amigavelmente o repreendeu:

- Que idéia foi essa! exclamou a moça, além de desnecessário, não era... não era decorosa. Olhe, se fizesse isso nunca mais devia falar-me...

- Não me perdoaria?

- Nunca!

- Entretanto, a minha posição é dura e triste.

- Não o é menos a minha.

- Ser amado, poder ser feliz tranqüilamente feliz para todos os dias da minha vida...

- Oh! isso!

- Não crê?

- Quisera crer. Mas está-me a parecer que a felicidade que sonhamos quase nunca sai à medida dos nossos desejos, e que mais vale uma quimera que uma realidade.

- Adivinho, disse João Aguiar.

- Adivinha o quê?

- Algum arrufo.

- Oh! não! nunca estivemos melhor; nunca andamos mais tranqüilos do que agora.

- Mas...

- Mas não permite que às vezes a dúvida entre no coração? Não é ele do mesmo barro que os outros?

João Aguiar refletiu alguns instantes.

- Talvez tenha razão, disse ele enfim, a realidade não será sempre tal qual a sonhamos. Mas isto mesmo é uma harmonia na vida, é uma grande perfeição do homem. Se víssemos logo a realidade como ela há de ser quem daria um passo para ser feliz?...

- Isso é verdade! exclamou a moça e deixou-se ficar pensativa enquanto o bacharel lhe contemplava a admirável cabeça e a graciosa maneira com que ela trazia os cabelos penteados.

A leitora há de desconfiar muita coisa às teorias dos dois confidentes relativamente à felicidade. Pela minha parte, posso afiançar que João Aguiar não pensava uma só palavra que disse; não o pensava antes, quero eu dizer; ela porém tinha o secreto poder de lhe influir as suas idéias e sentimentos. Não poucas vezes dizia ele que se ela fosse fada podia dispensar a vara de condão: bastava falar.

 

 

IV

 

Um dia, Serafina recebeu uma carta de Tavares dizendo-lhe que não voltaria mais à casa de seu pai, por este lhe haver mostrado má cara nas últimas vezes que ele lá estivera.

Má cara é exageração de Tavares, cuja desconfiança era extrema e às vezes pueril; é certo que o desembargador não gostava dele, depois que soube das intenções com que ali ia, e é possível, é até certo que o seu modo afetuoso para com ele sofreu alguma diminuição. A fantasia de Tavares é que fez daquilo má cara.

Eu aposto que o leitor, em caso igual, redobrava de atenções com o pai, a ver se lhe reconquistava as boas graças, e entretanto ia gozando a fortuna de ver e contemplar a dona dos seus pensamentos. Tavares não fez assim; tratou logo de romper as suas relações.

Serafina sentiu sinceramente esta resolução do namorado. Escreveu-lhe dizendo que refletisse bem e voltasse atrás. Mas o namorado era homem teimoso; meteu os pés à parede, e não voltou.

Jurar-lhe amor isso fez ele, e não deixava de lhe escrever todos os dias, cartas muito longas, muito repassadas de sentimento e de esperanças.

João Aguiar soube do que se passara e procurou por sua vez dissuadi-lo da funesta resolução.

Tudo foi baldado.

- A desconfiança é o único defeito dele, dizia Serafina ao filho do comendador; mas é grande.

- É um defeito bom e mau, observou João Aguiar.

- Não é sempre mau.

- Mas como não há criatura perfeita, é justo relevar-lhe esse único defeito.

- Oh! de certo; contudo...

- Contudo?

- Preferia que o defeito fosse outro.

- Outro qual?

- Outro qualquer. A desconfiança é uma triste companheira; arreda toda a felicidade.

- Eu a esse respeito, não tenho motivo de queixa... Cecília tem a virtude oposta num grau que me parece excessivo. Há nela um quê de simplória...

- Oh!

Aquele oh de Serafina foi como que um protesto e repreensão, mas acompanhado de um sorriso, não digo aprovador, mas benévolo. Defendia a moça ausente, mas talvez achasse que João Aguiar tinha razão.

Dois dias depois adoeceu levemente o bacharel. A família do desembargador foi visitá-lo. Serafina escrevia-lhe todos os dias. Cecília, é Inútil dizê-lo, escrevia-lhe também. Mas havia uma diferença: Serafina escrevia melhor; havia mais sensibilidade na sua linguagem. Pelo menos, as cartas dela foram relidas mais vezes que as de Cecília.

Quando ele se levantou da cama, estava bom fisicamente, mas recebeu um golpe na alma. Cecília ia para a roça durante dois meses; eram manias do pai.

O comendador estimou este incidente, supondo que de uma vez para sempre o filho a esqueceria. O bacharel, entretanto, sentiu muito a separação.

A separação efetuou-se daí a cinco dias. Cecília e João Aguiar escreveram um ao outro grandes protestos de amor.

- Dois meses! dizia o bacharel da última vez que lhe falara. Dois meses é a eternidade...

- Sim, mas havendo constância...

- Oh! essa!

- Essa havemos de tê-la ambos. Não te esqueças de mim, sim?

- Juro.

- Falarás de mim muitas vezes com Serafina?

- Todos os dias.

Cecília partiu.

- Está muito triste? disse a filha do desembargador logo que nessa mesma tarde falou ao bacharel.

- Naturalmente.

- São apenas dois meses.

- Fáceis de suportar.

- Fáceis?

- Sim, conversando com a senhora, que sabe tudo, e fala destas coisas de coração como senhora de espírito que é.

- Sou um eco das suas palavras.

- Quem dera que assim fosse! Eu poderia então ter vaidade de mim.

João Aguiar disse estas palavras sem tirar os olhos da mão de Serafina, que mui graciosamente brincava com os cabelos.

A mão de Serafina era realmente uma bela mão; nunca, porém, lhe pareceu mais bela do que naquele dia, nem ela a movera nunca com tamanha graça.

Nessa noite João Aguiar sonhou com a mão da filha do desembargador. Que lhe havia de pintar a fantasia? Imaginou estar no alto das nuvens, a olhar pasmado o céu azul, donde viu repentina mente sair uma mão alva e delicada, a mão de Serafina, que se estendia para ele, que lhe acenava, que o chamava para o céu.

Riu-se João Aguiar deste singular sonho e foi contá-lo no dia seguinte à proprietária da mão. Também ela riu do sonho; mas tanto ele como ela pareciam estar convencidos lá no seu interior que a mão era efetivamente angélica e era natural vê-la em sonhos.

Quando ele se despediu:

- Não vá sonhar outra vez com ela, disse a moça estendendo a mão ao bacharel.

- Não desejo outra coisa.

Não sonhou outra vez com a mão, mas pensou muito nela e dormiu tarde. No dia seguinte para se castigar desta preocupação, escreveu uma longa carta a Cecília falando muito de seu amor e dos projetos de futuro.

Cecília recebeu a carta cheia de contentamento, porque muito tempo havia já que ele não escrevia carta tão longa. A resposta dela foi ainda mais comprida.

Um período da carta convém ser transcrito aqui:

Dizia assim:

"Se eu fosse ciumenta... se eu fosse desconfiada... havia de te dizer agora muito duras coisas. Mas não digo, descansa; amo-te e sei que me amas. Mas por que havia eu de dizer duras coisas? Porque nada menos de quatorze vezes falas no nome de Serafina. Quatorze vezes! Mas são quatorze vezes em quatorze páginas, que são todas minhas".

João Aguiar não se lembrava de haver escrito tanta vez o nome da filha do desembargador; lembrava-se, porém, de haver pensado muito nela enquanto escrevia a carta. Felizmente nada mau resultara, e o jovem namorado achou que ela tinha razão na queixa.

Nem por isso deixou de mostrar o trecho acusador à namorada do Tavares, que sorriu e agradeceu a confiança. Mas foi um agradecimento com a voz trêmula e um sorriso de íntima satisfação.

Parece que as quatorze páginas deviam servir para longo tempo, porque a seguinte carta foi apenas de duas e meia.

A moça queixou-se, mas com brandura, e concluiu pedindo-lhe que fosse vê-la à roça, ao menos por dois dias, visto que o pai resolvera lá ficar mais quatro meses, além do prazo marcado para a volta.

Era difícil ao filho do comendador ir lá ter sem oposição do pai. Imaginou porém um meio bom; inventou um cliente e um processo, ambos os quais o digno comendador engoliu, cheio de satisfação.

João Aguiar partiu para a roça.

Ia por dois dias apenas; os dois dias correm nas delícias que o leitor pode imaginar, mas com uma sombra, uma coisa inexplicável. João Aguiar, ou porque aborrecesse a roça ou porque amasse demais a cidade, sentia-se um pouco tolhido ou não sei que seja. No fim de dois dias desejava ver-se outra vez no bulício da corte. Felizmente, Cecília procurava compensar-lhe os tédios do lugar, mas parece que era excessiva nas mostras de amor que lhe dava, pois o digno bacharel dava sinais de impaciência.

- Serafina tem mais comedimento, dizia ele.

No quarto dia escreveu uma carta à filha do desembargador, que lhe respondeu com outra, e se eu disser à leitora que tanto um como outro beijaram as cartas recebidas, a leitora verá que a história se aproxima do fim e que a catástrofe está próxima.

Catástrofe, na verdade, e terrível foi a descoberta que tanto o bacharel como a filha do desembargador fizeram de que se amavam e já de longos dias. Foi principalmente a ausência que lhes confirmou a descoberta. Os dois confidentes aceitaram esta novidade um pouco perplexos, mas muito contentes.

A alegria era travada de remorso. Havia dois embaçados, a quem eles fizeram grandes protestos e juramentos repetidos.

João Aguiar não resistiu ao novo impulso do coração. A imagem da moça, sempre presente, fazia-lhe tudo cor-de-rosa.

Serafina, porém, resistiu; a dor que ia causar no ânimo de Tavares deu-lhe forças para calar o seu próprio coração.

Em conseqüência disto, começou a evitar toda a ocasião de encontro com o jovem bacharel. Isto e lançar lenha ao fogo era a mesma coisa. João Aguiar sentiu um obstáculo com que não contava, o amor cresceu-lhe e apoderou-se dele.

Não contava com o tempo e o coração da moça.

A resistência de Serafina durou o que duram as resistências de quem ama. Serafina amava; no fim de quinze dias abateu as armas. Tavares e Cecília estavam vencidos.

Eu desisto de dizer ao leitor o abalo produzido naquelas duas almas pela ingratidão perfídia dos dois felizes namorados. Tavares enfureceu-se e Cecília definhou longo tempo; afinal Cecília casou e Tavares está diretor de companhia.

Não há dor eterna.

- Bem dizia eu! exclamou o comendador quando o filho lhe impetrou licença para ir pedir a mão de Serafina. Bem dizia eu que vocês deviam casar! Custou muito!

- Alguma coisa.

- Mas agora?

- Definitivo.

Casaram-se há alguns anos aqueles dois confidentes. Recusaram fazer à força aquilo que o coração lhes indicou depois.

Há de ser duradouro o casamento.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 31 de julho de 2021

O INGÊNUO DAGOBERTO (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

O INGÊNuO DAGOBERTO

Alcântara Machado

 

 

 

Diante da porta da loja pararam. Seu Dagoberto carregava o menorzinho. Silvana, a maleta das fraldas. Nharinha segurava na mão do Polidoro, que segurava na mão do Gaudêncio. Quim tomava conta do pacote de balas. Lázaro Salém veio correndo do balcão e obrigou a família a entrar.

Seu Dagoberto queria um paletó de alpaca. – A mulher queria um corte de cassa verde ou então cor-de-rosa. A filha queria uma bolsinha de couro com espelho e lata para o pó-de-arroz. O menino de dez anos queria uma bengalinha. O de oito e meio queria um chapéu bem vermelho. O de sete queria tudo.

É só escolher.

O menorzinho queria mamar.

– Leite não tem.

Não há nada como uma piada na hora para pôr toda a gente à vontade. Principalmente de um negociante como Lázaro Salém. Bateu nas bochechas do Gaudêncio. Deu uma bola de celulóide para o Quim. Perguntou para Silvana onde arranjou aqueles dentes de ouro tão bem-feitos. Estava se vendo que era ouro de dezoito quilates. Falou. Falou. Não deixou os outros falarem. Jurou por Deus.

Entre marido e mulher houve um entendimento mudo. E a família saiu cheinha de embrulhos. Em direção ao Jardim da Luz.

O pavão estava só à espera dos visitantes para abrir a cauda. O veadinho quase ficou com a mão do Gaudêncio. Os macacos exibiram seus melhores exercícios acrobáticos. Quando araponga inventa de abrir o bico só tapando o ouvido mesmo.

Depois o fotógrafo espanhol se aproximou de chapéu na mão. Seu Dagoberto concordou logo. Porém Silvana relutou. Tinha vergonha. Diante de tanta gente. Só se fosse mais longe. O espanhol demonstrou que o melhor lugar era ali mesmo ao lado da herma de Garibaldi general italiano muito amigo do Brasil. Já falecido não há dúvida. Acabou-se. Garibaldi sairia também no retrato. Nem se discute. A família deixou os pacotes no banco e se perfilou diante da objetiva. Parecia uma escada. O fotógrafo não gostou da posição. Colocou os pais nas pontas. Cinco passos atrás. Estudou o eleito. Passou os pais para o meio. Cinco passos atrás. Ótimo. Enfiou a cabeça debaixo do pano. Magnífico. Ninguém se mexia. Atenção. Aí Juju derrubou a chupeta de bola e soltou o primeiro berro no ouvido paterno. Foi para os braços da mãe. Soltou o segundo. O fotógrafo quis acalmá-lo com gracinhas. Soltou o terceiro. Polidoro mostrou a bengalinha. Soltou o quarto. O grupo se desfez. Quinze minutos depois estava firme de novo às ordens do artista. O artista solicitou a gentileza de um sorriso artístico. Silvana pôs a mão na boca e principiou a rir sincopado. O artista teve a paciência de esperar uns instantes. Pronto. Cravaram os olhos na objetiva. O fotógrafo pediu o sorriso.

– O Juju também?

Polidoro (o inteligente da família) voou longe com o tabefe nas ventas.

Depois da sexta tentativa o retrato saiu tremido e o espanhol cobrou doze mil-réis por meia dúzia.

A família se aboletou no primeiro banco do caradura. Mas antes o Quim brigou com o Gaudêncio porque ele é que queria ir sentado. Com o beliscão maternal se conformou e ficou em pé diante do pai. O bonde partiu. Polidoro quis passar para a ponta para pagar as passagens. Mas olhou para o Quim ainda com as pestanas gotejando. Desistiu da idéia. E foi Seu Dagoberto mesmo quem pagou.

O bicho saiu de baixo do banco. Ficou uns segundos parado na beirada entre as pernas do sujeito que ia lendo ao lado de Seu Dagoberto. Quim viu o bicho mas ficou quieto. E o bicho subiu no joelho esquerdo do homem (o homem lendo, Quim espiando). Foi subindo pela perna. Alcançou a barriga. Foi subindo. Tinha um modo de andar engraçado. Foi subindo. Alcançou a manga do paletó. Parou. Levantou as asas. Não voou. Continuou a escalada. Quim deu uma cotovelada no estômago do pai e mostrou o bicho com os olhos. Seu Dagoberto afastou-se um pouquinho, bateu no braço de Silvana, mostrou o bicho com a cabeça. Silvana esticou o pescoço (o bicho já estava no ombro), achou graça, falou baixinho no ouvido do Gaudêncio. Gaudêncio deixou o colo da Nharinha, ficou em pé, custou a encontrar o bicho, encontrou, puxou o Polidoro pelo braço, apontou com o dedo. Polidoro viu o bicho bem em cima da gola do paletó do homem, não quis mais saber de ficar sentado. Então Nharinha fez também um esforço e deu com o bicho. Virou o rosto de outro lado e soltou umas risadinhas nervosas.

– Que é que você acha? Aviso?

– O homem é capaz de ficar zangado.

– É mesmo. Nem fale.

Na curva da gola o bicho parou outra vez. Nesse instante o Gaudêncio deu um berro:

– É aeroplano!

Todos abaixaram a cabeça para espiar o céu. O ronco passou. Então o Quim falou assustado:

– Desapareceu!

Olharam: tinha desaparecido.

– Entrou no homem, papai!

Seu Dagoberto assombrado examinou a cara do homem. Será? Impossível. Começou a ficar inquieto. Fez o Quim virar de todos os lados. Não. No Quim não estava.

– Olhe em mim.

Não. Nele também não estava.

– Veja no Juju, Silvana.

Não. No Juju também não estava. Ué. Mas será possível?

O Quim avisou:

– Apareceu!

Olharam: apareceu no colarinho do homem. Passeou pelo colarinho. Parou. Êta. Êta. Passou para o pescoço. O homem deu um tapa ligeiro. Todos sorriram.

Tinham chegado no Parque Antártica.

Polidoro não queria descer do balanço. Não queria por bem. Desceu por mal. Em torno da roda-gigante os águias estacionavam com os olhos nas pernas das moças que giravam. Famílias de roupa branca esmagavam o pedregulho dos caminhos. Nharinha de vez em quando dava uma grelada para O moço de lenço sulfurino com um cravo na mão. Juju começou a implicar com as valsas vienenses da banda. A galinha do caramanchão ficou com os duzentos réis e não pôs ovo nenhum. Foram tomar gasosa no restaurante. Seu Dagoberto foi roubado no troco. O calor punha lenços no pescoço de portugueses com o elástico da palheta preso na lapela florida. Quim perdeu-se no mundão que vinha do campo de futebol. O moço de lenço sulfurino encostou-se em Nharinha. Ela ficou escarlate que nem o cravo que escondeu dentro da bolsa.

No bonde Silvana disfarçadamente livrou os pés dos sapatos de pelica preta envernizada com tiras verdes atravessadas.

Depois do jantar (mal servido) Seu Dagoberto saiu do Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) palitando os dentes caninos. Foi espairecer na Estação da Luz. Assistiu à chegada de dois trens de Santos. Acendeu um goiano. Atravessou a Rua José Paulino. Parou na esquina da Avenida Tiradentes. Sapeando o movimento. Mulatas riam com os soldados de folga. Dois homens bem trajados e simpáticos lhe pediram fogo. Dagoberto deu.

– Muito gratos pela sua gentileza.

– Não tem de quê.

– Está fazendo um calorzinho danado, não acha?

– É. Mas esta noite chove na certa.

Seu Dagoberto ficou sabendo que os homens eram de Itapira. Tinham chegado naquele mesmo dia as onze horas. E deviam voltar logo amanhã cedo e sem falta. Uma pena que ficassem tão pouco tempo. Seu Dagoberto com muito gosto lhes mostraria as belezas da cidade. Conversando desceram lentamente a Avenida Tiradentes. Na esquina da Cadeia Pública Seu Dagoberto trocou três camarões de duzentos e mais um relógio com uma corrente e três medalhinhas (duas de ouro) por oito contos de réis. E voltou para o Grande Hotel e Pensão do Sol (Familiar) que nem uma bala.

(Napoleão da Natividade filho tinha o hábito feio de coçar a barriga quando se afundava na rede de pijama e chinelo sem meia. A mulher – a segunda, que a primeira morrera de uma moléstia no fígado – preferia a cadeira de balanço.

– Você me vê os óculos por favor?

O melhor deste jornal são os títulos. – A gente sabe logo do que se trata. Foi BUSCAR LÃ…, QUEM COM FERRO FERE…, AMOR E MORTE. Aquela miséria de sempre. Aquela miséria de sempre. Aquela miséria de… MAIS UM! Mas então os trouxas não acabam mesmo.

Depois que ficou ciente da abertura do inquérito a mulher concordou:

– Parece impossível!

– Nada é impossível.

A dissertação sobre a bobice humana foi feita com os óculos na testa.)

A indignação de Silvana não conheceu limites.

– Seu bocó! Devia ter contado o dinheiro na frente dos homens! Seu besta!

A filharada não dava um pio. Nem Seu Dagoberto.

– Não merece a mulher que tem! Seu fivela!

Seu Dagoberto custou mas foi perdendo a paciência e tirando o paletó.

– Seu burro! Seu caipira!

Aí Seu Dagoberto não agüentou mais. Avançou para a mulher mordendo Os bigodes. Nharinha aos gritos se pôs entre os dois de braços abertos. Os meninos correram para o vão da janela.

– Venha, seu pindoba! Venha que eu não tenho medo!

O pindoba se conteve para evitar escândalos. Vestiu o paletó. Fincou o chapéu na testa. Roncou feio. Só vendo o olhar. Bateu a porta com toda a força. Tornou a abrir a porta. Pegou o bengalão que estava em cima da cama. Saiu sem fechar a porta.

Tarde da noite voltou contente da vida. Contando uma história muito complicada de mulheres e de um tal Claudionor que sustentava a família. Queria beijar Silvana no cangote cheiroso. Chamando-a de pedaço. E gritava:

– Também não quero saber mais dela!

Silvana deu um tranco nele. Ele foi e caiu atravessado na cama. Caiu e ferrou no sono.

Quando chegou o dinheiro para a conta do hotel e a viagem de volta Silvana pegou numa nota de cinco mil-réis, entregou por muito favor ao marido e escondeu o resto.

Depois chamou a Nharinha para ajudar a aprontar as malas. À voz de aprontar as malas Nharinha rompeu numa choradeira incrível. Já estava se acostumando com a vida da cidade. Frisara os cabelos. Arranjara um andarzinho todo rebolado. Vivia passando a língua nos lábios. Comprara o último retrato de Buck Jones. E alimentava uma paixão exaltada pelo turco da Rua Brigadeiro Tobías n.0 24-D sobrado. Só porque o turco usava costeletas. Um perigo em suma.

Mas a mãe pôs as mãos nas cadeiras e fungou forte. Quando Silvana punha as mãos nas cadeiras e fungava forte a família já ficava avisada: era inútil qualquer resistência. Inútil e perigosa.

Nharinha perdeu logo a vontade de chorar. Em dois tempos as malas de papel-couro e o baú cor-de-rosa com passarinhos voando de raminho no bico ficaram prontos.

A família desceu. Silvana pagou a conta. A família já estava na porta da rua quando Seu Dagoberto largou o baú no chão e deu de procurar qualquer cousa apalpando-se todo. A família escancarou os olhos para ele interrogativamente. Seu Dagoberto cada vez mais aflito acelerava as apalpadelas. De repente abriu a boca e disparou pela escada acima. Voltou todo pimpão com um bolo de recortes de jornal e bilhetes de loteria na mão. Silvana compreendeu. Ficou verde de raiva. Ia se dar qualquer desgraça. Porém ficou quieta. Fungou só um instantinho. Depois intimou:

– Vamos!

Aí o proprietário do hotel perguntou limpando as unhas para onde seguia a família. Aí Silvana não se conteve desviou o nariz da mão do Juju e respondeu bem alto para toda a gente ouvir:

– Pro inferno, Seu Roque!

Aí Seu Roque fez que sim com a cabeça.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 30 de julho de 2021

UMA CARTA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UMA CARTA

Machado de Assis

 

 

 

Celestina acabando de almoçar, voltou à alcova, e, indo casualmente à cesta de costura, achou uma cartinha de papel bordado. Não tinha sobrescrito, mas estava aberta. Celestina, depois de hesitar um pouco, desdobrou-a e leu:

 

Meu anjo adorado,

 

Perdoe-me esta audácia, mas não posso mais resistir ao desejo de lhe abrir o meu coração e dizer que a adoro com todas as forças da minha alma. Mais de uma vez tenho passado pela rua, sem que a senhora me dê a esmola de um olhar, e há muito tempo que suspiro por lhe dizer isto e pedir-lhe que me faça o ente mais feliz do mundo. Se não me ama, como eu a amo, creia que morrerei de desgosto. Os seus olhos lindos como as estrelas do céu são para mim as luzes da existência, e os seus lábios, semelhantes às pétalas da rosa, têm toda a frescura de um jardim de Deus...

 

Não copio o resto; era longa a carta, e no mesmo estilo composto de trivialidade e imaginação. Apesar de longa, Celestina leu-a duas vezes, e, em alguns lugares, três e quatro; naturalmente eram os que falavam da beleza dela, dos olhos, dos lábios, dos cabelos, das mãos. Estas pegavam trêmulas na carta, tão comovida ficara a dona, tão assombrada de um tal achado. Quem poria ali a carta? Provavelmente, a escrava — a única escrava da casa, peitada pelo autor. E quem seria este? Celestina não tinha a menor lembrança que pudesse ligar ao autor da carta; mas, como ele dizia que ela mesma não lhe dera a esmola de um olhar, estava explicado o caso, e só restava agora reparar bem nos homens da rua.

 

Celestina foi ao espelho, e lançou um olhar complacente sobre si. Não era bonita, mas a carta deu-lhe uma alta idéia de suas graças. Contava então trinta e nove anos, parece mesmo que mais um; mas este ponto não está averiguado de modo que possa entrar na história. Era simples opinião da mãe; esta senhora, porém, contando sessenta e quatro anos, podia confundir as coisas. Em todo o caso, qualquer que fosse o exato número, a própria dona dos anos não os discutiu, e limitava-se a parecer bem. Não parecia mal, nem fazia má figura, todas as tardes, à janela.

 

Esquecia-me dizer que isto acontecia aqui mesmo, no Rio de Janeiro, entre 1860 e 1862. Celestina era filha de um antigo comerciante, que morreu pobre, tendo apenas feito para a família um pequeno pecúlio. Era dele que esta vivia e mais de algumas costuras para fora.

 

A idéia de casar entrou na cabeça de Celestina, desde os treze anos, e ali se conservou até os trinta e sete, pode ser mesmo que até os trinta e oito; mas ultimamente ela a perdera de todo, e só se enfeitava para não desafiar o destino. Solteirona e pobre, não contava que ninguém se enamorasse dela. Era boa e laboriosa, e isto podia compensar o resto; mas ainda assim não lhe dava esperanças.

 

Foi neste ponto da vida que Celestina deu com a carta na cesta de costura. Compreende-se o alvoroço do pobre coração. Afinal, recebia o prêmio da demora; aí aparecia um namorado, por seu próprio pé, sem ela dar por ele, e dispunha-se a fazê-la feliz.

 

Já vimos que ela atribuía à escrava da casa a intervenção naquele negócio, e o primeiro impulso foi ir ter com ela; mas recuou. Era difícil tratar diretamente um tal assunto, não estando nos seus quinze anos estouvados que tudo explicassem; era arriscar a autoridade. Mas, por outro lado, se se calasse, arriscava o namorado, que, não tendo resposta, poderia desesperar e ir embora. Celestina vacilou muito no que faria, até que resolveu consultar a irmã. A irmã, Joaninha, tinha vinte anos, e era pessoa de muita gravidade; podia dar-lhe um conselho.

 

— O quê? Não ouço.

 

— Queria consultar você sobre uma coisa.

 

— Que coisa? Você hoje está assim esquisita, tão alegre, e tão acanhada. Que é que você quer, Titina? Diga. Já adivinhei.

 

— O que é?

 

— É sobre aquele vestido da baronesa.

 

Celestina fez um gesto de desgosto, e ia negar, mas não conseguindo abrir-se com a irmã, preferiu mentir, e foi buscar o vestido. Na verdade, podia ser mãe dela, viu-a nascer, ajudou-a a criar. Nunca entre ambas trocaram nenhuma confidência de namoro; e não é que ambas os não tivessem tido. Mas as relações eram de respeito e discrição.

 

Não sabendo como sair da dificuldade, Celestina adotou um plano intermédio; procuraria primeiro descobrir a pessoa que lhe mandara a carta, e se a merecesse, como era de supor, à vista da linguagem da carta, abrir-se-ia com a escrava, e depois com a irmã. Nessa mesma tarde, ela foi mais cedo para a janela, e mais enfeitada, esteve menos distraída com outras coisas. Não tirou os olhos da rua, abaixo e acima; não apontava rapaz ao longe, que não o seguisse com curiosidade inquieta e esperançosa. Joaninha, ao pé dela, notava que a irmã não estava como de costume; e pode ser mesmo que lhe atribuísse algum princípio de namoro. A mãe é que não via nada. Sentada na outra janela (era uma casa assobradada), ora cochilava, ora perguntava às filhas quem era que ia passando.

 

— Celestina, aquele não é o Dr. Norberto?

 

— Joaninha, parece que lá vai a família do Alvarenga.

 

Perto das ave-marias, viu Celestina surdir da esquina um rapaz, que, tão depressa entrara na rua, pôs os olhos na casa.

 

Passou pelo lado oposto, lento, evidentemente abalado, olhando ora para o chão, ora para a janela. Foi até o fim da rua, atravessou-a, e voltou pelo lado da casa. Já então era um pouco escuro, não tanto, porém, que encobrisse a gentileza do rapaz, que era positivamente um rapagão.

 

Celestina ficou realmente fora de si. A irmã não viu o que era, mas concluiu que alguém teria passado na rua, que enchera a alma de Celestina de uma vida desusada. Com efeito, durante a noite, esteve ela como nunca, alegre, e ao mesmo tempo pensativa, esquecendo-se de si e dos outros. Quase que não quis tomar chá, e só a muito custo se recolheu para dormir.

 

“Titina viu passarinho verde” pensou Joaninha ao deitar-se.

 

Celestina, recolhida ao quarto, meteu-se na cama, e releu a carta do rapaz, lentamente, saboreando as palavras de amor, e os elogios à beleza dela. Interrompia a leitura, para pensar nele, vê-lo surdir de uma esquina, ir pela rua fora do lado oposto, e tornar depois do lado dela. Via-lhe os olhos, o andar, a figura... Depois tornava à carta, e beijava-a muitas vezes, e numa delas, sentiu a pálpebra molhada. Não se vexou da lágrima; era das que se confessam. Quando cansou de ler a carta, meteu-a debaixo do travesseiro, e dispôs-se a dormir.

 

Mas qual dormir! Fechava os olhos, mas o sono andava pelas casas dos indiferentes, não queria nada com uma pessoa em quem as esperanças mortas reviviam com o vigor da adolescência. Celestina recorria a todos os estratagemas para dormir; mas o rapaz da carta fincava-lhe os olhos ardentes, e ia de um lado para outro; não tinha mais que contemplá-lo. Não era ele o namorado, o apaixonado, o noivo próximo? Que ela planeara tudo: no dia seguinte escreveria uma resposta ao rapaz, e dá-la-ia à escrava, para que a entregasse. Estava disposta a não perder tempo.

 

Era meia-noite, quando Celestina conseguiu adormecer; e antes o fizesse há mais tempo, porque sonhou ainda com o rapaz, e não perdeu nada.

 

Sonhou que ele tornara a passar, recebera a resposta e escrevera de novo. No fim de alguns dias, pediu-lhe autorização para solicitar a sua mão. Viu-se logo casada. Foi uma festa brilhante, concorrida, à qual todas as pessoas amigas foram, cerca de dezoito carros. Nada mais lindo que o vestido dela, de cetim branco, um ramalhete de flores de laranjeira, ao peito, algumas outras nos apanhados da saia. A grinalda era lindíssima. Toda a vizinhança nas janelas. Na rua gente, na igreja muita gente, e ela entrando por meio de alas, ao lado da madrinha... Quem seria a madrinha? D. Mariana Pinto ou a baronesa? A baronesa... A mãe talvez quisesse D. Mariana, mas a baronesa... Em sonhos mesmo discutiu isso, interrompendo a entrada triunfal no templo.

 

O padrinho do noivo era o próprio Ministro da Justiça, que ia ao lado dele fardado, condecorado, brilhante, e que, no fim da cerimônia, veio cumprimentá-la com grande atenção. Celestina estava cheia de si, a mãe também, a irmã também, e ela prometia a esta um casamento igual.

 

— Daqui a três meses, você está também casada, dizia-lhe ao receber dela os parabéns.

 

Muitas rosas desfolhadas sobre ela. Eram caídas da tribuna. O noivo deu-lhe o braço, e ela saiu como se fosse entrando no céu. Os curiosos eram agora em maior número. Gente e mais gente. Chegam os carros; lacaios aprumados abrem as portinholas. Lá vai depois o cortejo devagar e brilhante, todos aqueles cavalos brancos pisando o chão com uma gravidade fidalga. E ela, ela, tão feliz! ao lado do noivo!

 

A fada branca dos sonhos continuou assim a fazer surdir do nada uma porção de coisas belas. Celestina descobriu, no fim de uma semana de casada, que o marido era príncipe. Celestina princesa! A prova é que aqui está um palácio, e todas as portas, louça, cadeiras, coches, tudo tem armas principescas, no escudo, uma águia ou leão, um animal qualquer, mas soberano.

 

— Vossa Alteza se quiser...

 

— Rogo a Vossa Alteza.

 

— Perdão, Alteza...

 

E tudo assim, até quase de manhã. Antes do sol acordou, esteve alguns minutos esperta, mas tornou a dormir para continuar o sonho, que então já não era de príncipe. O marido era um grande poeta, viviam ao pé de um lago, ao pôr-do-sol, cisnes nadando, um princípio da lua, e a felicidade entre eles. Foi esta a última fase do delírio.

 

Celestina acordou tarde; ergueu-se ainda com o sabor das coisas imaginadas, e o pensamento no namorado, noivo próximo. Embebida na imagem dele, foi às suas abluções matinais. A escrava entrou-lhe na alcova.

 

— Nhã Titina...

 

— Que é?

 

A preta hesitou.

 

— Fala, fala.

 

— Nhã Titina achou na sua cesta uma carta?

 

— Achei.

 

— Vosmecê me perdoe, mas a carta era para nhã Joaninha...

 

Celestina empalideceu. Quando a preta a deixou só, Celestina deixou cair uma lágrima — e foi a última que o amor lhe arrancou.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 29 de julho de 2021

O PECADO (CONTO CO CARIOCA OLAVO BILAC)

O PECADO

Olavo Bilac

 

 

A Anacleta ia caminho da igreja, muito atrapalhada, pensando no modo porque havia de dizer ao confessor os seus pecados... Teria a coragem de tudo? E a pobre Anacleta tremia só com a idéia de contar a menor daquelas cousas ao severo padre Roxo, um padre terrível, cujo olhar de coruja punha um frio na alma da gente. E a desventurada ia quase chorando de desespero, quando, já perto da igreja, encontrou a comadre Rita.

Abraços, beijos... E lá ficam as duas, no meio da praça, ao sol, conversando.

— Venho da igreja, comadre Anacleta, venho da igreja... Lá me confessei com o padre Roxo, que é um santo homem...

— Ai! comadre! — gemeu a Anacleta — também para lá vou... e se soubesse com que medo! Nem sei se terei a ousadia de dizer os meus pecados... Aquele padre é tão rigoroso...

— Histórias, comadre, histórias! — exclamou a Rita — vá com confiança e verá que o padre Roxo não é tão mal como se diz...

— Mas é que meus pecados são grandes...

— E os meus então, filha? Olhe: disse-os todos e o Sr. padre Roxo me ouviu com toda a indulgência...

— Comadre Rita, todo o meu medo é da penitência que ele me há de impor, comadre Rita...

— Qual penitência, comadre?! — diz a outra, rindo — as penitências que ele impõe são tão brandas!... Quer saber? contei-lhe que ontem o José Ferrador me deu um beijo na boca... um grande pecado, não é verdade? Pois sabe a penitência que o padre Roxo me deu?... mandou-me ficar com a boca de molho na pia de água benta durante cinco minutos...

— Ai! que estou perdida, senhora comadre, ai! que estou perdida! — desata a gritar a Anacleta, rompendo num pranto convulsivo — Ai! que estou perdida!

A comadre Rita, espantada, tenta em vão sossegar a outra:

— Vamos, comadre! que tem? então que é isso? sossegue! tenha modos! que é isso que tem?

E a Anacleta, chorando sempre:

— Ai, comadre! é que, se ele me dá a mesma penitência que deu á senhora, — não sei o que hei de fazer!

— Porque, filha? porque?

— Porque... porque... afinal de contas... eu não sei como é que... hei de tomar um banho de assento na pia!...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 28 de julho de 2021

HISTÓRIAS DE GENTE ALEGRE (CONTO CO CARIOCA JOÃO DO RIO)

HISTÓRIAS DE GENTE ALEGRE

João do Rio

(Grafia original)

 

- O terraço era admirável. A casa toda parecia mesmo ali pousada à beira dos horizontes sem fim como para admirá-los, e a luz dos pavimentos térreos, a iluminação dos salões de cima contrastava violenta com o macio esmaecer da tarde. Estávamos no Sman-Club, estávamos ambos no terraço do Smart-Club, esse maravilhoso terraço de vila do Estoril, dominando um lindo sítio da praia do Russel - as avenidas largas, o mar, a linha ardente do cais e o céu que tinha luminosidades polidas de faiança persa. Eram sete horas. Com o ardente verão ninguém tinha vontade de jantar. Tomava-se um aperitivo qualquer, embebendo os olhos na beleza confusa das cores do ocaso e no banho viride de todo aquele verde em redor. As salas lá em cima estavam vazias; a grande mesa de bacará, onde algumas pequenas e alguns pequenos derretiam notas do banco - a descansar. O soalho envernizado brilhava. Os divãs modorravam em fila encostados às paredes - os divãs que nesses clubes não têm muito trabalho. Os criados, vindos todos de Buenos Aires e de S. Paulo, criados italianos, marca registrada como a melhor em Londres, no Cairo, em New York, empertigavam-se. E a viração era tão macia, um cheiro de salsugem polvilhava a atmosfera tão levemente, que a vontade era de ficar ali muito tempo, sem fazer nada. Mas a noite já estendia o seu negro brocado picado de estrelas e no plein-air do terraço começavam a chegar os smart-diners. Que curioso aspecto! Havia franceses condecorados, de gestos vulgares, ingleses de smoking e parasita à lapela, americanos de casaca e também de brim branco com sapatos de jogar o foot-ball e o lawn-tennis, os elegantes cariocas com risos artificiais, risos postiços, gestos a contragosto do corpo, todos bonecos vítimas da diversão chantecler, os noceurs habituais, e os michés ricos ou jogadores, cuja primeira refeição deve ser o jantar, e que apareciam de olheiras, a voz pastosa, pensando no bac chemin de fer; no 9 de cara e nos pedidos do último béguin. O prédio, mais uma "vila' da bacia do Mediterrâneo, ardia na noite serena, parecia a miragem dos astros do alto; as toalhas brancas, os cristais, os baldes de cristofle tinham reflexos. Por sobre as mesas corria como uma farândola fantasista de pequenas velas com capuchons coloridos, e vinha de cima uma valsa lânguida, uma dessas valsas de lento inebriar, que adejam vôos de mariposas e têm fermatas que parecem espasmos. No meio daquela roda de homens, que se cumprimentavam rápidos, dizendo apenas as últimas sílabas das palavras: - B'jour; Plo... deus! goo, iam chegando as cocottes, as modernas Aspásias da insignificância. Algumas vinham a arrastar vestidos de cinco mil francos; outras tinham atitudes simplistas dos primitivos italianos. Havia na sombra do terraço, um desfilar de figuras que lembravam Rossetti e Helleu, Mirande e Hermann-Paul, Capielo e Sem, Julião e também Abel Faivre, porque havia cocottes gordas, muito gordas e pintadas, ajaezadas de jóias, suando e praguejando. Falavam todas as línguas estrangeiras - o espanhol, o francês, o italiano, até o alemão com o predomínio do parigot, do argot, da langue verte. Só se falava mesmo calão de boulevard. Fora, à entrada, paravam as lanternas carbunculantes dos autos, havia fonfons roucos, arrancos bruscos de máquinas H.P 6o. Aquele ambiente de internacionalismo à parisiense cheio do rumor de risos, de gluglus de garrafas, de piadas, era uma excitação para a gente chique. O barão André de Belfort, elegantíssimo na sua casaca impecável, convidara-me para um jantar a dois em que se conversasse de arte antiga - porque ele tinha estudos pessoais sobre a noção da linha na Grécia de Péricles. Evidentemente, antes de terminar o jantar teríamos a mesa guarnecida por alguma daquelas figurinhas escapas de Tanagra ou qualquer dos gordos monstros circulantes...

De súbito, porém na alegria do terraço ouvi por trás de mim, uma voz de mulher dizer:

- Pois então não sabes que a Elsa morreu hoje de madrugada?

Não me voltei. A mulher conversava noutra mesa. Mas senti um pasmo assustado. Elsa! Seria a Elsa d'Aragon, uma carnação maravilhosa de dezoito anos, lançada havia apenas um mês por um manager de music hall, cuja especialidade sexual era desvirginar meninas púberes? Seria ela com os seus olhos verdes, a pele veludosa de rosa-chá e aquela esplêndida cabeleira negra de azeviche? E morrer em plena apoteose, cheia de jóias e de apaixonados! Indaguei do meu conviva:

- Morreu a Elsa d'Aragon?

O barão Belfort encomendava enfim o cardápio. Acabou tranqüilamente agrave operação, descansou o monóculo em cima da mesa.

- Exatamente. Parece que a apreciavas? Pobre rapariga! Foi com efeito ela. Morreu esta madrugada.

- De repente?

- Com certeza. Devia ter sido uma linda morte. Beleza horrível. Não se fala noutra coisa hoje nas pensões de artistas, em todos os conventilhos elegantes patronados pelas velhas cocottes ricas, nas rodas dos jogadores. A Elsa era muito nature, com a fobia do artificio, mas soube morrer furiosamente.

- Como foi?

Neste momento chegara a "bisque" e o balde com a Moet, brut imperiale, que o velho dândi bebe sempre desde o começo do jantar.

O barão atacou a "bisque", deu não sei que ordem ao maitre-d' hôtel, e murmurou:

- É uma história interessante. Você decerto ainda não quis fazer a psicologia da mulher alegre atirando-se a todos os excessos por enervamento de não ter o que fazer? Quase todas essas criaturas, altamente cotadas ou apenas da calçada, são, como direi? as excedidas das preocupações. Estão sempre enervadas, paroxismadas. O meio é atrozmente artificial, a gargalhada, o champagne, a pintura encobrem uma lamentável pobreza de sentimentos e de sensações. Ao demais, a vida tem um regulamento geral de excessos, e elas fatalmente pela lei, têm que fazer pagar caro e arruinar os idiotas, têm de amar um rapazola miserável que lhes coma a chelpa e as bata, têm que embriagar-se e discutir os homens, os negócios das outras, tudo mais ou menos exorbitando. Uma paixão de cocotte é sempre caricatural, é sempre para além do natural, do verdadeiro, e a sua pobre vida, tenha ela centenas de contos ou viva sem um real pelas bodegas reles, é sempre uma hipótese falsificada de vida, uma espécie de fjord num copo d'água, à luz elétrica. Todas amam de modo excepcional, jogam excessivamente, embriagam-se em vez de beber, põem dinheiro pela janela afora em vez de gastar, quando choram, não choram, uivam, ganem, cascateiam lágrimas. Se têm filhos, quando os vão ver fazem tais excessos que deixam de ser mães, mesmo porque não o são. Duas horas depois os pequenos estão esquecidos. Se amam, praticam tais loucuras que deixam de ser amantes, mesmo porque não o são. Elas têm várias paixões na vida. Cinco anos de profissão acabam com a alma das galantes criaturinhas. Não há mais nada de verdadeiro. Uma interessante pequena pode se resumir: nome falso, crispação de nervos igual à exploração dos "gigolôs" e das proprietárias, mais dinheiro apanhado e beijos dados. São fantoches da loucura movidos por quatro cordelins da miséria humana.

- A Elsa, então?

- A Elsa foi atirada subitamente numa pensão do Catete. Sabes o que é a vida em casas de tal espécie. Elas acordam para o almoço, em que aparecem vários homens ricos. O almoço é muito em conta, os vinhos são caríssimos.

A obrigação é fazer vir vinhos. Desde manhã elas bebem champagne e licores complicados. Nesses almoços discute-se a generosidade, a tolice, ou a voracidade dos machos. A tarde é dada a um ou a dois. Às cinco toilette e o passeio obrigatório. À noite, o jantar em que é preciso fazer muito barulho, dançar entre cada serviço ou mesmo durante, dizer tolices. Depois o passeio aos music-halls, com os quais têm contrato as proprietárias, e a obrigação de ir a um certo club aquecer o jogo. Cada uma delas tem o seu cachet por esse serviço e são multadas quando vão a outro - que, como é de prever, paga a multa. O resto é ainda o homem até dormir. Nesse fantochismo lantejoulado há vários gêneros: o doidivana, o sério, o reservado, o nature, o romântico, e para encher o vazio, os vícios bizarros surgem. Elas ou tomam ópio, ou cheiram éter, ou se picam com morfina, e ainda assim, nos paraísos artificiais são muito mais para rir, coitadas! mais malucas no manicômio obrigatório da luxúria. A Elsa era do gênero nature. Ancas largas, pele sensível, animal sem vícios. Tentou os petimetres, os banqueiros fatigados, os rapazes calvos e, com oito dias estava com os nervos esgarçados, estava excedida. Mesmo porque, desde a primeira hora olhava-a com seu olhar de mona a Elisa, a interessante Elisa.

- Ah!

- Elisa é um tipo talvez normal nesse ambiente. Tem os cabelos cortados, usa eternamente um gorro de lontra. Nunca a vi com uma jóia e sem o seu tailleur cor-de-castanha. É feia, não deve agradar aos homens, mas presta-se a todos os pequenos serviços dessas damas. Escreve cartas, arranja entrevistas, tem conhecimentos, e dizem-na com todos os vícios, desde o abuso do éter até o unissexualismo. Ora, era Elisa com os seus dois olhos mortos e velados que olhava Elsa, e Elsa sentia uma extraordinária repugnância, um nojo em que havia medo ao mais simples contato. Elisa sorria, a Elisa que está sempre nesses lugares, sem colete com o seu corpo de andrógino morto. E era em toda parte aquele mesmo olhar acompanhando Elsa, pregando-se a todos os seus gestos, lambendo cada atitude da criatura. Uma noite, as duas Lacroix Ducerny, as que vestem sempre iguais e fazem fortuna em comum, asseguraram-me que Elisa já não servia para nada, perdida, louca de paixão; e, com grande pasmo meu ao entrar num club ultra-infame, eu vi a Elsa com um conhecido banqueiro e, muito naturalmente, Elisa ao lado. Era a aproximação...

- Safa!

- Meu caro, nada de repugnâncias. Prove este faisão. Está magnífico. Ora, ontem, no Casino, como a pobre Elsa estava totalmente fora dos nervos e com um vestido verdadeiramente admirável, tive prazer em ir apertar-lhe a mão. - "Então, como vai com esta vida?" - "Como vê, muito bem." - Mas está nervosa." - "Há de ser de falta de hábito. Acabo por acostumar." - 'Com um tão belo físico..." - "Não seja mau, deixe os cumprimentos." E de súbito: - "Diga-me, barão, não há um meio da gente se ver livre disto? Não posso, não tenho mais liberdade, já não sou eu. Hoje, por exemplo, tinha uma imensa vontade de chorar." - "Chore, é uma questão de nervos. Ficará decerto aliviada." - "Mas não é isso, não é isso, homem!" - "Se a menina continua a gritar, participo-lhe que vou embora." - "Não, meu amigo, perdoe. E que eu estou tão nervosa! tanto! tanto... Queria que me desse um conselho." - "Para quê?" - "Para aliviar-me."

- "É difícil. Você sofre de um mal comum, a surmenagem do artifício. Eu podia dizer-lhe: recolha-se a um convento. Mas pareceria brincadeira e talvez viesse a morrer mística, a conversar com os anjos, como Swdenborg. Conheci algumas que acabaram assim. Podia também, se fosse um idiota, aconselhar a vida honesta. Mas isso seria impossível porque o pesar de ter saído desta em que o desperdício é a norma, a saudade e as lembranças deixá-la-iam amargurada. Depois não tem recursos e teria sempre que pôr em circulação o seu lindo capital."

- "Barão, por quem é, fale-me sinceramente."

- "Então, minha filha, aconselho uma paixão ou um excesso, um belo rapaz ou uma extravagância." - "Nesta roda não há belos rapazes." - "De acordo, há quando muito velhos recém-nascidos. Mas é recorrer à multidão, passar uma noite percorrendo os bairros pobres, experimentar. Ou então, minha cara, um grande excesso: champagne, éter ou morfina..." Voltei-me para a sala. Num camarote fronteiro a Elisa olhava com os seus dois olhos de morta. "E se não a repugna muito uma grande mestra dos paraísos artificiais, a Elisa." - "Não fale alto, que ela percebe." - "Então já a sabia lá?"

"Corri-a ontem do meu quarto. É um demônio." - "Mas você precisa de um demônio."

- "O que ela faz..." - "Já sei, toda a gente faz. Mas naturalmente ela é excepcional." - "Barão, vá embora." - "Adeus, minha querida." Quando dei a volta para falar a Elisa, já esta deixara vazio o camarote.

- E então, como morreu a linda criatura?

- Aceitando o meu conselho. A sua morte pertence ao mistério do quarto, mas devia ser horrível. Elsa partiu do music-hall diretamente para casa, pretextando ao banqueiro que lhe ia pôr um pequeno palácio, a forte dor de cabeça - a clássica migraine das cocottes enfaradas ou excedidas. E apareceu na ceia da pensão como uma louca, a mandar abrir champagne por conta própria. Quando por volta de uma hora apareceu a figura de larva da Elisa, deu um pulo da cadeira, agarrou-lhe o pulso: "Vem; tu hoje és minha!" Houve uma grande gargalhada. Essas damas e mais esses cavalheiros tinham uma grande complacência com a Elisa, e aquela vitória excitava-os. Elisa molemente sentou-se ao lado da Elsa, que bebia mais champagne, sentia afrontações e torcia os dedos da apaixonada por baixo da mesa. Era o desespero. Mimi Gonzaga assegurou-me que ela recebera uma carta da mãe logo pela manhã. No fim, Elsa, pálida e ardente, dizia: "Viens, mon chéri, que e te baise!" e mordia raivosamente o pescoço da Elisa. Via-se a repugnância, raiva com que ela fazia a cena de Lesbos - pobre rapariga sem inversões e estetismos a Safo... A ceia acabou em espetáculo, e acabaria com todos os espectadores, se algumas mulheres com ciúmes dos seus senhores - ah! como elas são idiotas! - não os tivessem levado. Elsa às duas e meia fez erguer-se a Elisa, calada e misteriosamente fria. "Vão tomar morfina?" interrogou um dos assistentes, "cuidado, hem?" Elsa deu de ombros, sorriu, saiu arrastando a outra. E a desaparição foi teatral ainda. Os olhos verdes da Elisa bistrados, a sua cabeleira desnastra, agarrando com um desespero de bacante a pastosidade oleosa e aloirada da miserável que a queria.

- Que horror!

- A coitadinha aturdia-se. E o processo habitual. Para mostrar a sua livre vontade caía na extravagância, agarrava o tipo que a repugnava, para mergulhar inteiramente no horror. Estive quase a acreditar que tivesse recebido alguma lembrança dos parentes, e imaginei um instante a cena sinistramente atroz do quarto enfim, como uma larva diabólica, o polvo loiro da roda iria arrancar um pouco de vida àquela linda criatura ardente, ainda com uns restos d'alma de mulher... Nunca porém pensei no fim súbito.

- Pelas cinco horas da manhã, a pensão acordava a uns gemidos roucos, que vinham do quarto de Elsa. Eram bem gritos estertorados de socorro. As mulheres desceram em fralda, os criados ergueram-se com o sorriso cínico habituado àquelas madrugadas agitadas de ataques e de delírios histéricos. A porta do quarto estava fechada. Bateram, bateram muito, enquanto lá dentro o som rouco rouquejava. Foi preciso arrombar a porta. E a cena fez recuar no primeiro momento a tropa do alcouce. Como luz havia apenas a lamparina numa redoma rosa. O quarto, cheio de sombra, mostrava, em cima das poltronas, as sedas e os dessous de renda da Elsa. Um frasco de éter aberto, empestava o ambiente. A Elisa, o corpo da Elisa estava de joelhos à beira da cama. Os braços pendiam como dois tentáculos cortados. Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros amarrados ao alto como um casco de ébano, Elsa d'Aragon, as pernas em compasso, a face contraída ainda sentada garrava com as duas mãos numa crispação atroz, a cabeça da Elisa. Era Elisa que rouquejava. Elsa estava bem morta, o corpo já frio. Devia ter havido luta, resistência de Elsa, triunfo da mulher loira e por fim sem fim até a morte. enquanto a outra se estorcia, apertava-a, arrancava-lhe os cabe1os, machucava-lhe o rosto - aquele horror. Elsa entrara do nada debatendo-se, vitima de um suplício diabólico, mas no último espasmo as suas mãos agarram a assassina. Quando esta afinal satisfeita quis erguer-se, sentiu-se presa pelos cabelos, tentou lutar, viu que a pobre era cadáver. E passou-se então para o monstro o momento do indizível terror, o momento em que se vê para sempre o mundo perdido porque ficou imóvel rouquejando, de joelhos, a cabeça no regaço do cadáver, que mantinha nas mãos cerradas a massa dos seus cabelos de ouro. Os dedos de resto pareciam de aço. Uma das mulheres recorreu à tesoura para despegar a cabeça de Elisa das mãos do cadáver. Quando o corpo tombou no leito com um punhado de cabeleira nas mãos, o bando estremunhado viu surgir a face de Elisa, tão decomposta, tão velha que parecia outra, como que aparvalhada.

Houve um silêncio. O criado servia frutas geladas, esplêndidas pêras de Espanha e uvas das regiões vinhateiras da Burgonha, grandes uvas negras. O barão trincou de uma pêra.

- Foi uma complicação para afastar a polícia e impedir noticias nos jornais que desmoralizariam a casa. Elisa seguiu horas depois para o hospício, babando e estertorando. A Elsa devia ter sido enterrada hoje à tarde. Estive lá a ver o cadáver. Tinha ainda nas mãos cerradas fios de cabelos loiros, como se quisesse arrancar para o túmulo a prova desesperada da sua morte horrível.

E mordeu com apetite a pêra. No salão de cima uma valsa lenta, chorada pelos violinos, enlanguecia o ar. Das mesas do terraço entre a iluminação bizantina das velas de capuchons coloridos subia o zumbido alegre feito de risos e de gorjeios de todas aquelas mulheres que o jantar alegrava.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 27 de julho de 2021

OS OLHOS QUE COMIAM CARNE (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OS OLHOS QUE COMIAM CARNE

Humberto de Campos

 

 

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 26 de julho de 2021

TIO GALILEU (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

TIO GALILEU

Dalton Trevisan

 

 

A pobre mãe deu Betinho àquele homem: agradasse ao tio Galileu, com os dias contados, podia ser o herdeiro.

Depois de partir lenha, puxar água do poço, limpar o poleiro do papagaio, o menino enxugava a louça para a cozinheira. Toda noite, Betinho subia a escada, para levar o urinol e tomar a bênção ao tio Galileu. Batia na porta: Entre, meu filho, O rapaz beijava a mão — branca, mole e úmida mãe-d’água. No domingo recebia a menor moeda, que o padrinho catava entre os nós do lenço xadrez.

Tio Galileu raramente saía e, ao tirar o paletó, exibia duas rodelas de suor na camisa. Arrastava o pé, bufando, sempre a mão no peito. Afagava o papagaio, que sacudia o pescoço e eriçava a penugem: Piolhinho… piolhinho… Subindo a escada, dedos crispados no corrimão, isolava-se no quarto. O assobio através da porta: alegria de contar o dinheiro?

Fechava a porta e conduzia a chave. Diante dele era feita a limpeza, pelo rapaz ou pela negra, nunca por Mercedes. Sentado na cama, coçando eterno pozinho na perna, vigiava. E não assobiava com alguém no quarto. Instalado na cama que, essa, ele mesmo arrumava, sem permitir que virassem o colchão de palha.

Mercedes fazia compras, perfumada e de sombrinha azul. O homem discutia com ela, que o arruinava, por sua culpa sofria de angina.

Domingo, a negra de folga, Betinho preparava o.café para Mercedes. Abria a porta, esperava acomodar-se à penumbra do quarto e, ao pousar a bandeja, sentia entre os lençóis a fragrância de maçã madura guardada na gaveta.

Uma noite Mercedes surgiu no quarto de Betinho. Já deitado, luz apagada. Sentou-se ao pé da cama, casara com tio Galileu por ser velho, a anunciar que morria de uma hora para outra. Mentira, para iludir a pessoa e servir-se dela. Não sofria do coração, nem sabia o que era coração, a esconder mais dinheiro entre a palha. Ao crepitar o colchão lá no quarto o avarento remexia no tesouro.

Um bruto, que a esquecia, dormindo em quarto separado, com medo fosse roubá-lo. Ó diabo, ela o xingou, pesteado como o papagaio louco, que a bicara ali no dedinho. O rapaz inclinou-se para beijar a unha de sangue. Mercedes ergueu-se e jurou que, se o monstro morresse, daria a Betinho o que lhe pedisse.

O rapaz não pôde dormir. Meia hora depois, saltou a janela. Agarrou no poleiro o papagaio, cabeça escondida na asa — os piolhos corriam pelo bico de ponta quebrada. Torceu o pescoço do bicho e o enterrou no quintal.

Dia seguinte o homem buscou a papagaio, a assobiar debaixo de cada árvore. Betinho sugeriu que a ave fugira. Foi colocar o vaso sob a cama e, ao tomar a bênção ao padrinho, o piolho correu de sua mão para a do velho — um dos piolhos vermelhos da peste.

Mercedes voltou ao seu quarto. Reclinada na cadeira, amarrava e desamarrava o cinto. Noite quente, queixou-se do calor, abriu o quimono: inteirinha nua.

— Vá — disse a mulher. — Vá, meu bem. Primeiro o papagaio. Agora o velho.

Betinho ficou de pé. Tremia tanto, ela o amparou até a porta:

— Vá, meu amor. A vez do velho.

Hora de pedir a bênção. Betinho subiu a escada. Aos passos no corredor o avarento, entre a bulha do colchão, perguntava quem era. Aquela noite nada falou. Betinho abriu a porta, avançou lentamente a cabeça. Tio Galileu deitara-se vestido, o saquinho de fumo espalhado no colete de veludo. O último cigarro, sem poder enrolar a palha com os dedos imóveis… Olho arregalado, a boca negra não abençoou Betinho. Fazia-se de morto, nunca mais fingiria.

Tio Galileu não gritou. Nem mesmo fechou o olho, mais fácil que o papagaio. Betinho afogou debaixo do travesseiro a boca arreganhada.

Os pés descalços de Mercedes desciam a escada. Ele ergueu o colchão, rasgou o pano, revolveu a palha: nada. Deteve-se à escuta: os passos perdidos da mulher. Avisá-la que o velho os enganara.

Era tarde, abria a janela aos gritos:

— Ladrão. Assassino! Socorro…

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 25 de julho de 2021

CONTO DE FADAS (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

CONTO DE FADAS

Raul Pompéia

(Grafia original)

 

 

Contra-sensos de atavismo. Algumas vezes nascem príncipes da poeira humilde das ruas. Não da espécie dos conspiradores felizes, que fazem da própria nulidade original arma de guerra e lutam e sobem, cobrejando através dos conhecimentos até campear triunfantes sobre o domínio dos homens, não: verdadeiros príncipes, que o são ao nascer; que têm a púrpura do manto diluída em glóbulos de altivo sangue, absolutamente a salvo da embolia mortífera que a impureza do ambiente da sua miséria poderia ocasionar; príncipes nobilíssimos, que têm a força do emblemático cetro vertebrada em espinha dorsal, inflexível às humilhações da sorte, e no olhar firme, sem jaça, que lhes clareia a testa, a majestade dos diademas.

 

Podemos encontrá-los, ao dobrar uma esquina, em andrajos, face cavada pela necessidade e pelo suor, – lágrimas de fadiga.

Pesa-lhes mais que a ninguém a fatalidade arquitetônica do edifício social, que obriga a superposição dos andares e a inferioridade do baldrame.

São oriundos desta raça os piores criminosos e os revolucionários sublimes. Entre estes extremos há, porém, o meio termo, mais comum, dos obscuros que sucumbem, bloqueados na vaidade inflexível da imaginária realeza.

“Impossível! monologava Aristo. Com os diabos! É uma solução arrebatada, que não me entusiasma. Suprimir-me! É boa! e o meu lugar no refeitório da vida? Então não há um talher para cada um nesta mesa redonda, como não há, no campo, um figo para cada pássaro. Quem me privou do figo nesta partilha? Implorar… Mas haverá pássaros mendigos? Há criancinhas que esmolam cantando; nenhuma outra miséria conheço que cante; não há lágrimas aladas; a própria chuva, porque parece pranto, cai na terra. Não será, pois, a vida como o espaço, e as aspirações como um vôo? Ah! mas reflitamos com justeza.

E o que pensarão os figos, desta vida? Que opinião a deles sobre os pássaros e sobre as aspirações? Também, pobrezinhos, têm um coração que palpita insensivelmente. Abri um figo; vereis a polpa ouriçada de pontas sangrentas… Como não? os frutos sangram! Têm todos os direitos da maternidade… Não respeitais a maternidade?… inclusive o Santíssimo direito da dor! Percebo, percebo. Há homens-figos, há homens-pássaros. Sim! mas eu, figo!… uma figa! É preciso que um degrau se estenda embaixo, para que outro degrau se estenda em cima, e a escada suba?…

Eu trabalhei o ferro. Como me compreendia o másculo metal, parente da energia inflexível de meu gênio! Não me valeu a força de operário: faltou-me a habilidade de mendigo. Trabalhei então o pano. Homens do dispêndio, mantenedores da indústria, não sabeis de que tecido se fazem as ricas vestes. Passaram fibras de coração pelos teares; tingiram-se os padrões com as cores escuras da miséria. Conheceis os rebanhos humanos encurralados nas fábricas. O carneiro dá a lã. Toda essa lã puríssima: sensibilidade, delicadeza, pudor, altivez, de que se faz a superioridade moral, se apara ao rebanho humano.

Este precioso estofo: vedes esta rosa entre folhas, labiada em pétalas esplêndidas sobre a trama da tecelagem? É a honra de uma operária, a infâmia feita tinturaria. Não quiseram que eu visse o que eu vi, nem que, vendo-o sentisse.

Passei a ser compositor. Ia encontrar de frente o pensamento, como encontrara a indústria. Maravilhou-me a infinidade dos tipos nos caixotins, palavras reduzidas a migalhas, idéias pulverizadas! Criei amor ao estanho dos tipos. O estanho vale mais que o bronze; porque se de bronze se pode fazer o glorioso escritor, de estanho se faz o livro. Ao metal do gloriado prefiro o metal da glória.

Deram-me a compor esta frase de um poeta: Filosofia do mar: os menores peixes, devoram-nos os maiores. Assim os homens.

E nesse dia não compus mais. E odiei o estanho; voltei definitivamente às velhas simpatias pelo ferro.”

E Aristo amaciava na palma da mão o ferro de um punhal, com a alma varada pela meditação cruciante, sentindo rasgar-se-lhe aos pés a aberta por onde, mais dia menos dia, nos escapamos todos para a sombra.

– Aristo, vem comigo; disse-lhe alguém ao ouvido, – uma pequenina voz de mulher, áurea e musical.

Era uma visão de risos, trajando o vestido etéreo dos sonetos de Petrarca, maneando a haste leve de uma varinha de fadas. Donde vens, desertora gentil dos contos da infância, graciosa importuna do meu desespero?

– Anda comigo, Aristo. Partamos para a independência feliz.

E partiram, Aristo e a fada, para uma região fantástica e surpreendente.

Céu vasto, de transparência inexprimível. As alvas nuvens, por uma superfluidade de asseio iam, como esponjas, esfregando, uma a uma, as safiras limpas do céu. Cobria-se a terra de pedraria, poeira cintilante de gemas; erguiam-se taludes de facetado cristal. Estranha vegetação brotava. Perfeita floresta de ourivesaria. Troncos de ouro lavrado e folhagem soldada a fogo. Através dos ramos reluzentes, a viração ia e vinha, fria do contato metálico da selva, sem que o mais débil galho tremesse, sem que a mínima flor vacilasse no hastil. Às vezes, a um sopro mais forte, soltava-se um ramúsculo com um estalido seco de agulha partida, ou uma flor desarmava-se, e as pétalas caíam, produzindo o barulho de moedinhas pelo chão. Nenhum outro rumor, nem um perfume, nem uma vida, em toda a paisagem, imóvel e rutilante.

Desaparecera a fada com o rosto em risos e o vestido celeste, que descansavam a vista da crueza das cintilações.

Brilhava no ar, terrivelmente, a claridade verde dos reflexos combinados das safiras do céu e do ouro da floresta.

Horas passadas, Aristo teve fome; exacerbou-lhe a sede a secura cáustica do ambiente. Descobriu pomos no arvoredo, inchados de maturidade, e gotas de orvalho no cálice das flores. Mas, quando quis trincar os pomos, quebravam-se-lhe os dentes contra a rija resistência da casca dourada, e bebendo orvalho, puríssimos diamantes aliás, foram-lhe as arestas da pedra, ensangüentar o esôfago.

– Maldição! maldição! Que me trouxeram ao inferno da pureza e da inflexibilidade!

A fada, aparecendo:

– Eu sou, pobre Aristo, a fada Ironia. Guiei-te à pátria inexorável do teu orgulho.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 24 de julho de 2021

PENÉLOPE (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

PENÉLOPE

João do Rio

(Grafia original)

 

 

Ora, precisamente, naquela tarde, tendo deixado o seu automóvel no canto da Avenida, a generala Alda Guimarães subia a rua do Ouvidor a pé, para a prova dos vestidos de meio luto no grande costureiro da moda.

Ia, como sempre, impenetrável. Alda Guimarães, que extraordinária mulher! Quando o marido morrera seis meses antes, ela já tinha uma legenda de honestidade heróica. O general, seu padrinho de batismo, e seu esposo, casara aos sessenta anos quando ela tinha vinte. Em vez de ciumento era paternal; em vez de fechá-la, passeava-a por todos os salões, dava recepções, queria mostrá-la como o facho da sua glória. E, apesar dos maldizentes dizerem Alda quase virgem, nunca ninguém ousou lhe atribuir sequer um flirt. Alda não amava o marido como o Romeu; mas respeitava-o. Assim, morto o marido e ela rica, bela, esplêndida, séria, - o entusiasmo em tomo da sua carne e da sua fortuna, foi grande. Rapazes das melhores famílias, aos quais nunca dera atenção, propunham-se para amantes e para maridos; maridos das suas amigas faziam questão de consolá-la. Se não se fechasse, teria a impressão de que a punham em leilão.

Alda Guimarães fechara-se no seu palacete de S. Clemente. A sociedade causava-lhe ainda mais horror sem a companhia do seu velho esposo. Certo não agia de tal modo por hipocrisia, e sim porque nunca amara, porque lhe parecia impossível o desejo e ainda mais o prazer. À sua camarada, a sra. Lúcia de Villaflor, cujos amantes eram inumeráveis, ela confessava:

- Que hei de fazer, se não sinto simpatia por ninguém?

- Mas, minha querida, uma senhora bonita e rica, sem um homem!

- Irei viajar com a Leônia, ao acabar o luto.

Estava convencida da própria invulnerabilidade. E ria, ao pensar naqueles homens todos da sua roda que tanto a irritavam com propostas indecorosamente idiotas. Ainda o melhor da coleção fora o general, bom, sem pretensões.

Era esse o estado de alma e de corpo de Alda Guimarães, ao subir a rua do Ouvidor, caminho do costureiro, quando viu num mostrador de modista uma curiosa e linda série de véus. Parou; deu-lhe vontade de comprar alguns; entrou. Como as vendedoras estivessem ocupadas, notou que vinha do fundo, servi-la, um rapaz, quase menino. Era moreno, forte, com dois grandes olhos molhados e um cabelo tão lindo que só o S. Sebastião de Guido Reni teria igual.

A sua ousadia era misturada de timidez. Ela sentiu o coração bater, um grande calor subir-lhe ao rosto. Reparou-lhe nas mãos. Eram grandes, másculas. Deviam ser quentes... Essa opinião atravessou-lhe o cérebro cristalizando a idéia de que seria bom tocá-las. Foi instantâneo. Encostou-se ao balcão para não cometer a tolice. Mas se retinha o ímpeto, olhava mais o rosto do adolescente, e via uma boca rasgada, vermelha, primaveral. Ele não se apercebia do efeito produzido. O seu esforço era para vender bem.

Veja vossência estas voilletes...

Tinha uma voz quente, igual, envolvente, jovem.

- Não, decididamente não escolho hoje. Voltarei.

Saiu. Quase a correr. Pareceu-lhe que se operara nos objetos, nas coisas, nas pessoas uma transformação. Tudo esplendia, tudo ria, tudo era suave e alegre. No costureiro escolheu mais três vestidos, depois das provas. Depois na rua lembrou-se de tomar chá e resolveu logo o contrário. Passou pela casa dos véus, olhou sem querer e não viu senão as vendedoras. Tomou o automóvel. Os seus pulsos batiam e as extremidades estavam geladas, as extremidades dos seus lindos dedos. Em casa, foi-lhe impossível jantar. Quis ler. Suspirou, incapaz de atenção. Dentro dos seus olhos, enchendo-lhe os sentidos estava a figura morena e forte, com os cabelos em cachos e as mãos que deviam ser quentes. Deitou-se. Revolveu o leito. Que solidão! Que imensa solidão! Nem a si mesma ousava confessar a impressão instantânea...

No dia seguinte, porém, como acordasse fatigada da agitação insônia, as palavras que dormiam no seu lábio ansiosas soaram a contra gosto.

Seria uma simples incidência do desejo esparso na cidade, aproveitando o momento de abandono de sua alma, o momento em que estava menos preparada a resistir? Mas resistir ao quê? O rapaz era um simples empregado de casa de modas, que não lhe dera nenhuma atenção especial. Nem podia. Nem devia. Nem ela consentiria. O desagradável é que ele não existia socialmente, não tinha um nome, um título, uma família ao menos. Nunca por conseqüência poderia pensar em fazer-lhe a corte. Loucura! Ela, generala, ela que se recusara às tentações dos leões dos salões, ela que afastara propostas de homens admirados, ela invulnerável tendo no cérebro a hipótese não de um flirt mas de qualquer coisa de mais positivo com um pobre pequeno. E ao lembrá-lo assim com pena, via-o de novo, modesto, ingênuo, jovem, tão jovem! Não era possível que outras mulheres ainda não tivessem reparado naquela juventude. Com certeza, pobre, já teria tido amantes ordinárias, dessas mulheres que estragam os rapazes e que são livres, inteiramente livres... Talvez mesmo, num estabelecimento onde entram tantas mulheres elegantes, alguma grande cocotte. Mas não! Ele não parecia contaminado. Ele era novo em folha. Coitado.

Uma languidez, entremeada de agitações, reteve-a nos aposentos até a hora do almoço. Desceu. Almoçou como quem tem medo de perder o comboio. Sentou-se ao piano. A música pareceu-lhe o muro imponderável do isolamento em que vivia. Não pôde mais. Subiu. Vestiu-se com requintes e imensas bondades para Leônia, mandou preparar o automóvel, seguiu para a cidade achando urgente escolher os modelos dos novos vestidos. Quando o automóvel parou, foi como se de repente tivesse de decidir da vida. Tinha um enorme peso nos ombros, arfava, tremia, e as vozes chegavam-lhe aos ouvidos como aumentadas por um tubo acústico. Sentia a vertigem e não sabia bem por quê. Andou assim pela rua. Parou diante da montra, ergueu os olhos para ver através dos vidros o interior do estabelecimento. As vendedoras moviam-se servindo as freguesas. Lá ao fundo o rapaz estava a despachar uma cliente. Tinha outro fato. Estava de claro. O esplendor da sua mocidade era maior.

Entrou, sem hesitar; foi direto a ele.

- Pode mostrar-me os véus de ontem?

Ele fez um rápido esforço para recordar-se.

- Ah! Perfeitamente. Um momento, minha senhora...

E ela ficou, humilhada, com o temor de que alguém da loja fosse desconfiar. Passara uma tarde inteira, uma noite inteira, a manhã toda a pensar naquele ente, ela que bastaria acenar para ter vários secretários de legação, e ele não se lembrava dela - vulgar, vulgaríssimo, talvez nos braços de outra criatura. Mas ele vinha solicito, comercial, querendo mostrar-se negociante, com o orgulho infantil de vender bem.

- Nem lembrei que vossência esteve cá ontem. São tantos os fregueses!

Essa ingenuidade deu-lhe a ela um pouco de ousadia:

- Que memória!

- Mas logo lembrei. Até estive a mostrar-lhe umas voilettes.

E sorria. Ela então pôs-se a ver os véus de que não tinha aliás necessidade. Ele abria caixas e caixas. Sobre o vidro do balcão jaziam rendas, gazes, tecidos aéreos de todas as cores. Ela, inconscientemente, estabelecera a confusão fatigosa como um estrategista, para tocar uma daquelas mãos que deviam ser quentes e macias. No momento propício, vinha-lhe um frio e não ousava. Para não o desagradar, apartava mais um véu, e continuava. Sofregamente as suas lindas mãos contraíam-se de jaspe sobre o multicor das gazes. O seu colo arfava. Sentia a boca seca, não podia quase falar. Que iria acontecer se conseguisse? Ele compreenderia? Ele falaria cheio de vaidade com a aventura enorme? Ele não recusaria. E depois? E depois?

- Veja a senhora este que é o mais fino.

Ele curvara-se, segurando o véu com as duas mãos. Ela pendeu para a frente de modo a sentir-lhe a respiração. Cheirava a flor murcha. O seu respirar era um arfar de olores. Alda, com um indizível prazer que a percorria toda. estendeu ambas as mãos. Os seus dedos como por acaso roçaram pelas mãos do rapaz. Não se enganara! Elas tinham um momo calor suave ao gelo dos seus dedos.

- Perdão! disse ele largando o véu.

Ela olhou-o com toda a súbita paixão do instinto, sem forças. Ele ainda não compreendia, tão longe da possibilidade que a sua juventude não tremia. Mas o olhar continuou, continuou carregado de desejo e de súplica, pesado de coisas loucas e deliciosas. Ele sorriu meio indeciso. Ela suspirava forte. olhando-o. Um risco de malícia ingênua clareou-lhe a boca vermelha. Ela estendeu o véu, sem dele despregar o olhar que sorria. Os olhos dele como quiseram adivinhar. Uma onda de sangue encheu-lhe o rosto.

- Minha senhora...

- Como se chama?

- Ferreira. Manoel Ferreira. Onde devo mandar os véus?

No cérebro de Alda Guimarães uma luta entre o receio e o desejo retinha sua resposta.

Com violência e em seu desvario dizia-lhe todos os pavores do preconceito. Com maior força os sentidos inebriados arrastavam-na. Manoel! Um nome bom, macio. E aquelas mãos, aquele hálito, aquela saúde esplendorosa, aquele cabelo... Que fazer? Que fazer? Dar a direção da sua casa? Nunca se comprometeria até aquele ponto. Ia dizer alguma coisa e disse:

- Por que não m'os leva o senhor mesmo?

Depois da pergunta, o sentimento de pudor foi tanto, que não percebeu o rapaz, tão atônito quanto ela, baixando a voz, murmurando:

- Só quando fechar a loja! É longe?

Foi preciso que ele repetisse a pergunta. Como despedaçada ela indicou o palacete, saiu sem o olhar, trêmula, palpitante, com a face afogueada e os lábios secos. Chegou assim até o automóvel, teve que cumprimentar o secretário da Bélgica, solteiro; recebeu já instalada a saudação longa do velho Lloyd Balfour da embaixada americana, e quando mandou tocar, sucedera-lhe à atordoação um nervosismo de se explicar a si mesma, de se desculpar, de salvar-se do instante alucinado. Ela que jamais tivera uma aventura, ela que não pecara por não sentir necessidade alguma, ela honesta que compreendia o outro sexo pelas profissões: um diplomata é um diplomata, um general é um general, um jardineiro é um jardineiro vendo de súbito num pequeno caixeiro de modas um homem! Como podia se ter dado esse horror delicioso? Era preciso afastar as suspeitas dos criados. Lamentáveis, aliás. Porque livre não era livre, e temia preconceitos quando todas deviam fazer coisas idênticas. Para se desculpar encontrava na memória as intrigas e as calúnias do seu mundo contra várias senhoras bem recebidas: o escândalo de Sofia Marques com o motorista, o divórcio de Adalgisa Gomensoro por causa de um rapaz que ninguém conhecia, mil histórias outras. Depois, ninguém saberia se ela realmente realizasse. A essa hipótese, um tremor a sacudia. Podia ser um mariola que a difamasse e que até explorasse. Mas tratava-se de um quase menino. Ele não podia ter mais de dezoito anos. E tinha a face ingênua no envolvente e rápido vigor, acrescido de manhãs passadas ao ar livre - porque necessariamente com aqueles ombros, aquela cinta estreita, aquelas mãos, Manoel havia de remar. E as palavras objetivaram-lhe na mente a criatura inteira. Que vergonha! Como seria bom acariciá-lo, beijar-lhe a cabeleira negra, os olhos molhados de luxúria ingênua, apertar-lhe os braços e adormecê-lo de encontro ao peito...

Desse confuso pensar surgiu-lhe a idéia de estabelecer um plano capaz de evitar todas as suspeitas, apesar de não ter nenhum projeto, nem mesmo o de mandar entrar o rapaz. Saltou assim no palacete, pálida, resoluta como um estrategista, espiando nos olhos dos criados a possível desconfiança, subiu aos aposentos acompanhada de Leônia, Leônia a sua defesa! Mas acabava de enfiar um roupão, quando Leônia indagou:

- A senhora não sai mais hoje?

- Por quê?

- Porque se não sair e não receber nenhuma das suas amigas, eu pediria para sair esta noite. É o meu dia de passeio e iria ao teatro.

Alda Guimarães estarreceu. Era a fatalidade. Iria ficar só com o seu desejo? Jamais! Jamais! Não poderia resistir. Voltou-se para dizer a Leônia que adiasse o teatro. Mas ouviu-se dizer:

- Não; podes ir...

E imediatamente achou que devia responder aquilo mesmo, e imediatamente admirou a calma, a naturalidade com que respondera. Leônia não acreditaria no que poderia estar para acontecer. Assim, desde a resposta, dividiu-se em mente: A Alda picada pela tarântula representava um estado de subinconsciência, e Alda calma assistia à representação como no cinematógrafo. Que inteligência! Que lucidez!

- Vou passar a noite lá embaixo, ao piano... Podes sair já.

Preparou-se com cuidado, vestiu um vestido absolutamente de interior tanto no seu mole e flutuante modelado a exteriorizava. Desceu para o jantar. A vida solitária, a tristeza dessa vida como a sentia agora no seu interminável bocejo sem preocupações. Era possível existir assim? Não jantou quase. O copeiro grave passava os pratos, sem que ela os tocasse. Antes da sobremesa ergueu-se. Voltara-lhe a ansiedade como um acesso de febre. Todos os ruídos da rua chegavam-lhe aos ouvidos como chamadas de campainha - as chamadas que anunciariam a presença do pobre pequeno. Afinal não se tratava de nenhum personagem! Era pueril o seu medo.

- Antônio, se vier hoje um menino com uma encomenda de véus, manda-o entrar. Quero vê-los à noite antes de os comprar.

- Sim, minha senhora.

- Ah! Não estou para ninguém.

Foi para a pequena saleta íntima, onde havia dois enormes divãs. A saleta, mobiliada com muito gosto, era como certos salões de França, depois das relações com o Grão-Turco - meio francesa meio otomana. E dava para a galeria de entrada. Recostou-se, fechou os olhos. Todo o seu ser enchia de imagem e do desejo da imagem que a desnorteara. O coração batia-lhe de modo que sentia nas artérias do pescoço o seu desordenado bater. Agora, posto que não tivesse definido o futuro, só a assaltava um receio: viria ele? No imenso silêncio, o receio era quase angústia. Era capaz de não vir! Timidez decerto. Talvez, porém não tivesse agradado. Podia ser... O ridículo de desejar e ser repelida... Pela primeira vez reparou de fato numa pêndula de Boule que o falecido general comprara em Paris num leilão do Hotel Druot. A pêndula tinha um mostrador tranqüilo e desanimado. Dizem que o tempo é breve. Não viram o tempo que leva um ponteiro a andar cinco minutos! Quanto pensamos e realizamos e queremos e arfamos na terra para o desconhecido enquanto um relógio pesponta, à toa, cinco longos, intermináveis minutos! Se ele chegasse, se ele não chegasse! O ruído do relógio parecia compor essa alternativa, falar a gangorra do seu pensamento, enquanto a sua carne era como que aos poucos aquecida por um aflitivo desejo de consolo.

De repente houve um breve retinir de campainha. Alda Guimarães teve um sobressalto como se a tivessem tocado na nuca com uma ponta de gelo. Tomou de um livro, abriu-o. Como os criados são lentos em abrir as portas! Era a eternidade positivamente. A campainha fez-se ouvir de novo, ainda mais breve e tímida. Um enternecimento pelo que aquela rápida vibração exprimia fê-la sorrir. O criado passou enfim, devagar, como compete a um criado de casa importante. Ela ouviu um rumor indistinto. O criado tornou a aparecer:

- É o rapaz com os véus. Mando entrar?

- Dê mais luz. Mande.

Fechou os olhos, de pé. Um turbilhão parecia arrastá-la. Quando os abriu, à porta da saleta, respeitoso, com um grande embrulho, estava o adolescente. Ela via-o inteiro, dos pés à cabeça, e era como se visse, vestido, um dos muitos S. Sebastião em que os sensualistas do renascimento derramaram o seu amor pela pulcra forma dos efebos entontecedores. O criado, ao lado, estava firme. Alda Guimarães fez um esforço:

- Trouxe a encomenda?

- Sim, minha senhora.

- Quero vê-los antes, à luz. Pode ir, Antônio.

- Vossência permite? gaguejou o rapaz.

- Entre. Pode desfazer o embrulho nesse divã.

Com um motivo profissional para mascarar o seu enleio andou até o divã num passo que era leve e forte, curvou-se numa curva de estatuária, sem esforço, macio e vigoroso. Talvez tivesse ainda dúvidas, juventude enrodilhada na inexperiência e assustada com aquele luxo que tornava inacessível a mulher ao lado.

Alda Guimarães sentou-se no divã, admirando-o. Como era diverso dos indivíduos que conhecera, rapazes e homens na sua sociedade - que vinca tanto as criaturas na mesma dobra!

- Vossência desculpe eu ter demorado um pouco.

Ela reparava agora no pêssego maduro que era o seu pescoço. Uma desorientada vontade de mordê-lo obrigou-a a indagar:

- Por que não mandou outro?

- Vossência disse que eu mesmo trouxesse. O que eu não pensei é que desejasse ver de novo os véus.

Essa ingenuidade trouxe a Alda uma súbita confiança.

- Não tem levado encomendas a outras casas?

- Não, minha senhora. Isso é para empregados de outra categoria, os principiantes...

- Ah! Já tem uma categoria?

- Oh! bem modesta.

- E que idade tem?

- Fiz dezoito.

- Era o que eu pensava.

Houve um enorme silêncio. Ele abria as caixinhas.

- Diga-me, Sr. Manoel, faz esporte?

- Um pouco de remo, ao domingo, para divertir.

- Era o que eu pensava. Mas para divertir? Na sua idade há outros divertimentos.

- É uma questão de gosto.

Graças ao hábito de sociedade, ela não só falava com desembaraço como falava com o tom de quem trata com um inferior. Graças ao seu oficio ele respondia com desembaraço, conservando o tom de respeito para com alguém socialmente superior. O instinto aproximava-os para a maior das igualdades. Ele indagava sem o saber com a desconfiança maliciosa: "Onde vai ela chegar?" Ela pensava, com o desejo palpitante: "De que modo resolver tudo isso?" Se ela estivesse diante de um cavalheiro da mesma roda a ânsia do imprevisto não existiria, já teria passado à declaração caso consentisse. Se ele estivesse diante de qualquer mulher não indagaria nada. Fatais estados d'alma que se dão sempre quando incide o desejo em seres de diferente situação social. E tão terríveis que o mais desvairado amor não faz esquecer nem a uma superioridade nem a outro grau abaixo. Assim ele poderia arruiná-la, difamá-la, espancá-la até. Nunca esqueceria a preferência e se não fosse muito bom, estaria perdido, cheio de ambições. Assim ela poderia sofrer, amar, perder-se. Mas seria sempre a criatura que dava a preferencia...

Nenhum dos dois pensou exatamente isso. Ficaram na pergunta que é a resolução do problema imediato nesse gênero de choques, ele não ousando, ela não querendo ousar para não parecer mal. Mas as mulheres, mesmo as mais honestas como Alda Guimarães, são fortes quando desejam.

Alda Guimarães ergueu-se, tomou um dos véus na ponta dos dedos, agitou-o.

- Como é lindo, à luz!

Ele sorriu.

- Vossência acha?

- E você? Veja!

Agora tomava dos véus - um, dois, cinco - verdes, brancos, cor-de-morango, negros. Eram como amputações de asas de uma ornitologia nigromática em torno dela. As suas mãos cada vez passavam mais perto do rosto de Manoel, cujo sorriso ia se esteriotipando numa fixidez angustiosa. De repente ela voltou-se. As mãos dele caídas sentiram o roçar breve do corpo dela. Ela escorregou no divã bem junto, a cabeça erguida para ele. Manoel ficou sem coragem de avançar nem de recuar.

- Mas, minha senhora...

Os olhos dela, a boca que ela tinha formosa não podiam mais, revelavam demais - porque de súbito ela viu o semblante do adolescente convulsionar-se, os olhos luzirem, um vinco brusco tornar-lhe severo o semblante, todo ele tremer como queimado por um simoun de desejo, que lhe fazia bater os dentes, e a sua voz rouca indagar, enquanto passava a vista pelas portas:

- Não vem gente?

Alda não soube que gesto fez. Ele curvou-se, a sua boca magnífica sorveu-lhe a dela como se sedenta chupasse um fruto cheio de sumo. Ela tremeu na mesma febre passando-lhe os braços no pescoço. Então ele despejou-a no divã em súbita fúria. Um imenso, delicioso, doloroso acorde de prazer - o prazer que nenhum dos dois sonhara, sacudiu as almofadas do divã. Sem pensamentos, sem outro fim, alheios ao orbe inteiro, no frenesi de atingir ao bem supremo, atingiram o sumo gozo brevíssimo que é a felicidade única da terra.

E foi com infinita amargura que os pretendentes souberam da partida da incorruptível e formosa Alda Guimarães, oito dias depois de a verem na Avenida, em meio luto da viuvez.

Ia num péssimo vapor francês, só com Leônia e radiante. Ninguém, porém, poderia desconfiar que entre os outros passageiros, havia o amor...

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 23 de julho de 2021

IDEIAS DO CANÁRIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

IDEIAS DO CANÁRIO

Machado de Assis
(Grafia original)

 

 

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

No princípio do mês passado, - disse ele, - indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atualhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

- Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

- Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...

- Como - interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

- Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

- Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

- Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...

- Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

- Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

- O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

- As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

- Quero só o canário.

Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

Não tendo mais família que dous criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, - ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

- O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...

- Mas não o procuraram?

- Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

- Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...

- Que jardim? que repuxo?

- O mundo, meu querido.

- Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor.

O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...

- De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 22 de julho de 2021

CHAVES E FECHADURAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

CHAVES E FECHADURAS

Humberto de Campos

 

 

— Os senhores, conselheiro, os senhores, homens, — dizia-me, abanando-se pausadamente com o seu grande leque de plumas vermelhas, a linda Viscondessa de Lima Freire, — os senhores serão, sempre, injustos com as mulheres, por que nem todos poderão compreendê-las.

 

— As mulheres são, então, o maior mistério do universo? — indaguei, com ironia.

 

A Viscondessa sorriu da minha ingenuidade, e, sem dissimular a sua piedade pela minha ignorância, acentuou, bondosa:

 

— O conselheiro não me entendeu, ou não me quer entender. A mulher é um mistério, mas um mistério, apenas, para o homem que lhe não agrada. O símbolo da fechadura tão frequentemente citado pelos psicólogos, constitui uma verdade indiscutível.

 

— O símbolo da fechadura?

 

— Sim; não o conhece?

 

E como lesse a curiosidade no meu olhar, contou-me, pausadamente, cerrando a meio os seus macios olhos de míope:

 

— Cada mulher é uma fechadura que só tem uma chave...

 

— Só? — interrompi.

 

— Espere aí! — pediu, impondo-me silêncio com o leque.

 

E continuou

 

— Cada mulher é uma fechadura, que só tem uma chave, a qual está nas mãos do homem que a tem de amar e que tem de ser amado por ela. Outros passarão sob os seus olhos, tentando abrir-lhe o coração. Abusando da sua inexperiência, um ou outro poderá, talvez, penetrar no sacrário da sua alma, usando de chave falsa. Um homem, apenas, tem a chave verdadeira, e é somente quando a mulher se encontra com ele que se dá, realmente, a felicidade no matrimônio. Compreendeu?

 

Eu ia confirmar com um monossílabo, mas a ilustre senhora não me deu tempo.

 

— Cada mulher — continuou — devia esperar, de olhos fechados, como a princesa adormecida no bosque, o portador da chave da sua fechadura. É da impaciência de algumas que nascem, geralmente, os escândalos, os divórcios, a dissolução ruidosa das famílias legalmente constituídas. Supondo-se esquecidas pelo seu porteiro, elas cedem à primeira chave falsa, ou à primeira gazua, e casam-se. Mais tarde, aparece o portador da chave. E Já se vai, com esse encontro, a felicidade de um lar!

 

— Isso era antigamente! — observou, intervindo, o capitão Peixoto Cunha, que nos observava de perto. — Hoje não há mais portas com uma chave só.

 

E acentuou, rindo:

 

— As portas, hoje, são de trinco!

 

Nesse momento, chegava, pausadamente, o visconde, enrolando em torno do dedo grosseiro uma fina corrente de prata, em cuja extremidade chocalhava, numa argola, uma penca de chaves.

 

Estas eram seis, e abriam, todas, com a mesma facilidade, as duas gavetas da secretária...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 20 de julho de 2021

O AVENTUREIRO ULISSES (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

O AVENTUREIRO ULISSES

Alcântara Machado

 

 

(Ulisses Serapião Rodrigues)

Ainda tinha duzentos réis. E como eram sua única fortuna meteu a mão no bolso e segurou a moeda. Ficou com ela na mão fechada.

Nesse instante estava na Avenida Celso Garcia. E sentia no peito todo o frio da manhã.

Duzentão. Quer dizer: dois sorvetes de casquinha. Pouco.

Ah! muito sofre quem padece. Muito sofre quem padece? É uMa canção de Sorocaba. Não. Não é. Então que é? Mui-to so-fre quem pa-de-ce. Alguém diz ia isto sempre. Etelvina? Seu Cosme? Com certeza Etelvina que vivia amando toda a gente. Até ele. Sujeitinha impossível. Só vendo o jeito de olhar dela.

Bobagens. O melhor é ir andando.

Foi.

Pé no chão é bom só na roça. Na cidade é uma porcaria. Toda a gente estranha. É verdade. Agora é que ele reparava direito: ninguém andava descalço. Sentiu um mal-estar horrível. As mãos a gente ainda escondia nos bolsos. Mas os pés? Cousa horrorosa. Desafogou a cintura. Puxou as calças para baixo. Encolheu os artelhos. Deu dez passos assim. Pipocas. Não dava jeito mesmo. Pipocas. A gente da cidade que vá bugiar no inferno. Ajustou a cintura. Levantou as calças acima dos tornozelos. Acintosamente. E muito vermelho foi jogando os pés na calçada. Andando duro como se estivesse calçado.

– Estado! Comércio! A Folha! Sem querer procurou o vendedor. Olhou de um lado. Olhou de outro.

– Fanfulla! A Folha!

Virou-se.

– Estado! Comércio!

Olhou para cima. Olhou longe. Olhou perto.

Diacho. Parece impossível.

– São Paulo-Jornal!

Quase derrubou o homem na esquina. O italiano perguntou logo:

– Qual é?

Atrapalhou-se todo:

– Eu não sei não senhor.

– Então leva O Estado!

Pegou o jornal. Ficou com ele na mão feito bobo.

– Duzentos!

Quase chorou. O homem arrancou-lhe a moeda dos dedos que tremiam. E ele continuou a andar. Com o jornal debaixo do braço. Mas sua vontade era voltar, chamar o homem, devolver o jornal, readquirir o duzentão. Mas não podia. Por que não podia? Não sabia. Continuou andando. Mas sua vontade era voltar. Mas não podia. Não podia. Não podia. Continuou andando.

Que remédio senão se conformar? Não tomava sorvete. Dois sorvetes. Dois. Mas tinha O Estado.

O Estado de São Paulo. Pois é. O jornal ficava com ele. Mas para quê, meu Espírito Santo? Engoliu um soluço e sentiu vergonha.

Nesse instante já estava em frente do Instituto Disciplinar.

Abaixou-se. Catou uma pedra. Pá! Na árvore. Bem no meio do tronco. Catou outra. Pá! No cachorro. Bem no meio da barriga. Direção assim nem a do Cabo Zulmiro. Ficou muito, mas muito contente consigo mesmo. Cabra bom. E isso não era nada. Há dois anos na Fazenda Sinhá-Moça depois de cinco pedradas certeiras o doutor delegado (o que bebia, coitado) lhe disse: Desse jeito você poderá fazer bonito até no estrangeiro!

Êta topada. A gente vai assim pensando em cousas e nem repara onde mete o pé. É topada na certa. Eh! Eh! Topada certeira também. Puxa. Tudo certeiro.

Agora não é nada mau descansar aqui à sombra do muro.

O automóvel passou com poeira atrás. Diabo. Pegou num pauzinho e desenhou um quadrado no chão vermelho. Depois escreveu dentro do quadrado em diagonal: SAUDADE – 1927. Desmanchou tudo com o pé. Traçou um círculo. Dentro do círculo outro menor. Mais outro. Outro. Ainda outro bem pequetitito. Ainda outro: um pontinho só. Não achou mais jeito. Ficou pensando, pensando, pensando. Com a ponta do cavaco furando o pontinho. Deu um risco nervoso cortando os círculos e escreveu fora deles sem levantar a ponta: FIM. Só que escreveu com n. E afundou numa tristeza sem conta.

Cinco minutos banzados.

E abriu o jornal. Pulou de coluna em coluna. Até os olhos da Pola Negri nos anúncios de cinema. Boniteza de olhos. Com o fura-bolos rasgou a boca, rasgou a testa. Ficaram só os olhos. Deu um soco: não ficou nada. Jogou o jornal. Ergueu-o novamente. Abriu na quarta página. E leu logo de cara: ULISSES SERAPIÃO RODRIGUES: No dia 13 do corrente desapareceu do Sítio Capivara, município de Sorocaba, um rapaz de nome Ulisses Serapião Rodrigues tomando rumo ignorado. Tem 22 anos, é baixo, moreno carregado e magro. Pode ser reconhecido facilmente por uma cicatriz que tem no queixo em forma de estrela. Na ocasião de seu desaparecimento estava descalço, sem colarinho e vestia um terno de brim azul-pavão. Quem souber do seu paradeiro tenha a bondade de escrever para a Caixa Postal 170 naquela cidade que será bem gratificado.

Cousas assim a gente lê duas vezes. Leu. Depois arrancou a notícia do jornal. E foi picando, picando, picando até não poder mais. O vento correu com os pedacinhos.

Então ele levou a mão no queixo. Esfregou. Esfregou bastante. Levantou-se. Foi andando devagarzinho. Viu um sujeito a cinqüenta metros. Começou a tremer. O sujeito veio vindo. Sempre na sua direção. Quis assobiar. Não pôde. Nunca se viu ninguém assobiar de mão no queixo. O sujeito estava pertinho já. Pensou: Quando ele for se chegando eu cuspo de lado e pronto. Começou a preparar a saliva. Mas cuspir é ofensa. Engoliu a saliva. O sujeito passou com o dedo no nariz. Arre. Tirou a mão do queixo. Endireitou o corpo. Apressou o passo. Foi ficando mais calmo. Até corajoso.

Parou bem juntinho dos Operários da Light.

O mulato segurava no pedaço de ferro. O estoniano descia o malho: pan! pan! pan! E o ferro ia afundando no dormente. Nem o mulato nem o estoniano levantaram os olhos. Ele ficou ali guardando as pancadas nos ouvidos.

O mulato cuspiu o cigarro e começou:

Mulher, a Penha está aí,
Eu lá não posso…

Que é que deu nele de repente?

– Seu moço! Seu moço!

A canção parou.

– Faz favor de dizer onde é que fica a Penha?

O mulato levantou a mão:

– Siga os trilhos do bonde!

Então ele deu um puxão nos músculos. E seguiu firme com os olhos bem abertos e a mão no peito apertando os bentinhos.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 19 de julho de 2021

UM CÃO DE LATA AO RABO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM CÃO DE LATA AO RABO

Machado de Assis

 

Era uma vez um mestre-escola, residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio de composição e de estilo; idéia útil, que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como produziu páginas de verdadeiro e raro merecimento.

 

— Meus rapazes, disse ele. Chegou a ocasião de brilhar e mostrar que podem fazer alguma coisa. Abro o concurso, e dou quinze dias aos concorrentes. No fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei um júri para os examinar, comparar e premiar.

 

— Mas o assunto? perguntaram os rapazes batendo palmas de alegria.

 

— Podia dar-lhes um assunto histórico; mas seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto simples, aparentemente vulgar, mas profundamente filosófico.

 

— Diga, diga.

 

— O assunto é este: — UM CÃO DE LATA AO RABO. Quero vê-los brilhar com opulências de linguagem e atrevimentos de idéia. Rapazes, à obra! Claro é que cada um pode apreciá-lo conforme o entender.

 

O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz parte. Sete escritos foram submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo, mereceram a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram — neste o arrojo do pensamento e a novidade do estilo, — naquele a pureza da linguagem e a solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica, — tudo novidade, ao menos em Chapéu d’Uvas. Nós os classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:

 

1º Estilo antitético e asmático.

 

2º Estilo ab ovo.

 

3º Estilo largo e clássico.

 

Para que o leitor fluminense julgue por si mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.

 

 

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

ESTILO ANTITÉTICO E ASMÁTICO

 

O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de anjo no dorso de uma locomotiva.

 

Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Di-lo a filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo, rabino: duas idéias e uma só raiz.

 

A etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do futuro.

 

O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento, como a idéia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrimachristi, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a criatura e o criador, é o caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.

 

O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão parou: pararam diante um do outro. Contemplação única! Homocanis. Um parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer: — Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do bípede. Canis levou a sua lata; homo levou a sua vergonha. Divisão equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter.

 

Então, ao longe, muito longe, troou alguma coisa funesta e misteriosa. Era o vento, era o furacão que sacudia as algemas do infinito e rugia como uma imensa pantera. Após o rugido, o movimento, o ímpeto, a vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar calou o seu tumulto, a terra calou a sua orquestra. O furacão vinha retorcendo as árvores, essas torres da natureza, vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si mesma. O condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri, que é o condor das rosas. O furacão igualava o píncaro e a base. Diante dele o máximo e o mínimo eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquerda, à direita; poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.

 

O cão, ao sentir o furacão, estacou. O pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo, não com medo; — com desdém. Essa espera do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranqüilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro entraram a devorar o espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão trazia a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficaria extática, absorta, atônita.

 

Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um no outro; era a raiva, a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso. Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e por cima de tudo isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha risível, o Homem.

 

As horas voavam como folhas num temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a continuidade das grandes cóleras. Tinha a persistência das pequenas vaidades. Quando o furacão abria as largas asas, o cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para sufocá-lo; o dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis trazia a morte na ponta.

 

De repente, ouviu-se um estouro, um gemido, um grito de triunfo. A poeira subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem estupefato. O cão devorara o furacão. O pó vencera o azul. O mínimo derrubara o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.

 

 

 

CAPÍTULO II

 ESTILO AB OVO

 

Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.

 

O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênesis, cap. I, v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias as bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora trato.

 

Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”, donde se pode inferir que já se torcia o linho, e por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.

 

Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênesis, e a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.

 

Agora: — donde vem o uso de atar uma lata ao rabo do cão? Sobre este ponto a história dos povos semíticos é tão obscura como a dos povos arianos. O que se pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis, cap. V, v. 16) entrou na cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o viu, ficou fazendo má idéia dele, por motivo dessa expansão coreográfica. Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e dos Heveus.

 

Nem admira que esses povos desconhecessem o uso de que se trata. As guerras que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer que é contemporâneo do município, porquanto nada menos é que a primeira das liberdades municipais.

 

O município é o verdadeiro alicerce da sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto estão de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotíssimas, se bem tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse digno companheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as liberdades correlatas.

 

Na Ilíada não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao cão. O mesmo direi dos Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de Confúcio. Num hino à Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel atado embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na boca do cão, e sim na do homem, é absolutamente impossível ligar esse texto ao uso moderno.

 

Que os meninos antigos brincavam, e de modo vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles, Aulo Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferentes objetos com que as crianças se entretinham, ou fossem bonecos, ou espadas de pau, ou bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator de haver Alcibíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente no livro de Plutarco?

 

Assim explorada a origem do uso, entrarei no exame do assunto que... (Não houvera tempo para concluir).  

 

 

 

CAPÍTULO III.

ESTILO LARGO E CLÁSSICO

 

Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prélio agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.

 

Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo que a tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antigüidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.

 

Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender.

 

Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural do homem quando vê padecer outra criatura, dobravam os agastamentos do cão com surriadas e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao pé de cuja base um mancebo apascoava o seu gado.

 

Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse mais compassivo que os da cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele, de olhos brandos e não somenos em graça aos da mais formosa donzela. Com o cajado ao ombro, e sentado num pedaço de rochedo, manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele caudal engenho. Apropinquando-se o cão do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu logo da memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos minutos, com mor destreza e paciência.

 

O cão, aliás vultoso, parecia haver desmedrado fortemente, depois que a malícia dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos do mancebo, que o tomou para si, dizendo: — De ora avante, me acompanharás ao pasto.

 

Folgareis certamente com o caso que deixo narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto quilate; e, embora abastado de urzes, e porventura coberto de trevas, a imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados labirintos.

 

Entranhado anelo me enche de antecipado gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em tudo dignos do nosso digno mestre, e que desafiarão a foice da morte colhendo vasta seara de louros imarcescíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.

 

Tais são os três escritos; dando-os ao prelo, fico tranqüilo com a minha consciência; revelei três escritores.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 18 de julho de 2021

GENTE DO MUSIC-HALL (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

GENTE DO MUSIC-HALL

João do Rio

(Grafia original)

 

O Casino palpitava. Tantan Balty, no seu último número, dissera, com quebros de olhos e perversidades na voz, uma cançoneta extraordinariamente velhaca. A sala, sob a clara luz das lâmpadas elétricas, acendia-se, gania luxúrias. Senhores torciam o bigode com o olhar vítreo, as damas envolviam os braços nas plumas dos boás com um ar mais acariciador. Nós estávamos todos. Na orla dos camarotes, pintados de vermelho, pousavam em atitudes de academia, expondo vestidos de tonalidades vagas e anéis em todos os dedos, as mais encantadoras criaturas da estação. Por trás dos camarotes surgiam panamás, monóculos, faces escanhoadas, bigodes à kaiser, e os garçons passavam de corrida levando garrafas e bandejas. Embaixo, na platéia, velhos freqüentadores tomando bocks, repórteres, caixeiros, moços do comércio batendo as bengalas nas folhas das mesas, uma ou outra mulher entristecida e a claque, uma claque absurda, berrando chamadas diante dos copos vazios, quase no fim da sala.

Tantan Balty voltara, resfolegara, e com as duas grossas mãos no lábio rubro, parecia querer beijar toda multidão. Afinal, a campainha retiniu e o velário correu, cerrou-se sobre uma última graça de Tantan. Tinha acabado a segunda parte. Havia um rumor de cadeiras, de estampidos de rolha, de copos entrechocados, por todo o hall As lâmpadas elétricas tinham uma medonha trepidação, como se fossem grandes borboletas de luz presas de agonia a bater as asas brancas.

No camarote de boca, solitários e de smoking, fui encontrar o barão Belfort e o conde Sabiani. O conde era um homem alto, de torso largo, bigode espesso. Tinha a fisionomia fatigada e flácida. Olhando o seu turvo olhar, logo me vieram à mente as coisas tenebrosas que a respeito correm. O barão, porém, contava com um ar desprendido a história de Tantan Balty, que ele conhecera numa bodega de Toulouse, em 1890, já velha e já gorda. Parou, sorriu:

- Seja bem-vinda a virtude entre o crime e o vício...

O conde Sabiani estendeu a sua mão cheia de anéis, consultou o programa preguiçosamente.

- Temos agora a princesa Verônica. Per dio! Quelle femme, mon petit!

Disse isso como um obséquio, endireitou o punho, recostou-se. Usava uma pulseira de pequenas opalas com fecho d'oiro. O barão sorrira novamente, endireitando os cravos da botoeira.

- Conhece a princesa Verônica?

- A princesa? Há de concordar, barão, que de certo tempo para cá, o Rio tem uma epidemia de titulares exóticas...

- Que quer? É a civilização. E quase todas mais ou menos autenticas! São as titulares de Bizâncio, meu caro. Consulte os programas dos casinos e as notas dos jornalecos livres. Há princesas valacas, príncipes magiares, condessas italianas, marquesas húngaras, duquesas descendentes de Coligny, fidalgas do Papa - a marquesa de Castellane, a princesa russa, a condessa de Bragança, a princesa Tolomei, Gladys Wright, mulher de um lorde, a princesa Thrasny, todas com um título que lhes doura a arte e a renda. O Rio não seria cosmopolita se não as tivesse. A grande preocupação dessas admiráveis criaturas é convencer os amigos com documentos fartos de que são mesmo descendentes de famílias ilustres, e a sociedade fica convencida porque isso satisfaz a sua imensa vaidade. Nós estamos exatamente como na corte de Justiniano, em que Teodora, dançarina de circo, era imperatriz. E isso é prodigiosamente agradável ao burguês que paga, à turba que olha, e ao princípio imanente da beleza e da democracia. Não há comerciante triste depois de ter pago jóias a princesas. Estas formosas deusas, que o povo admira e inveja, puseram os brasões ao alcance de todos os lábios. São as princesas de Bizâncio, caro. Sagrou-as o bispo de Hermápolis.

O conde Sabiani sorriu com perversidade e literatura.

- O barão faz a iniciação dos puros?

Belfort não respondeu. Já começara a terceira parte. O bumbo dera uma pancada grossa, e os violinos da orquestra faziam uma escala de pizzicati, sustentados pelas longas e sensuais arcadas dos violoncelos e do contrabaixo. O velário de púrpura descerrou-se por sobre uma paisagem lunar. Os cenários estavam tão apagados à luz de leite das lâmpadas, que todo o palco parecia alongar-se numa infinita brancura. Na platéia apareciam faces de homens, mulheres ajustavam-se, e a claque ao fundo, diante dos mesmos copos vazios, berrava:

- Verônica! Verônica!

- Faça a iniciação, meu amigo, como diz o Sabiani, faça.

Sim tutelar, oh Lua
Margem da Alegria
Onde abordam os barcos das almas puras...

Houve um trilo de flauta como um trinado de pássaro, o bumbo reboou, caiu num choque de pratos, e de um pulo surgiu no meio do palco a princesa Verônica. Era magra, desossada, com a face afiada das divindades egípcias. Sorrindo, mostrava os dentes irregulares, e tinha a cor das múmias, como se a sua pele fosse queimada por lentos óleos bárbaros. Vestia meias de seda cor de carne; os pés, enluvados de branco, de tão finos e minúsculos recordavam a graça dos lírios a desabrochar, e o seu corpo de serpente ondulava dentro de um estojo de lantejoulas de prata.

- É uma crioula!

- Da Jamaica, filha de um velho rei índio...

Bizarre déité, brune comme les nuits,
Au parfum mélangé de musc et de havane
Oeuvre de qualque obi...

O barão citava Beaudelaire, o barão amava!

Verônica bateu as pálpebras, abriu os olhos luxuriosos, e numa reviravolta, adejou. A multidão inteira ofegava, com a alma presa àquela visão de sílfide perversa. Não era o bailado clássico das dançarinas do Scala e da Ópera, com violências de artelhos e sorrisos pregados nos lábios, não era o quebro idiota das danças húngaras ou a coréia álacre dos bailes ingleses - era uma dança inédita. Havia no seu meneio a graça das aves, no sorriso a volúpia de um outro mundo, no langor com que abria os braços, o delíquio da paixão. Os grossos diamantes que lhe escorriam dos lóbulos pareciam aquecer-se na sua pele ardente: as flores, presas à carapinha de negra, aureolavam-na de desmaios de púrpura. Ela flutuava, pássaro, serpente lendária, adejando num esplendor de prata.

- Oh! O barão deu agora para o exotismo. Essa Verônica é uma preta como outra qualquer, que se intitula princesa.

Calei-me porém. O barão falava, sussurrava as frases da sua admiração.

- Como ela dança! A dança é tudo, é o desejo, a súplica, a raiva, a loucura... Ela dança como uma sacerdotisa, como uma estrela perdida nas nuvens. Tem desde o salto poderoso das feras até o vôo medroso das pombas. Há nos seus gestos a orgia sanguinária de uma leoa e a maravilha constelada de uma ave do paraíso. Ao vê-la recorda a gente Salomé diante de Herodes, dançando a dança dos sete véus para obter a cabeça de São João; diante deste ondear de vida que no ar se desfaz em sensualidades, sonha-se o tetrarca de Wilde, ébrio de amor: "Salomé! Salomé! Os teus pés, a dançar, são como as rosas brancas que dançam sobre as árvores!"

Verônica terminara o bailado, toda ela rodopiante, desaparecida do halo argênteo do saiote, e assim girando vertiginosamente, com os seus dois pés finos e estranhos, parecia uma flor de prata, uma estranha parasita caída dos espaços naquele ambiente de névoas. As palmas rebentaram num chuveiro. Ela parou, abriu os braços, deixou escorregar vagarosamente os pés, tão devagar que parecia ir-se afundando, até que caiu no grande écart, a mão na testa, sorrindo. O público, porém, enervado, queria mais, batia com as mãos, com os pés; as mulheres nos camarotes erguiam-se e Verônica tornou a aparecer, fazendo gestos de agradecimento que eram como súplicas de amor.

- Dances américaines! - disse.

E imediatamente, no miúdo compasso da orquestra, o seu corpo, da cinta para baixo, começou a desarticular-se, a mexer. Os pés estavam no chão, rápidos, havia sapateados e corridas; as ancas magras cresciam, aumentavam rebolando; o ventre ondulava; aquele corpo que fugia e avançava com meneios negaceados, confundiu-se na harmonia dos compassos em adejos. A mulher desaparecia numa exasperante combinação de sons gesticulados, de vibrações de cantárida, de crises danadas de espasmo. Era perturbadora, infernal, incomparável!

Quando ela acabou, o barão ergueu-se rápido.

- Vamos vê-la...

O conde Sabiani, que olhava para baixo, acompanhando o movimento febril da multidão, fez um vago gesto, ficou cheirando o seu cravo.

Nós descemos a escada pequena que dá no botequim. Já a orquestra tocava um fandango e a bela Carmem, uma antiqüíssima espanhola de meias rubras, soltava olés roufenhos. O público desinteressava-se. O barão parou um instante como à espera de um homem gordo, que caminhava amparado à bengala. O homem vinha conversando com dois rapazes de fraque e chapéu de palha, que recuavam estendendo as mãos como a abotoar invisíveis inimigos e caíam para a frente, mimando cabeçadas cruéis. O homem gordo acabou por acostar-se no balaústre e disse sem rir:

- C'est drôle ça!

Um dos moços, com o colarinho inverossimilmente alto, afastou o outro na ânsia de acumular as atenç5es e segurando a gola do gorducho, murmurou:

- Então eu segurei o cabra...

O barão seguiu.

- São os elegantes valentes! Não acabam mais com as histórias. Vamos ver a Verônica... Sabes que ela se perfuma de sândalo?

Seguimos para o fundo do jardim onde só havia, na iluminação de névoa, entre as árvores, duas mulheres de grande manto a conversar: subimos a entrada de sarrafos da caixa. O régisseur, um italiano louro de face inteligente, cumprimentou-nos com um sorriso camarada e fomos andando, entre criados de blusa azul e varredores. A um canto, um duo americano preparava-se para entrar em cena. As portas dos camarins abertas, as chanteuses esperavam todas pintadas, as mãos nervosas. O barão bateu à porta do camarim da princesa:

- Go in...

E nós entramos. O pequeno espaço recendia todo a um inebriante perfume de sândalo, e havia por toda a parte uma orgia floral! - rosas vermelhas, rosas brancas, catléias crispi estendendo os tentáculos de neve, lírios vermelhos com os pistilos amarelos, angélicas, anêmonas, cravos, tuberosas - e enramando a olência desse deboche de flores, o fino desenho, a renda anêmica das avencas verdes. Na redolente atmosfera, afundada no divã, envolta numa toalha de felpo, surgia a figurinha de bronze da princesa indiana, e a princesa chorava. Grossas lágrimas corriam dos seus olhos de deusa Isis e adejando as mãos ela soluçava.

- Oh! my dear, sweet heart, ce chien... ele não veio.

- Quem?

- O de ontem, aquele de ontem. E não pagam. Dizem que é pela minha cor. Há muitos aqui. It is very, Belfort? Mon petit, c'est vrai?

Abriu os braços como uma boneca, emborcou num choro convulso:

- Malhereuse. I'm malhereuse.

Ela falava todas as línguas da Europa numa ingênua e horrível confusão. O barão limpou o monóculo, pegou-lhe no braço, paternal e filosófico.

- Estranha criatura, continuas a te perfumar de sândalo? Ainda és o sonho enervante do Oriente, o fluido das florestas bizarras?... Deixa lá... Acalma-te. Não te compreendem, pequeno ídolo amado. É como se esses homens pudessem diferenciar o sabor de um licor quando bebido num maravilhoso vaso trabalhado pelos bárbaros, do mesmo licor tragado em qualquer copo. Eles são homens. E tu - tu és a princesa dos sândalos.

E ficamos ali vendo a criaturinha a chorar, enquanto lá fora nos ruídos da música, no bruhaha da multidão, subia mais forte a onda daluxúria.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 17 de julho de 2021

O SERINGUEIRO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O SERINGUEIRO

Humberto de Campos

 

 

À semelhança de um inseto minúsculo e amedrontado que se refugiasse na base um penedo, fugindo a inimigos invisíveis mas certos, a povoação de Graça, com a sua capela, e a sua dúzia de casas, repousa, há mais de um século, no sopé da Ibiapaba. Às três horas da tarde, quando o sertão imenso, para os lados da Meruoca, ainda fulgura iluminado, já está ela mergulhada no seu manto cinzento, preparando-se para o descanso da noite. É que o sol, descendo por trás da serra cortada a pique, projeta sobre aquela parte do sertão a sombra larga da montanha, como se Deus a quisesse esconder, antes das outras povoações cearenses, contra os incontáveis perigos da terra e do céu.

Foi nesse pequeno recanto sertanejo que o Joaquim Lucrécio, partindo das margens do Acaraú, onde era lavrador, se deteve em 1878. O seu objetivo, de quem fugia ao flagelo que tudo devastava, era alcançar a Serra Grande por uma das ladeiras de Leste. Ao chegar, porém, às proximidades da encosta, caiu a primeira chuva. O Jaibara encheu, arrastando na descida detritos de árvores e ossadas de animais. E como a esperança de fartura voltasse ao coração dos homens, o retirante recebeu um convite para o serviço e levantou, à margem do rio, a pequenina casa de palha para abrigo da mulher e dois filhos, o João e a Carolina, que a morte poupara no êxodo.

Foi aí, sob a proteção da serra enorme e verde, que os dois irmãos se criaram, apurando a coragem nas lições da natureza e na áspera vida de privações. Enquanto a velha mãe gemia, entrevada, sobre a esteira de carnaúba estendida no chão de barro batido, e o pai, tostado pela soalheira e curtido pela miséria, procurava trabalho nas fazendas vizinhas, ia a menina à cacimba, no leito seco do rio, com o pote à cabeça, buscar a água para os serviços domésticos, ao mesmo tempo que o irmão, mais velho que ela dois anos, cortava, em companhia de outros da sua idade, as folhas tenras das carnaubeiras para extração de cera e aproveitamento das palhas na confecção de chapéus.

Assim cresceu a Carolina. Assim cresceu o João.

 

II

 

Aquela vida de penúria, em que se sucediam, às vezes, os dias em que o sustento de cada pessoa se limitava a um punhado de farinha e a um pequeno pedaço de rapadura, não podia, porém, perdurar sem protesto. Carolina tornava-se moça. Morena e pálida, opilada pela alimentação deficiente, possuía, contudo, os traços finos, delicados, do mameluco originário, em que predominavam, no entanto, as características da raça branca. Andava pelos quinze anos e não parecia ter mais de treze. Apenas, traindo a idade, os seios se lhe avolumavam opulentos, como uma árvore tenra que concentra toda a seiva destinada ao tronco no esplendor e na glória dos frutos. Os cabelos, cor de mel, apertados em trança descuidada, punham-lhe à mostra a testa bem feita, desenhando-lhe, ao mesmo tempo, a correção da cabeça pequena. Os olhos negros, pareciam mais negros na esclerótica acentuada pela anemia e os dentes mais alvos através dos lábios descorados pela miséria. Não fosse o vestidinho sujo e roto, de riscado grosseiro, e dir-se-ia uma dessas antigas imagens da Virgem, que tivesse permanecido sepultada durante séculos e perdido, ao contato da terra, a alvura fresca do marfim. O irmão, planta agreste do mesmo terreno pobre, desenvolvia-se com a mesma lentidão. Lia-se-lhe, entretanto, nos olhos pequenos, de luz concentrada, não a mesma resignação, mas o desejo incontido de romper as cadeias que o prendiam à terra madrasta, e partir pelo mundo em busca de pão, de dinheiro e de felicidade.

E esse dia chegou. Tinha ele dezessete anos quando soube, no Graça, que se achava no Pacujá um paraoara, um cearense enriquecido no Amazonas, o qual estava contratando trabalhadores para o serviço de seringal. O primeiro pensamento do sertanejo foi correr à casa, pedir licença ao pai, e abraçar a irmã e a velha mãe entrevada. Refletiu, porém, rapidamente. Se fosse pedir o consentimento paterno certamente não o obteria. O velho sentia-se doente, acabado. E com a convicção da morte próxima, não admitiria, naturalmente, que faltasse à companheira, e à filha moça, o único arrimo com que elas poderiam contar. Seria melhor, pois, não tornar mais à casa, e partir sem o consolo, a dor e os riscos da despedida. No regresso, com o dinheiro economizado, redimiria, com a fartura no lar humilde, o pecado de ingratidão.

Partiu, assim, a pé, viajando à noite, para o Pacujá. Apresentou-se ao paraoara e foi aceito. Três dias depois chegava a Camocim, onde o esperava o navio. Dois dias rolou no convés da proa, sacudido pelo balanço do mar. No terceiro surgiu-lhe no fundo de um estuário coalhado de navios uma cidade enorme, com os seus trapiches de mil pernas avançando sobre a água e as suas torres espetando o céu baixo, como chaminés de navios imensos, formados desde o porto pelas casas de três andares. Era Belém, o Pará. Outro navio pequeno, um "gaiola", achava-se, porém, à espera dele e dos companheiros. Uma barcaça levou-os, amontoados, como gado humano, de um para outro. E a viagem, agora por um rio, continuou. Do segundo dia em diante o "gaiola" começou a parar de quinze em quinze minutos, ou de hora em hora, atracando a pontes ligeiras, em que embarcava bolas de borracha, e desembarcava sacas e caixas de mercadorias. Dia e noite a mesma faina. Até que, uma noite, por volta das duas horas, todo o pessoal vindo com o paraoara teve ordem para preparar-se, a fim de desembarcar. Um apito na curva do rio e, em breve, aparecia uma pequena luz no alto de um barranco, dominando uma frágil ponte de tábuas. Sombras imprecisas moviam-se na sombra.

- Salta, gente! gritou o agenciador.

Sessenta e dois homens tristes, macerados pela viagem e pelos sofrimentos na terra do berço, desembarcaram, trazendo à mão, à cabeça, ou ao ombro, o seu saco, a sua trouxa, o seu baú.

E João Lucrécio estava entre eles.

 

III

 

Oito anos decorreram, acumulando-se sobre esse dia ou, antes, sobre essa noite. Confiado a outro seringueiro, veterano na faina, para que o iniciasse na extração do antigo ouro negro, o rapazola do Graça sentiu, logo nos primeiros dias, o inominável suplício do arrependimento. As estradas de seringueira que lhe haviam sido destinadas ficavam em plena selva, longe dois dias do barracão. Para moradia, encontrara, já, a barraca de palha, com soalho de troncos de palmeira, rachados ao meio. Fora, ao lado da barraca, a pequena latada para a defumação da borracha, e que lhes servia, ao mesmo tempo, de cozinha. Próximo, rolava, o rio, para baixo, as suas águas escuras, deslizando entre duas paredes de vegetação compacta, de que se desgarravam caules de açaizeiros, como braços de condenados que, atravessando as grades de suas células, pedissem perdão ou socorro. E em torno à barraca humilde, sufocando-a, asfixiando-a, comprimindo-a, a mata imensa, ameaçadora, impenetrável, o tronco encostado ao tronco, a fronde presa à fronde, e os cipós amarrando tudo em um verde feixe compacto, no qual a estrada para o centro se abria pequena, estreita, insignificante como um buraco de rato na majestade de um muro.

Às três horas da manhã o companheiro levantava-se, empurrava a porta de esteira, empunhava o búzio, e um rugido de dor, de angústia, de saudade, cortava a solidão silenciosa. Outro búzio, ao longe, respondia, na mesma queixa resignada. E outro, ainda mais distante. Eram os galés daquele presídio, vasto como um mundo, que se comunicavam sem, às vezes, se conhecerem, dando a notícia de que ainda viviam. E o silêncio caía em seguida, sepultando, de novo, centenas de homens vivos.

Preparando o café, ingerido às pressas com farinha ou bolacha, tomava cada um o seu lampião de querosene, o facão, a machadinha, e penetrava a estrada de Seringueiras, abrindo no coração da selva espessa o olho vermelho do farol. Ao chegar a uma das árvores cuja posição determinava as oscilações da vereda ziguezagueante, - árvore mártir, sangrada mil vezes, durante anos seguidos, desde as raízes até a maior altura do tronco, seis ou oito metros acima do solo - o seringueiro subia os "mutás" ou giraus superpostos, indo lá em cima golpear a casca rugosa e o cerne generoso, que logo lhe respondiam jorrando o seu leite. Fixadas, sob os golpes, as tigelinhas de folha, o homem descia, e continuava, silencioso como um fantasma, o seu caminho. Surpreendia-o nessa peregrinação a madrugada. Encontrava-o o sol, de que ele tinha notícia apenas pela claridade doce que se coava pela copa das árvores, cuja vastidão lhe impedia a vista do céu. Às onze horas, enfim, o seringueiro desembocava outra vez, pelo lado oposto da estrada, diante da barraca. Almoçava o feijão preparado na véspera. E reiniciava a romaria da madrugada, recolhendo num grande frasco de folha, no "boião", o leite recebido pelas tigelinhas, que ficavam junto às próprias árvores para o trabalho do dia seguinte. À tarde, chegava à barraca, defumava o leite, preparava a borracha. E posto ao fogão o feijão e o pedaço de carne seca ou de caça apanhada casualmente durante o dia, deitava-se, fatigado, na rede macia, suja, ouvindo a orquestra imensa, constituída por todas as vozes da natureza, que o insultavam, e o vaiavam, e o desafiavam, da sombra das folhas, da cavidade dos troncos, do cimo das árvores, da margem do rio - no coaxar dos sapos, no zumbir dos insetos, na reza do vento, no estalido dos galhos, no rugido das onças, acordadas para comer...

 

IV

 

Ao fim de oito anos de trabalho heróico e de economias desesperadas João Lucrécio solicitou a sua conta ao patrão. Tinha de saldo na casa nove contos de réis. Pediu uma ordem para lhe ser paga essa quantia no Pará, e embarcou no primeiro "gaiola". Viera menino, e voltava homem. Não era mais o mesmo, nem de figura, nem de alma. A natureza bárbara afeiçoara-o de novo, modelando-o à sua imagem. À tez queimada do caboclo do nordeste substituiu a amarelidão doentia, e opilada, dos que vivem na sombra. Um bigode alourado e grosseiro completava-lhe a fisionomia, que uma cicatriz aberta pela unha de uma onça encontrada certa manhã no seu caminho, modificara profundamente.

Ia, enfim, rever o seu Ceará, e, nele, o seu pai, a sua mãe, a sua irmã, aos quais nunca enviara a mais ligeira notícia. E perguntava a si mesmo:

- Viverão todos ainda?

Se alguém lhe pudesse responder, ter-lhe-ia dito que o seu sonho era vão. A mãe, a velha Rosminda, morrera pouco depois da sua partida, não de mágoa, porque em seu coração não havia mais lugar para o sofrimento, mas de miséria e de fome. O pai falecera mais tarde, vitimado pelo veneno de uma cobra, que o surpreendera na limpa de um roçado alheio. Não, porém, sem ter visto, na vida, a sua filha mais ou menos amparada, pois que a casara com o Vicente Monteiro, um rapaz das bandas do Cariré, que possuía, de seu, algumas cabeças de gado, a casa de taipa e um roçado de milho. Homem pobre, mas trabalhador e honrado.

Ao desembarcar em Camocim, João Lucrécio soube, logo, pelas pessoas que foram a bordo procurar serviço da estiva ou no desembarque de bagagens, que a seca lavrava, intensa, em todo o sertão. E se ninguém lhe desse a notícia, ele tê-la-ia adivinhado pelo movimento da pequena cidade marítima, arranchada sob as árvores da rua da frente, patenteando na fisionomia e na nudez toda a extensão do seu infortúnio. Intimamente, porém, rejubilou. A sua chegada, era, agora, oportuna, pois que levava, no dinheiro que lhe enchia o bolso, a saúde, a fortuna, a alegria. E imaginava, com volúpia íntima, o que seria o contentamento na casinha das margens secas do Jaibara, quando ali chegasse com as suas quatro malas pregueadas, e mostrasse à mãe entrevada, ao pai envelhecido, à irmã bonita, e ainda moça, os cortes de fazenda, as sandálias de couro, os brincos de plaqué, os lenços de cambraia vistosa, os trinta presentes, em suma, que lhes trazia. E ainda mais quando apalpassem o dinheiro, as cédulas de quinhentos, de duzentos e de cem mil réis, que eles, por lá, jamais tinham visto.

João Lucrécio desembarcou para um hotel, em frente, mesmo, ao trapiche a que atracara o vapor. Pela madrugada, tomava o trem, com passagem para a estação de Cariré. Às nove horas estava em Granja. Ao meio-dia em Sobral. E às três horas na pequena vila onde pretendia saltar, afim de arranjar condução para o Graça. Ao verem sair do carro a sua bagagem rica, e a sua figura de paraoara feliz, os retirantes que se abrigavam nas vizinhanças da estação cercaram-no, pedindo-lhe uma esmola, a mão estendida. O choro de vinte vozes, em que misturava a das mulheres, a dos velhos e a das crianças, era como uma reza alta, que se avolumava a cada instante. O seringueiro deu alguns níqueis, e procurou sair dali, naquela mesma tarde.

- Quer me comprar um cavalo e dois burros, moço? - indagou um fazendeiro que pretendia desfazer-se do que possuía, antes que a seca lhe matasse o que ainda restava.

- Quanto quer?

Feito o preço, João Lucrécio adquiriu os três velhos animais. E como se lembrasse ainda dos caminhos, e preferisse, para efeito da surpresa, viajar sozinho, mandou por as malas sobre os muares, e montando no cavalo de sela, tocou-o sertão a dentro, e partiu.

V

O sertão estava, então, todo seco, sem a sombra de arvoredo ou vestígio dágua, entre o sopé da Ibiapaba e a linha da Estrada de Ferro. Na quietude da tarde, João Lucrécio sentia isso. Ao fundo, no horizonte, a serra azulava, como se corresse para ele, tão perto lhe parecia, na atmosfera sem vapores. De um lado e de outro do caminho, os mofumbos e marmeleiros agrestes estavam reduzidos a talos comburidos, como um tabocal após a passagem do fogo. A noite caía lenta, envolvendo tudo, como um sudário imenso, lançado sobre a terra pela piedade divina. O céu, estrelado e baixo, parecia a cúpula enorme da tenda suntuosa de um poderoso rei oriental. As estrelas luziam tanto, e pareciam tão próximas, que iluminavam a estrada. Uma coruja começou a gargalhar à pequena distância, no galho em cruz de uma árvore morta. João Lucrécio persignou-se, arrepiado. Lembrou-se que nunca fizera isso no Amazonas, porque, por lá, mesmo nas horas de medo, nunca se lembrara de Deus. O cavalo e os burros resfolegavam, sopravam forte, quebrando a serenidade da noite. Grilos ziniam, insistentes. E ele, vivo, marchava, a passo, como um fantasma, pela tristeza dos caminhos mortos.

Em certo momento divisou, porém, à margem da estrada, uma casa humilde, sem luz. Resolveu fazer alto ali, para continuar a viagem pela manhã. Aproximou-se tocando o cavalo na frente, puxando os muares pelo cabresto.

- Ó, de casa! - chamou.

A porta de madeira tosca abriu-se timidamente, e uma figura humana desenhou-se na meia escuridão.

- Boa noite! - saudou o paraoara.

- Deus lhe dê boa noite - respondeu uma voz de homem.

- Seria possível, amigo, eu passar a noite aqui, para seguir de madrugada?

- Se quiser, pode; mas, como o senhor sabe, por aqui não tem água nem p'ra bicho, nem p'ra gente.

- Isso é o menos - atalhou João Lucrécio, apeando-se. - Eu trago ração de milho e uma borracha com água. O que eu quero é só licença para ficar.

Meia hora depois, na salinha da casa pobre, ceava o paraoara o rancho comprado em Sobral: um pedaço de carne, farinha, um quilo de bolacha, uma lata de sardinha e uma garrafa de vinho. Ao lado dele, junto ao tamborete improvisado em mesa, o dono da casa um caboclo de musculatura forte, escaveirado, acompanhava-o na refeição, a que se associava a mulher, esquelética, em cujos olhos afundados nas órbitas luziam a dor e a fome. Em poucos instantes o pequeno farnel foi todo devorado. E como se sentissem, todos, por um momento, felizes, o seringueiro pôs-se a falar, com a indiscrição alegre da meia embriagues.

- O senhor não é mesmo daqui.. - aventurou o dono da casa, atordoado também pelo vinho que aceitara dó hóspede, e que começava a atuar sobre a sua debilidade.

- Não, senhor - informou o paraoara - Eu sou do Rio Grande do Norte. Vim por aqui para passear... Fui p'ra Amazonas e fui feliz. Ganhei um dinheirinho, e agora vim ver isto por aqui... Quero ver se compro alguma fazenda barata, lá para o pé da serra...

E, jovial, por efeito do álcool, e, não menos, por vaidade, para escandalizar a miséria alheia:

- Dinheiro é que não falta!

E arrancou do bolso um forte maço de cédulas, capeado por duas de quinhentos mil réis, que passou às mãos trêmulas do sertanejo e da mulher, que as examinaram, piscando.

Em seguida, os donos da casa armaram, mesmo na sala humilde, a rede do hóspede. Desejaram-lhe boa noite, e recolheram-se, pensativos, para o fundo da cabana. Voava-lhes no cérebro o bando agoureiro pensamentos sinistros, que nenhum dos tinha coragem de confessar ao outro.

 

VI

 

Qual dos dois falou primeiro, não se poderia, talvez, descobrir. E ainda menos o que teria primeiro lembrado ao outro o insulto que constituía, perante Deus, a presença, ali, daquele estranho, tão despreocupado e tão rico, precisamente no dia em eles, tendo perdido todos os haveres, representados pelo gado morto de sede e pelo roçado destruído na fogueira do sol inclemente, pretendiam abandonar, a pé, aquelas terras adustas, afim de se unir em Sobral aos milhares de retirantes que viviam da caridade pública. A verdade é que, cerca de meia-noite, quando se não ouvia na cabana escura senão o roncar compassado do viajante e, lá fora, em torno à casa, o chocalho dos animais por ele trazidos, os dois, marido e mulher, penetraram, pé ante pé, na sala pequena. Um baque surdo, e fofo, um gemido abafado, um barulho de líquido em jorro, estremecimentos de um corpo que cessa de viver, e foi tudo. Minutos depois a enxada do antigo lavrador cavava, na escuridão da noite, atrás do curral vazio, uma cova estreita e rasa. E nela desaparecia, para sempre, com a rede em que adormecera, o paraoara feliz. Tiradas as peias dos animais, foram estes espantados para longe, afim de afastar suspeitas, se estas surgissem. Acesa uma vela de carnaúba, contaram os dois, de mãos sôfregas, no interior da casa, o dinheiro encontrado nos bolsos do assassinado. Havia quatro contos e duzentos mil réis.

Vamos ver a bagagem, - convidou o marido, com tremores na voz, como quem começa a despertar de um sonho terrível.

Abertas as malas foi examinado, às pressas, o que nelas havia. Cortes de chita, espelhos, anéis, broches baratos, vidros de perfume, pentes, miudezas para presentes humildes. E latas de conservas, e doces. E roupas novas, algumas não vestidas ainda. De repente, no meio de tudo, um papel, uma conta, que talvez esclarecesse a identidade do morto.

- Lê tu, que sabes, - pediu o caboclo, passando a conta à mulher.

A sertaneja soletrou o primeiro nome. Soletrou o segundo, até o meio. Os lábios tremiam-lhe, como uma flor murcha acossada pelo vento. O papel caiu-lhe da mão, e a vela depois, apagando-se. E foi no escuro que ela, o estupor estampado na face, se atirou ao pescoço do companheiro.

- Vicente, meu marido da minh 'alma! - exclamou.

E agarrada ao esposo, num grito de desespero, os olhos escancarados na treva:

- Era... meu irmão!...

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 16 de julho de 2021

ROMA (CRÔNICA DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

ROMA

Dalton Trevisan

 

De Roma eu lembro da sede e dos degraus na rua. Inútil falar de qualquer monumento. Só da sede que me resseca a língua, andando nas ruas com escadas.

Soube pela primeira vez do sol em Roma ao ver as pessoas em fuga rente às fachadas brancas. Nas ruas todos seguem de cabeça baixa no lado da sombra. Atravessar uma praça é salto mortal de olho fechado na piscina ofuscante de luz.

Pela manhã ao erguer a cabeça do travesseiro você deixa a tua face molhada no lenço de Verônica.

Posso lavar o rosto com o próprio suor do rosto. Um fósforo aceso não apaga, queima até o fim.

Do vento em junho aqui não há notícia. Esses nichos nas fachadas, com a imagem de santos em santos louça, as únicas manhas negras nos paredões de luz.

Na próxima esquina eu mergulho a cabeça debaixo da fonte. Na seguinte, morrendo de sede, bebo na concha da mão a água cuspida por feias carrancas de pedra.

Os museus são corredores frescos, por onde passeio com sono e sede. Lá fora, as ruínas no meio da cidade --- da história antiga ou da última guerra?

É a estação do sol, do prato fundo de macarrão com garfo e colher, do vinho e, muito mais, da água. Ao refrigério das fontes luminosas me acolho para sentir no rosto os pingos do repuxo.

Paisagem menos de palácio, museu, estátua que das poderosas romanas. Nutrientes fatias de polenta na chapa. Nalgas fornidas, a pé ou de vespa, os longos cabelos esvoaçantes ao vento, num bando de anjos barulhentos.

Suas prendas têm mais cores que as madonas dos museus. Elas, sim, as próprias madonas vivas.

A carne, o osso --- ah, esses braços nus roubados da Vitória de Samotrácia!

Como entender a estátua se não viu a moça, vera loba romana? Ode a uma urna de água fresca do Tibre na epifania do amor.

Ó jarra de vinho generoso para matar a tua sede!


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 15 de julho de 2021

COMO NASCEU, VIVEU E MORREU A MINHA INSPIRAÇÃO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

COMO NASCEU, VIVEU E MORREU A MINHA INSPIRAÇÃO

Raul Pompéia

 

Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplendida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de um estudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá... Ela desculparia.

Que noite ia eu passar! Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha...

Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc. Conclusão: estava chic. Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... o que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?... Impaciência e dúvida; dois tormentos a me angustiarem...

Eu passeava pelo meu quarto, deitando vagamente uns olhares pelos meus desconjuntados móveis: aquelas minhas cadeiras, lembrando a careta de um choramigas a entortar o queixo; a mesa, gemendo sob um mundo de livros desencapados e sebentos; o meu toilette, quero dizer um velho compêndio de anatomia com uns frascos por cima e um espelho pequeno pregado na parede; a minha cama, com a coberta a escorregar languidamente para, o chão... Continuava a passear. Olhei ainda uma vez para o espelho e sorri-me, vendo lá dentro a minha gentil figura partida em quatro por duas rachaduras cruzadas no vidro... Que fazer?...

Debrucei-me na janela... Embaixo a rua, a atividade prosaica das cidades de alguma importância: idas e vindas e mais vindas do que idas, por causa da hora que era de jantar, (por tocar nisto... Eu não tinha ainda jantado. É o que me cumpria fazer; mas o meu plano era economizar um jantar, vingando-me à noite nos buffetes da menina...) Meus olhos corriam pela rua como andorinhas brincalhonas. Depois de percorrem o quarto, andavam pela rua em busca de resposta à minha pergunta: - que fazer?...

Por fim foram esbarrar no frontispício da igreja de... Começaram a subir... Brincaram nas janelas; contaram quantos vidros havia; examinaram os enfeites de arquitetura... Subiram mais, percorreram os sinos, o zimbório e foram pousar no pára-raios.

Estavam quase no céu. Daqui para ali, menos de um passo. Os olhos lá foram. Mergulharam-se erradios no azul... Que fazer?

Ora... enfim! Estava achada a resposta! Por que não veio ela mais cedo não o posso explicar.

Os meus olhos estavam no céu.

Era por uma tarde encantadora. Que cor a do firmamento nessa hora! Que abóbada incomparável a cobrir a rua!... Depois, aquelas nuvens mimosas, desfiando-se nos ares, como brancas meadas de lá nuns dedos sedutores... O sol a descambar, batendo de través na poeira levantada do chão pelos carros, que magníficas cortinas desdobravam pelas janelas das habitações velando-as como que de douradas gazes. No horizonte, por sobre a última linha de telhados e chaminés fumegantes, como se ostentavam aquelas colinas de um azulado branco feitas vapores tênues; como se recortavam sem fazer uma só volta que não fosse demorada e graciosa como as curvas de esbelto corpozinho de donzela...

Oh! Do quarto para fora, tudo o que se prendia aos céus por um raio de luz ou por uma ponta de vaporoso véu, tudo respirava poesia...

Eu achara a resposta. Que fazer?... Versos!... Feliz achado!... Um soneto ou alguns alexandrinos... qualquer cousa que desse claro testemunho do meu amor. O laço de fita com que eu ia mimosear o meu anjo era azul... Ótimo! Sobre o laço, um soneto!... Ouro sobre azul! Com certeza não dançaríamos somente (eu e ela) trocaríamos o primeiro beijo! Não esse beijo insípido que se dá a carregar aos zéfiros, entregando-se-lhes nas pontas dos dedos, mas um ósculo açucarado de lábios ardentes sobre a macieza de uma face. Um ideal realizado. Uma cousa assim como o contato com um jambo que houvesse roubado o veludo ao pêssego...

— Bravo! Já estou quase deitando verso de improviso! exclamei eu, notando a minha exaltação. Venha papel! venha pena! Cérebro, soma-te com o teu companheiro, o coração! Não brigueis desta vez como é de vosso costume... somai-vos um com o outro e vertei nesta folha de papel alguma cousa que não horrorize a Petrarca... Espírito de Dante, eu te evoco! vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste Beatriz! Dirceu, corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi todos! Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a imortalidade na memória dos homens!...

Nascera-me a inspiração! Ia metrificar alguma cousa que devia maravilhar os críticos... (aparte a modéstia: isto que escrevo não é para o público). Mas eu me sentia um pouco acima de mim mesmo... Sem dúvida era essa sensação mística a que experimentam todas essas cabeças de gênio, um momento antes de dar à luz qualquer produção sublime...

Molhei a pena, com um movimento nervoso. A minha impaciência (confesso-o) não era então para chegar à casa do meu bem, era para gravar no papel aquilo que me ardia no crânio. Molhei a pena...

Oh! desgraça! A infame pena trouxe na ponta um pingo de tinta, trêmulo, ameaçador. Desviei-a violentamente... foi a minha perdição...

Olhei triste para o meu punho esquerdo... Estava descansado sobre a folha de papel, quando o pingo... Maldição!... Ainda havia pouco, tão alvo, luzidio como porcelana... então, com uma feia nódoa circular negra... negra, de quase uma polegada de diâmetro e ainda a infiltrar-se pelo linho, a tomar cada vez mais vulto!...

Pobre camisa!... estragada!... Mais pobre de mim... Esse pingo era uma catástrofe. Aquela camisa era a única. Única! Triste verdade, cujas conseqüências me desesperavam.

— Adeus, meu anjo! disse eu, sem poder engolir um soluço.

Já não me era possível ir vê-la. Nem um companheiro morava comigo. Se morasse, talvez o mal fosse remediável. Mas não! Não havia esperança!... Comprar outra? Onde? Era um domingo... Com que dinheiro?... Era num fim de mês. Não havia esperança.

Aquele beijo que sonhei num instante de ebriedade desfez-se-me no espírito como a má impressão de um R. Não era só isto. A minha ausência seria notada pela menina. O que pensaria ela?... Talvez que eu, por mesquinho, quis poupar-me a despesa de oferecer-lhe qualquer cousa...

— Quando, gritei eu, aí está o meu laço de fita de cinco mil réis...

Ainda mais. Um baile leva a uma casa tantos pelintras... quem sabe se ela não se agradaria de algum desses bolas, esquecendo-se de mim?... E teria razão. A abelha, se aqui não encontra mel, vai buscá-lo acolá...

Momentos dolorosos os que passei nessa tarde! Depois de todos os pensamentos que me assaltaram brutalmente à primeira reflexão, foi que lembrei-me do meu soneto...

— Soneto para onde tu foste?...

Mais este golpe: - a minha inspiração morrera. Eu não sentia mais a exaltação auspiciosa de alguns minutos antes. Tudo perdido! Fora-se tudo!

Eu vi e jurá-lo-ei, se me não acreditarem, eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-me do quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os idiotas irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas públicas, quando disparam pelas ruas, de ardósia ao sovaco...

Nessa mesma tarde, fui à janela outra vez. Estava aflito e superexcitado. Parece-me, até, que tinha os olhos molhados. Pus-me a ver os transeuntes. Cada um que passava, para os lados na morada do objeto dos meus devaneios parecia um convidado de baile. Tortura.

Em seguida avistei a maldita torre, por onde meus olhos haviam subido ao céu que me inspirava a negregada lembrança de poetar.

Para acabar. A desgraça de que fora vítima fez-me esquecer o jantar, que positivamente era só o que eu devia perder não indo à festa. Não comi e não reparei nisso. Tornou-se inútil vingar-me da minha economia. Se neste particular não perdi, no resto ganhei.

A minha querida (soube-o depois) nem perguntou por mim na festa. Esteve alegre. Encontrou quem lhe agradasse (um sujeitinho com quem se vai casar). Melhor. Já estou consolado da desgraça, um mal que me veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O aborrecimento que hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmaram naquela tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava. Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo; ergo: ganhei... Estou na expectativa de um fim de ano esplêndido.

Mais uma palavra. O laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 14 de julho de 2021

ENTRE SANTOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ENTRE SANTOS

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho), aconteceu-me uma aventura extraordinária.

Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.

O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.

Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranqüilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma idéia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante idéia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma coisa extraordinária.

Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos.

Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.

Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.

Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma coisa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as coisas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.

Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.

- Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.

- Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha - ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.

- Eu?

- Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.

- Que pessoa?

- Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel...

- Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.

- Melhor é o meu caso.

- Melhor que isto? perguntou S. José curioso.

- Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.

Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que vêem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar.

- Tem cinqüenta anos o meu homem, disse ele, a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura.

- Bem podia ser que sim, ponderou S. João.

- Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...

E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros.

- O cadáver?

- Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma coisa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito.

- Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel.

- Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das coisas. O mundo não vê que, além de caseira eminente educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas, entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim, que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra coisa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.

Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substância.

- Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma idéia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher - intuição de avaro; - despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar.

- Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.

- Alguma tem, mas vaga, e econômica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.

- Bem, ajoelhou-se e rezou.

- Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...

No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre.

Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas coisas soltas, - Deus, - os anjos do Senhor, - as bentas chagas, - palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem.

O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse...

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, - não menos, - trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000 - 1.000 - 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.

E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranqüilo, beato e católico.

Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 13 de julho de 2021

AS JAOBITAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

AS JACOBITAS

Humberto de Campos

 

 

Chegada há pouco do Oriente, onde visitara, em companhia do esposo, alguns países exóticos, D. Margaridinha descrevia aos seus vizinhos de mesa, no banquete oferecido ao casal pela excelentíssima viúva Santos Soutelo, algumas curiosidades que mais lhe haviam ferido a atenção.

 

— A coisa mais interessante que eu assisti, — dizia, sorridente, enxugando com o guardanapo de linho os seus polpudos lábios cor de cereja, — foi um costume dos jacobitas, seita religiosa cujo mosteiro visitamos no Malabar.

 

As damas vizinhas descansaram o talher para ouvir melhor, e D. Margaridinha, irrequieta e risonha, contou:

 

— Quando um jacobita se casa, o seu primeiro cuidado consiste em ir ao templo no mosteiro, e pedir ao seu Deus que lhe dê uma descendência numerosa e sadia, para maior esplendor da religião. Feito isso, toma diversos pedaços de papel, escreve em cada um deles um nome de homem ou de mulher, mete-os em um canudo de bambu que os sacerdotes lhe oferecem, e, colocado a certa distância do ídolo, sopra o canudo, com toda força. Impelidos assim, os papeluchos partem rodopiando e quantos caiam sobre o altar, tantos serão os filhos que o casal deve ter!

 

— Esplêndido! — exclamaram as senhoras, rindo. — Esplêndido!

 

À observação, porém, de uma que lhe ficava mais próximo, a linda viajante objetou, jovial:

 

— Eu? Experimentei, sim!

 

E sem olhar para o marido, que a fixava, severo, continuou:

 

— Alfredo tem, como não é segredo, um desejo enorme de ter um filhinho. E é natural, coitado! Enquanto estamos no vigor da idade, os filhos não nos fazem falta, porque viajamos, passeamos, nos divertimos. Mas, depois, na velhice, é que se sente a tristeza, o abandono, a solidão... Pensando nisso, nós fomos, um dia, no Malabar, ao templo dos jacobitas.

 

— A senhora?

 

— Então? Era o último recurso, filha! Chegando lá, Alfredo escreveu uma porção de nomes, bem uns cinquenta, em outros tantos pedaços de papel, meteu-os no bambu e soprou com toda a força.

 

— E quantos caíram no altar? — indagaram as senhoras, interessadas.

 

E madame:

 

— Nenhum, meninas, nenhum!

 

E explicou:

 

— Ele, na sua ansiedade, havia posto papel demais no bambu, e...

 

— E...

 

— Entupiu o canudo!...

 

E soltou uma das suas gargalhadas sonoras, altas, musicais, enquanto o marido, vermelho, se engasgava, a um canto, com a sobremesa, à semelhança dos canudos do Malabar...

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 11 de julho de 2021

NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO

Alcântara Mchado

 

 

O coronel recusou a sopa.

- Que é isso, Juca? Está doente?

O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a língua.

- Que é que você tem, homem de Deus?

O coronel não disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pôs os óculos. Começou a ler:

Ex.mo snr. coronel Juca.

- De quem é?

- Do administrador da Santa Inácia.

- Já sei. Geada?

- Escute. Ex.mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudações. Em primeiro lugar Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosameute comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante as chuvarada desta semana. E tal e tal e tal. Me acho doente diversos incomodos divido o serviço.

- Coitado.

- Mas não é isso. O major Domingo Neto mandou buscar a vacca... Oh senhor! Não acho...

- Na outra página, Juca.

- Está aqui. Vá escutando. Em último lugar, vos communico que o seu comprade João Intaliano morreu...

- Meu Deus, não diga?!

- ... morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me mande dizer o distino e tal. E agora, mulher?

Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de água. Mandou levar a sopa.

- E então?

Dona Nequinha passou a língua nos lábios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote.

- E então? Que é que eu respondo?

Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois:

- Vamos pensar bem primeiro, Juca. Não coma o torresmo que faz mal. Amanhã você responde. E deixe-se de extravagâncias.


Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria.

Tomou o coche Hudson que estava à sua espera.

Veio desde a estação até a Avenida Higienópolis com a cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.

- Tire o chapéu.

Tirou.

- Diga boa noite.

Disse.

- Beije a mão dos padrinhos.

Beijou.

- Limpe o nariz.

Limpou com o chapéu.


- Pronto, Nhãzinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com dó dele. Pois é. Coitadinho. Imagine. Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O quê? É sim. Nome meio esquisito. Também acho. O Juca está que não pode mais de satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás. O pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco anos já. Bom, Nhãzinha. O Juca está me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Até amanhã, Nhãzinha. Que é que você queria, Juca?

- Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu.

- O Gennarinho, é?

- Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsué.

- Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já...

- É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado.

- ... dar uns tapas nele.

- Não faça isso, ora essa! Dar à toa no menino!

- Não é à toa, Juca.

- Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais jeito.

Um dia na mesa o coronel implicou:

- Esse negócio de Gennarinho não está certo. Gennarinho não é nome de gente. Você agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Êta menino impossível! Sente-se já aí direito! Você passa a se chamar Januário. Ouviu?

- Ouvi.

- Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor.

- Ouvi, sim senhor coronel!

Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência.


Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou:

- Juca: você já pensou no futuro do menino?

O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando:

- Já-á-á!...

- Que é que você resolveu?

O coronel levou um susto.

- O quê? Resolveu o quê?

- O futuro do menino, homem de Deus!

- Hã!...

- Responda.

O coronel coçou primeiro o pescoço.

- Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada.

O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão.

- Mas você não há de querer que ele cresça um vagabundo, eu espero.

- Pois está visto que não quero.

Aproveitando o silêncio o despertador bateu mais forte no criado-mudo. Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. São José dentro de sua redoma espiou o vôo de dois pernilongos.

- Eu acho que... Apague a luz que está me incomodando.

- Pronto. Acho o quê?

- Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino num colégio.

- Num colégio de padres.

- É.

- Eu sou católica. Você também é. O Januário também será.

- Muito bem...

- Você parece que está dizendo isso assim sem muito entusiasmo...

Era sono.

- Amanhã-ã-ã... ai! ai!... nós vemos isso direito, Nequinha...

Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem pôs ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da cabeça.

- Agora só falta a merenda.

Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira.

- Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado.

A comoção era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata azul do Januário. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro. Januário fez uma cara de vítima.

- Vamos indo que está na hora.

Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente.

- Vá, meu filhinho. E tenha muito juízo, sim? Seja muito respeitador. Vá.

Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou o coronel.


A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio e beijava a mão do Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes.

- Cumprimente o Senhor Reitor.

D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januário. Januário tremeu.

- Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama?

Januário não respondeu.

- Diga o seu nome para o Senhor Reitor.

- Januário.

- Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê?

Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu.

- Diga o seu nome todo, menino!

Com os olhos no coronel:

- Januário Peixoto de Faria.

O porteiro apareceu com unia sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin!

O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 10 de julho de 2021

CANTIGA VELHA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

CANTIGA VELHA

Machado de Assis

 

 

Conversávamos de cantigas populares. Entre o jantar e o chá, quatro pessoas tão-somente, longe do voltarete e da polca, confessem que era uma boa e rara fortuna. Polca e voltarete são dois organismos vivos que estão destruindo a nossa alma; é indispensável que nos vacinem com a espadilha e duas ou três oitavas do Caia no beco ou qualquer outro título da mesma farinha. Éramos quatro e tínhamos a mesma idade. Eu e mais dois pouco sabíamos da matéria; tão-somente algumas reminiscências da infância ou da adolescência. O quarto era grande ledor de tais estudos, e não só possuía alguma coisa do nosso cancioneiro, como do de outras partes. Confessem que era um regalo de príncipes.

 

Esquecia-me dizer que o jantar fora copioso; notícia indispensável à narração, porque um homem antes de jantar não é o mesmo que depois do jantar, e pode-se dizer que a discrição é muitas vezes um momento gastronômico. Homem haverá reservado durante a sopa, que à sobremesa põe o coração no prato, e dá-o em fatias aos convivas. Toda a questão é que o jantar seja abundante, esquisito e fino, os vinhos frios e quentes, de mistura, e uma boa xícara de café por cima, e para os que fumam um havana de cruzado. Reconhecido que isto é uma lei universal, admiremos os diplomatas que, na vida contínua de jantares, sabem guardar consigo os segredos dos governos. Evidentemente são organizações superiores.

 

O dono da casa dera-nos um bom jantar. Fomos os quatro, no fim para junto de uma janela, que abria para um dos lados da chácara. Posto estivéssemos no verão, corria um ventozinho fresco, e a temperatura parecia impregnada das últimas águas. Na sala de frente, dançava-se a polca; noutra sala jogava-se o voltarete. Nós, como digo, falávamos de cantigas populares.

 

— Vou dar-lhes uma das mais galantes estrofes que tenho ouvido, disse um de nós. Morava na Rua da Carioca, e um dia de manhã ouvi do lado dos fundos, esta quadrinha:

 

Coitadinho, como é tolo

Em cuidar que eu o adoro

Por me ver andar chorando...

Sabe Deus por quem eu choro!

 

O ledor de cancioneiros pegou da quadra para esmerilhá-la com certa pontinha de pedantismo; mas outro ouvinte, o Dr. Veríssimo, pareceu inquieto; perguntou ao primeiro o número da casa em que morara; ele respondeu rindo que uma tal pergunta só se podia explicar da parte de um governo tirânico; os números das casas deixam-se nas casas. Como recordá-los alguns anos depois? Podia dizer-lhe em que ponto da rua ficava a casa; era perto do Largo da Carioca, à esquerda de quem desce, e foi nos anos de 1864 e 1865.

 

— Isso mesmo, disse ele.

 

— Isso mesmo, quê?

 

— Nunca viu a pessoa que cantava?

 

— Nunca. Ouvi dizer que era uma costureira, mas não indaguei mais nada. Depois, ainda ouvi cantar pela mesma voz a mesma quadrinha. Creio que não sabia outra. A repetição fê-la monótona, e...

 

— Se soubessem que essa quadrinha era comigo! disse ele sacudindo a cinza do charuto.

 

E como lhe perguntássemos se ele era o aludido do último verso — Sabe Deus por quem eu choro, respondeu-nos que não. Eu sou o tolo do princípio da quadra. A diferença é que não cuidava, como na trova, que ela me adorasse; sabia bem que não. Menos essa circunstância, a quadra é comigo. Pode ser que fosse outra pessoa que cantasse; mas o tempo, o lugar da rua, a qualidade de costureira, tudo combina.

 

— Vamos ver se combina, disse o ex-morador da Rua da Carioca piscando-me o olho. Chamava-se Luísa?

 

— Não; chamava-se Henriqueta.

 

— Alta?

 

— Alta. Conheceu-a?

 

— Não; mas então essa Henriqueta era alguma princesa incógnita, que...

 

— Era uma costureira, retorquiu o Veríssimo. Nesse tempo era eu estudante. Tinha chegado do Sul poucos meses antes. Pouco depois de chegado... Olhem, vou contar-lhes uma coisa muito particular. Minha mulher sabe do caso, contei-lhe tudo, menos que a tal Henriqueta foi a maior paixão da minha vida... Mas foi; digo-lhe que foi uma grande paixão. A coisa passou-se assim...

 

 

 

CAPÍTULO II

 

— A coisa passou-se assim. Vim do Sul, e fui alojar-me em casa de uma viúva Beltrão. O marido desta senhora perecera na guerra contra o Rosas; ela vivia do meio soldo e de algumas costuras. Estando no Sul, em 1850, deu-se muito com a minha família; foi por isso que minha mãe não quis que eu viesse para outra casa. Tinha medo do Rio de Janeiro; entendia que a viúva Beltrão desempenharia o seu papel de mãe, e recomendou-me a ela.

 

  1. Cora recebeu-me um pouco acanhada. Creio que era por causa das duas filhas que tinha, moças de dezesseis e dezoito anos, e pela margem que isto podia dar à maledicência. Talvez fosse também a pobreza da casa. Eu supus que a razão era tão-somente a segunda, e tratei de lhe tirar escrúpulos mostrando-me alegre e satisfeito. Ajustamos a mesada. Deu-me um quarto, separado, no quintal. A casa era em Mata-Porcos. Eu palmilhava, desde casa até à Escola de Medicina, sem fadiga, voltando à tarde, tão fresco como de manhã.

 

As duas filhas eram bonitinhas; mas a mais velha, Henriqueta, era ainda mais bonita que a outra. Nos primeiros tempos mostraram-se muito reservadas comigo. Eu, que só fui alegre, no primeiro dia, por cálculo, tornei ao que costumava ser; e, depois do almoço ou do jantar, metia-me comigo mesmo e os livros, deixando à viúva e às filhas toda a liberdade. A mãe, que queria o meu respeito, mas não exigia a total abstenção, chamou-me um dia bicho-do-mato.

 

— Olhe que estudar é bom, e sua mãe quer isso mesmo, disse-me ela; mas parece que o senhor estuda demais. Venha conversar com a gente.

 

Fui conversar com elas algumas vezes. D. Cora era alegre, as filhas não tanto, mas em todo caso muito sociáveis. Duas ou três pessoas da vizinhança iam ali passar algumas horas, de quando em quando. As reuniões e palestras repetiram-se naturalmente, sem nenhum sucesso extraordinário, ou mesmo curioso, e assim se foram dois meses.

 

No fim de dois meses, Henriqueta adoeceu, e eu prestei à família muito bons serviços, que a mãe agradeceu-me de todos os modos, até ao enfado. D. Cora estimava-me, realmente, e desde então foi como uma segunda mãe. Quanto a Henriqueta, não me agradeceu menos; tinha, porém, as reservas da idade, e naturalmente não foi tão expansiva. Eu confesso que, ao vê-la depois, convalescente, muito pálida, senti crescer a simpatia que me ligava a ela, sem perguntar a mim mesmo se uma tal simpatia não começava a ser outra coisa. Henriqueta tinha uma figura e um rosto que se prestavam às atitudes moles da convalescença, e a palidez desta não fazia mais do que acentuar a nota de distinção da sua fisionomia. Ninguém diria ao vê-la, fora, que era uma mulher de trabalho.

 

Apareceu por esse tempo um candidato à mão de Henriqueta. Era um oficial de secretaria, rapaz de vinte e oito anos, sossegado e avaro. Esta era a fama que ele tinha no bairro; diziam que não gastava mais de uma quarta parte dos vencimentos, emprestava a juros outra quarta parte, e aferrolhava o resto. A mãe possuía uma casa: era um bom casamento para Henriqueta. Ela, porém, recusou; deu como razão que não simpatizava com o pretendente, e era isso mesmo. A mãe disse-lhe que a simpatia viria depois; e, uma vez que ele não lhe repugnava, podia casar. Conselhos vãos; Henriqueta declarou que só casaria com quem lhe merecesse. O candidato ficou triste, e foi verter a melancolia no seio da irmã de Henriqueta, que não só acolheu a melancolia, como principalmente o melancólico, e os dois casaram-se no fim de três meses.

 

— Então? dizia Henriqueta rindo. O casamento e a mortalha...

 

Eu, pela minha parte, fiquei contente com a recusa da moça; mas, ainda assim, não atinei se era isto uma sensação de amor. Vieram as férias, e fui para o Sul.

 

No ano seguinte, tornei à casa de D. Cora. Já então a outra filha estava casada, e ela morava só com Henriqueta. A ausência tinha feito adormecer em mim o sentimento mal expresso do ano anterior, mas a vista da moça acendeu-o outra vez, e então não tive dúvida, conheci o meu estado, e deixei-me ir.

 

Henriqueta, porém, estava mudada. Ela era alegre, muito alegre, tão alegre como a mãe. Vivia cantando; quando não cantava, espalhava tanta vida em volta de si, que era como se a casa estivesse cheia de gente. Achei-a outra; não triste, não silenciosa, mas com intervalos de preocupação e cisma. Achei-a, digo mal; no momento da chegada apenas tive uma impressão leve e rápida de mudança; o meu próprio sentimento encheu o ar ambiente, e não me permitiu fazer logo a comparação e a análise.

 

Continuamos a vida de outro tempo. Eu ia conversar com elas, à noite, às vezes os três sós, outras vezes com alguma pessoa conhecida da vizinhança. No quarto ou quinto dia, vi ali um personagem novo. Era um homem de trinta anos, mais ou menos, bem parecido. Era dono de uma farmácia do Engenho Velho, e chamava-se Fausto. Éramos os únicos homens, e não só não nos vimos com prazer, mas até estou que nos repugnamos intimamente um ao outro.

 

Henriqueta não me pareceu que o tratasse de um modo especial. Ouvia-o com prazer, acho eu; mas não me ouvia com desgosto ou aborrecimento, e a igualdade das maneiras tranqüilizou-me nos primeiros dias. No fim de uma semana, notei alguma coisa mais. Os olhos de ambos procuravam-se, demoravam-se ou fugiam, tudo de um modo suspeito. Era claro que, ou já se queriam, ou caminhavam para lá.

 

Fiquei desesperado. Chamei-me todos os nomes feios: tolo, parvo, maricas, tudo. Gostava de Henriqueta, desde o ano anterior, vivia perto dela, não lhe disse nada; éramos como estranhos. Vem um homem estranho, que nunca a vira provavelmente, e fez-se ousado. Compreendi que a resolução era tudo, ou quase tudo. Entretanto, refleti que ainda podia ser tempo de resgatar o perdido, e tratei, como se diz vulgarmente, de deitar barro à parede. Fiz-me assíduo, busquei-a, cortejei-a. Henriqueta pareceu não entender, e não me tratou mal; quando, porém, a insistência da minha parte foi mais forte, retraiu-se um pouco, outro pouco, até chegar ao estritamente necessário nas nossas relações.

 

Um dia, pude alcançá-la no quintal da casa, e perguntei-lhe se queria que me fosse embora.

 

— Embora? repetiu ela.

 

— Sim, diga se quer que eu vá embora.

 

— Mas como é que hei de querer que o senhor se vá embora?

 

— Sabe como, disse-lhe eu dando à voz um tom particular.

 

Henriqueta quis retirar-se; eu peguei-lhe na mão; ela olhou espantada para as casas vizinhas.

 

— Vamos, decida?

 

— Deixe-me, deixe-me, respondeu ela.

 

Puxou a mão e foi para dentro. Eu fiquei sozinho. Compreendi que ela pertencia ao outro, ou pelo menos, não me pertencia absolutamente nada. Resolvi mudar-me; à noite fui dizê-lo à mãe, que olhou espantada para mim e perguntou-me se me tinham feito algum mal.

 

— Nenhum mal.

 

— Mas então...

 

— Preciso mudar-me, disse eu.

 

  1. Cora ficou abatida e triste. Não podia atinar com a causa; e pediu-me que esperasse até o fim do mês; disse-lhe que sim. Henriqueta não estava presente, e eu pouco depois saí. Não as vi durante três dias. No quarto dia, achei Henriqueta sozinha na sala; ela veio para mim, e perguntou-me por que motivo ia sair da casa. Calei-me.

 

— Sei que é por mim, disse ela.

 

Não lhe disse nada.

 

— Mas que culpa tenho eu se...

 

— Não diga o resto. Que culpa tem de não gostar de mim? Na verdade, nenhuma culpa; mas, se eu gosto da senhora, também não tenho culpa, e, nesse caso, para que castigar-me com a sua presença forçada?

 

Henriqueta ficou alguns minutos calada, olhando para o chão. Tive a ingenuidade de supor que ela ia aceitar-me, só para não ver-me ir; acreditei ter vencido o outro, e iludia-me. Henriqueta pensava no melhor modo de me dizer uma coisa difícil; e afinal, achou-o, e foi o modo natural, sem reticências nem alegorias. Pediu-me que ficasse, porque era um modo de ajudar as despesas da mãe; prometia-me, entretanto, que apareceria o menos que pudesse. Confesso-lhes que fiquei profundamente comovido. Não achei nada que responder; não podia teimar, não queria aceitar, e, sem olhar para ela, sentia que faltava pouco para que as lágrimas lhe saltassem dos olhos. A mãe entrou; e foi uma fortuna.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Veríssimo interrompeu a narração, porque algumas moças entraram a buscá-la. Faltavam pares; não admitiam demora.

 

— Dez minutos, ao menos?

 

— Nem dez.

 

— Cinco?

 

— Cinco apenas.

 

Elas saíram; ele concluiu a história.

 

— Retirado ao meu quarto, meditei cerca de uma hora no que me cumpria fazer. Era duro ficar, e eu chegava a achar até humilhante; mas custava-me desamparar a mãe, desprezando o pedido da filha. Achei um meio-termo; ficava pensionista como era; mas passaria fora a maior parte do tempo. Evitaria a combustão.

 

  1. Cora sentiu naturalmente a mudança, ao cabo de quinze dias; imaginou que eu tinha algumas queixas, rodeou-me de grandes cuidados, até que me interrogou diretamente. Respondi-lhe o que me veio à cabeça, dando à palavra um tom livre e alegre, mas calculadamente alegre, quero dizer com a intenção visível de fingir. Era um modo de pô-la no caminho da verdade, e ver se ela intercedia em meu favor.

 

  1. Cora, porém, não entendeu nada.

 

Quanto ao Fausto, continuou a freqüentar a casa, e o namoro de Henriqueta acentuou-se mais. Candinha, a irmã dela, é que me contava tudo, — o que sabia, ao menos, — porque eu, na minha raiva de preterido, indagava muito, tanto a respeito de Henriqueta como a respeito do boticário. Assim é que soube que Henriqueta gostava cada vez mais dele, e ele parece que dela, mas não se comunicavam claramente. Candinha ignorava os meus sentimentos, ou fingia ignorá-los; pode ser mesmo que tivesse o plano de substituir a irmã. Não afianço nada, porque não me sobrava muita penetração e frieza de espírito. Sabia o principal, e o principal era bastante para eliminar o resto.

 

O que soube dele é que era viúvo, mas tinha uma amante e dois filhos desta, um de peito, outro três anos. Contaram-me mesmo alguns pormenores acerca dessa família improvisada, que não repito por não serem precisos, e porque as moças estão esperando na sala. O importante é que a tal família existia.

 

Assim se passaram dois longos meses. No fim desse tempo, ou mais, quase três meses, — D. Cora veio ter comigo muito alegre; tinha uma notícia para dar-me, muito importante, e queria que eu adivinhasse o que era, — um casamento.

 

Creio que empalideci. D. Cora, em todo caso, olhou para mim admirada, e, durante alguns segundos, fez-se entre nós o mais profundo silêncio. Perguntei-lhe afinal o nome dos noivos; ela disse-me a custo que a filha Candinha ia casar com um amanuense de secretaria. Creio que respirei; ela olhou para mim ainda mais espantada.

 

A boa viúva desconfiou a verdade. Nunca pude saber se ela interrogou a filha; mas é provável que sim, que a sondasse, antes de fazer o que fez daí a três semanas. Um dia, vem ter comigo, quando eu estudava no meu quarto; e, depois de algumas perguntas indiferentes, variadas e remotas, pediu-me que lhe dissesse o que tinha. Respondi-lhe naturalmente que não tinha nada.

 

— Deixe-se de histórias, atalhou ela. Diga-me o que tem.

 

— Mas o que é que tenho?

 

— Você é meu filho; sua mãe autorizou-me a tratá-lo como tal. Diga-me tudo; você tem alguma paixão, algum...

 

Fiz um gesto de ignorância.

 

— Tem, tem, continuou ela, e há de me dizer o que tem. Talvez tudo se esclareça se alguém falar, mas não falando, ninguém...

 

Houve e não houve cálculo nestas palavras de D. Cora; ou, para ser mais claro, ela estava mais convencida do que dizia. Eu supunha-lhe, porém, a convicção inteira, e caí no laço. A esperança de poder arranjar tudo, mediante uma confissão à mãe, que me não custava muito, porque a idade era própria das revelações, deu asas às minhas palavras, e dentro de poucos minutos, contava eu a natureza dos meus sentimentos, sua data, suas tristezas e desânimos. Cheguei mesmo a contar a conversação que tivera com Henriqueta, e o pedido desta. D. Cora não pôde reter as lágrimas. Ela ria e chorava com igual facilidade; mas naquele caso, a idéia de que a filha pensara nela, e pedira um sacrifício por ela, comoveu-a naturalmente. Henriqueta era a sua principal querida.

 

— Não se precipite, disse-me ela no fim: eu não creio no casamento com o Fausto; tenho ouvido umas coisas... bom moço, muito respeitado, trabalhador e honesto. Digo-lhe que me honraria com um genro assim; e a não ser você, preferia a ele. Mas parece que o homem tem umas prisões...

 

Calou-se, à espera que eu confirmasse a notícia; mas não respondi nada. Cheguei mesmo a dizer-lhe que não achava prudente indagar mais nada, nem exigir. Eu no fim do ano tinha de retirar-me; e lá passaria o tempo. Provavelmente disse ainda outras coisas, mas não me lembro.

 

A paixão dos dois continuou, creio que mais forte, mas singular da parte dele. Não lhe dizia nada, não lhe pedia nada; parece mesmo que não lhe escrevia nada. Gostava dela; ia lá com freqüência, quase todos os dias.

 

  1. Cora interveio um dia francamente, em meu favor. A filha não lhe disse coisa diferente do que me dissera, nem com outra hesitação. Respondeu que não se pertencia, e, quando a mãe exigiu mais, disse que amava ao Fausto, e casaria com ele, se ele a pedisse, e nenhum outro, ao menos por enquanto. Ele não a pedia, não a soltava; toda a gente supunha que a razão verdadeira do silêncio e da reserva era a família de empréstimo. Vieram as férias; fui para o Rio Grande, voltei no ano seguinte, e não tornei a morar com D. Cora.

 

Esta adoeceu gravemente e morreu. Cândida, já casada, foi quem a enterrou; Henriqueta foi morar com ela. A paixão era a mesma, o silêncio o mesmo, e a razão provavelmente não era outra, senão a mesma. D. Cora pediu a Henriqueta, na véspera de expirar, que casasse comigo. Foi Henriqueta mesma quem me contou o pedido, acrescentando que lhe respondeu negativamente.

 

— Mas que espera a senhora? disse-lhe eu.

 

— Espero em Deus.

 

O tempo foi passando, e os dois amavam-se do mesmo modo. Candinha brigou com a irmã. Esta fez-se costureira na tal casa da Rua da Carioca, honesta, séria, laboriosa, amando sempre, sem adiantar nada, desprezando o amor e a abastança que eu lhe dava, por uma ventura fugitiva que não tinha... Tal qual como na trova popular...

 

— Qual trova! nem meia trova! interromperam as moças invadindo o gabinete. Vamos dançar.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 08 de julho de 2021

EWMOÇÕES (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

EMOÇÕES

João do Rio

(Grafia original)

 

- Ontem, às 6 horas da tarde, fui buscar ao club da rua do Passeio o velho barão Belfort, que me prometera mostrar, três dias antes, sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava e perdia com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez. Ao ver-me, disse amavelmente:

- Estamos a jogar. O Oswaldo ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro. Estou perdendo e apreciando este bom Oswaldo, que ainda tem emoções.

Os seus olhares seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Oswaldo, e, a cada cartada, tamborilando os dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito. De repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na mesa, e perguntou, enquanto mais pálido o moço estacava:

- E tu não jogas?

- Não.

- Fazes bem. Um escritor do tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o veneno da perdição. O veneno! ora vê tu, o veneno!

Sorriu com delicadeza.

- O Oswaldo permite? Vou embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar água de flor de laranja...

Levantou-se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o pleno verão tomara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para trás. O moço pendia a cabeça na sombra, e assim pálido, como um pálido crisântemo, os seus olhos tinham chispas de susto e de prazer.

Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé, e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor-de-pérola. Belfort aconchegou-se à almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em ouro e, enquanto o carro rodava, indagou:

- Que tal achaste o Oswaldo? É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava escandalosamente... Não lhe disse nada. Ainda é possível salvá-lo...

- Quer perdê-lo? indaguei habituado às excentridades desse álgido ser.

- Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser o bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes emoções de em tomo. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção.

- Oh! ser horrível e macabro!

- Seja; horrível, macabro, mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Oswaldo, quero apenas gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a perdê-lo, c'est tropfort...

- Pois não imagina o mal que fez ao pobre Oswaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!

- Tal qual como o outro. Que exemplar, meu caro! que caso admirável! Esse pequeno há seis meses odiava o víspora. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de perdição que ainda desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O Oswaldinho é tal qual o outro, o chinês, a minha última observação.

- O chinês?

Belfort soprou o fumo da cigarrilha, sorrindo.

- Imagina que vai para um ano fui apresentado a um rapaz chamado Praxedes, filho de uma chinesa e de um negociante português em Macau.

O homem falava inglês, estava no comércio e vinha de Shangai, com um carregamento de poterias e bronzes por contrabando, para vender. Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada instante frases amáveis e casara com uma interessante rapariga, a Clotilde - Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers, confessou o contrabando e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!

O Praxedes saía pela manhã, trabalhava, voltava para o jantar e não se largava mais de junto da Clô. Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legislativamente moral.

Uma noite em que o convidara para jantar, jogávamos. Adivinharia alguém que cratera esperava o momento de rebentar nessa alma tranqüila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu piano, com voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocupado - "Quer jogar?"

"Não sei". "É sempre agradável ensinar mesmo o vício". - "Então ensine". Pegou das cartas, olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos começaram a luzir. Jogamos outra. - "Mas isso assim sem dinheiro? Ponhamos dois tostões". - "Pois seja". Perdi. "Redobra se a parada? ""Oito tostões?"

"Sim". - "Pois seja". À meia-noite jogávamos a dez mil-réis, e Clotilde, muito cansada, já sem cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar à mesa.

Deitei-me sem conclusões, e só no dia seguinte, quando o chinês enleado apareceu pedindo outra partida, é que compreendi o assombro. A paixão estalara, - a paixão voraz, que corrói, escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, joguei e perdi. No outro dia, Praxedes voltou. Levei-o ao club à roleta, donde saiu a ganhar pela madrugada.

Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre iminente, de um abismo em vertigem. O chinês era patético. Com os dedos trêmulos, assoando-se de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Praxedes rouquejava num estertor silvante que parecia agarrar-se desesperadamente à bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e a alma do pobre esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o número desejado, num esforço que o tomava roxo...

Jantei no club só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também durante três dias e três noites. Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do club, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes. Ao cabo de uma semana, entretanto, a chance desandou. Praxedes começou a perder bruscamente com gestos de alucinado, espalhando as fichas como quem arranca pedaços da própria carne.

- "Calma, meu caro, dizia-lhe eu". " Impossível! impossível!" murmurava ele.

Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a outros, deram-lho. Pediu mais

deixou de ser o dom Praxedes, recebeu recusas brutas. Acabou não voltando mais ao club. Eu, porém, sentia-o em outros antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem de carregar na vida...

Certa noite, meses depois, encontrei-o numa batota da rua da Ajuda, com

o fato enrugado e a gravata de lado. Correu para mim, "Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar Isto de mirone não me serve. Empreste-me cinqüenta mil-réis para arrumar tudo no 00. Ah! está dando hoje escandalosamente. Faremos uma vaca? Vai dar pela certa."

Agarrou a nota como um desesperado, precipitou-se na roda que cercava o tableau da direita: "Tenho aqui cincoentão; esperem!" E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.

O duble-zero falhou. Ele voltou cínico: "É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá? Olhe, escute aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve?"

- Compreendi então a descabida vertigem daquela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força para a rua, fi-lo contar-me a vida. Estava desempregado, abandonara o emprego, vendera o mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mudara-se para uma casa menor e alugara a sala da frente. A cábula, a má sorte, a guigne perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável soluçava: - "Havemos de melhorar, empreste-me algum. Estou sem níquel!"

Deixei-o sem níquel, mas fui ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos vermelhos de chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro... - "E seu marido?" - "Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o vejo; hoje não comi..." - "Abandone-o!" - "Abandoná-lo eu? E a sociedade, e ele? Que seria dele?" - "Ora, ele!" -"Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas que quer? Veio-lhe a desgraça. As vezes brigo, mas ele diz-me: Ai! Clô, que hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que desenrolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos, por aí, tão triste, tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a pedir..."

É espantoso, pois não? O homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses seres especiais conseguem coisas tão difíceis!

Um instante o barão calou-se. O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por sobre o mar a talagarça fuliginosa das primeiras sombras. - Respeitei a Clotilde, por sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido. Ao outro dia, porém, Praxedes, com sorrisinhos equívocos na face escaveirada: "Esteve com a Clô, hem? Conservada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois nãoRecuei assombrado. Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a mulher, para arranjar dinheiro com que satisfazer as cartas e a roleta, mercandejava-a aberta, cínica, despejadamente. - "Que queres tu? indaguei áspero, tem vergonha, vai, some-te!"

"Eu hipoteco uma mobília. Só quinhentos, só quinhentos!"

Era a alucinação. Corri-o, e esperei ansioso, como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu encontro com o Oswaldo, li, na cama às 3 da manhã, este bilhete desesperado: "Venha. Praxedes matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. - Clô".

Ai! menino, não sei o que senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo. Precipitei-me. Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o Necrotério, Clotilde, desgrenhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus braços. - "Então, como foi isso?" "Sei lá como foi! Tinha que ser! A desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram semanais. Não arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele, lívido, embrulhando a casaca do casamento. Não sei o que me deu. - "Onde vais?"

- "Vou ver se arranjo uns cobres, respondeu. Preciso jogar, sinto uma ânsia, não posso mais." - "Estás doido!" Não estou, Clô, não estou, fez ele arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se vendes a casaca ficas sem roupa para o enterro. Ele parou. "Para o enterro? para o meu enterro? É melhor mesmo, é melhor mesmo, eu não posso mais!" E, de repente, desesperado, começou a bater com a cabeça pelas paredes. Praxedes! Praxedes! Não faças isso! Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio com mais força de encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda o ouço! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agarrei-o. Arrastou-me até à janela, voltou-se, deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o pescoço desesperadamente e rodou...

"Oh! o horror! salve-me! salve-me!"

Abri o grupo dos agentes, fui ver Praxedes. Estava cor-de-cera, com a cabeça fendida e os lábios coagulados de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada, pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.

Esse record de emoção desesperada prostrou-me. Nunca vi sentir tão vertiginosamente.

O carro parara. O barão saltou, subiu devagar as escadas de mármore, enquanto no interior do palacete retiniam campainhas elétricas.

- Preciso sentir vendo os outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só assim tenho emoções. Garanto-te que o Oswaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro meio - com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir demais!

E fomos jantar tranqüilamente na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 07 de julho de 2021

O POÇO DOS MARIDOS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O POÇO DOS MARIDOS

Humberto de Campos

 

Fernandina Sobreira havia sido, até os vinte e três anos, uma das moças mais requestadas e formosas dos salões do Rio de Janeiro. Muito clara, cabelos castanhos, olhos suavemente azuis, porte mediano, nenhuma a sobrepujava nas maneiras, na elegância, na distinção e, principalmente, na graça de um sinalzinho petulante, que lhe dava ao rosto, na face esquerda, o retoque de uma brejeirice encantadora. Aquele sinalzinho era, podia-se dizer, o ponto final da formosura. Ao escrever o poema da beleza feminina, Deus havia posto, ali, a última palavra do derradeiro capítulo.

Os anos foram-se, porém, sucedendo, uns aos outros, como gotas da mesma clepsidra; e o certo é que, aos vinte e oito, a moça não havia encontrado marido. Amigas mais feias, ou, antes, menos bonitas, iam, uma a uma, recebendo o seu noivo, constituindo o seu lar, multiplicando o seu sangue; e ela, somente ela, de tantas que eram, lá se deixara ficar na casa de seu pai, cercada de admiradores, atordoada de lisonja, mas sem ver um homem que a convidasse, leal e sincero, para a constituição legal de um ninho em comum. A Belita Simpson, que não tinha os seus olhos nem o seu sorriso, havia encontrado o Dr. Mascarenhas, advogado estudioso e jovem, e lá andava pela Europa em passeio de núpcias, percorrendo as cidades, experimentando os climas, visitando os museus. A Alice Martins era, agora, mme. Lopes Taveira, arrastando pelo braço, nos salões e na Avenida, o grande médico seu marido. A Totinha casara com um deputado, e dava empregos, e a Tecla Meireles com um capitalista, e dava recepções. Só ela, que fora a mais graciosa, a mais elegante, a mais cobiçada, ali estava sozinha no seu leito de solteira, sentindo aproximar-se, após uma alvorada chilreante de pássaros, uma tarde triste, lúgubre, amortalhada em cinza e silêncio! Onde andava com a sua matilha e com os seus pagens o seu Príncipe Encantado, que não vinha, rápido, alarmando a floresta com as buzinas de caça, ao encontro da sua Princesa Adormecida?

Sem irmãs nem irmãos, que lhe dessem o conforto de uns sobrinhos pequeninos, Fernandina sentia-se oprimir, afogar, asfixiar, pelo instinto maternal do coração. O pai, alquebrado, não podia mais conduzi-la, com tanta freqüência, como dantes, a festas, a passeios, a teatros. Uma primeira ruga riscou-lhe a fronte lisa, partindo, como um fio telegráfico sem destino, o canto dos olhos. Combatida à força de loções, de ungüentos, de pomadas, multiplicou-se, dividiu-se, repartiu-se, abrindo novos caminhos para as lágrimas. E foi nessa idade, com o sol da mocidade em franco declínio, que Fernandina adormeceu e teve, uma noite, um sonho que a desiludiu.

Ao fechar os olhos, umedecidos em torno por uma loção que lhe haviam receitado, sentiu-se, de repente, transportada a uma grande campina, no fim da qual ressoavam harpas e citaras, que ela procurava e não via. Embevecida, olhava para o lado de onde lhe vinham aquelas vozes embaladoras, quando sentiu, de repente, que alguém lhe tocava no ombro. Voltou-se, assustada, e caiu de joelhos, gemendo:

- Minha madrinha! Minha madrinha! Amparai-me!

Ao seu lado, radiosa e doce, mal pisando a terra, sorria a imagem de Santa Rosa de Lima, sua madrinha e protetora, à qual havia rezado contritamente, aflitamente, antes de adormecer, pedindo a graça de um mando. Sorriso nos lábios, auréola à cabeça, mãos sobre o peito, a Santa Rosa fitava-a com ternura, quando, carinhosa, ordenou:

- Minha filha, vem...

E puseram-se a andar pela campina, uma ao lado da outra, mas tão leves, tão brandas, tão ligeiras, as duas, que nem pesavam sobre o relvedo orvalhado. Súbito, ouviram vozes. A planície havia desaparecido e Fernandina estava, agora, diante de um grande poço, em torno do qual se aglomeravam, apertando-se, empurrando-se, disputando, dezenas, centenas, milhares de moças. Espremendo uma, afastando outra, a rapariga chegou à beira do abismo, e viu: de dentro, saía, vagarosa, uma corda, puxada por um sacerdote, na qual vinha amarrado, de sete em sete palmos um homem, que as mulheres, em cima, recebiam debaixo de gritaria.

- Que é isso? - indagou, tímida, Fernandina, a uma desconhecida que lhe ficara ao lado.

- Então você está aqui, e não sabe?

E como percebesse a sinceridade daquela pergunta:

- Isto, aqui, é o Poço dos Maridos, o lugar de onde eles vêm. Essas moças que aqui vê, estão esperando cada uma aquele que lhe é destinado.

- E a senhora já encontrou o seu? - indagou Fernandina, admirada.

A outra baixou os olhos, e confessou:

- Não, senhora. Estou aqui há doze anos. Felizmente, ainda não perdi a esperança...

A rapariga ia rir da sua vizinha quando os seus olhos descobriram, do outro lado do poço, várias fisionomias amigas, debruçadas, todas, para o fundo insondável do abismo. Eram a Belita Simpson, a Alice Martins, a Dorinha Tavares, a Abigail Queiroz, a Ninita, a Mana da Graça, a Lúcia, a Vidinha, a Tude, a Graziela... E à medida que a corda subia, puxada incessantemente pelo sacerdote, desgarrava-se dela um homem jovem, ou velho, feio, ou bonito, a cujo pescoço pulava logo um vulto feminino, que nunca o tinha visto, mas que o esperava ansiosamente à beira do poço. E assim viu ela sair o Dr. Mascarenhas, o Lopes Taveira, o comandante Maia Cunha, o Dr. Casemiro Alves, o tenente Alberto Wellington, em cujos braços se atiraram, logo, a Belita, a Alice, a Tecla, a Totinha, a Maria da Graça, que lá se iam, felizes, pela campina, com os seus maridos...

De repente, Fernandina sentiu uma agitação íntima, um susto, uma inquietação deliciosa, uma espécie de pressentimento. Uma vontade de fugir, de esquivar-se, agitou-lhe os nervos, mas os pés a detiveram, autoritários, no mesmo lugar. Alguma coisa de grave, de inesperado, ia, necessariamente, acontecer. E estava ela nessa angústia, nessa tortura, encantada, quando a Santa, sua madrinha, lhe apareceu, de novo, anunciando-lhe:

- Minha filha, olha para o fundo do poço. Teu noivo, o homem que te é destinado para marido, está para chegar. É o oitavo, depois deste, que saiu agora.

O ímpeto de Fernandina foi o de atirar-se à Santa, abraçando-a, apertando-a, cobrindo-a de beijos gulosos, de furiosa gratidão. Era preciso, porém, olhar para o fundo do poço, e receber com os olhos, de longe, o seu prometido; a ansiedade dominou-a, curvando-a sobre o abismo. Debruçada para dentro, contou os vultos que se divisavam agarrados à corda:

- Um... dois... três... quatro... cinco... seis... sete... oito...

Era aquele. De longe, na meia escuridão, não lhe podia divisar as feições nem avaliar a idade. O coração batia-lhe, inquieto, sôfrego, descompassado. Um suor frio corria-lhe por todo o corpo, numa vertigem. As pernas tremiam-lhe, mal sustentando o peso do busto, amparado ao muro do poço. A manivela continuava, porém, a rodar, manejada pelo padre, e a corda a subir, trazendo gente. Agora, faltavam apenas quatro. Ele era o quinto. Apesar da penumbra, Fernandina via-lhe, já, as feições. Era jovem, sim! Jovem e bonito. Na sua coqueteria instintiva a moça levou as duas mãos ao cabelo, afofando o penteado. Mais um movimento da manivela e a claridade exterior atingiu-o. Chicoteado pelo jato de luz o rapaz ergueu o rosto, e encontrando, em cima, os olhos dela, encarou-a, e sorriu. Fernandina quase desmaia, de gozo, de prazer, de ventura. Toda ela era alvíssaras de carne, alvíssaras de nervos, alvíssaras de coração Agora, ele era o segundo. Olhos nos olhos, embebidos um no outro, as suas mãos já se tocavam, quase. Fernandina sorria e chorava. Mais uma volta da manivela, e estaria ele nos seus braços. Esperava, como se fosse um século, a passagem desse grão de areia na ampulheta da eternidade, quando um grito reboou, alarmando a multidão.

- Fujam! Fujam! - avisou alguém.

A massa humana recuou, espavorida, deixando Fernandina, sozinha, à beira do poço.

- A corda vai partir-se! - bradou a mesma voz, com terror.

Atordoada, a moça, voltou-se, e viu. Um pouco acima da sua cabeça, no ponto que passava pelo carretel, o cabo desfiava-se, rápido, ameaçando romper-se. Soltando um grito, a rapariga estendeu as mãos, aflita, louca, desesperada, para o fundo do poço. Era, porém, tarde. Rodopiando com o peso, o cabo se havia destorcido de repente, estalando num ruído seco, atirando, com um estrondo surdo, a sua carga humana no fundo do abismo!

Um grito de raiva, de angústia, de dor alucinante, alarmou, àquela hora da noite, a família Sobreira. Pessoas da casa acorreram, em trajes de dormir.

Curvada para fora do leito, os braços estendidos para o chão, o rosto lavado de lágrimas, Fernandina chorava nervosamente, aflitamente, agoniadamente, no seu primeiro ataque de histeria.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 06 de julho de 2021

QUESTÃO DE FAMÍLIA (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

QUESTÃO DE FAMÍLIA

Dalton Trevisan

 

Certa vez, Oswald de Andrade afirmou que a literatura era um sinal de menos e lendo o conto de Dalton Trevisan - "Questão de família" -podemos constatar a veracidade disso, porque de uma edição para outra, ele modificou vários trechos do conto, nas primeiras edições ele era mais direto, objetivo. Notemos algumas diferenças:

"(...) Elvira ficava com raiva da sogra".
"(...) Elvira se mordia de raiva".

"(...) tendo a mulher carregado tudo o que era dela. Elvira chegou a casa do velho Felipe chorando muito, com manchas azuis no corpo, Miguel havia batido nela por causa da sogra".
"(...) tendo a mulher carregado o que era dela."

Sendo as segundas frases da edição atual, percebemos que ele não nos dá a informação completa como na primeira, nesta edição (atual) só há a sugestão, e somente quando relemos o texto é que percebemos seu sentido, ele mexeu nas palavras, quando foi reeditado houve uma mudança em nível lexical, na qual as novas palavras vinham carregadas de sentido.
Lendo a segunda sentença da nova edição chegamos mais rápido em um significado errôneo, pois quando lemos que ele havia batido na mulher e ela partiu para casa do pai por causa deste fato, e logo na seqüência vem a informação que ele bebia no botequim para encarar a realidade, então imaginamos que o esposo que bebe, bate em sua mulher, trazendo à tona um velho clichê, e isso não é verdade neste texto, pois o que estava a causar problemas ao casal era a interferência de um terceiro na vida deles (a sogra), assim como primeiramente ele nos mostrou: o objeto da raiva de Elvira era que ela não gostava que a sogra se metesse em sua vida.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 05 de julho de 2021

VIVER E ESCREVER (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

VIVER E ESCREVER

Clarice Lispector

 

 

“Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.”
“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura.
O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”
“Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável”.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 04 de julho de 2021

COMÉRCIO DE FLORES (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

COMÉRCIO DE FLORES

Raul Pompéia

 

 

Flores! Quem quer as flores?

Todas as noites ali, principalmente às invernosas, quando são mais belas às flores, todas as noites à porta do teatro.

A alegria passava. Cavalheiros brilhantes de alvos peitilhos, pontuados de pedras rútilas, senhoras sérias, coradas de sangue feliz e rico, as beldades desordeiras, de uma em uma picando o passo com os finíssimos borzeguins feéricos, deixando na areia do átrio vestígios mínimos como os pés das corças, outras em atropelo, tossindo risos de bacante, permutando palavras confusas de estranhos idiomas, confusas e quentes como um hálito de alcova, como o rápido fulgor das cabeleiras louras que se agitavam na passagem, felizes e louras como a madureza dos trigos e a opulência das messes.

Quando a chuva caía, eram ainda alegres.

- Flores! Quem quer as flores?

Como são belas as flores quando chove!...

E elas passavam, as mulheres louras, confortadas nas mantilhas espessas, veludosas, que lembravam as friorentas ovelhas despidas.

- Quem quer as flores?

Todas rápidas a fugir do inverno que lhe não compravam um ramalhete. Entretanto, a pequenina mostrava, no tabuleiro de folha de dous fundos, que lindas cousas! As violetas, perpetuamente murchas como o sorriso dos pobres, mas que vão tão bem à mão das luvas claras, com o segredo artístico dos contrastes... Quando não: tinha, para os menos contemplativos, as rubras rosas como gargalhadas presas, vivas, rorejadas da chuva, luzindo ao gás como de um orvalho de topázios, bebendo a frescura d'água, no tabuleiro verde de flandres, vivas, à noite, como se guardassem nas pétalas todo o esplendor de um dia.

Ninguém comprava. Apenas o tentador, o mau! aquele elegante dissimulado, que olhava, falando, para outra banda, e torcia o bigode... Comprava tudo, mas que lhe fosse vender à casa... De que maneira ter às mãos tantas flores, se as comprasse ali?

Quem sabe, tem a miséria um encanto próprio? Talvez fosse a menina sedutora, de algum sabor amargo, novo, que os saciados prezam, variedade descendente que convida.

Ah! O tentador, o mau! Voltava sempre, como um pêndulo que tonteja!

Era bela a mercadora. Quinze anos. Miúda como de doze, feita porém como as mulheres em ponto.

Ao nariz, às faces, três sinais sangüíneos. Bela desse capricho, às vezes, de formosura que parece uma ironia da necessidade, redonda como as camélias dobradas, que às vezes tinha; diríamos nutrida, se não fosse a fome.

Tinha os dedos roídos de agulha. À tarde, uma senhora dava-lhe flores para vender.

- Quem quer as flores?

Até que uma noite ele veio; ela foi.

Ninguém comprava; tinha mãe doente, um incêndio de febre à testa, delírios, desmaios. Ninguém comprava!

Quando voltou à casa, tinha morrido a enferma.

E ela não teve uma flor para enfeitar a morta, que o tentador comprara todas.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 02 de julho de 2021

DIANA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

DIANA

Machado de Assis

 

 

Em certo dia do mês de março do ano da graça de 1863 encontravam-se na rua do Ouvidor, cidade do Rio de Janeiro, dois rapazes, ambos acompanhados de um criado carregando as respectivas malas.

- Luís!

- Alberto!

- Que é isso?

- A que horas chegas!

- Não pôde ser mais cedo. Venho do caminho de ferro neste momento. Mas tu, chegas também de Minas, ou partes para lá?

- Não chego nem vou para lá. Vou para o Rio Grande. Está a sair o vapor.

- Que volta tão repentina é essa?

- Assim é preciso.

- Isto só pelo diabo. Se eu soubesse de semelhante coisa tinha vindo mais cedo.

- De lá te escreverei. Adeus!

- Adeus!

E os dois amigos, depois de se abraçarem, separaram-se, tomando um para a hospedaria, outro para a praia dos Mineiros.

Alberto foi fazendo consigo as reflexões seguintes:

- Que diabo leva o Luís ao Rio Grande tão repentinamente? Este rapaz tem o juízo a arder...

Tempos depois Alberto recebia a seguinte carta de Porto Alegre, escrita pelo amigo Luís.

"Luís a Alberto. - Prezado amigo. - Só agora te escrevo porque só agora me é dado dispensar alguns minutos.

"Se fosses alguma destas suscetibilidades que tantas vezes encontrei dava-te outra razão, mentirosa decerto, mas suficiente para acalmar-te o espírito e consolar-te o coração.

"Mas prefiro a verdade. Eu te conheço, tu me conheces, nós nos conhecemos.

"Queres então saber que motivo me trouxe ao Rio Grande tão repentinamente? Um motivo simples: receber um legado. Tive notícia de que meu padrinho morrera e me deixara em testamento certa quantia assaz avultada para colocar-me acima das atribulações da vida.

"Que tal? É ou não uma tigela de maná que me veio do céu? Eu bem te dizia muitas vezes que tinha fé na minha estrela, e que estava certo de que não havia de ganhar fortuna pela simples posição de advogado provinciano.

"Mas já te ouço dizer contigo mesmo: Que tivesse um legado, concebe-se; mas que fosse ele próprio arrecadá-lo, isto é que eu acho esquisito.

"Respondo à tua reflexão:

"Podia dar procuração a alguém e ficar comodamente na corte à espera que lá me fosse ter às mãos a quantia legada por aquele chorado padrinho. Se não fiz isto foi por virtude de uma cláusula que o meu referido padrinho incluiu no testamento.

"Esta cláusula é a seguinte:

"Este legado só será entregue ao meu afilhado Luís depois que ele tiver, por virtude dos próprios esforços, descoberto em certo lugar, situado na casa tal, em Pelotas, um segredo que lá conservo.

"Deves compreender que eu não podia, estando na corte, descobrir o segredo de Pelotas.

"Por isso embarquei apenas recebi a notícia.

"Muitas vezes te falei neste padrinho como o mais singular e extravagante dos padrinhos. Sobre a condição que ele punha tinha eu a curiosidade de saber qual era esta nova excentricidade do velho.

"E parti.

"Ainda não fui a Pelotas, mas tratei de indagar que casa era aquela e quem residia lá. Disseram-me que a casa era propriedade de meu padrinho e estava vazia há cinco anos.

"Isto aguçou a minha curiosidade.

"Decididamente temos um mistério neste negócio.

"O que sobretudo me causa ainda maior assombro é não haver na cláusula a designação em que lugar da casa se acha o segredo. Será nas salas, nas alcovas, no terreiro, no teto ou no chão? Não sei. Mas o legado vale a pena, e eu tenho forças e tenacidade para levar a obra ao cabo.

"Disponho-me a partir dentro de alguns dias, munido de instrumentos e acompanhado do meu guasca.

"De tudo o que ocorrer dar-te-ei conta.

"Adeus. Não sejas preguiçoso. Escreve-me".

 

Alberto leu e releu esta carta. Sorriu à idéia de que Luís se achava envolvido em um mistério de romance. Ele sabia que o padrinho do advogado era um homem excêntrico, desta longa família que se ramifica por todas as raças e todos os países.

Direi em duas palavras quem eram os dois amigos.

Luís, advogado provinciano, como ele próprio diz, tinha tomado grau na faculdade de S. Paulo e tinha vindo advogar na corte. Fazia um ano que se achava aí sem ter conseguido nome nem fortuna. Alguma coisa que trouxera ia-se já gastando e o legado do padrinho veio na melhor ocasião.

Alberto, natural do Rio de Janeiro, era advogado, como ele, sem nome e sem fortuna, como ele filho da academia de S. Paulo, havendo em tanta harmonia e identidade uma única diferença: era o legado do padrinho de Luís.

A viagem a Minas feita por Alberto era por motivo de ir colher informações minuciosas para servir em processo.

O encontro de ambos já o leitor teve notícia no começo destas linhas.

 

* * *

 

Alberto não respondeu à carta de Luís por não ter certeza do lugar em que estaria este, se em Porto Alegre, se em Pelotas.

Esperou que da parte do amigo lhe chegassem comunicações necessárias.

Mas esperou em vão.

No fim de dois meses resolveu escrever uma carta em duplicata, mandando uma para cada uma das cidades onde Luís podia ser encontrado.

A carta de Alberto dizia assim:

 

"Alberto a Luís. - Resolvi escrever-te depois de esperar em vão uma carta tua. Esta vai em duplicata, uma para Porto Alegre, outra para Pelotas. Onde quer que estejas lá te há de achar.

"Devo crer que estejas em Pelotas, e que o silêncio se explique pelas ocupações em que estás realmente com a procura desse segredo do teu finado padrinho.

"Eu já sabia de quanta excentricidade era capaz esse sujeito, mas esta é de mestre, e eu não atino com o fim de toda esta meada.

"Por isso mesmo é que é segredo.

"O que for soará.

"Peço-te que não te esqueças, se for possível, de me comunicares os progressos do trabalho, e, quando chegar a ocasião, a natureza do segredo que faz condição do legado.

"Segredo em casa que se não abre há cinco anos... deve ser coisa misteriosa!

"Olha lá; não vás esbarrar com alguma daquelas surpresas das fantasias alemãs... Quem sabe se o teu padrinho não tinha comércio com o diabo?

"Disse uma tolice, perdoa-me.

"Enfim, escreve-me. Sou curioso, como uma criança. Dize-me o que houver e continua a votar-me aquela amizade antiga".

 

Alberto escreveu as duas cartas, subscritou-as e remeteu-as para o correio.

Feito o que, esperou resposta.

Dai a algum tempo recebeu uma carta de Luís.

Dizia ele:

 

"Luís a Alberto. - É segredo e segredo do diabo. Mas não é por ora o que pensas. O do padrinho ainda está por descobrir, pela razão de que ainda não fui a Pelotas. E não penses que é porque não possa. Não; tenho podido ir. Mas que me prende? perguntas tu.

"Vais saber..

"Prende-me um anjo...

"Não te rias, lê até o fim.

"Prende-me um anjo com formas de mulher. Ou anjo ou o diabo, que tanto importa esta criatura que conseguiu transtornar-me a razão e fazer do meu coração uma verdadeira ruína a respeito de todos os outros sentimentos.

"Amo, meu Alberto, amo!

"A primeira vez que a vi foi em uma noite... ah! até agora só a tenho visto à noite, pelo que já lhe e pus um nome simbólico: Diana.

"Mas, como dizia, foi em uma noite que a vi pela primeira vez, noite de sexta, noite de luar, noite de sedução: estava linda, como a irmã que então atravessava a planície celeste, calma e suave influindo amor, inspiração, poesia.

"Dessa noite para cá fiquei perdido. Bem sabes como nasce o amor; é de súbito. Eu senti que naquele momento o anjo encarregado de escrever no céu a minha biografia (porque eu acredito que há anjos biógrafos no céu) adicionou ao capítulo do amor o nome de Diana.

"Diana! sabes tu que beleza é esta? Como encanta, como fascina, como seduz? Tu não sabes nada, pobre lorpa, nessa cidade de lama e de prosa, cativo da prosa e da lama. Aqui, sim; aqui resido com este serafim, a luz, a vida, a poesia.

"Reli o que tinha escrito até aqui e tive idéia de rasgar. Não irás tu pensar que eu estou doido ou caí na pieguice? Não creias nada que não seja isto: amo. É a palavra da criação, diz o poeta das "Orientais".

"Mas deixe-me contar como foi que eu vi e amei esta mulher.

"Costumava eu ir tomar chá em casa do major O... meu parente afastado, bom velho que possui filhas bonitas e de excelentes qualidades.

"Ia às oito horas e voltava à meia-noite para casa.

"Ouvia lá falar muitas vezes da viúva Caldas, mas nunca prestei maior atenção a essa referência, e ouvia como se não ouvisse.

"Uma noite, em que fui mais cedo, disseram-me as filhas do velho que esperavam a viúva Caldas para tomar chá.

"Perguntei quem era essa viúva Caídas que eu não conhecia. Disseram-me que era a viúva de um homem do norte que para ali fora há um ano, o qual tinha falecido cinco meses antes. A viúva desde que eu lá cheguei andava doente e por isso não tinha ido à casa do major.

"Mas achava-se boa e ia lá naquela noite, pela primeira vez que saía depois da convalescença.

"Não se trocou a este respeito uma só palavra mais.

"Daí a bocado, estávamos assentados na chácara cujo portão dava para uma rua, aparecem a alguma distância uns vultos brancos. Era a viúva e a mãe.

"As moças correram a ir buscá-las e eu acompanhei-as por delicadeza, não podendo supor que essa viúva Caídas fosse a mulher destinada a mudar completamente o meu destino.

"O luar estava claro, suave, límpido.

"Quando me aproximei da viúva e troquei com ela um olhar, senti uma comoção inexprimível. Estive alguns segundos sem desviar os olhos dos olhos da moça. Ela também não desviava os seus.

"Tudo se preparava para que este encontro fosse decisivo da minha sorte: a noite era das mais adoráveis noites do sul.

"Conversou-se, tomou-se chá e a meia-noite fomos eu, o major e as filhas deste, acompanhar as visitas até à casa.

"Diana (não quero dar-lhe outro nome) pareceu não ser indiferente aos sentimentos que me inspirou. Também ela parecia impressionada, comovida. Pela minha parte não sei se disse coisas acertadas naquela noite.

"Daí para cá já a vi dez vezes, e sempre de noite. Imagine se a impressão produzida durante a noite podia enfraquecer; tem aumentado antes com força redobrada.

"À quinta noite não me pude ter. Procurei um instante em que lhe pudesse falar a sós, e declarei-lhe indiretamente o que sentia por ela. Diana, ou respondesse do mesmo modo, ou fosse ilusão minha, o que é certo é que me disse algumas coisas indiretas assaz explícitas.

"Olhe este specimen da nossa conversação:

"Dizia eu:

"- Quisera ser um coração viúvo.

"- Por que? perguntou ela.

"- Porque os corações viúvos se consolam, respondi.

"- Ah!

"E suspirou.

"É claro ou não?

"Ah! eu creio que estou dizendo alguma extravagância, mas perdoa-me tu que sabes o que é amar, e conheces o meu coração nestas matérias.

"O que te posso afiançar é que nunca amei como agora, nem mulher alguma se gabou ainda de possuir o meu coração como esta possui.

"Quem dissera, meu Alberto, que vindo buscar uma fortuna e um segredo, levaria uma mulher, isto é, outro segredo e outra fortuna? Não estranhes a frase; estou disposto a casar com Diana, haja o que houver. É paixão doída...

"Enfim o vapor está a partir, não posso demorar mais a carta. Adeus.

"Dentro de poucos dias vou para Pelotas para ver se descubro que segredo é este de meu padrinho.

"Olha, se é alguma fortuna enterrada!

"Talvez a felicidade me queira proteger agora de uma vez. Adeus".

Um mês correu ainda entre esta carta e a terceira remetida por Luís ao amigo Alberto.

Assistiremos eu e o leitor aos fatos que o advogado narrou na terceira carta.

Basta-nos para isso transportarmo-nos para Porto Alegre, à casa de Luís, vinte e oito dias depois da segunda carta.

O amor de Luís e Diana (conservemos à moca o nome que lhe dera o namorado) caminhava às mil maravilhas.

A moça correspondera ao sentimento do rapaz, ao ponto de receber afetuosamente uma declaração positiva de casamento.

Como sempre se encontrassem em casa do major, onde Diana ia tomar chá todas as noites, nunca Luís fora a casa dela.

Um dia, porém, em que ele manifestou desejo de lá ir, Diana disse-lhe que fosse, pediu-lhe, fez até uma intimação.

No meio de tudo isto, o legado e o segredo tinham ficado esquecidos inteiramente.

Na manhã do dia marcado Luís levantou-se alegre como andorinha em tempo de verão. Vestiu-se, perfumou-se, encouraçou-se para todas as comoções e partiu.

Ele levava em mente fazer nesse dia o pedido à velha. Sabia por boca de Diana que ela olhava esse amor com bons olhos.

Quando se aproximava da porta de Diana tirou o relógio e viu que se adiantara duas horas. Eram dez e a entrevista devia ter lugar ao meio-dia.

Quis voltar para esperar a hora convencionada. Mas a vista do jardim o desanimou. Teve uma tentação: esperar no jardim que batesse a hora decisiva da sua existência e da sua felicidade.

Hesitou alguns minutos.

Depois, fazendo um esforço, como a porta estivesse aberta, entrou.

Seus primeiros passos foram de receio. A areia rangia debaixo dos pés, e podia despertar alguém, o que seria estragar o romance.

A fortuna deparou-lhe uma espécie de caramanchel, naturalmente construído pela rama de quatro árvores plantadas em quadrado.

Luís encaminhou-se para lá.

A casa estava silenciosa; as janelas fechadas; tudo parecia dormir ainda. Ele sabia que ela se levantava tarde, mas não pôde supor que às dez horas da manhã ainda estivesse na cama.

É certo que a manhã era das mais frias e tinha chovido na véspera.

Luís sentou-se em um banquinho de pedra que havia embaixo do caramanchel.

Descalçou as luvas, guardou-as no bolso, tirou um cigarro, consertou-o, riscou um fósforo, acendeu o cigarro e começou a fumá-lo tranqüilamente.

Quem o visse não diria que era um homem que dali a duas horas podia estar casado... em promessa.

Ele mesmo fez algumas reflexões análogas a esta. Naturalmente chamado ao terreno das idéias próprias de um homem que vai pedir uma mulher cm casamento, Luís deixou-se ficar no campo vasto da fantasia e da memória.

A fantasia para o futuro, a memória para o passado.

O passado era a vida malfadada, erma de afeições, cheia de necessidades. Era a luta dolorosa entre a vida material e as aspirações do espírito, luta de que, por um lance de sorte, achava-se agora salvo, podendo gozar de um amor e de uma fortuna.

O futuro era o gozo dessa fortuna e desse amor. O advogado pintava já na imaginação o que faria quando se visse na posse de Diana e do legado. Faltava-lhe ainda o segredo que, se não podia ser uma mulher, podia muito bem ser sua fortuna ainda, o que seria uma fortuna acumulada.

Nessas explicações do passado e do futuro lembrou-se do amigo que ficara na corte. Ocorreu-lhe então que de há muito tempo lhe não escrevia. Não queria de modo algum ser acusado de ingrato, e resolveu, apenas acabada a entrevista, escrever para o Rio de Janeiro. O vapor partia no dia seguinte.

Durante esse longo tempo de espera, Luís fumou três cigarros, e consultou vinte vezes o relógio.

Os ponteiros corriam lentamente como uma agonia.

Luís levantava-se, espiava por entre as folhagens e via as janelas ainda fechadas.

Dar-se-á caso que ainda dormissem ou teriam saído?

Esta pergunta feita a si mesmo trouxe ao espírito do namorado uma dúvida cruel. Se tivessem saído seria uma desilusão.

Nisto sentiu passos.

Voltou-se para o lado donde partia o rumor da areia calcada por pés vagarosos.

Viu dois vestidos de mulher.

Imaginou logo que seriam Diana e sua mãe. Naturalmente tinham deixado a cama nesse momento e andavam passeando no jardim, fazendo apetite.

Luís lembrou-se que ouvira algumas vezes a Diana dizer que tinha este hábito de longos meses.

- Melhor, pensou ele, causo-lhes a surpresa de me verem aqui, e é mais uma prova do amor que dou a Diana.

E comprimiu a respiração para não ser pressentido e aparecer como nos romances o herói avisado por algum bilhete misterioso.

As duas aproximavam-se cada vez mais.

Luís deixou que elas se aproximassem bastante para aparecer então.

Entretanto quis ainda uma vez cravar os olhos naquela que era já senhora do coração.

Arredou cautelosamente as folhas para melhor ver e colou os olhos à abertura.

As duas passavam nesse momento.

Luís soltou um grito e recuou.

As mulheres espantadas correram para o caramanchel; mas, ao mesmo tempo, Diana, mal conheceu o rapaz, correu para casa.

Ficou a velha diante de Luís.

Qual era a significação do grito do rapaz?

Era que o sonho que durante tantos dias criara e idealizara desfizera-se ali todo e de uma vez. Diana, a jovem, a bela, a sedutora mulher que tanto impressionara o advogado, era uma mulher amarela sem beleza, sem mocidade, sem encanto algum. Todos os encantos dela eram artifícios comprados e aplicados diariamente com uma paciência de feia pretensiosa.

Luís nunca a vira senão à noite, porque Diana, apesar dos artifícios, não queria expor-se a luz meridiana. Ainda assim pudera passar. Mas, luz do dia, e sem os socorros da arte, caminhando em um jardim fechado, na plena confiança de quem não esperava àquela hora semelhante visita, não era feia, era horrenda!

Calcula-se qual não seria o desencanto do rapaz. Aquele grito fora o grito do amor moribundo.

A velha mãe da viúva, quando viu Luís, ficou um tanto atrapalhada. Parece que ela era cúmplice nas manhas da vaidosa filha. Mas, como não se tratasse dela pessoalmente, pôde falar ao rapaz, rindo e sem ocultar a natural surpresa de encontrá-lo ali.

Luís respondeu que ia visitá-la e esperava a hora marcada.

A velha convidou-o a entrar, mas o rapaz pretextou um incômodo, explicando o grito que dera, e despediu-se.

Instâncias, pedidos, rogos, tudo foi inútil.

O rapaz saiu.

Dali para casa os seus passos eram incertos, como os de um ébrio. Já não era amor que sentia, visto que o amor fora dedicado à criatura que ele vira à noite e aparentemente bela. Era mal estar do espírito que por tanto tempo se iludira.

Quando chegou à casa fez esta reflexão filosófica:

- Nem sempre os palpites são vãos; se eu não fosse esperar no jardim não escapava tão milagrosamente ao perigo de carregar todo o resto de minha vida com um...

Não acabou a reflexão porque nesse momento apresentou-se-lhe o criado perguntando quando partia para Pelotas.

- Já, respondeu Luís.

 

* * *

 

Tempos depois recebia Alberto na corte a terceira carta de Luís.

 

"Luís a Alberto. - Esta carta há de chegar às tuas mãos poucos dias antes de mim. Estou em Porto Alegre em preparativos de viagem.

"Podia guardar-me para contar-te de viva voz tudo o que me acontecesse depois da última que te escrevi (há um século?), mas prefiro dar-te já a grande notícia.

"Naturalmente supões que vou chegar a corte casado com a bela Diana? Engano positivo; vou solteiro, como vim. E vou explicar-te a razão.

"Tive ocasião de ver à luz do sol a mulher que eu só vira ao clarão da lua ou das velas da sala. Que abismo entre ambas! Passei do anjo ao dragão! mulher era feia como um demônio; a noite e a tinta eram a solução daquela charada viva. Dei graças a Deus quando fiz a descoberta.

"À vista te contarei mais detalhadamente o episódio desta descoberta, que só difere de Colombo em não ser de um novo mundo, mas de um velho mundo.

"Desenganado dos meus amores, decidi partir para Pelotas.

"Este episódio não é menos interessante. Ouve-me.

"Cheguei a Pelotas e fui examinar a casa que há cinco anos não recebia um bocado de ar. Foram precisos alguns dias para que pudesse deixar entrar lá alguém.

"Quando ficou em estado de receber-me, lá fui com o meu criado, e preparei tudo para proceder ao exame necessário.

"Tive o cuidado de consultar as paredes para ver se eram ocas e podiam, portanto, encerrar alguma coisa que constituísse o segredo de que falava meu padrinho.

"Nada.

"Marquei um dia e começamos os nossos trabalhos.

"Virei e revirei a casa. Comecei por escavar o chão, mas depois de pesados trabalhos consegui a certeza de que no chão não havia segredo de qualidade alguma.

"Passei às paredes porque, apesar do exame a que procedera de começo, podia haver algum ponto em que estivesse o tal segredo; mas qual!

"Supus até que o segredo se achasse na parte da parede onde se achava pendurado um retrato a óleo de meu padrinho. Nada havia.

"Fui ao teto; fiz arrancar tábua por tábua, e depois de longos dias de exame nada encontrei.

"Em resumo, nem as paredes, nem o chão, nem o teto, nem o quintal, em parte alguma encontrei o segredo de meu padrinho.

"Então uma idéia dolorosa assaltou-me o espírito. Meu padrinho era excêntrico; ora, quem sabe se a maior excentricidade dele não seria a de me fazer procurar em vão um segredo imaginário, até convencer-me de que não valia a pena procurá-lo para receber um bocado de dinheiro?

"Isto era muito provável e eu senti-me abalado com esta idéia.

"Mas, passado o primeiro abalo, voltei de novo às minhas pesquisas. Esmerilhei, foi tudo vão.

"Confesso que tive um acesso de matar-me.

"Entretanto, era verdade; nada tinha encontrado; o segredo do meu padrinho fora uma brincadeira. Como ele se havia de rir naquele momento na eternidade!

"Determinei voltar logo e logo para Porto Alegre, disposto a não receber nada e a voltar para a corte, a fim de começar de novo a vida de advogado.

"Na ocasião em que arranjávamos as malas, vi que entre os objetos que o meu criado enrolava existia o retrato de meu padrinho.

"- Para que trouxeste isso? perguntei eu.

"- Eu mesmo não sei, disse o criado.

"Tive então uma idéia, súbita.

"Tomei o quadro das mãos do criado, e, com o auxílio de uma faca, destas de que usam os guascas, abri o quadro.

"Caiu de dentro um papel dobrado.

"Apanhei o papel com a mão trêmula.

"Seria aquele o segredo?

"Abri o papel e pude ler a custo as letras apagadas pelo tempo.

"Queres saber o que dizia o papel?

"Lê:

"- "Conselho a meu afilhado. Nunca te fies em aparências".

"Se eu tivesse o segredo antes de ver Diana!.

"Enfim estou hoje de posse de uma fortuna e de uma lição que me custaram alguma coisa.

"Até breve!"


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 01 de julho de 2021

AS FOLHAS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

AS FOLHAS

(Humberto de Campos)

 

 

Lançados para longe da pátria pelos movimentos revolucionários que estalaram depois da guerra, o conde Ricardo e o príncipe Romualdo conversavam, displicentes, naquele começo de verão oriental, à sombra do grande plátano do parque do hotel, trocando ideias e fazendo comentários discretos sobre a situação política dos países em que haviam reinado. Estirados nas suas cadeiras de viagem, mostravam, ambos, um profundo desinteresse pelas coisas vulgares do mundo. E era por isso que, de vez em quando, mergulhavam em silêncio profundo, quedando a acompanhar com os olhos, melancólicos e soturnos, as oscilações da fumaça clara que atiravam, preguiçosos, para o ar.

 

O dia estava morno, quieto, parado, anunciando para a noite uma nova tempestade do Deserto. E era nisso que pensavam os dois fidalgos ilustres, despojos elegantes de dois tronos desmoronados, quando o príncipe começou a seguir com os olhos, uma a uma, as folhas amarelas que se desprendiam da árvore, e que se vinham espalhar no chão, estendendo pelo solo um crespo tapete de topázio. De repente, lançando para o espaço uma nuvem de fumaça cheirosa, o príncipe observou, alisando a barba negra e cerrada:

 

— Como os homens se assemelham às árvores!...

 

O conde Ricardo fechou o livro que principiara a ler, e, erguendo para a fronde os seus olhos muito azuis e muito doces, esperou a explicação do companheiro.

 

E o príncipe continuou:

 

— Enquanto a árvore está verde, e tem seiva, nenhuma folha o abandona, senão arrancada à força. Venha, porém, o verão, e, com ele, a falta de seiva, a decadência da planta, e nenhuma quer ficar mais presa ao ramo!

 

Compreendendo o símbolo, o conde acentuou, sacudindo, triste, a cabeça leonina:

 

— São como os amigos...

 

E o príncipe confirmou:

 

— São como os amigos...

 

No silêncio do dia, as folhas, uma a uma, continuavam a cair...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 29 de junho de 2021

NACIONALIDADE (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

NACIONALIDADE

Alcântara Machado

 

 

O barbeiro Tranquillo Zampinetti da Rua do Gasômetro nº 224-B entre um cabelo e uma barba lia sempre os comunicados de Guerra do Fanfulla. Muitas vezes em voz alta até. De puro entusiasmo. La fulminante investita dei nostri bravi bersaglieri há ridotto le posizione nemiche in un vero amazzo di rovine. Nel campo di battaglia sono restati circa cento e novanta nemici. Dalla nostra parte abbiamo perduto due cavalli ed è rimasto ferito un bravo soldato, vero eroe che si à avventurato troppo nella conquista fatta da solo di una batteria nemica.

Comunicava ao Giacomo engraxate (SALÃO MUNDIAL) a nova vitória e entoava:

Tripoli sarà italiana,
sarà italiana a rombo di cannone!

Nesses dias memoráveis diante dos fregueses assustados brandia a navalha como uma espada:

— Caramba, come dicono gli spagnuoli!

Mas tinha um desgosto. Desgosto patriótico e doméstico. Tanto o Lorenzo como o Bruno (Russinho para a saparia do Brás) não queriam saber de falar italiano. Nem brincando. O Lorenzo era até irritante.

— Lorenzo! Tua madre ti chiama!

Nada.

— Tua madre ti chiama, ti dico!

Inútil.

— Per l'ultima volta) Lorenzo! Tua madre ti chiama, hai capito?

Que o quê.

— Stai attento que ti rompo la faccia, figlio d'un cane sozzaglione, che non sei altro!

— Pode ofender que eu não entendo! Mamãe! MAMÃE! MAMÃE!

Cada surra que só vendo.

Depois do jantar Tranquillo punha duas cadeiras na calçada e chamava a mulher. Ficavam gozando a fresca uma porção de tempo. Tranquillo cachimbando. Dona Emília fazendo meias roxas, verdes, amarelas. Às vezes o Giacomo vinha também carregando a sua cadeira de palha grossa.

Raramente abriam a boca. Quase que para cumprimentar só:

— Buona sera, Crispino.

— Tanti saluti a casa, sora Clementina.

Mas quando dava na telha do Carlino Pantaleoni, proprietário da QUITANDA BELLA TOSCANA, de vir também se reunir ao grupo era uma vez o silêncio. Falava tanto que nem parava na cadeira. Andava de um lado para outro. Com grandes gestos. E era um desgraçado: citava Dante Alighieri e Leonardo da Vinci. Só esses. Mas também sem titubear. E vinte vezes cada dez minutos. Desgraçado.

O assunto já sabe: Itália. Itália e mais Itália. Porque a Itália isto, porque a Itália aquilo. E a Itália quer, a Itália faz, a Itália é, a Itália manda.

Giacomo era menos jacobino. Tranquillo era muito. Ficava quieto porém.

É. Ficava quieto. Mas ia dormir com aquela ideia na cabeça: voltar para a pátria.

Dona Emília sacudia os ombros.

Um dia o Ferrucio candidato do governo a terceiro juiz de paz do distrito veio cabalar o voto do Tranquillo. Falou. Falou. Falou. Tranquillo escanhoando o rosto do político só escutava.

— Siamo intesi?

— No. Non sono elettore.

— Non è elettore? Ma perchè?

— Perchè sono italiano, mio caro signore.

— Ma che c'entra la nazionalità, Dio Santo? Pure io sono italiano e farò il giudice!

— Stà bene, stà bene. Penserò.

E votou com outra caderneta.

Depois gostou. Alistou-se eleitor. E deu até para cabalar.

A guerra européia encontrou Tranquillo Zampinetti proprietário de quatro prédios na Rua do Gasômetro, dois na Rua Piratininga, cabo influente do Partido Republicano Paulista e dileto compadre do primeiro subdelegado do Brás; o Lorenzo interessado da firma Vanzinello & Cia. e noivo da filha mais velha do Major Antônio Del Piccolo, membro do diretório governista do Bom Retiro; o Bruno vice-presidente da Associação Atlética Pingue— Pongue e primeiranista do Ginásio do Estado.

Tranquillo agitou-se todo. Comprou um mapa das operações com as respectivas bandeirinhas. Colocou no salão o retrato da família real. Enfeitou o lustre com papel de seda tricolor.

— Questa volta Guglielmone avrà il suo!

Lorenzo noivava. Bruno caçoava.

Dona Clementina pouco ligava. Mas no dia em que o marido resolveu influenciado pelo Carlino subscrever para o empréstimo de guerra protestou indignada. Tranquillo deu dois gritos patrióticos. Dona Emília deu três econômicos. Tranquillo cedeu. E mostrou ao Carlino como explicação a sua caderneta de eleitor.

Aos poucos mesmo foi-se desinteressando da guerra. E chegou à perfeição de ficar quieto na tarde em que o Bruno entrou pela casa adentro berrando como um possesso:

Il General Cadorna
scrisse alla Regina:
Si vuol vedere Trieste
t'la mando in cartolina...

E o Bruno só para moer não cantou outra coisa durante três dias.

Proprietário de mais dois prédios à Rua Santa Cruz da Figueira Tranquillo Zampinetti fechou o salão (a mão já lhe tremia um pouquinho) e entrou para sócio comanditário da Perfumaria Santos Dumont.

Então já dizia em conversa no Centro Político do Brás:

— Do que a gente bisogna no Brasil, bisogna mesmo, é d'un buono governo, mais nada!

E o único trabalho que tinha era fiscalizar todos os dias a construção da capela da família no cemitério do Araçá.

Quando o Bruno bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Paulo ao sair do salão nobre no dia da formatura caiu nos seus braços Tranquillo Zampinetti chorou como uma criança.

No pátio a banda da Força Pública (gentilmente cedida pelo doutor Secretário da Justiça) terminava o hino acadêmico. A estudantada gritava para os visitantes:

— Chapéu! Chapéu-péu-péu!

E maxixava sob as arcadas.

Tranquillo empurrou o filho com fraque e tudo para dentro do automóvel no Largo de São Francisco e mandou tocar a toda para casa.

Dona Emília estava mexendo na cozinha quando o filho do Lorenzo gritou no corredor:

— Vovó! Vovó! Venha ver o tio Bruno de cartola!

Tremeu inteirinha. E veio ao encontro do filho amparada pelo Lorenzo e pela nora.

— Benedetto pupo mio!

Vendo os cinco chorando abraçados o filho do Lorenzo abriu também a boca.

O primeiro serviço profissional do Bruno foi requerer ao Excelentíssimo Senhor Doutor Ministro da Justiça e Negócios Interiores do Brasil a naturalização de Tranquillo Zampinetti, cidadão italiano residente em São Paulo.

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 28 de junho de 2021

CANTIGA DE ESPONSAIS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

CANTIGA DE ESPONSAIS

Machado de Assis

 

 

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão" - equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; - ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias." Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

- Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

- Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.

- Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...

- Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: - moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

- Para quê? disse o mestre. Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, - outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

"Está acabado", pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:

- Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: - rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

- Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...

O princípio do canto rematava em um certo ; este , que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

- Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao ....

Lá, lá, lá...

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

Lá... lá... lá...

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo  trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 27 de junho de 2021

O DIABO (CONTO HUMORÍSTICO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O DIABO

Olavo Bilac

 

 

Tinham metido tantas caraminholas na cabeça da pobre Luisinha que a coitada, quando, às dez horas, apagava a luz, metida na cama, vendo-se no escuro, tinha tanto medo que começava a bater os dentes... Pobre Luisinha! Que medo, que medo ela tinha do diabo!

Um dia, não pôde mais! E, no confessionário, ajoelhada diante de padre João, abriu-lhe a alma, e contou-lhe os seus sustos, e disse-lhe o medo que tinha de ver uma bela noite o diabo em pessoa entrar no seu quarto, para a atormentar...

Padre João, acariciando o belo queixo escanhoado, refletiu um momento. Depois, olhando, com piedade a pobre pequena ajoelhada, disse gravemente:

— Minha filha! Basta ver que está assim preocupada com essa ideia, para reconhecer que realmente o Diabo anda a persegui-la... Para o tinhoso amaldiçoado, assim é que começa...

— Ai, senhor padre! Que há de ser de mim?! Tenho a certeza de que, se ele me aparecesse, eu nem forças teria para gritar... 

— Bem, filha, bem... Vejamos! Costuma deixar a porta do quarto aberta?

— Deus me livre, santo padre!

— Pois, tem feito mal, filha, tem feito mal... Para que serve fechar a porta se o Amaldiçoado é capaz de entrar pela fechadura? Ouça o meu conselho... Precisamos saber se é realmente Ele que quer atormentá-la... Esta noite, deite-se, e reze, deixe a porta aberta... Tenha coragem... Às vezes, é o Anjo da Guarda que inventa essas coisas, para experimentar a fé das pessoas. Deixe a porta aberta esta noite. E, amanhã, venha dizer-me o que se tiver passado...

— Ai, senhor padre! Eu terei coragem?...

— É preciso que a tenha... É preciso que a tenha... Vá... E, sobretudo, não diga nada a ninguém... Não diga nada a ninguém...

E, deitando a bênção à rapariga, mandou-a embora. E ficou sozinho, sozinho, e acariciando o belo queixo escanhoado...

*

E, no dia seguinte, logo de manhã cedo, já estava o padre João no confessionário, quando viu chegar a bela Luisinha. Vinha pálida e confusa, atrapalhada e medrosa. E, muito trêmula, gaguejando, começou a contar o que se passara...

— Ah, meu padre! Apaguei a vela, cobri-me toda muito bem coberta, e fiquei com um medo... com um medo... De repente, senti que alguém entrava no quarto... Meu Deus! não sei como não morri... Quem quer que fosse, veio andando devagarinho, devagarinho, devagarinho, e parou perto da cama... Não sei... Perdi os sentidos e...

— Vamos, filha, vamos...

—... depois, quando acordei... Não sei, senhor padre, não sei... Era uma coisa...

— Vamos, filha... Era o Diabo?

— Ai, senhor padre! Pelo calor, parecia mesmo que eram as chamas do inferno... Mas...

— Mas o que, filha? vamos!...

— Ai, senhor padre... mas era tão bom que até parecia mesmo a graça divina...


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 25 de junho de 2021

O MONSTRO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O MONSTRO

Humberto de Campos

 

Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:

— Para nós ambas, talvez...

— E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?

A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.

— Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.

— Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.

E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.

— Traze mais água! - pedia.

A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.

— Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

— Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!

— Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?

E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.

— Eu dei a água! - tornou a Dor.

— Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 24 de junho de 2021

POBRE MÃEZINHA (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

POBRE MÃEZINHA

Dalton Trevisan

 

 

Os gêmeos voltam inquietos da escola. Primeira
aula de educação sexual. Seis aninhos, e já perdidos
na busca da verdade.
—Sabe, mãe, o que é transar? Então me diga.
A moça desconversa. Um jogo? um brinquedo?
uma ginástica? Reservado só para adultos. Mais tarde
eles… O pai pode explicar melhor.
Nem uma semana depois. O mais espevitado:
—Mãe, mãe, já sei o que é transar.
—E o que é, meu anjo?
—Transar é um menino beijar na boca de outro
menino!
A mãe se assusta com razão.
—Alguém fez isso com você?
O outro, tipo sonso:
— Ih, mãe. O carinha tá por fora. Não é nada
disso.
Sossega a moça, mas não muito.
De novo, os seis aninhos de sapiência nas ruas da
vida:
—Transar é o menino pôr o pipi na popoca da
menina!
A mãe queda muda. Você não conseguia definir
melhor.
Eis que o primeiro ensaia um choro sufocado, cada
vez mais doído.
—Meu Deus, filhinho. O que é agora? Por que está
chorando?
—É isso o que o pai faz…
Os pivetes se entendem num simples olhar (não
fossem gêmeos), e o segundo:
—…na minha mãe!
Já rompem violentamente aos soluços.
—É isso… Então é isso… Na minha pobre mãezinha!
Desesperados e inconsoláveis. E agora, mãezinha?
Só lhe resta abraçá-los e chorar com eles. Chorar
muito a inocência perdida de todos nós.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 23 de junho de 2021

SILÊNCIO (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

SILÊNCIO

Clarice Lispector

 

É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembranças de palavras. Se és morte, como te alcançar.
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro - tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.
A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.
Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece.
O coração bate ao reconhecê-lo.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 22 de junho de 2021

CLARINHA DAS PEDREIRAS (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

CLARINHA DAS PEDREIRAS

Raum Pompéia

 

 

Uma pedreira representa nada menos que esse bichinho vil da terra, como chamava o rei-harpista do Velho Testamento, o átomo inteligente, arcando com a majestosa enormidade do granito. Diante daquela muralha vasta, branca a doer nos olhos, ligeiramente veiada de negro, sonha-se com os dias infernais, em que as erosões vulcânicas rasgavam a virgindade do solo do planeta em formação, encarreirando as serranias, como dentaduras arreganhadas para o céu; e se imagina depois que um pobre diabo de homem, com alguns punhados de pólvora na mão e uma simples agulha de ferro e uma caçamba d'água, sem ouvir os cânticos sangrentos da corneta, sem avistar os acenos eletrizantes das cores de uma bandeira, marcha tranquilo a destruir a construção formidável dos cataclismos do passado...

 

Também o trabalho das pedreiras é feroz; é a luta pela vida, sem figura de retórica. Ai se dá combate ao sol reverberado nas faces alvacentas da rocha talhada; dá-se combate à vertigem que, do fundo erriçado dos precipícios atira uns olhados de Medusa; dá-se combate à pedra, que se defende com as chispas que queimam e as lascas que cegam. A morte está sempre perto: ao fundo dos cortes a pique; na grimpa dos rochedos que se levantam ameaçadores e deixam apenas um ângulo encravado no saibro movediço.

 

Da insolação não se fale...

 

Sente-se uma impressão profunda, à vista dessa catadupa grandiosa de blocos imobilizados na queda.

 

O desabamento estatelado!...

 

Por isso é que o gênio impressionável de Alexandre o levava a passear frequentemente, à tarde ou ao alvorecer, pelas pedreiras da Assunção, as mais altas talvez e as mais arrogantes do Rio de Janeiro. Era um prazer para ele, abandonando o caminho de subida, agarrar-se às arestas cortantes das grandes pedras e alar-se a boa altura para ver...

 

Ao pôr-do-sol, os penhascos esticavam para a esquerda umas projeções longuíssimas de sombras; que lhes ficava o astro para a direita, descendo os contornos verticais do Corcovado. Para baixo desenrolava-se a rampa do precipício. Um precipício esplêndido. Mil reentrâncias e mil saliências ásperas, agudas, abruptas, denteadas, que faziam arrepios à imaginação afigurar-se um desgraçado em degringolada por aquelas unhas. Além, cobrindo o horizonte, o cone do Pão d'Açúcar e as montanhas verdes de Botafogo e Copacabana, prolongadas até às eminências da Gávea e dos Dois irmãos. Mais próximo, a enseada, como uma vasta placa de anil, margeada pela casaria do arrabalde fidalgo, batido de flanco pelas espadas vermelhas e rútilas do sol poente.

 

Era a hora em que terminava o serviço dos cavouqueiros. Ficava a pedreira sem viva alma.

 

Por entre as pedras insinuava-se um cão rateiro e esfomeado. E ouvia-se, como o toque significativo de uma sineta, o ruído metálico e tilintante da última alavanca, atirada do alto pelo derradeiro operário a retirar-se.

 

Ao romper do dia a cena era outra.

 

Geralmente, quando Alexandre chegava, ainda o cobria o céu com a sua coma azul empoada de estrelas. Dançavam no oriente as primeiras brancuras do dia, passando pela cortina esburacada de qualquer nevoeiro negro achatado sobre o firmamento. Aos pés do mancebo dormia o panorama de Botafogo, velado por um lençol tenuíssimo de vapores. Através dos vapores se distinguia a massa pardacenta da casaria entremeada de um negro-esverdeado pela perspectiva dos jardins e das chácaras, com um ou outro ponto luminoso brilhando a esmo.

 

Quando, por tudo aquilo, se espraiava o luar da alvorada, percebiam-se as notas assobiadas de alguma cantiguinha popular; e lá vinha subindo um homem pelo declive que levava até certa altura da pedreira.

 

Era o primeiro operário que chegava. Depois deste, chegavam outros, em pequenos grupos, calados ou mastigando meias palavras, sem olhar para os lados; jaquetão atirado ao ombro e em cima do jaquetão umas ferramentas brutas, pesadas, cheias de ferrugem. Era o exército do trabalho.

 

Em coisa de poucos minutos, dispersavam-se para todos os pontos. Este havia que passava mão a um cabo, cuja extremidade se perdia pela pedreira acima, e desaparecia na altura, arrastando uma barra de ferro; aquele sentava-se a um lajedo, sob uma coberta de estopa, armada cm taquaras, e punha-se a picar a pedra com o dente de um ponteiro ou o corte de um escopro batido a macete; um outro elevava acima da cabeça e fazia desabar com todo o peso o picão agudo, fragmentando pedras para o fabrico dos macacos, muitos armavam-se de longas agulhas de ferro e iam brocar a rocha com as minas destinadas ao alojamento das arrobas de pólvora que tinham de fazer voar o granito.

 

Nisso apontava no horizonte um estilhaço de sol.

 

Já então ressoava a encosta, aos golpes de cem martelos e os - passarinhos despertados fugiam espavoridos por entre a mataria das montanhas.

 

Escapando-se aos ardores do dia, Alexandre ia para casa. No caminho, aguardava-o certa insignificância graciosa, que era também para o moço um atrativo daqueles passeios; sem chegar, diga-se a verdade, a ser o principal, como bem podiam insinuar as linguinhas da malícia.

 

Em saindo das pedreiras, tinha-se de passar por uma estrada, rasgada numa rampa de esmeraldino capim de Angola, juncada de cordões de frade com os seus nós de espinhos e floritas roxas, balouçando-se ao lado dos matacões que os tiros da pedreira semeavam na planície.

 

À margem desse caminho, listrado de sulcos pelas carroças a serviço dos cavouqueiros, havia (se existe ainda, - não sei) uma habitação edificada no estilo pitoresco e barato da miséria. Teto chapeado de zinco, com declives íngremes arrimados em tábuas podres e paredes de barro crivado de grandes furos; três janelas abertas para a estrada e uma porta para um cercado de bambus secos, em T, com meia dúzia de estacas de pinho.

 

No cercado havia couves e tinas d'água. Por cima das couves voavam reflexos de borboleta; no teto de zinco passarinhos cantavam, nos rombos do barro, aninhavam-se pombos. Não era exatamente a essas coisas que Alexandre dava atenção.

 

Era a um par de mãos níveas, pequenas, às voltas com uma costura, mimosas extremidades de braços modelados por... qualquer chapa de poeta lírico. Estes braços, nus como a inocência, até aos cotovelos, enfiavam-se timidamente pelas mangas curtas de um corpinho de musselina que em outro ponto comprimia com força duas resistências esféricas, de uma geometria provocante a mais não poder. Para cúmulo, rasgava-se, das resistências acima, um modesto decote, donde, fresca e jovial emergia, desabrochava uma cabecinha peregrina. Um camafeu delicado, róseo, transparente, rodeado de pequenos cachos negros em delicioso descuido, com muito sorriso na dobra dos lábios, muito fogo nos largos olhos e nas palpitantes narinas...

 

Era arrebatadora na sua janela, essa costureira! A estrela d'alva à sombra de um reles teto de zinco.

 

Alexandre variava. Chamava a sua estrela d'alva, só quando a via de manhã; pela tarde chamava-a de Vésper.

 

Uma vez, voltava o moço do seu habitual passeio quando teve de assistir a uma cena que espinhou-lhe a curiosidade.

 

Na ocasião em que passava pelo casebre de zinco, viu um molecote dos seus sete anos, vestido de riscado, cabeçudo como um feto, preto como o diabo, salientes os olhos, como se já não lhes houvesse lugar dentro do crânio. Sem se preocupar com Alexandre, o demônico, que levava na mão um objeto oculto, foi até à janelinha de peitoril, carcomido, onde, como era frequente, cintilava a estrela Vésper e entregou-lhe... uma camélia vermelha.

 

Pouco lido na filologia das flores e em simbolismos de namoro o mancebo não adivinhou o sentido daquilo. Bem possível era que nada mais significasse do que simples oferta delicada de um galanteador, talvez mesmo de qualquer amiga da mocinha do casebre. Não sei que palpite o fazia pender para a primeira hipótese. Não havia dúvida! Com ou sem explicação gramatical, aquilo era uma frechada de Cupido!... Tinha notado que a mocinha se debruçara na janela, espiando para os pilares que abrem passagem do terreno pertencente às pedreiras para a rua da Assunção.

 

Aí devia encontrar a verificação da sua desconfiança. Enfrentou de repente com um rapagão alto, robusto, moreno, fisionomia farta de satisfações, tênues bigodes negros, lábios risonhos e grossos; tudo sob um pequeno chapéu de palha e acima de um peito largo, apertado casimiras. Trazia na mão um chicotinho com argola e corrente de prata ao cabo.

 

Alexandre ficou sombrio; e seguiu para sua residência, absorto em solilóquios mentais...

 

Três ou quatro dias depois, também à tardinha, de volta às pedreiras, Alexandre deparou outra vez com o tal rapagão, pouco distante do casebre da moça contemplando atentamente a muralha de granito.

 

— Que imensidade! Murmurava, quando Alexandre passou.

 

Implicante sujeito! Esse marmanjo era uma ameaça terrível para a costureirinha.

 

Alexandre pensou em intrometer-se no romance, tomar contas ao marmanjo. O nobre mancebo estava possesso de ciúme; mas o ciúme generoso que se sente, ao ver um garoto arrancando uma rosa ao pedúnculo para depois abandonar ao esgoto. Se era tão agradável apreciar-se a flor...

 

E bem garoto lhe parecia o marmanjo.

 

Desta ocasião em diante, o habitué dos pedreiros não tornou a ver, nem a sua Vésper, nem a sua estrela d'alva...

 

Isto causou desgosto a Alexandre. Os seus costumados passeios foram deixando de ser frequentes. A vista daqueles lugares trazia-lhe à mente tristes recordações da rapariguinha do pardieiro de zinco, de quem Alexandre egoisticamente não se quisera lembrar.

 

Contudo, o moço de vez em quando lá ia...

 

Assim foi que, por um dia tempestuoso, ele se abalou de casa a visitar o sítio antigamente de sua predileção. Alexandre frequentara a pedreira como quem frequenta um jardim público, que não lhe fica longe de casa. Era um hábito adquirido, um hábito na verdade excelente como higiene.

 

O mancebo, porém, se desgostara um tanto com o seu hábito...

 

Eram cinco horas ou mais. O céu estava carrancudo como um homem perverso. Cúmulos enormes estampavam-se na abóbada. Moviam-se lento. Formavam monstruosos leões de escancaradas fauces que iam derramando pelo ar negras jubas de proporções fabulosas; formavam gigantes, que engordavam, avultavam a olhos vistos e dissolviam-se por fim em conglobamentos informes.

 

Ouviam-se uns estremecimentos sonoros, que chegavam das nuvens, como se lá em cima se afinassem os tambores da trovoada.

 

Apesar de tudo, Alexandre saiu a passeio. Se a tempestade desabasse, ele gozaria um espetáculo admirável nas pedreiras.

 

No fim de dez minutos estava o moço à raiz das colossais muralhas de macacos, dispostos como os lances de cantaria de uma fortaleza respeitável. Concedeu dois olhares a essas pilhas de paralelepípedos, aqui e ali desmoronados pelas alvanias, e tomou a ladeira de saibro grosso o canjica que, pelo meio de duas carreiras de lajedos, servia para a subida de veículos até dois terços da elevação das pedreiras.

 

Por fim, sentou-se num dos lajedos e olhou em torno. Tudo estava deserto. Apenas sentiam-se ao longe as marteladas férreas de um picão.

 

No espaço encontravam-se as eletricidades, abraçando-se em trovões e se beijando em coriscos. Na planície, em Botafogo, havia poucos rumores e muita escuridão difusa. As negruras do firmamento vazavam na terra uma noite precoce.

 

De improviso, caiu a chuva.

 

Pingos grossos como cusparadas, que num momento multiplicaram-se fazendo um aguaceiro cerrado, abundante, torrencial.

 

Alexandre abriu o guarda-chuva e abrigou-se por baixo de um penhasco cavado. Ouviu então o ruído de um desmoronamento.

 

— Mau! Mau! Murmurou, vamo-nos embora que ainda a casa nos esmaga...

 

E saiu correndo do abrigo que escolhera. Desceu a ladeira até que avistou uma espécie de barraca, feita de esteiras, debaixo da qual havia alguém.

 

— Oh! Exclamou a pessoa que lá estava: o senhor anda aqui, por este tempo?! Deixe chover um pouco mais e verá como aí vem tudo pela pedreira abaixo... deixe encharcarem-se as cunhas...

 

O mancebo lembrou-se do desmoronamento que ouvira e do costume que têm os cavouqueiros de encher de cunhas de madeira as fendas da rocha, para se aproveitarem da chuva.

 

— Olhe! Gritou o homem da barraca, que pareceu ao moço ser o trabalhador de cuja ferramenta ouvira as marteladas antes da chuva. Olhe as cunhas já começam!...

 

Algumas pedra acabavam de rolar à distância.

 

A chuva foi aumentando.

 

Fortes esfuziados do vento foram obliquando os pingos d'água, de sorte que na barraca já não se estava a salvo de um banho.

 

— Aqui não estamos bem, disse a meia voz o cavouqueiro.

 

— Na verdade, vamos ficar pingando.

 

— Está vendo ali aquela casinha? É onde eu moro... Quer abrigar-se... Vamos...

 

O cavouqueiro apontava exatamente para o casebre, onde outrora o moço via cintilar a sua estrela.

 

Pela primeira vez, examinou Alexandre a pessoa de seu companheiro. Cabelos e cara formavam-lhe como que uma bola de estupidez. O queixo tinha barba, uma coisa inculta, esquálida, os olhos não tinham expressão, a boca não tinha sorrisos.

 

Mas parecia um estúpido bom.

 

Acabando de falar, enterrou a cabeça num enorme chapéu de feltro que apanhara no chão, cobriu os ombros com uma jaqueta grosseira e atirou-se precipitadamente à chuva, direito para o casebre.

 

Atrás foi Alexandre.

 

Dentro de um instante, viu-se o moço abrigado em casa do cavouqueiro, isto é, ali mesmo onde residira a deslumbrante criatura que tanta graça comunicava aos passeios doutro tempo.

 

O cavouqueiro, que entrara antes do moço, tinha desaparecido, este ficara só, num compartimento de tabuado que parecia servir ao mesmo tempo de sala de recepção e de jantar, com as suas quatro paredes forradas de espessas camadas de fumaça e com a sua mobília constante de caixões, velhos bancos, cadeiras negras de idade, tendo apenas no assento buracos barbados de fiapos de palhinha lastimáveis como bocas de mendigo, ferramentas amontoadas. Uma fumaceira de fazer espirrar. Por volta, abriam-se quatro portas; uma era a de entrada, outra dava para um buraco negro, fundo e fumegante, talvez uma cozinha; a terceira estava cerrada e a última deixava entrever uma alcovinha que pela posição devia ser a mesma a cuja janela costumava trabalhar a estrela d'alva. Parecia estar se vendo aí dois olhos negros e grandes, espiando para fora.

 

Nisso pensava Alexandre, quando moveu-se a porta cerrada para dar passagem a uma pessoa.

 

Era uma mulher; trazia na mão uma pequena candeia de pouca luz e muito fedor de azeite.

 

Deu boas noites ao moço e pendurou a candeia num ganchinho à parede.

 

— Permita-me que espere aqui pelo fim da chuva... Desculpe-me se incomodo...

 

— Ora, meu bom senhor, isto até dá alegria a gente... fazer-se uma boa obra... Olhe, eu já na minha terra ouvia do padre: dai pousada aos peregrinos... Então? É o que Nosso Senhor manda... e quem...

 

Como dava de língua aquela senhora magra e comprida! Era um achado para o moço. Ele esperava apenas que passasse o temporal, mas não quisera retirar-se sem levar boas notícias da costureira sumida.

 

Aquela mulher as daria necessariamente. Falava muito e parecia simpaticamente ingênua.

 

Enquanto tagarelava ia ela fechando as janelas, para resguardar do vento a luz da candeia. Quando por cima da casa rebentou um violento trovão, a velha rezou a Santa Bárbara e deixou de falar.

 

Ao trovão seguiu-se um estrondo assustador, sonoro como muitas descargas de mosquetaria simultâneas.

 

Alexandre correu à porta do casebre. Pela encosta da pedreira, desabava, rolava, saltava, despenhava uma cachoeira faiscante de pedras e estampidos. O casebre tremia como se tivesse medo. O fracasso cresceu atroador e foi cessando depois no prolongamento surdo dos ecos.

 

— Que terrível desmoronamento! Exclamou o moço, voltando-se para a mulher ou coisa que o valha do cavouqueiro dono da casa.

 

— São as cunhas, disse ela... Isto já não me faz medo como os trovões. No princípio, sim... eu me assustava, mas há tantos anos que vejo isso, sempre que chove,..

 

E passou a linguaruda a explicar o emprego das cunhas, etc.

 

Alexandre interrompeu-a:

 

— Mas, a senhora está aqui há muito tempo?...

 

O mancebo não deixara escapar a entrada que lhe dera a mulher.

 

— Oh! Se estou!... Respondeu ela, e...

 

— Então, conheceu uma linda rapariguinha que...

 

— A Clarinha das Pedreiras!... Para sinal que aqui mesmo morava... aquele anjinho!...

 

— Essa mesmo... Que fim levou-a?

 

— Ah, meu senhor, que saudade!... Aquele anjinho abandonou a gente... Que ingratazinha, valha-me Deus!... E eu não dou muito pela sua felicidade agora... Nós a encontramos atirada ai pelas pedreiras, quando ainda tinha uns quatro anos. Já era lindinha; mas estava tão mirrada!... Ainda não falava que se entendesse. Não se sabia quais eram os malvados pais daquela criança desventurada. Trouxemo-la para casa. Tinha fome a pobre!...

 

Estava sujinha, que chorei de pena!

 

Pois nós demos de comer, demos de vestir, fizemo-la nossa filha. Eu e o meu homem cuidamos dela como do pequerrucho que nos dera Deus e nos tomara há tempo. Sustentamo-la por mais de dez anos, trabalhando como burros para ela não ter de que chorar. A Clarinha, ela nos dissera chamar-se assim. a Clarinha, em compensação, era uma santa criança. Tinha tanta graça que nós a adorávamos, com perdão de Deus...

 

E agora, de repente, há uns dois meses desaparece-nos de casa... Tenha compaixão dela Virgem Maria!... Toda a gente aqui das pedreiras se pôs a procurá-la por todos os cantos. Não havia quem não gostasse da Clarinha das Pedreiras, como a conheciam. Sei de muito rapaz que andava caído por ela. O senhor, que pede-me novas da menina por tê-la visto, aposto que já gostava dela. E era um anjo mesmo!... Abandonou a nossa casinha. Procurou-se por ela; o administrador das pedreiras falou ao inspetor do quarteirão. Quando menos a gente esperava, um criado todo bem vestido veio nos dizer que a Sra. D. Clarinha não queria mais viver conosco, e ia se casar com um moço rico que por aí anda... Deus queira que ela seja bem feliz, a pobrezinha; mas... eu não digo nada...

 

Esta breve história, interrompida várias vezes pelo rumor de um desmoronamento lá fora, não surpreendeu a Alexandre, porém abalou-o profundamente.

 

Diante dos olhos dançavam-lhe as recordações de um moleque fetal, uma camélia vermelha e um rapagão bem trajado, com seu chicote de cabo de prata.

 

A chuva cessara.

 

Ele despediu-se da boa mulher, agradecendo o abrigo que lhe dera contra as fúrias do temporal e as informações sobre a sua estrelinha, e saiu para a estrada.

 

A lua, nascida durante a tormenta, estava a brilhar sobre o firmamento limpo. Espalmava-se em toda a largura de uma boa gargalhada.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 20 de junho de 2021

D. PAULA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

D. PAULA 

Machado de Assis

 

Não era possível chegar mais a ponto. D. Paula entrou na sala exatamente quando a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar. Compreende-se o assombro da tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se sabendo que D. Paula vive no alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a última foi pelo Natal passado, e estamos em maio de 1882. Desceu ontem, à tarde, e foi para casa da irmã, Rua do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e correu a visitar a sobrinha. A primeira escrava que a viu, quis ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não, e foi pé ante pé, muito devagar, para impedir o rumor das saias, abriu a porta da sala de visitas, e entrou.

- Que é isto? exclamou.

Venancinha atirou-se-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo. A tia beijou-a muito, abraçou-a, disse-lhe palavras de conforto e pediu, e quis que lhe contasse o que era, se alguma doença, ou...

- Antes fosse uma doença! antes fosse a morte! interrompeu a moça.

- Não digas tolices; mas que foi? anda, que foi?

Venancinha enxugou os olhos e começou a falar. Não pôde ir além de cinco ou seis palavras; as lágrimas tornaram, tão abundantes e impetuosas, que D. Paula achou de bom aviso deixá-las correr primeiro. Entretanto, foi tirando a capa de rendas pretas que a envolvia, e descalçando as luvas. Era uma bonita velha, elegante, dona de um par de olhos grandes, que deviam ter sido infinitos. Enquanto a sobrinha chorava, ela foi cerrar cautelosamente a porta da sala, e voltou ao canapé. No fim de alguns minutos, Venancinha cessou de chorar, e confiou à tia o que era.

Era nada menos que uma briga com o marido, tão violenta, que chegaram a falar de separação. A causa eram ciúmes. Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados. Voltou amuado para casa de manhã, acabado o almoço, a cólera estourou, e ele disse-lhe coisas duras e amargas, que ela repeliu com outras.

- Onde está teu marido? perguntou a tia.

- Saiu; parece que foi para o escritório.

  1. Paula perguntou-lhe se o escritório era ainda o mesmo, e disse-lhe que descansasse, que não era nada, dali a duas horas tudo estaria acabado. Calçava as luvas rapidamente.

- Titia vai lá?

- Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom, são arrufos. 104? Vou lá; espera por mim, que as escravas não te vejam.

Tudo isso era dito com volubilidade, confiança e doçura. Calçadas as luvas, pôs o mantelete, e a sobrinha ajudou-a, falando também, jurando que, apesar de tudo, adorava o Conrado. Conrado era o marido, advogado desde 1874. D. Paula saiu, levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia chegar mais a ponto. De caminho, parece que ela encarou o incidente, não digo desconfiada, mas curiosa, um pouco inquieta da realidade positiva; em todo caso ia resoluta a reconstruir a paz doméstica.

Chegou, não achou o sobrinho no escritório, mas ele veio logo, e, passado o primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula lhe dissesse o objeto da visita; Conrado adivinhou tudo. Confessou que fora excessivo em algumas coisas, e, por outro lado, não atribuía à mulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das portas do vício. Em relação à pessoa de quem se tratava, não tinha dúvida de que eram namorados. Venancinha contara só o fato da véspera; não referiu outros, quatro ou cinco, o penúltimo no teatro, onde chegou a haver tal ou qual escândalo. Não estava disposto a cobrir com a sua responsabilidade os desazos da mulher. Que namorasse, mas por conta própria.

  1. Paula ouviu tudo, calada; depois falou também. Concordava que a sobrinha fosse leviana; era próprio da idade. Moça bonita não sai à rua sem atrair os olhos, e é natural que a admiração dos outros a lisonjeie. Também é natural que o que ela fizer de lisonjeada pareça aos outros e ao marido um princípio de namoro: a fatuidade de uns e o ciúme do outro explicam tudo. Pela parte dela, acabava de ver a moça chorar lágrimas sinceras, deixou-a consternada, falando de morrer, abatida com o que ele lhe dissera. E se ele próprio só lhe atribuía leviandade, por que não proceder com cautela e doçura, por meio de conselho e de observação, poupando-lhe as ocasiões, apontando-lhe o mal que fazem à reputação de uma senhora as aparências de acordo, de simpatia, de boa vontade para os homens?

Não gastou menos de vinte minutos a boa senhora em dizer essas coisas mansas, com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é verdade; duas ou três vezes, para não resvalar na indulgência, declarou à tia que entre eles tudo estava acabado. E, para animar-se, evocava mentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia, porém, abaixava a cabeça para deixar passar a onda, e surgia outra vez com os seus grandes olhos sagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi então que D. Paula propôs um meio-termo.

- Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ela vai estar comigo, na Tijuca, um ou dois meses; uma espécie de desterro. Eu, durante este tempo, encarrego-me de lhe pôr ordem no espírito. Valeu?

Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa obteve a palavra, despediu-se para levar a boa nova à outra, Conrado acompanhou-a até à escada. Apertaram as mãos; D. Paula não soltou a dele sem lhe repetir os conselhos de brandura e prudência; depois, fez esta reflexão natural:

- E vão ver que o homem de quem se trata nem merece um minuto dos nossos cuidados...

- É um tal Vasco Maria Portela...

  1. Paula empalideceu. Que Vasco Maria Portela? Um velho, antigo diplomata, que... Não, esse estava na Europa desde alguns anos, aposentado, e acabava de receber um título de barão. Era um filho dele, chegado de pouco, um pelintra... D. Paula apertou-lhe a mão, e desceu rapidamente. No corredor, sem ter necessidade de ajustar a capa, fê-lo durante alguns minutos, com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia. Chegou mesmo a olhar para o chão, refletindo. Saiu, foi ter com a sobrinha, levando a reconciliação e a cláusula. Venancinha aceitou tudo.

Dois dias depois foram para a Tijuca. Venancinha ia menos alegre do que prometera; provavelmente era o exílio, ou pode ser também que algumas saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a Tijuca, se não em ambas as cabeças, ao menos na da tia, onde era uma espécie de eco, um som remoto e brando, alguma coisa que parecia vir do tempo da Stoltz e do ministério Paraná. Cantora e ministério, coisas frágeis, não o eram menos que a ventura de ser moça, e onde iam essas três eternidades? Jaziam nas ruínas de trinta anos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si.

Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi moço e amou. Amaram-se, fartaram-se um do outro, à sombra do casamento, durante alguns anos, e, como o vento que passa não guarda a palestra dos homens, não há meio de escrever aqui o que então se disse da aventura. A aventura acabou; foi uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a taça das paixões. D. Paula esgotou-a inteira e emborcou-a depois para não mais beber. A saciedade trouxe-lhe a abstinência, e com o tempo foi esta última fase que fez a opinião. Morreu-lhe o marido e foram vindo os anos. D. Paula era agora uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração.

A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao passado. Foi a presença de uma situação análoga, de mistura com o nome e o sangue do mesmo homem, que lhe acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam que elas estavam na Tijuca, que iam viver juntas algumas semanas, e que uma obedecia à outra; era tentar e desafiar a memória

- Mas nós deveras não voltamos à cidade tão cedo? perguntou Venancinha rindo, no outro dia de manhã.

- Já estás aborrecida?

- Não, não, isso nunca, mas pergunto...

  1. Paula, rindo também, fez com o dedo um gesto negativo; depois, perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha respondeu que nenhumas; e para dar mais força à resposta, acompanhou-a de um descair dos cantos da boca, a modo de indiferença e desdém. Era pôr demais na carta, D. Paula tinha o bom costume de não ler às carreiras, como quem vai salvar o pai da forca, mas devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre as letras, para ver tudo, e achou que o gesto da sobrinha era excessivo.

"Eles amam-se!" pensou ela.

A descoberta avivou o espírito do passado. D. Paula forcejou por sacudir fora essas memórias importunas; elas, porém, voltavam, ou de manso ou de assalto, como raparigas que eram, cantando, rindo, fazendo o diabo. D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara das sobrinha como sendo a mais graciosa coisa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos; mas tudo isso - e esta é a situação - tudo isso era como as frias crônicas, esqueleto da história, sem a alma da história. Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro, a ver se sentia alguma coisa além da pura repetição mental, mas, por mais que evocasse as comoções extintas, não lhe voltava nenhuma. Coisas truncadas!

Se ela conseguisse espiar para dentro do coração da sobrinha, pode ser que achasse ali a sua imagem, e então... Desde que esta idéia penetrou no espírito de D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera, tratava da alma da outra, queria vê-la restituída ao marido. Na constância do pecado é que se pode desejar que outros pequem também, para descer de companhia ao purgatório; mas aqui o pecado já não existia. D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou a advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha ficou aterrada. Esperava que os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade, assim era; mas ele mascarou-se à entrada e conteve-se para não capitular. E isto foi mais salutar que tudo o mais. O terror de perder o marido foi o principal elemento de restauração. O próprio desterro não pôde tanto.

Vai senão quando, dois dias depois daquela visita, estando ambas ao portão da chácara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavaleiro. Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e correu a esconder-se atrás do muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis ver o cavaleiro de mais perto; viu-o dali a dois ou três minutos, um galhardo rapaz, elegante, com as suas finas botas lustrosas, muito bem-posto no selim; tinha a mesma cara do outro Vasco, era o filho; o mesmo jeito da cabeça, um pouco à direita, os mesmos ombros largos, os mesmos olhos redondos e profundos.

Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma vez, logo que ele chegou da Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão bem, com um ar tão parisiense, que ela falou dele, na manhã seguinte, ao marido. Conrado franziu o sobrolho, e foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a pouco com certa ansiedade. Ele falava-lhe respeitosamente, dizia-lhe coisas amigas, que ela era a mais bonita moça do Rio, e a mais elegante, que já em Paris ouvira elogiá-la muito, por algumas senhoras da família Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer também umas palavras sentidas, como ninguém. Não falava de amor, mas perseguia-a com os olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá-los de todo. Começou a pensar nele, amiudadamente, com interesse, e quando se encontravam, batia-lhe muito o coração, pode ser que ele lhe visse então, no rosto, a impressão que fazia.

  1. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas.

- Já vês que teu marido tinha razão, dizia ela; foste imprudente, muito imprudente...

Venancinha achou que sim, mas jurou que estava tudo acabado.

- Receio que não. Chegaste a amá-lo deveras?

- Titia...

- Tu ainda gostas dele!

- Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso que gostei... Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida... Repito que a princípio um pouco fascinada... Mas que quer a senhora?

- Ele declarou-te alguma coisa?

- Declarou; foi no teatro, uma noite, no Teatro Lírico, à saída. Tinha costume de ir buscar-me ao camarote e conduzir-me até o carro, e foi à saída... duas palavras...

  1. Paula não perguntou, por pudor, as próprias palavras do namorado, mas imaginou as circunstâncias, o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes, e teve o poder de representar, com o quadro, um pouco das sensações dela; e pediu-lhas com interesse, astutamente.

- Não sei o que senti, acudiu a moça cuja comoção crescente ia desatando a língua; não me lembro dos primeiros cinco minutos. Creio que fiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda gente olhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me cumprimentava sorrindo, dava-me idéia de estar caçoando. Desci as escadas não sei como, entrei no carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei bem os dedos. Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que tinha sono, e encostou-se ao fundo do carro; foi melhor assim, porque eu não sei que diria, se tivéssemos de ir conversando. Encostei-me também, mas por pouco tempo; não podia estar na mesma posição. Olhava para fora através dos vidros, e via só o clarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem isso mesmo; via os corredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que pensei em todo esse tempo; tinha as idéias baralhadas, confusas, uma revolução em mim...

- Mas, em casa?

- Em casa, despindo-me, é que pude refletir um pouco, mas muito pouco. Dormi tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça aturdida. Não posso dizer que estava alegre nem triste, lembro-me que pensava muito nele, e para arredá-lo prometi a mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o pensamento voltava outra vez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz dele, e estremecia. Cheguei a lembrar-me que, à despedida, lhe dera os dedos frouxos, e sentia, não sei como diga, uma espécie de arrependimento, um medo de o ter ofendido... e depois vinha o desejo de o ver outra vez... Perdoe-me, titia; a senhora é que quer que lhe conte tudo.

A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito a mão e fazer um gesto de cabeça. Afinal achava alguma coisa de outro tempo, ao contato daquelas sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos ora meio cerrados, na sonolência da recordação, - ora aguçados de curiosidade e calor, e ouvia tudo, dia por dia, encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a sobrinha a princípio lhe ocultara. E vinha tudo o mais, horas de ânsia, de saudade, de medo, de esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a agitação de uma criatura em tais circunstâncias, nada dispensava a curiosidade insaciável da tia. Não era um livro, não era sequer um capítulo de adultério, mas um prólogo, - interessante e violento.

Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada, deixou-se estar metida em si mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a. Não lhe falou logo; fitou primeiro, e de perto, toda essa mocidade, inquieta e palpitante, a boca fresca, os olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a sobrinha lhe pediu outra vez perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e a austeridade da mãe lhe poderia dizer, falou-lhe de castidade, de amor ao marido, de respeito público; foi tão eloqüente que Venancinha não pôde conter-se, e chorou.

Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas confidências. Venancinha recolheu-se logo, e, como a luz era agora maior, saiu da sala com os olhos baixos, para que o criado lhe não visse a comoção. D. Paula ficou diante da mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito, e apenas ficou só, foi encostar-se à janela, que dava para a chácara.

Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e, conquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe: "Paula, você lembra-se do outro tempo?" Que esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as coisas que viram, e é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você lembra-se do outro tempo?

Lembrar, lembrava, mas aquela sensação de há pouco, reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha, farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum vestígio, reminiscências, coisas truncadas. O coração empacara de novo, o sangue ia outra vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contato moral da outra. E continuava, apesar de tudo, diante da noite, que era igual às outras noites de então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do Marquês de Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o sono contando anedotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes:

- Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 19 de junho de 2021

UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO) VÍDEO

UM MÚSICO EXTRAORDINÁRIO

Lima Barreto


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 18 de junho de 2021

SUA EXCELÊNCIA (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO) NARRAÇÃO EM VÍDEO

SUA EXCELÊNCIA

Lima Barreto

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 18 de junho de 2021

A NOIVA DO DONATO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A NOIVA DO DONATO

Humberto de Campos

 

 

- Foi um caso espantoso, único, inacreditável, Sr, conselheiro, esse de que fui testemunha, e que eu lhe conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".

E puxando o relógio, para ver se ainda havia tempo, o ilustre advogado santista começou, em estilo rápido, vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível história, sob o alpendre da Central, à hora, quase, do noturno de luxo:

- "Era no sítio do "Pau d'Alho", em Vila Bela, onde se haviam casado, naquele dia, o Donato e a Rosinha. Um despotismo de gente, como o senhor não imagina. A Vila, as cercanias, a redondeza toda, no "Pau d'Alho". Até veio gente de Ubatuba! Calcule!"

Uma olhadela ao relógio, e continuou, telegráfico:

"Violeiro: o Chico Messias. Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da toeira* uma coriza lacrimosa, de valsa sem motivo."

E acrescentou, num parênteses:

"O caiçara diverte-se sem sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma hipótese triste, socavada de ancilóstomos*."

E reatou, descritivo, unindo o gesto à palavra, dando voltas no meio do alpendre:

- "Damas e cavalheiros vão e vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as mãos, e balanceiam, e remoinham, e desnalgam-se*, numa choréa que tem passos de lanceiros, atitudes de Pedowa e desengonços tupinambás."

Outra interrupção, para um surto histórico:

"D. Pedro Fernandes Sardinha, quando foi do seu caso com os Aimorés, devia ter assistido a paulovices muito semelhantes."

E tornando, com uma soberba vivacidade de descrição:

"Ela, a noiva, dentro do vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó pendente da mão. Tem olhos baixos e constrangidos de protagonista. Ele, traz a fatiota* de elasticotine, que tem reflexos envernizados e o suplemento da gravata escura, de tricô frouxo, escorrida pelo "adão"*.

E descreve a festa:

- "Ambos assistem sem apetite o apetite dos convidados. Há um mastigo odioso de bocados grandes, e o cair do bocado, goela abaixo, com um rumor de rã assustada em pântano adormecido. Comem! E comem!

Nova consulta ao relógio, e a descrição despenhou-se, para ganhar tempo:

"Hora da sobremesa. O Inocêncio, professor publico, vai falar! Recuo de cadeiras; engolir de últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. - Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar."

Como se estivesse na festa, eu próprio me empertigo, e o ilustre viajante repete, assombroso:

"Vai falar o Inocêncio. E começa tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu, e a família, e o tugúrio*, e mais isto, e mais aquilo e... e.... e o Inocêncio perde o fio, e embrulha, enrola, engole, mastiga, encaroça, embatuca. Estende-se um vágado* coletivo, pesado como um paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina a boreste gorgolões de cerveja."

Noutro parênteses, o meu amigo sentencia, outra vez:

- "Há situações que obstruem a vida como caroços de jabuticaba!"

E engatando, de novo, com os olhos no trem, desabou, história abaixo:

- "Coitado do Inocêncio! Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao lado, encontrou uma saída. Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:

- "Viva a noiva!

"O viva desonerou aquele constrangimento, como um laxativo. Um alívio geral.

- "Viva!...

"E o Dito prosseguiu, vitorioso:

- "Viva os óio da noiva!

- "Vivôooo!

- "Viva os dente biturado da noiva!

- "Viva!

- "Viva o pescoço da noiva!

- "Viva!

- "Viva os peito da noiva!

- "Viiiiva!

Tomando fôlego, o narrador continuou, elétrico:

- "Os vivas desciam, conselheiro, assustadoramente, noiva abaixo. O noivo, o Donato, piscou, por três vezes, os olhos, apreensivo. De repente, remexe-se, mergulha a mão pela cinta, toma da garrucha trochada*, coloca-a à sua frente, na mesa, e, com aquele sorriso seu, desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:

- "Oie, seus convidado: não é por nada: mas eu queria apreveni, que os "viva" que passá do imbigo da noiva pra baixo... eu sapeco!"

Último apito. Um pulo do meu amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar fatigado de máquinas. E o trem desapareceu.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 16 de junho de 2021

O MONSTRO DE RODAS (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

O MONSTRO DE RODAS

Alcântara Machado

 

 

O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.

- Ei, Pepino! Escuta só o frio!

Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora

Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora.

Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.

- Leva ela pra dentro!

- Não! Eu não quero! Eu... não... quero!...

Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.

- Coitada da Dona Nunzia!

A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.

- Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...

Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa.

- ... da nossa morte. Amém. Pai Nosso que estais no Céu...

O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.

- ... de todo o mal. Amém.

A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.

Cinco. Seis.

O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada.


Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA - Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (- O Tibúrcio... - O mulato? - Quem mais há de ser?).

- Quero só ver daqui a pouco a noticia do Fanfulla. Deve cascar o almofadinha.

- Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi?

Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu.

- É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo!


O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda.

- Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.

A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.

O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada os homens caminhavam descobertos.


O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.

- A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinqüenta você ganha. Menos, eu.

Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço.

- Deixa eu carregar agora, Josefina?

- Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem!

O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada.

Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais.

- Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!


Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara. Sozinha. Chorando.

- Que linda que era ela!

- Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia...

O pai tinha ido conversar com o advogado.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 15 de junho de 2021

O CALIFA DE PLATINA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O CALIFA DE PLATINA

Machado de Assis

 

O califa Schacabac era muito estimado de seus súditos, não só pelas virtudes que o adornavam, como pelos talentos que faziam dele um dos varões mais capazes de Platina. Os benefícios de seu califado, aliás curto, eram já grandes. Ele iniciara e fundara a política de conciliação entre as facções do Estado, animava as artes e as letras, protegia a indústria e o comércio. Se havia alguma rebelião, tratava de vencer os rebeldes; em seguida perdoava-lhes. Finalmente, era moço, crente, empreendedor e patriota.

 

Uma noite, porém, estando a dormir, apareceu-lhe em sonhos um anão amarelo, que, depois de o encarar silenciosamente alguns minutos, proferiu estas palavras singulares:

 

— Comendador dos crentes, teu califado tem sido um modelo de príncipes; falta-lhe, porém, originalidade; é preciso que faças alguma coisa original. Dou-te um ano e um dia para cumprir este preceito: se o não cumprires, voltarei e irás comigo a um abismo, que há no centro da Tartaria, no qual morrerás de fome, sede, desespero e solidão.

 

O califa acordou sobressaltado, esfregou os olhos e reparou que era apenas um sonho. Contudo, não pôde dormir mais; levantou-se e foi ao terraço contemplar as últimas estrelas e os primeiros raios da aurora. Ao almoço, serviram-lhe peras de Damasco. Tirou uma e quando ia a trincá-la, a pêra saltou-lhe das mãos e saiu de dentro o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmas palavras da noite. Imagina-se o terror com que Schacabac as ouviu. Quis falar, mas o anão desaparecera. O eunuco que lhe servira a pêra estava ainda diante dele, com o prato nas mãos.

 

— Viste alguma coisa? perguntou o califa, desconfiado e pálido.

 

— Vi que Vossa Grandeza comeu uma pêra, muito tranqüilo, e, ao que parece, com muito prazer.

 

O califa respirou; depois recolheu-se ao mais secreto de seus aposentos, onde não falou a ninguém durante três semanas. O eunuco levava-lhe a comida, com exclusão das peras. Não lhe aproveitou a exclusão, porque no fim de três semanas, apetecendo-lhe comer tâmaras, viu sair de dentro de uma o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmíssimas palavras de intimação e ameaça. Schacabac não se pôde ter; mandou chamar o vizir.

 

— Vizir, disse o califa, logo que este acudiu ao chamado, quero que convoques para esta noite os oficiais do meu conselho, a fim de lhes propor alguma coisa de grande importância e não menor segredo.

 

O vizir obedeceu prontamente à ordem do califa. Naquela mesma noite, reuniram-se os oficiais, o vizir e o chefe dos eunucos; todos estavam curiosos de saber o motivo da reunião; o vizir, porém, mais curioso ainda que os outros, simulava tranqüilamente achar-se na posse do segredo.

 

Schacabac mandou vir caramelos, cerejas, e vinhos do Levante; os oficiais do conselho refrescaram as goelas, avivaram o intelecto, sentaram-se comodamente nos sofás e cravaram os olhos no califa, que depois de alguns minutos de reflexão, falou nestes termos:

 

— Sabeis que tenho feito alguma coisa durante o meu curto califado; contudo, ainda não fiz nada que verdadeiramente se possa dizer original. Foi o que me observou um anão amarelo, que me apareceu há três semanas e ainda hoje de manhã. O anão ameaçou-me com a mais afrontosa das mortes, em um abismo da Tartaria, se no fim de um ano e um dia, eu não tiver feito alguma coisa positivamente original. Tenho cogitado dia e noite, e confesso que ainda não achei coisa que merecesse essa qualificação. Por isso vos convoquei; espero de vossas luzes o concurso necessário à minha salvação e à glória da nossa pátria.

 

O conselho ficou boquiaberto, ao passo que o vizir, a mais e mais espantado, não movia um único músculo do rosto. Cada oficial do conselho fincou a cabeça nas mãos, a ver se descobria uma idéia original. Schacabac interrogava o silêncio de todos, e sobre todos, o do vizir, cujos olhos, fitos no magnífico tapete da Pérsia que forrava o chão da sala, parecia ter perdido a vida própria, tal era a grande concentração dos pensamentos.

 

Ao cabo de meia hora, um dos oficiais, Muley-Ramadan, encomendando-se a Allah, falou nestes termos:

 

— Comendador dos crentes, se quereis uma idéia extremamente original, mandai cortar o nariz a todos os vossos súditos, adultos ou menores, e ordenai que a mesma operação seja feita a todos os que nascerem de hoje em diante.

 

O chefe dos eunucos e diversos oficiais protestaram logo contra semelhante idéia, que lhes pareceu excessivamente original. Schacabac, sem a rejeitar de todo, objetou que o nariz era um órgão interessante e útil ao Estado, porquanto fazia florescer a indústria dos lenços e ministrava anualmente alguns defluxos à medicina.

 

— Que razão poderia levar-me a privar o meu povo desse natural ornamento? concluiu o califa.

 

— Saiba Vossa Grandeza, respondeu Muley-Ramadan, que, fundado na predição de um sábio astrólogo de meu conhecimento, tenho por certo que, daqui a um século, há de ser descoberta uma erva fatal ao gênero humano. Essa erva, que se chamará tabaco, será usada de duas formas — em rolo ou em pó. O pó servirá para entupir o nariz dos homens e prejudicar a saúde pública. Desde que os vossos súditos não tenham nariz serão preservados de tão pernicioso costume...

 

Esta razão foi triunfalmente combatida pelo vizir e todo o conselho, a tal ponto que o califa, aliás inclinado a ela, deixou-a inteiramente de mão. Então o chefe dos eunucos, depois de pedir licença a Schacabac para exprimir um voto, que lhe parecia muito mais original que o primeiro, propôs que dali em diante o pagamento dos impostos passasse a ser voluntário, clandestino e anônimo. Desde que assim for, concluiu ele, estou certo de que o erário regurgitará de sequins; o contribuinte crescerá cem côvados ante a própria consciência; algum haverá que, levado de legítimo excesso, pague duas e três vezes a mesma taxa; e afinado deste modo o sentimento cívico, melhorarão, e muito, os costumes públicos.

 

A maioria do conselho concordou em que a idéia era prodigiosamente original, mas o califa achou-a prematura, e aventou a conveniência de a estudar e pôr em execução nas proximidades da vinda do Anticristo. Cada um dos oficiais propôs a sua idéia, que foi julgada original, mas não tanto que merecesse ser aceita de preferência a todas. Um propôs a invenção da clarineta, outro a proscrição dos legumes, até que o vizir falou nestes termos:

 

— Seja-me dado, comendador dos crentes, propor uma idéia que vos salvará dos abismos da Tartaria. É esta: mandai trancar as portas de Platina a todas as caravanas que vierem de Brasilina; que nenhum camelo, se ali recebeu mercadoria ou somente bebeu água, que nenhum camelo, digo eu, possa penetrar as portas da nossa cidade.

 

Espantado com a proposta, o califa ponderou ao vizir:

 

— Mas que motivo... sim, é preciso que haja um motivo... para...

 

— Nenhum, tornou o vizir, e nisto consiste a primeira originalidade da minha idéia. Digo a primeira, porque há outra maior. Peço-vos, e ao conselho, que acompanheis atentamente o meu raciocínio...

 

Todos ficaram atentos.

 

— Logo que a notícia de semelhante medida chegar a Brasilina, haverá grande reboliço e estupefação. Os mercadores ficarão pesarosos com o ato, porque são os que mais perdem. Nenhuma caravana, nem ainda as que vêm de Meca, quererá mais parar naquela cidade maldita, a qual (permita-me o conselho uma figura de retórica) ficará bloqueada pelo vácuo. Que acontece? Condenados os mercadores a não mercar para cá, serão obrigados a fechar as portas, ao menos aos domingos. Ora, como há em Brasilina uma classe caixeiral, que suspira pelo fechamento das portas aos domingos, para ir fazer suas orações nas mesquitas, acontecerá isto: o fechamento das portas de cá produzirá o fechamento das portas de lá, e Vossa Grandeza terá assim a glória de inaugurar o calembour nas relações internacionais.

 

Apenas o vizir concluiu este discurso, todo o conselho reconheceu, unânime, que a idéia era a mais profundamente original de quantas tinham sido propostas. Houve abraços, expansões. O chefe dos eunucos disse poeticamente que a idéia do vizir era “o loto da sapiência brotando junto ao Nilo das necessidades públicas”. O califa manifestou o seu entusiasmo ao vizir, dando-lhe de presente uma cimitarra, uma bolsa com cinco mil sequins e a patente de coronel da guarda nacional.

 

No dia seguinte, todos os cadis leram ao povo o decreto que mandava fechar as portas da cidade às caravanas de Brasilina. A notícia excitou a curiosidade pública e causou certa estranheza, mas o vizir tivera o cuidado de espalhar pela boca pequena a anedota do anão amarelo, e a opinião pública aceitou a medida como um sinal visível da proteção de Allah.

 

Daí em diante, por espaço de alguns meses, um dos recreios da cidade era subir às muralhas a ver chegar as caravanas. Se estas vinham de Damasco, de Jerusalém, do Cairo ou de Bagdá, abriam-se-lhe as portas, e elas entravam sem a mínima objeção; mas se alguma confessava que tocara em Brasilina, o oficial das portas dizia-lhe que passasse de largo. A caravana voltava no meio dos apupos da multidão.

 

Entretanto o califa indagava todos os dias do vizir se constava que em Brazilina se houvesse procedido ao fechamento das portas aos domingos; ao que o vizir invariavelmemte respondia que não, mas que a medida não tardaria a ser proclamada como conseqüência rigorosa da idéia que havia proposto. Nessa esperança, iam voando as semanas e os meses.

 

— Vizir, disse um dia Schacabac, quer-me parecer que estamos enganados.

 

— Descanse Vossa Grandeza, retorquiu friamente o vizir; o fato vai consumar-se; assim o exige a ciência.

 

Pela sua parte, o povo cansou de apupar as caravanas e começou a notar que a idéia do vizir era simplesmente amoladora. Não vinham da Brasilina as mercadorias do costume, nem o povo mandava para lá as suas cerejas, os seus vinagres e os seus colchões. Ninguém ganhava com o decreto. Começou-se a murmurar contra ele. Um boticário (ainda não havia farmacêutico) arengou ao povo, dizendo que a idéia do vizir era simplesmente vã; que jamais o trocadilho das portas fechadas chegaria a ter a mínima sombra de realidade científica. Os doutores eclesiásticos não acharam no Corão um só versículo que pudesse justificar tais induções e esperanças. Lavrava a descrença e descontentamento; começava a soprar uma aragem de revolução.

 

O vizir não teve só de lutar contra o povo, mas também contra o califa, cuja boa fé começou a desconfiar do acerto do decreto. Três dias antes de chegar o prazo fatal, o califa intimou o vizir a dar-lhe notícia do resultado que prometera ou a substituí-lo por uma idéia verdadeiramente original.

 

Nesse apertado lance, o vizir chegou a desconfiar de si, e a persuadir-se que aventara aquela idéia, levado do único desejo de desbancar os outros oficiais. Disso mesmo o advertiu Abracadabro, varão exímio na geomancia, a quem consultou sobre o que lhe cumpria fazer.

 

— Esperar, disse Abracadabro, depois de traçar algumas linhas no chão; esperar até o último dia do prazo fatal marcado ao califa. O que há de acontecer nesse dia, não o pode descortinar a ciência, porque há muita coisa que a ciência ignora. Mas faze isso. No último dia do prazo, à noite, tu e o califa deveis recolher-vos ao mais secreto aposento, onde vos serão servidos três figos de Alexandria. O resto lá saberás; e podes ficar certo de que será coisa boa.

 

Deu-se pressa o vizir em contar ao califa as palavras de Abracadabro, e, fiados na geomancia, aguardaram o dia último. Veio este, e depois dele a noite. Sós os dois, no mais secreto aposento de Schacabac, mandaram vir três figos de Alexandria. Cada um dos dois tirou o seu e abriu-o; o do califa deu um pulo, subiu ao teto e caiu logo no chão, sob a forma do famoso anão amarelo. Vizir e califa tentaram fugir, correndo às portas; mas o anão os deteve com gesto amigo.

 

— Não é preciso fugir, disse ele; não venho buscar-te; venho somente declarar que achei verdadeiramente original a idéia do fechamento das portas. Certo é que não deu de si tudo o que o vizir esperava; mas nem por isso perdeu de originalidade. Allah seja convosco.

 

Livre da ameaça, o califa mandou logo que todas as portas se abrissem às caravanas de Brasilina. O povo aquietou-se; o comércio votou mensagens de agradecimento. E porque o califa e o vizir eram homens instruídos, práticos e dotados de boas intenções, e apenas tinham cedido ao medo, sentiram-se contentes com repor as coisas no antigo pé, e não se encontravam nunca sem dizer ao outro, esfregando as mãos:

 

— Aquele anão amarelo!


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 14 de junho de 2021

O DESAPARECIDO (CONTO DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

O DESAPARECIDO

Rubem Braga

 

Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 13 de junho de 2021

O DEFUNTO (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O DEFUNTO

Olavo Bilac

 

O grave professor, aprumando sobre o nariz os óculos de ouro, começa a sua lição. Grave, grave, o professor Mac-Leley! calvo, vermelho, possuindo nas bochechas flácidas algumas falripas raras e grisalhas, o velho inglês é a circunspecção em pessoa. Sempre trajado severamente — calças negras, colete negro, rodaque de alpaca negra, gravata negra de três voltas... Grave, grave, o professor Mac-Leley!

Levanta-se, tosse duas vezes, passeia pela sala um olhar minucioso, e principia. Os meninos, em semicírculo, agitam-se, mexem-se, dispõe-se a ouvir a palavra do mestre, que vai fazer a lição de cousas. Justamente um dos alunos faltou: morrera-lhe um tio. E o circunspecto Mac-Leley aproveita a ocasião para ensinar à classe o que é um defunto, o que é a morte, o que é a vida, o que é um cadáver...

— Quando cessa o funcionamento de um orgão, meninos, diz-se que este orgão está morto. O corpo humano é um conjunto de órgãos... O funcionamento de todos esses órgãos é a vida. Se os órgãos não funcionam mais, o homem morre, é um defunto, é um cadáver...

(Mas... que é aquilo? pelos bancos da classe passa, contínuo e mal disfarçado, um risinho alegre. Toda classe ri, tomada de uma alegria irresistível...)

— Meninos! continua o grave Mac-Leley — quando o corpo morre, começa a decomposição...

(O riso da classe continua também. Todos cochicham, todos se estorcem, todos se agitam nos bancos. O velho mestre enrubesce, atrapalha-se, sem saber o que provoca aquela alegria. Mas, sem parar, com a voz trêmula, prossegue.)

— E quando há a decomposição, há a infeção e...

(O grave Mac-Leley, pobre! pobre grave Mac-Leley! baixa os olhos, mira-se, examina-se, fica trêmulo... Malditos botões! malditos botões! também as calças são tão antigas! malditos botões! Malditos botões!... E o grave Mac-Leley está sobre brasas, e é quase sem voz que conclui o seu período.)

— Meninos... Quando há decomposição há infecção... e... por isso... por isso... é que é costume deixar a janela aberta... quando há defunto em casa...


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 11 de junho de 2021

O FURTO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O FURTO

Humberto de Campos

 

A floresta imensa, de árvores augustas e seculares, chegava até à margem do rio quando os primeiros colonizadores, fazendo ressoar o machado nos troncos enormes, ergueram aí a primeira barraca de seringueiro. E pouco a pouco, investindo contra a selva soturna e impenetrável, foi o homem avançando contra a muralha verde, até fixar naquelas brenhas o marco da primeira cidade.

Agora, não era mais o casebre isolado. Alinhados à beira do rio largo e profundo, as casas de negócios e de moradia, comprimidas entre a floresta e a água, eram como ovelhas escuras de um pequeno rebanho, trazidas a beber na torrente por uma legião de gigantes desgrenhados. E entre essas casas, humilde no meio das mais humildes, estava a do Zeferino, caboclo de trabalho, que passara seis meses na pesca do pirarucu e outros seis no alto sertão, na faina dos castanhais.

A cidade pequena ressonava, quieta, naquela noite sem lua, quando o caboclo, descalço, torcendo as mãos vigorosas e ásperas, apareceu à porta escura do casebre. Era um homem baixo, grosso, de tez cobreada cabelos lisos e bigode ralo, tipo inconfundível do índio domesticado. Os olhos, vivos e pequenos, luziam-lhe nas órbitas como vagalumes escondidos nas folhas. Vestia camisa grosseira, de algodão, encardida pelo tempo, a qual lhe descia, até, quase, ao joelho, cobrindo, em parte, a ceroula do mesmo pano. Diante dele, o rio, silencioso, multiplicava-se em claridades, refletindo a abóbada inteira em cada escama do dorso. E, em cima, na altura, O espaço picado de estrelas era uma enorme orgia de luz, como se os anjos tivessem acendido naquela hora, num impiedoso desafio à sua miséria, as mais remotas lâmpadas do firmamento. Na margem, beirando o mistério das águas, velavam, como ciclopes, com o seu olho fixo, os lampiões da iluminação pública. Enfileirados ao longo da primeira rua do lugar, as suas gotas de luz, tristes, mortiças, imóveis, faziam pensar em pequenos astros cristalizados na terra, ou em grandes lágrimas de titãs tombadas soturnamente do céu.

Na quietude daquela hora de assombros, afugentando ou convocando os demônios da treva, coaxavam os sapos, martelando, monótonos, na bigorna do silêncio. Nas moitas úmidas, de onde partiam, confundindo-se tantas vozes anônimas, os pirilampos eram como as centelhas dessa oficina monstruosa, onde os batráquios batiam, talvez, a couraça de ouro do sol.

A noite corria, assim, profunda e calma, suando orvalho pelos poros da terra, na dor ignorada do seu parto, quando a figura do caboclo se desenhou, como uma grande mancha cinzenta, na mancha escura da porta. Desenrolava-se no seu espírito, naquele momento, uma das grandes tragédias da consciência. É que, dentro, na casa modesta, no refúgio doloroso da sua miséria, agonizava o seu filho pequeno, o qual ia morrer, talvez, com sacrifício da sua alma inocente, no horror da escuridão!

Ao regressar do trabalho nos castanhais, onde passara quatro meses, encontrara-o só, entregue aos vizinhos. A mãe, a Rosa, sua companheira de cinco anos, tinha-o abandonado na sua ausência, fugindo para Breves com um turco, negociante de "regatão". Informado de tudo, pensara em sair em perseguição da adúltera, e matá-la, e ao amante. O menino já estava, porém, com a maleita impiedosa, e como não tivesse quem dele tomasse conta, ficara ao seu lado, tratando-o na enfermidade com desvelos de mãe.

O dinheiro trazido do trabalho na castanha tinha-se-lhe ido, todo, nos remédios para o pequeno. Não podendo afastar-se dele para ir à pesca, ou a qualquer outro meio de vida, não tivera um níquel, sequer, na véspera, para comprar uma vela ou um pouco de querosene. E agora, dentro, no quarto, a candeia que lhe iluminava a agonia começava a esmorecer, como um símbolo mesmo daquela vida periclitante, e, em pouco, a Morte entraria, de certo, ali, arrebatando aquele pedaço do seu coração!

No seu pavor, adivinhando o rio e olhando o céu, o caboclo via, já, o seu filho estendendo os bracinhos mirrados, estertorando no escuro, e confundindo, de olhos entreabertos, as trevas passageiras da noite com as trevas eternas do túmulo. Duas vezes chegou à porta e duas vezes entrou, de novo, impelido por um triste pressentimento. Da última vez, encontrou, já, o quarto afogado em escuridão. A lamparina, sem querosene, apagara-se. Tateando nas paredes familiares, fora até à rede onde estava o doentinho apalpando-lhe o corpinho magro, quase um esqueleto, pondo toda a delicadeza nas mãos pesadas. O menino queimava, de febre. Um grunhido estertorante subia-lhe do peito ansiado. A respiração era agitada, pela boca escaldante, que, ao tato, verificara que estava aberta.

- João?... Joãozinho?... meu filho?... - chamou, adoçando a voz.

O mesmo grunhido angustiado, surdo, foi a resposta. O caboclo chegou-lhe a coberta remendada para o peito magro, beijou-o num grande carinho, e saiu, de novo. À porta, estacou, outra vez. Que fazer àquela hora, entre o esquecimento de Deus e o sono dos homens? Onde conseguir, em hora tão avançada, uma vela ou um pouco de azeite, com que alumiasse a agonia daquele inocente, se ninguém o atenderia noite tão alta, e não havia na casa, para bater a uma venda, a moeda mais miserável?

O primeiro galo cantara, longe, perto do rio. Outro respondera mais próximo. A quietude era tamanha que se lhes ouvia o bater pesado das asas. Menos numerosos, os sapos. se acomodavam.

A alma em desespero, o caboclo passeava os olhos pela mudez misteriosa das coisas, interrogando o céu e a noite sobre o destino do seu filho e o remédio do seu sofrimento, quando teve aquela idéia, que os demônios apiedados lhe sopraram. Reentrando no casebre, tomou da lamparina vazia, apalpou ainda uma vez o esqueleto ardente do filho, e desceu à rua, rumo do rio. Ao longe, um lampião, perdido na noite, chorava, triste, o seu pranto de claridade solitária. Encaminhou-se para ele. Ao chegar-lhe junto, mediu a altura do poste esguio, e, tomando nos dentes a lamparina de folha, começou a subi-lo. Ao alto, segurando-se com as pernas, retirou o bocal do candeeiro, e principiava a passar para a sua candeia algumas gotas de querosene, quando ouviu um grito, a dois passos.

- Ladrão!... - bradaram.

Era o fiscal, o rondante da iluminação. Atirando-se do poste, o caboclo confessou o seu crime, e pediu misericórdia.

- É para o meu filho!... - gemeu.

- Marche! Vamos!... foi a resposta do guarda, que, impelindo-o para a frente com um repelão, se mostrou inexorável.

- Eu vou, - replicou o desgraçado; - mas pelo amor de Deus, deixe-me ir em casa primeiro, acender a lamparina junto ao meu filho!... Deixe!... tenha piedade!...

- Marche!... - bradou-lhe, imperioso, com outro safanão, o homem da ronda.

Cabeça baixa, o desespero na alma, com uma vontade doida de romper em soluços, o caboclo pôs-se a caminho da cadeia, custodiado pelo guarda. A situação em que fora preso, amesquinhava-o, enfraquecia-o, acovardava-oSentia vergonha e raiva, arrependimento e indignação.

Pela cidade adormecida os galos amiudavam. Os sapos calavam-se. As estrelas, piscavam menos. Uma brisa fresca, embalando os ramos, trazia o cheiro da floresta... A chave da cadeia estalou, seca, na fechadura, e rolou, lá dentro, um corpo, impelido por um empurrão.

Já ao entardecer, quase noite, soltaram-no, de ordem do delegado. O caboclo correu à casa, para ver o seu filho.

Pelo punho da rede, tomando conta do cadáver, e entrando-lhe pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos, desciam em fileira, em longos rosários fervilhantes, as primeiras formigas...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 09 de junho de 2021

ORA DIREIS (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

ORA DIREIS

Dalton Trevisan

 

 

—Ai, primeira vez nuinha. Só de salto alto. Puxa,
como é linda. Ver você e nunca, nunca mais morrer.
Olhe este peitinho.
—Cuidado. Que dói.
—Ui, tirar leite deste biquinho. Agora se vire. Não.
Assim. De novo.
Aquela confusão medonha.
—Deixe, amor. Só um pouquinho. Não se arrepende.
—Ai, não.
Desgracida de uma peticinha sestrosa.
—Tenho medo. Não quero.
Beijos molhados na penugem do pescoço — ó rica
pintinha de beleza.
—Posso me cobrir?
Santa vergonha de estar nua — a última virgem
de Curitiba.
—Ainda não. Quero você bem assim. Nos meus
braços.
Salto alto, a bundinha em riste. Seio de olhinho
aberto, um para cada lado. Ó vertigem da página em
branco.
—Tudo. Menos beijo. Na boca, não.
Ora direis, ouvir estrelas.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 08 de junho de 2021

RESTOS DO CARNAVAL (CONTO DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

RESTOS DO CARNAVAL

Clarice Lisector

 

 

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha ao encontro da minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.

Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola. Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem.

Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto, essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 07 de junho de 2021

CAVALEIROS ANDANTES (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

 

CAVALEIROS ANDANTES

Raul Pompéia

 

Pode ser que o dia histórico de amanhã, desfeitas às brisas da madrugada a noite de tempestade que se anuncia no oriente do futuro, acamada em firme cristalização de paz toda essa fervura vulcânica de aspirações infrenes que estremecem no subsolo do edifício social do nosso tempo, destruída a linha das fronteiras, após o desmembramento dos impérios, como se destruíram os castelos do feudalismo; reorganizando-se a humanidade sobre uma topografia nova. graças à justiça civil da dinamite, graças ao direito internacional dos canhões; pode ser que traga o dia de amanhã da evolução o advento feliz das esperanças realizadas, dos que crêem na Providência latente dos fatos.

Até ao presente século, serenamente julgando, triste tem sido a jornada dos homens através da vida. O oásis da eleição e do venturoso privilégio para alguns; para a multidão indistinta, o amplíssimo deserto, a marcha forçada do trabalho e do sofrimento, ao sol inclemente de um céu sem eco para os clamores, sem misericórdia para as lamentações.

A par dos fatos, como por uma errata de idealismo, desenvolveram-se as formas da meditação. Teogonias, religiões, filosofias, propagandas morais, reformas humanitárias, a hipocrisia dos comícios e as sínteses francamente artísticas da literatura; criou-se um mundo imaginário, buscou-se ao azul do infinito, na metamorfose dócil das nuvens, os aspectos consoladores que faltam à realidade rasteira. Surgiram os Heróis, os Deuses baixaram à terra, para contrastar a pureza. olímpica de sua essência com a grosseria humana das vulgaridades.

Extasiados na contemplação que nos arreda da natureza crua das cousas, pobres mortais, entregamo-nos facilmente à história do ideal. Vazadas no molde dos sonhos, as concepçôes visionárias encarnam-se; sentimos a ilusão, gozamo-la, sofremo-la, palpamos a sombra, amamos, adoramos a miragem interior do nosso delírio, desequilibrado o critério da opinião, doudos que estejamos da anagogia do instinto artístico das almas.

A história é a mesma, desde a conquista de Roma, desde aquele. passado heróico em que o pomo da discórdia confundiu. os deuses na disputa dos homens, até às loucuras cavalheirescas dos cruzados, até às campanhas mais recentes cm nome das crenças, até às revoluções modernas do igualitarismo, assopradas pela tuba enfática das proclamações.

Os ideais variam, o engano permanece. Os mesmos desatinos em nome de princípios diversos.

Primeiro foram as concepções da arte consubstanciadas com as crenças religiosas; em seguida uma época de transição, o divórcio dos ideais, delimitados o campo da arte propriamente dita e os domínios da religião; finalmente, a religião vencida e o ideal artístico em triunfo.

O princípio, os poemas eram os livros sagrados; a estrofe era o veículo da prece. Filhas da mesma disposição espiritual contemplativa, as duas irmãs separam-se. De parte a parte, exaltam-se, independentes, por muitos séculos, os entusiasmos artísticos e os entusiasmos religiosos. Os deuses são meros pretextos para os artistas; as estátuas são meros ídolos para os crentes. Dante escreve a Comédia, o leitor piedoso a diviniza. Surgem as rebeldias lítero-filosóficas e preparam a última fase que recalcou para o escuro a rareada legião dos crentes e glorificou os artistas. Ganhou predomínio a ilusão literária. A retórica foi a alma dos últimos conflitos históricos. Armou-se o gesto de Mirabeau com o sabre de Bonaparte.

Em nossos dias a frase declina. O livre exame requintou-se em desalento; não sei que sombrio niilismo preocupa o enlevo das contemplações humanas. Dir-se-ia que vai naufragar o instinto artístico no mar das trevas; que a transmigração do ideal baixou progressivamente, da concepção enganosa das teogonias até à religião dos desesperos. Confunde-se a necessidade brutal da existência, ananckhe, com a prostração desanimada das fantasias. Desabam os santuários; a imaginação morre aos pés do industrialismo ovante.

Indústria é a grande palavra - capital e servidão, tirania e esbulho. Só a indústria marchou em progresso ao rodar do tempo, a indústria, que é o egoísmo, o individualismo, contra a solidariedade, que é poema; o fatalismo da força maior triunfante, o fato positivo, indiferente à moralidade e à estética; a economia política da iniquidade, avessa à pragmática do belo e do justo, feições similares da mesma idéia inane.

Às vezes, sucedeu ser tão viva a exacerbação da fantasia concorrente que a evolução da força das cousas mostrou ressentir-se. É o caso da caudal encrespada à superfície pela viração em contrário: no fundo a correnteza é a mesma regular e invencível. Também Maquiavel ensina, o mestre sem piedade das duras lições, "que vemos em triunfo os profetas armados e acabando desgraçadamente os propagandistas inermes . E refere o exemplo de Savonarola. É que os profetas armados triunfam pelas armas, não pelas profecias. Não vence o justo; convence o ferro. A justiça é ideal; a força é fato.

Na época presente, entretanto, chegamos à dissolução. A fórmula da luta pela vida deu carta branca a todos os abusos; definitivamente poder é poder. Desapareceu mesmo a hipótese dos profetas armados. Os inermes embucham, quando não fazem, para que não sucumbam, da profecia um mercado.

Ao passo que a emulação dos tiranos e a rebeldia crescente dos oprimidos, sem fé, sem esperança, vai espalhando na atmosfera da civilização o pavor negro de uma expectativa, como não conheceu jamais a história dos povos.

 

II

 

Aos grandes ciclos do Ideal corresponderam paralelamente, nos domínios do Fato, três espécies de atividade psicológica. Época das religiões; época das filosofias; época das constituições e dos códigos. Delírios sucessivos da mesma febre.

Destas crises, a mais duradoura e a mais grave foi a primeira; período agudo: as Cruzadas, os mais belos dias do desvario beato da humanidade; personagem típica - S. Luís. A segunda complicou-se por muito tempo com a primeira até acentuar-se; período agudo: reforma e guerras de religião; tipo - Lutero. A terceira perdura em manifestações fugitivas até aos nossos dias: período agudo: Revolução Francesa; personificação - Danton.

Hoje que, o ideal expira, entramos por uma idade nova, rumo trágico do futuro à luz de um astro misterioso, em noite de desolação. Os últimos sonhadores, olhar fixo no relógio parado das ilusões, vão desesperando da quarta hora de Justiça de Proudhon.

Estudando sem preconceito a sociedade moderna e a filiação histórica das datas, verifica-se que, excetuando o esforço dos tiranos e conquistadores, que recortaram à ponta de espada as linhas geográficas do mapa-múndi e sedimentaram as camadas sociais, segundo a mecânica do egoísmo - todas as grandes lutas dos homens nada mais foram que a gênese ensangüentada de mil vocábulos: nulas variantes fônicas das expressões: Deus, Verdade, Liberdade, trilogia sinistra da eterna ignorância.

Mas ao artista deve ceder o historiador, para o estudo das tragédias do Ideal no passado. É a missão contemplativa do moderno idealismo. Deus, Verdade, Liberdade, são os três cantos da melancólica epopéia das aspirações humanas, cujos versos de sangue vêm entrelinhando a história, desde às obscuras tradições do Oriente. À luz da arte erige-se o severo monumento das audácias, dos desesperos, Ossa e Pelion sobrepostos em direção ao céu; e a grita desordenada dos entusiasmos e das decepções vibra na abóbada como uma sinfonia profunda. Ao redor da concepção do Belo e do Justo agrupam-se os heróis. Cada século faz galgar um certo número a escadaria, e organiza-se o conjunto peça a peça, avultando com o tempo, harmônico e admirável.

Suprema Bondade foi a mais sublime criação do instinto artístico. O Bem é ao mesmo tempo o belo, o justo, o verdadeiro: Ideal dos ideais. Contra a tirania dos egoísmos, que é o Mal, lavrou este protesto o coração humano.

Conforme os diversos graus de cultura intelectual dos homens variou-se a maneira de conceber a Bondade. Para cada fase do desenvolvimento uma hipótese antropomórfica

- Hércules, Cristo, D. Quixote. Hércules é a bondade heróica e mitológica; Cristo é a bondade medieval e católica; D. Quixote é a bondade moderna idealizada na ironia do livre exame. Três imagens dolorosas, geradas de estranho pessimismo. Hércules tem a púrpura abrasadora de Nessus; o Nazareno tem a Cruz; o cavalheiro de Cervantes tem o carnaval das armaduras e o pelourinho implacável da gargalhada.

 

III

 

Hércules enche o passado. Concretiza a alma dispersa das resistências. Vive na Pérsia, no Egito, nas Gálias a tradição herculana, como símbolo da força propícia contra a força adversidade. Hércules é o amparo e a defesa. O chão é rebelde e estéril, - Hércules é o sol que cria a nuvem e a fecundidade. A humanidade está cercada pela conspiração dos monstros, hostilizada pelas forças ocultas da natureza e pelas sugestões da maldade, a iniqüidade devastadora campeia em auge - Hércules faz a justiça de Talião. Monstro de Neméia, hidra de Lema, corcéis de Diomedes, touro de Creta, Anteu, Lacínio, Gerion, Cacus, Buziris, sob qualquer fisionomia que se manifeste a tirania e a violência,. Q herói a chama a combate. Zombou de Juno, que era a cólera celeste, e libertou Prometeu, que era o sofrimento humano. Carregou aos ombros o firmamento, por alívio de Atlas, que era o trabalho forçado, e destruiu a necessidade cosmegônica, abrindo à expansão ampla do oceano a clausura do pedrado Mediterrâneo, erguendo às portas do Atlântico padrões eternos do cometimento - as poderosas colunas.

Missionário do sacrifício, era a lei dos fados que o herói sucumbisse. Armou-se a intriga maldita do amor da esposa com a vingança do centauro e Ele foi vencido, o bom, o forte, o justiceiro, o sempre vencedor - pela traição do Destino. Sofreu como deve sofrer o sol envolvido no esplendor flamejante da própria glória e, como o sol, vestindo a túnica da sua tortura, Hércules fez a jornada do dia, caminho do ocidente, atravessando o teatro das grandes empresas, direito às nuvens sobre o monte, escuras como o pressentimento dos amores de Iola, e foi pedir sossego à morte na fogueira do Oeta, simultaneamente incendiada com a rebentação rubra do crepúsculo.

Cristo é a mitologia nova. Veio aperfeiçoar o mosaísmo no sentido do coração e substituir o ideal fatigado das aras pagãs. A fatalidade fluvial dos fatos reconquistara o primitivo andamento. Haviam renascido os monstros do sangue derramado dos monstros. O egoísmo, filho da Terra como Anteu, ressurgia da última derrota, válido e potente. Era preciso ensaiar de novo a Redenção do Cáucaso. Nasceu, então, o filho de Maria, por graça do Espírito Santo, como outrora o filho de Alcmene por obra de Júpiter. Repetiu-se o sagrado mistério da encarnação do Ideal na humanidade: veio à luz o inimigo da serpente do Gênesis, esmagada como as de Juno.

Mas estava transformado o mundo. Começava a civilizar-se o mal, perdida a feição rudimentar de brutalidade da natureza nascente, vegetando outro, sobre a geologia tranqüila do planeta constituído; entrava até a decair a grandeza romana. O novo campeão, em vez da hercúlea dava teve o ânimo da propaganda e um ramo de oliveira. Paz entre os homens na terra, como a beatitude dos anjos na altura. Guerra ao demônio apenas, com as armas da fé e da graça. Crer e esperar. Guerra ao demônio sensualidade, guerra ao demônio ambição - inimigos da ventura calma do bem. Abaixo os altares do terror e do sangue! Façamos a eucaristia incruenta do amor.

Arranquemos a espada às mãos da velha Justiça, em nome da Justiça nova do perdão. Contra as vaidades, desprezo; contra as tiranias, paciência; contra as injúrias, silêncio: Jesus tacebat. Amor ao homem por amor do Ideal divino.

E espalhou-se pelo universo a doutrina do pregador Nazareno; ora, terrível de energia como no evangelho de ferro de São Mateus, com o estribilho tenaz dos prantos e o estridor dos dentes e o nervoso conselho: quem tiver ouvidos - ouça! ora, triunfal e radiante, como em São João.

À semelhança do seu antecessor da Grécia pré-histórica, Cristo acabou no suplício. Falharia, entretanto, a verdade do poema humano dos séculos, se, vitimados os heróis, não fosse salva a apoteose da Idéia. O Bem é imortal. Hércules ressurge:

Quem pater omnipotens inter cava nubilaraptur Quadjugo curru radiantibus intulit astris.

 

Cristo ressurge: Ascendo ad Patrem meum, ad Patrem vestrum. Cristo para a Bem-aventurança eterna do Paraíso; Hércules para o consórcio de Hebe, a eterna juventude.

D. Quixote é a decepção; é o retrospecto cômico da cavalaria andante de todos os tempos. Diante do descalabro miserando da angelitude prática, o livre exame fez a sátira do riso.

Colhei no ar a psicologia abstrata dos antigos empreendimentos, o espírito desolado que chora talvez na noite murmurosa dos salgueiros, no segredo dos pinhais dolentes, espectros de luar, que falam de Yorick na sombra e vão sobre as alvas campas; inspirai, depois, o sopro dessa vida às articulações crepitantes de um manequim de fragilidades; carregai os heroísmos todos das lendas mortas ao lombo do Rocinante, magro como a abstinência, fraco como os inocentes; dai-lhes por arma o lanção impossível, por glorioso arrebique o elmo rútilo de Mambrino; animai essa criação com a investidura galvânica do gênio de Cervantes. Agitai a virtude num cenário de anacronismo e desastramento; ao lado, como uma tinta de realce: a figura obesa de Sancho, chamando pela barriga, em contraposição à idealidade esgalgada do enamorado senhor e amo. Pronto o poema moderno das vinditas e dos desagravos, a epopéia atual da solidariedade.

Hércules é o ideal forte, animado pela exuberância audaz da adolescência virgem, do espírito embriagado de sonho. Hércules vence sempre, com a onipotência positiva do braço. Cristo é uma concepção hesitante já, como salteada de suspeitas filosóficas. Cristo transige com a ordem das cousas opressiva, e iníqua; fantasia de valor a fraqueza, denominando-a paciência, a derrota faz vezes de triunfo com o rótulo de sacrifício, humilhação chama-se humildade, impotência finge de superioridade; o seu Reino não é deste mundo; os últimos serão os primeiros. D. Quixote significa, em derradeira apuração, a crítica da bondade cristã e da bondade hercúlea. Cervantes fez obra de maldição, contando talvez escrever um livro desopilante de galhofa.

No âmago do caráter nenhuma divergência entre os protagonistas do romance histórico da Moralidade.

Quixote quer a Redenção dos homens como o Nazareno, como Hércules; por ela combate, por ela morre. Quer a consagração da mulher, estímulo nobre do seu brio; seria capaz de salvar Hesione, como o herói grego, se encontrasse O monstro da Frígia, e proporia a santificação do matrimônio, como Cristo, se não achasse a cousa feita no seu século. Tal qual o paladino mitológico, ele declara guerra aos gigantes; tal qual Cristo, prega e exalta as doutrinas da perfeição. Estote vos perfecti, reza o Evangelho; Dichosa edad, suspira Quixote, y siglos dichosos aquellos a quien los antiguos pusieran nombre de dorados... entonces los que en ella vivian ignoraban estas dos palabras de tinyo e mio.

As próprias aventuras da vida se assemelham. Há o prestigio feminino de Onfale, de Madalena; há o madrigal castíssimo da Sin par Dulcinéa. Se Hércules tem as ovações da Traquina, se Cristo tem as palmas da Páscoa de Jerusalém, Quixote tem a entrada em Barcelona. Um tem o retiro contemplativo da Lídia, outro os quarenta dias do deserto; Quixote tem a penitência platônica da Sierra Morena. Baixam aos infernos Hércules e Jesus Cristo; Quixote afronta a cueva de Montesinos.

O mesmo amor os absorve, do mesmo amor são mártires. No critério moral, o mesmo erro os vitima. Pecam por anacronismo os três. Ao anacronismo retrospectivo de D. Quixote, que perde a noção de atualidade para entregar-se à imaginação das medievas cavalarias, corresponde o anacronismo prospectivo dos cavaleiros andantes da Grécia e da Judéia, desvairados até ao extremo pelo idealismo da corrigenda e do aperfeiçoamento. Vai-lhes o coração através da existência real, como um fantasma, braços abertos, olhos no céu, sorrindo aos astros...

O anacronismo prospectivo é sério, respeita a gravidade dos heróis, deixa-lhes a pose de tragédia, aprumada e veneranda; o retrospectivo entrega o herói às cambalhotas e aos desastres da loucura patente.

O elemento real do humorismo de Cervantes é a extemporaneidade da segunda espécie. O seu personagem contempla o sétimo céu dos antigos sonhadores. O êxtase de Quixote anda de costas. Daí os trambolhões e a triste figura.

Não se trata de um anacronismo superficial de fardamento. Como encenação de ridículo isto já é uma utilidade eficaz. Cristo, por exemplo, que nos entrasse agora pela cidade em figurino de cartilha a evangelizar as massas de cima do burrico de Betphage, de dentro de uma amostra das alfaiatarias da Galiléia. No batalhador manchego a caricatura é mais odiosa e mais profunda. O escritor o concebe em alma e vestuário na idade de ouro do cristianismo, ao tempo em que a espada era a força, mas o punho da espada era a cruz. E toda a memória sagrada daquelas eras vive pungente nos traços carregados do grotesco; e com as vaias de riso que envolvem o herói, roda de mistura todo aquele sonho sublime de virtude ultrajado pela nossa compaixão.

O livro é cruel. Não foi poupado ao pobre louco nem o suplício final da desilusão: fitar do leito de morte a vacuidade da sua existência de nulos combates e esforços vãos. Ele viu no terrível momento, que vivera enganado e triunfara sonâmbulo; que as palmas de Barcelona valiam antes o convulso alarido da populaça do Ecce Homo. Só então morreu, sob as lágrimas da sobrinha, sob o olhar sereno do cura, para reviver em espírito, da vitalidade invencível do Ideal, na pátria azul altíssima dos que sonham.

D. Quixote é o símbolo moderno do Bem. Todos os ideais vão passando. D. Quixote fica. Nesta idade de pessimismo e de ironia, vive; porque D. Quixote é o Ideal-sarcasmo. Sua filosofia ri, como se nascesse de Voltaire.

No fundo do cárcere a que o levara a ingratidão dos homens e a calúnia, Cervantes quis forçar às alegrias o honesto despeito de uma alma cruciada. Quis compor um poema de risos e produziu um libelo de vingança. Não há resistir à lei de unidade lógica dos cérebros. Outra não podia ser a resultante dos desesperos concentrados de uma vida inteira de heroísmos esquecidos e sacrifícios, outra a explosão do seu espírito soberano, gênio e bravura, acanhado nos melhores dias sob o favor de Mecenas que lhe impunha a gratidão como uma libré de casa nobre. Vítima do egoísmo e da prepotência, descrendo talvez, prelibara os desgostos de uma sociedade de um século por vir, em que não fosse mais possível o recolhimento e o amparo de uma instituição de caridade como ainda ele alcançou. O poema nasceu assim, saturado de fel, o molho das agonias, tão grato ao paladar moderno dos espíritos.

D. Quixote é nosso contemporâneo. E o simbolismo será tanto mais expressivo, tanto mais presente, quanto mais espessa for a atmosfera moral dos desânimos, quanto mais longe forem os tempos da vesânia generosa da humanidade.

 

No Vaticano, metrópole vastíssima e brilhante da Crença, onde se encontra também por toda a parte estampada a visão do Cristo na Cruz, vencido e agonizante, ou então feliz e transfigurado na glorificação fácil do colorido, exibe-se a mais bela memória de Hércules que nos deixou o passado. Lá está, respeitável ainda e temeroso, o Torso de Apolonius, o torso mutilado do Herói, vergando num desespero de musculatura, por arrancar-se à paralisia de pedra em que o esculpiram: sem pernas, sem braços, como o despacharam para a posteridade - o Leão mitológico da Justiça enjaulado na impotência da morte.

Triunfem as panacéias sociológicas, quando em remoto futuro, lavrada a superfície do globo pelo ferro de muitas civilizações, São Pedro e o Coliseu confundidos na fraternidade niveladora do acabamento - curioso há de ser a melancolia do investigador, comparando no Museu das Antiguidades, em meio dos destroços restos da velha Arte, o ideal de um tempo em que a Bondade era Hércules, o Torso, e o extenuado simbolismo do cavaleiro de Cervantes.

E a humanidade da época descerá, colhendo as asas de anjo da regeneração, a estudar nesse paralelo um terrível capítulo de história moral, e há de aprender quantas dores suaram os séculos para que perpetuamente não fosses, oh! criatura! ao lado das imagens dolentes da Suprema Bondade - a imprudência apaixonada de Dejanira, a vacilação covarde de Pilatos, a gana esfaimada do Pausa, trincando ao espeto a gorda vitualha de Camacho.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 04 de junho de 2021

D. JUCUNDA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

D. JUCUNDA

Machado de Assis

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

Ninguém, quando D. Jucunda aparece no Imperial Teatro de D. Pedro II, em algum baile, em casa, ou na rua, ninguém lhe dá mais de trinta e quatro anos. A verdade, porém, é que orça pelos quarenta e cinco; nasceu em 1843. A natureza tem assim os seus mimosos. Deixa correr o tempo, filha minha, disse a boa madre eterna; eu cá estou com as mãos para te amparar. Quando te enfastiares da vida, unhar-te-ei a cara, polvilhar-te-ei os cabelos, e darás um pulo dos trinta e quatro aos sessenta, entre um cotilhão e o almoço.

 

É provinciana. Chegou aqui no começo de 1860, com a madrinha, — grande senhora de engenho, e um sobrinho desta, que era deputado. Foi o sobrinho quem propôs à tia esta viagem, mas foi a afilhada quem a efetuou, tão-somente com fazer descair os olhos desconsolados.

 

— Não, não estou mais para essas folias do mar. Já vi o Rio de Janeiro... Você que acha, Cundinha? perguntou D. Maria do Carmo.

 

— Eu gostava de ir, dindinha.

 

  1. Maria do Carmo ainda quis resistir, mas não pôde; a afilhada ocupava em seu coração a alcova da filha que perdera em 1857. Viviam no engenho desde 1858. O pai de Jucunda, barbeiro de ofício, residia na vila, onde fora vereador e juiz de paz; quando a ilustre comadre lhe pediu a filha, não hesitou um instante; consentiu entregar-lha para benefício de todos. Ficou com a outra filha, Raimunda.

 

Jucunda e Raimunda eram gêmeas, circunstância que sugeriu ao pai a idéia de lhes dar nomes consoantes. Em criança, a beleza natural supria nelas qualquer outro alinho; andavam na loja e pela vizinhança, em camisa rota, pé descalço, muito enlameadas às vezes, mas sempre lindas. Aos doze anos perderam a mãe. Já então as duas irmãs não eram tão iguais. A beleza de Jucunda acentuava-se, ia caminhando para a perfeição: a de Raimunda, ao contrário, parava e murchava; as feições iam descambando na banalidade e no inexpressivo. O talhe da primeira tinha outro garbo, e as mãos, tão pequenas como as da irmã, eram macias, — talvez, porque escolhiam ofícios menos ásperos.

 

Passando ao engenho da madrinha, Jucunda não sentiu a diferença de uma a outra fortuna. Não se admirou de nada, nem das paredes do quarto, nem dos móveis antigos, nem das ricas toalhas de crivo, nem das fronhas de renda. Não estranhou as mucamas (que nunca teve), nem as suas atitudes obedientes; aprendeu logo a linguagem do mando. Cavalos, redes, jóias, sedas, tudo o que a madrinha lhe foi dando pelo tempo adiante, tudo recebeu, menos como obséquios de hospedagem que como restituição. Não expressava desejo que se lhe não cumprisse. Quis aprender piano, teve piano e mestre; quis francês, teve francês. Qualquer que fosse o preço das coisas, D. Maria do Carmo não lhe recusava nada.

 

A diferença de situação entre Jucunda e o resto da família era agravada pelo contraste moral. Raimunda e o pai acomodavam-se, sem esforço, às condições da vida precária e rude; fenômeno que Jucunda atribuía, instintivamente à índole inferior de ambos. Pai e irmã, entretanto, achavam natural que a outra subisse a tais alturas, com esta particularidade que o pai tirava orgulho da elevação da filha, enquanto que Raimunda nem conhecia esse sentimento; deixava-se estar na humildade ignorante. De gêmeas que eram, e criadas juntas, sentiam-se agora filhas do mesmo pai, — um grande senhor de engenho, por exemplo, — que houvera Raimunda em alguma agregada da casa.

 

Leitor, não há dificuldade em explicar essas coisas. São desacordos possíveis entre a pessoa e o meio, que os acontecimentos retificam, ou deixam subsistir até que os dois se acomodem. Há também naturezas rebeldes à elevação da fortuna. Vi atribuir à rainha Cristina esta explosão de cólera contra o famoso Espartero: "Fiz-te duque, fiz-te grande de Espanha; nunca te pude fazer fidalgo". Não respondo pela veracidade da anedota; afirmo só que a bela Jucunda nunca poderia ouvir à madrinha alguma coisa que com isso se parecesse.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

— Sabe quem vai casar? perguntou Jucunda à madrinha, depois de lhe beijar a mão.

 

Na véspera, estando a calçar as luvas para ir ao Teatro Provisório, recebera cartas do pai e da irmã, deixou-as no toucador, para ler quando voltasse. Mas voltou tarde, e com tal sono, que esqueceu as cartas. Agora de manhã, ao sair do banho, vestida para o almoço, é que as pôde ler. Esperava que fossem como de costume, triviais e queixosas. Triviais seriam; mas havia a novidade do casamento da irmã com um alferes, chamado Getulino.

 

— Getulino de quê? perguntou D. Maria do Carmo.

 

— Getulino... Não me lembro; parece que é Amarante, — ou Cavalcanti. Não. Cavalcanti não é; parece que é mesmo Amarante. Logo vejo. Não tenho idéia de semelhante alferes. Há de ser gente nova.

 

— Quatro anos! murmurou a madrinha. Se eu era capaz de imaginar que ficaria aqui tanto tempo fora de minha casa!

 

— Mas a senhora está dentro de sua casa, replicou a afilhada dando-lhe um beijo.

 

  1. Maria do Carmo sorriu. A casa era um velho palacete restaurado, no centro de uma grande chácara, bairro do Engenho Velho. D. Maria do Carmo tinha querido voltar à província, no prazo marcado novembro de 1860; mas a afilhada obteve a estação de Petrópolis; iriam em março de 1861. Março chegou, foi-se embora, e voltou ainda duas vezes, sem que elas abalassem daqui; estamos agora em agosto de 1863. Jucunda tem vinte anos.

 

Ao almoço, falaram do espetáculo da véspera e das pessoas que viram no teatro. Jucunda conhecia já a principal gente do Rio; a madrinha fê-la recebida, as relações multiplicaram-se; ela ia observando e assimilando. Bela e graciosa, vestindo-se bem e caro, ávida de crescer, não lhe foi difícil ganhar amigas e atrair pretendentes. Era das primeiras em todas as festas. Talvez o eco chegasse à vila natal, — ou foi simples adivinhação de malévolo, que entendeu colar isto uma noite, nas paredes da casa do barbeiro:

 

Nhã Cundinha

Já rainha

Nhã Mundinha

Na cozinha.

 

O pai arrancou, indignado, o papel; mas a notícia correu depressa a vila toda, que era pequena, e foi o entretenimento de muitos dias. A vida é curta.

 

Jucunda, acabado o almoço, disse à madrinha que desejava mandar algumas coisas para o enxoval da irmã, e, às duas horas, saíram de casa. Já na varanda, — o coupé embaixo, o lacaio de pé, desbarretado, com a mão no fecho da portinhola, — D. Maria do Carmo notou que a afilhada parecia absorta; perguntou-lhe o que era.

 

— Nada, respondeu Jucunda, voltando a si.

 

Desceram; no último degrau, perguntou Jucunda se a madrinha é que mandara pôr as mulas.

 

— Eu não; foram eles mesmos. Querias antes os cavalos?

 

— O dia está pedindo os cavalos pretos; mas agora é tarde, vamos.

 

Entraram, e o coupé, tirado pela bela parelha de mulas gordas e fortes, dirigiu-se para o Largo de S. Francisco de Paula. Não disseram nada durante os primeiros minutos; D. Maria é que interrompeu o silêncio, perguntando o nome do alferes.

 

— Não é Amarante, não, senhora, nem Cavalcanti; chama-se Getulino Damião Gonçalves, respondeu a moça.

 

— Não conheço.

 

Jucunda tomou a mergulhar em si mesma. Um dos seus prazeres diletos, quando ia de carro, era ver a outra gente a pé, e gozar as admirações de relance. Nem esse a atraía agora. Talvez o alferes lhe fizesse lembrar algum general; verdade é que só os conhecia casados. Pode ser também que esse alferes, destinado a dar-lhe sobrinhos cabos-de-esquadra, viesse lançar-lhe alguma sombra aborrecida no céu brilhante e azul. As idéias passam tão rápidas e embrulhadas, que é difícil colhê-las, e pô-las em ordem; mas, enfim, se alguém supuser que ela cuidava também em certo homem, esse não andará errado. Era candidato recente o doutor Maia, que voltara da Europa, meses antes, para entrar na posse da herança da mãe. Com a do pai, ia a mais de seiscentos contos. A questão do dinheiro era aqui um tanto secundária, porque Jucunda tinha certa a herança da madrinha; mas não se há de mandar embora um homem, só porque possui seiscentos contos, não lhe faltando outras qualidades preciosas de figura e de espírito, um pouco de genealogia, e tal ou qual pontinha de ambição, que ela puxaria em tempo, como se faz às orelhas das crianças preguiçosas. Já havia recusado outros candidatos. De si mesma chegou a sonhar com um senador, posição feita e ministro possível. Aceitou este Maia; mas, gostando dele, e muito, por que é que não acabava de casar?

 

Por quê? Eis aí o mais difícil de aventar, amigo leitor. Jucunda não sabia o motivo. Era desses que nascem naqueles escaninhos da alma, em que o dono não penetra, mas penetramos nós outros, contadores de histórias. Creio que se liga à doença do pai. Já estava ferido, na asa, quando ela para cá veio; a moléstia foi crescendo, até fazer-se desenganada. Navalha não exclui espírito, haja vista Fígaro; o nosso velho disse à filha Jucunda, em uma das cartas, que tinha dentro de si um aprendiz de barbeiro, que lhe alanhava as entranhas. Se tal era, era também vagaroso, porque não acabava de escanhoá-lo. Jucunda não supunha que a eliminação do velho fosse necessária à celebração do casamento, — ainda que por motivo de velar o passado; se claramente lhe viesse a idéia, é de crer que a repelisse com horror. Ao contrário, a idéia que agora mesmo lhe acudia, pouco antes de parar o coupé, é que não era bonito casar, enquanto o pai lá estava curtindo dores. Eis aí um motivo decente, leitor amigo; é o que procurávamos há pouco, é o que a alma pode confessar a si mesma, é o que tirou à fisionomia da moça o ar fúnebre que ela parecia haver trazido de casa.

 

Compraram o enxoval de Raimunda, e o remeteram pelo primeiro vapor, com cartas de ambas. A de Jucunda era mais longa que de costume; falava-lhe do noivo alferes, mas não empregava a palavra cunhado. Não tardou que viesse resposta da irmã, toda gratidão e respeitos. Sobre o pai dizia que ia com os seus achaques velhos, um dia pior, outro melhor; era opinião do doutor que podia morrer de repente, mas podia também agüentar meses e anos.

 

Jucunda meditou muito sobre a carta. Logo que Maia se lhe declarou, pediu-lhe ela que nada dissessem à madrinha por uns dias; ampliou o prazo a semanas; não podia fazê-lo a meses ou anos. Foi à madrinha, e confiou a situação. Não quisera casar com o pai enfermo; mas, dada a incerteza da cura, era melhor casar logo.

 

— Vou escrever a meu pai, e peço-me a mim mesma, disse ela, se dindinha achar que faço bem.

 

Escreveu ao pai, e terminou:

 

Não o convido para vir ao Rio de Janeiro, porque é melhor sarar antes; demais, logo que nos casarmos, lá iremos ter. Quero mostrar a meu marido (desculpe este modo de falar) a vilazinha do meu nascimento, e ver as coisas de que tanto gostei, em criança, o chafariz do largo, a matriz e o padre Matos. Ainda vive o padre Matos?

 

O pai leu a carta com lágrimas; mandou-lhe dizer que sim, que podia casar, que não vinha por andar achacado; mas longe que pudesse...

 

— Mundinha exagerou muito, disse Jucunda à madrinha. Quem escreve assim, não está para morrer.

 

Tinha proposto casamento à capucha, por causa do pai; mas o tom da carta fê-la aceitar o plano de D. Maria do Carmo e as bodas foram de estrondo. Talvez a proposta não lhe viesse da alma. Casaram-se pouco tempo depois. Jucunda viu mais de um dignitário do Estado inclinar-se diante dela, e dar-lhe o parabém. Os mais célebres colos da cidade fizeram-lhe corte. Equipagens ricas, cavalos briosos, atirando as patas com vagar e graça, pela chácara dentro, muitas librés particulares, flores, luzes; fora, na rua, a multidão olhando. Monsenhor Tavares, membro influente do cabido celebrou o casamento.

 

Jucunda via tudo através de um véu mágico, tecido de ar e de sonho; conversações, música, danças, tudo era como uma longa melodia, vaga e remota, ou próxima e branda, que lhe tomava o coração, e pela primeira vez a fazia estupefata diante de alguma coisa deste mundo.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

  1. Maria do Carmo não alcançou que os recém-casados ficassem morando com ela. Jucunda desejava-o; mas o marido achou que não. Tinham casa na mesma rua, perto da madrinha; e assim viviam juntos e separados. De verão iam os três para Petrópolis, onde residiam debaixo do mesmo teto.

 

Extinta a melodia, secas as rosas, passados os primeiros dias do noivado, Jucunda pôde tomar pé no recente tumulto, e achou-se grande senhora. Já não era só a afilhada de D. Maria do Carmo, e sua provável herdeira; tinha agora o prestígio do marido; o prestígio e o amor. Maia literalmente adorava a mulher; inventava o que a pudesse fazer feliz, e acudia a cumprir-lhe o menor dos seus desejos. Um destes consistiu na série de jantares que deram em Petrópolis, durante uma estação, aos sábados, jantares que ficaram célebres; a flor da cidade ali ia por turmas. Nos dias diplomáticos, Jucunda teve a honra de ver a seu lado, algumas vezes, o internúncio apostólico.

 

Um dia, no Engenho Velho, recebeu Jucunda a notícia da morte do pai. A carta era da irmã; contava-lhe as circunstâncias do caso: o pai nem teve tempo de dizer: aiJesus! Caiu da rede abaixo e expirou.

 

Leu a carta sentada. Ficou por algum tempo com o papel na mão, a olhar fixamente; relembrava as coisas da infância, e a ternura do pai; saturava bem a alma daqueles dias antigos, despegava-se de si mesma, e acabou levando o lenço aos olhos, com os braços fincados nos joelhos. O marido veio achá-la nessa atitude, e correu para ela.

 

— Que é que tem? perguntou-lhe.

 

Jucunda, sobressaltada, ergueu os olhos para ele; estavam úmidos; não disse nada.

 

— Que foi? insistiu o marido.

 

— Morreu meu pai, respondeu ela.

 

Maia pôs um joelho no chão, pegou-a pela cintura e conchegou-a ao peito; ela escondeu a cara no ombro do marido, e foi então que as lágrimas romperam mais grossas.

 

— Vamos, sossegue. Olhe o seu estado.

 

Jucunda estava grávida. A advertência fê-la erguer de pronto a cabeça, e enxugar os olhos; a carta, envolvida no lenço, foi esconder no bolso a ruim ortografia da irmã e outros pormenores. Maia sentou-se na poltrona, com uma das mãos da mulher entre as suas. Olhando para o chão, viu um papel impresso, trecho de jornal, apanhou-o e leu; era a notícia da morte do sogro, que Jucunda não vira cair de dentro da carta. Quando acabou de ler, deu com a mulher, pálida e ansiosa. Esta tirou-lhe o papel e leu também. Com pouco se aquietou. Viu que a notícia apontava tão-somente a vida política do pai, e concluía dizendo que este "era o modelo dos varões que sacrificam tudo à grandeza local; não fora isso, e o seu nome, como o de outros, menos virtuosos e capazes, ecoaria pelo país inteiro".

 

— Vamos, descansa; qualquer abalo pode fazer-te mal.

 

Não houve abalo; mas, à vista do estado de Jucunda, a missa por alma do pai foi dita na capela da madrinha, só para os parentes.

 

Chegado o tempo, nasceu o filho esperado, robusto como o pai, e belo como a mãe. Esse primeiro e único fruto, parece que veio ao mundo menos para aumentar a família, que para dar às graças pessoais de Jucunda o definitivo toque. Com efeito, poucos meses depois, Jucunda atingia o grau de beleza, que conservou por muitos anos. A maternidade realçava a feminidade.

 

Só uma sombra empanou o céu daquele casal. Foi pelos fins de 1866. Jucunda estava a mirar o filho dormindo, quando lhe vieram dizer que uma senhora a procurava.

 

— Não disse quem é?

 

— Não disse, não, senhora.

 

— Bem vestida?

 

— Não, senhora; é assim meio esquisita, muito magra.

 

Jucunda olhou para o espelho e desceu. Embaixo, reiterou algumas ordens; depois, pisando rijo e farfalhando as saias, foi ter com a visita. Quando entrou na sala de espera, viu uma mulher de pé, magra, amarelada, envolvida em um xale velho e escuro, sem luvas nem chapéu. Ficou por alguns instantes calada, esperando; a outra rompeu o silêncio: era Raimunda.

 

— Não me conhece, Cundinha?

 

Antes que acabasse, já a irmã a reconhecera. Jucunda caminhou para ela, abraçou-a, fê-la sentar-se; admirou-se de a ver aqui, sem saber de nada; a última carta recebida era já de muito tempo; quando chegara?

 

— Há cinco meses; Getulino foi para a guerra, como sabe; eu vim depois, para ver se podia...

 

Falava com humildade e a medo, baixando os olhos a miúdo. Antes de vir a irmã, estivera mirando a sala, que cuidou ser a principal da casa; tinha receio de macular a palhinha do chão. Todas as galanterias da parede e da mesa central, os filetes de ouro de um quadro, cadeiras, tudo lhe pareciam riquezas do outro mundo. Já antes de entrar, ficara por algum tempo a contemplar a casa, tão grande e tão rica. Contou à irmã que perdera o filho, ainda na província; agora viera com a idéia de seguir para o Paraguai, ou para onde estivesse mais perto do marido. Getulino escrevera-lhe que voltasse para a província ou ficasse aqui.

 

— Mas que tem feito nestes cinco meses?

 

— Vim com uma família conhecida, e aqui fiquei costurando para ela. A família foi para S. Paulo, vai fazer um mês; pagou o primeiro aluguel de uma casinha onde moro, costurando para fora.

 

Enquanto a irmã falava, Jucunda contornava-a com os olhos, — desde o vestido de seda já gasto, — o último do enxoval, o xale escuro, as mãos amarelas e magras, até às bichinhas de coral que lhe dera ao sair da província. Era evidente que Raimunda pusera em si o melhor que possuía para honrar a irmã. Jucunda viu tudo; não lhe escaparam sequer os dedos maltratados do trabalho, e o composto geral tanto lhe deu pena como repulsa. Raimunda ia falando, contou-lhe que o marido saíra tenente por atos de bravura e outras muitas coisas. Não dizia você; para não empregar senhora, falava indiretamente; "Viu? Soube? Eu lhe digo. Se quiser..." E a irmã, que a princípio fez um gesto para dizer que deixasse aqueles respeitos, depressa o reprimiu, e deixou-se tratar como à outra parecesse melhor.

 

— Tem filhos?

 

— Tenho um, acudiu Jucunda: está dormindo.

 

Raimunda concluiu a visita. Quisera vê-la e, ao mesmo tempo, pedir-lhe proteção. Havia de conhecer pessoas que pagassem melhor. Não sabia fazer vestidos de francesas, nem de luxo, mas de andar em casa, sim, e também camisas de crivo. Jucunda não pôde sorrir. Pobre costureira do sertão! Prometeu ir vê-la, pediu indicação da casa, e despediu-a ali mesmo.

 

Em verdade, a visita deixou-lhe uma sensação mui complexa: dó, tédio, impaciência. Não obstante, cumpriu o que disse, foi visitá-la à Rua do Costa, ajudou-a com dinheiro, mantimento e roupa. Voltou ainda lá, como a outra tornou ao Engenho Velho, sem acordo, mas às furtadelas. No fim de dois meses, falando-lhe o marido na possibilidade de uma viagem à Europa, Jucunda persuadiu a irmã da necessidade de regressar à província; mandar-lhe-ia uma mesada, até que o tenente voltasse da guerra.

 

Foi então que o marido recebeu aviso anônimo das visitas da mulher à Rua do Costa, e das que lhe fazia, em casa, uma mulher suspeita. Maia foi à Rua do Costa, achou Raimunda arranjando as malas para embarcar no dia seguinte. Quando ele lhe falou do Engenho Velho, Raimunda adivinhou que era o marido da irmã; explicou as visitas, dizendo que "D. Jucunda era sua patrícia e antiga protetora"; agora mesmo, se voltava para a vila natal, era com o dinheiro dela, roupas e tudo. Maia, depois de longo interrogatório, saiu dali convencido. Não disse nada em casa; mas, três meses depois, por ocasião de falecer D. Maria do Carmo, referiu Jucunda ao marido a grande e sincera afeição que a defunta lhe tinha, e ela à defunta.

 

Maia lembrou-se então da Rua do Costa.

 

— Todos lhe querem bem a você, já sei, interrompeu ele, mas por que é que nunca me falou daquela pobre mulher, sua protegida, que aqui esteve há tempos, uma que morava na Rua do Costa?

 

Jucunda empalideceu. O marido contou-lhe tudo, a carta anônima, a entrevista que tivera com Raimunda, e finalmente a confissão desta, as próprias palavras, ditas com lágrimas. Jucunda sentiu-se vexada e confusa.

 

— Que mal há em fazer bem, quando a pessoa o merece? perguntou-lhe o marido, concluindo a frase com um beijo.

 

— Sim, era excelente mulher, muito trabalhadeira...

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

Não houve outra sombra na vida conjugal. A morte do marido ocorreu em 1884. Bela, com a meação do casal, e a herança da madrinha, contando quarenta e cinco anos que parecem trinta e quatro, tão querida da natureza como da fortuna, pode contrair segundas núpcias, e não lhe faltam candidatos; mas não pensa nisso. Tem boa saúde e grande consideração.

 

A irmã faleceu antes de acabar a guerra. Getulino galgou os postos em campanha, e saiu há alguns anos brigadeiro. Reside aqui; vai jantar, aos domingos, com a cunhada e o filho desta, no palacete de D. Maria do Carmo, para onde a nossa D. Jucunda se mudou. Tem escrito alguns opúsculos sobre armamento e composição do Exército, e outros assuntos militares. Dizem que deseja ser ministro da Guerra. Aqui, há tempos, falando-se disso no Engenho Velho, perguntou alguém a D. Jucunda se era verdade que o cunhado fitava as cumeadas do poder.

 

— O general? retorquiu ela com o seu grande ar de matrona elegante; pode ser. Não conheço os seus planos políticos, mas acho que daria um bom ministro de Estado.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 03 de junho de 2021

EDUCAÇÃO ANTIGA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

EDUCAÇÃO ANTIGA

Humberto de Campos

 

As pessoas que desceram à cidade sexta-feira pela manhã, ouviram falar, com certeza, em uma vaia de que teria sido vítima, em plena Avenida, uma senhorita inconvenientemente vestida. Indignadas com a competência daquela atrevida, outras senhoras explodiram em exclamações admirativas, a que os homens, para agradar à maioria, deram seguimento, rompendo em assuada.

 

A mim, me custa a crer que isso tenha acontecido, por uma circunstância muito natural por não ser possível, mais, na cidade, uma "toilette" capaz de motivar surpresa. As que se exibem na Avenida impunemente, todos os dias, são de tal ordem, que, para causar escândalo, pasmo, admiração, seria preciso, não, apenas, tirar o vestido de cima da pele, mas tirar a pele de cima do corpo.

 

Comentava eu esse incidente, ontem, à noite, em uma roda de damas e cavalheiros, quando uma das senhoras menos jovens, Dona Ernestina Vale, procurou uma explicação para esse descalabro:

 

— O motivo dessa falta de pudor de certas moças de hoje, — começou, perspicaz — deve ser atribuído, senhor conselheiro, aos próprios pais, ou, antes, às mães.

 

E expôs o seu pensamento:

 

— O senhor vê, hoje, como as mães vestem as crianças. Não há dia em que não encontremos na rua meninas de quatro, seis, oito e, até dez anos, com vestidinhos muito acima dos joelhos, com os bracinhos nus, o colozinho à mostra, numa exibição completa das suas carnezinhas tenras. Aos doze anos, já mocinhas, a "toilette" dessas criaturinhas apresenta pequena diferença. E como não tiveram, em criança, a noção do pudor físico, entram assim na mocidade, sem tentar esconder as partes do corpo que nunca lhes disseram que deviam ser escondidas.

 

— A senhora acha, então, que elas fazem isso sem maldade? — obtemperou o Dr. Austregésilo, tomando nota na carteira.

 

— Perfeitamente, doutor! Elas fazem isso com a maior inocência do mundo. Os índios não se apresentam inteiramente nus aos olhos dos civilizados? E não o fazem ingenuamente, inocentemente, por terem sido criados assim? Criemos as meninas com decoro, vestindo-as com discrição, e teremos moças discretas, pudicas, decorosas, ciosas do seu corpo e dos seus encantos.

 

E, dizendo-me isso, acrescentou, severa, calçando as luvas, deixando-me ver, pelo vestido decotado e sem mangas, dois sinaizinhos negros, quase imperceptíveis, que se lhe aninhavam um pouco abaixo das axilas:

 

— Assim é que eu fui criada!

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 02 de junho de 2021

HAMLETO (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

HAMLETO

Aluísio Azevedo

 

Todo o homem inteligente, que tenha lido durante a vida mais de dez livros de literatura, sente um delicado abalo e um ligeiro frêmito nervoso agitarem-lhe o coração, todas as vezes que vê anunciado, por um ator de nome, o inabalável Hamleto de Shakespeare.

E só com o Hamleto acontece isto. Donde lhe virá tão transcendente privilégio? Qual o segredo da magia dessa misteriosa obra de arte, que assim acorda ao mesmo tempo mil impressões, sem que destas nenhuma entretanto se definisse até hoje claramente?

Todos conhecem Hamleto; muitos o discutem; ninguém e nega; todos o aceitam; todos o desejam; todos o amam doidamente; mas ninguém o explica; ninguém o define, porque o próprio Hamleto não se explica, nem se define a si mesmo. Não se define, porque ele próprio é a mesma dúvida; é a mesma contradição; ele é o indefinido afeiçoado por um poeta de gênio.

Anunciado o Hamleto, correm todos a vê-lo inda uma vez; mas, por melhor que seja a interpretação que lhe dê o artista ninguém até hoje saiu do teatro amplamente satisfeito por ter visto mover-se em cena o Hamleto sonhado pelo seu coração e pela sua inteligência.

Nenhum trágico deu jamais ou será capaz de dar ao vivo esse tipo-enigma, esse idolatrado mito, que vive na imaginação de todos, porque fia Hamleto, posto que muito humano, não é homem.

Não é um personagem em arte, é um símbolo. É a dúvida, intangível e incorporável como o indefinido. E nisso está o seu valor. Todos o compreendem, mas ninguém o define em crítica, nem o traduz em cena satisfatoriamente.

Todos o sentem; todos o compreendem; todos o conhecem, como a um íntimo e querido companheiro da sua própria alma e da sua própria incerteza. Pelo espírito de todo o homem inteligente, por mais curta, mais longa, mais tranqüila ou agitada que seja a sua vida, já pelo menos uma vez, atravessou essa misteriosa sombra, com O seu olhar estranho, embaciado pela indefinida tristeza da dúvida. E essa sombra nunca mais se apagou desse espírito.

Por todo o cérebro, iluminado pelo menos por uma idéia, já algum dia se arrastou gemendo a desvairada melancolia de Hamleto, perguntando à dor da sua própria dúvida, o irrespondível "ser ou não ser"? E o eco desse gemido sem resposta aí ficou gravado para sempre, como a saudade de um amor, ou como o remorso de um crime.

Shakespeare, que formou genialmente os seus tipos com a intensidade das próprias paixões que eles sintetizam; ele que criou o Ciúme com o próprio ciúme; a Loucura com a própria loucura; a Avidez com a própria avidez e o Amor com o próprio amor - fez o Indefinido com o próprio indefinido.

Se Hamleto não fosse contraditório; se fosse explicável e coerente, seria incoerente e contraditório, e nunca seria Dúvida.

Ele é todo feito de contradições; é enérgico e vacilante; indiferente e apaixonado; vingativo e carinhoso; louco e sensato; hipócrita e sincero; paciente e desensofrido; prudente e arrebatado; generoso e pérfido; é bom e é cruel; é bom filho, e é mau filho. As suas lágrimas são escarninhas e o seu sorriso dói. O seu amor é uma queixa contra o seu próprio amor, e o seu ódio é a seiva e é a vida do seu coração. Ele é a Dúvida, que só se define pela dúvida. Ele é a Contradição, que só se afirma pela contradição. Ele é enfim o indefinido.

Ele é o Indefinido quando diz a Ofélia que nunca a amou, mas que a ama agora, contanto que ela nada espere desse amor e se recolha a um convento. Ele é Contradição quando diz que todos os homens, sem excetuar nenhum, nem ele próprio, suo miseráveis, tendo afirmado que seu pai, o rei da Dinamarca, era tão belo modelo de valor e virtudes que só aos deuses podia ser comparado. Ele é contradição no seu extremoso amor filial, porque ele é o carrasco de sua própria mãe. Ele é Contradição quando, tendo já se encontrado e entendido com o espetro de seu pai, que lhe faz revelações imprevistas, vem depois, no célebre monólogo do terceiro ato, falar-nos dessa outra margem oposta à da vida, a morte, donde, afirma ele, nunca ninguém voltou ao mundo que habitamos. Ele é Contradição quando, tendo friamente assassinado Ofélia com a sua cruel indiferença, lança-se diante do cadáver dela, desafiando a quem na terra a possa amar mais do que ele.

Toda essa contradição é a Dúvida.

E porque Hamleto é a Contradição, Hamleto é inexplicável, é vago, é sombra que escapa à grosseira vista dos sentidos, e só pode ser bem julgada e compreendida pelo espírito e pelo coração. Ele, só dentro de nós mesmos, existe real e perfeito; desde que qualquer arte plástica pretenda dar-lhe forma, as suas fantásticas proporções logo se amesquinham, e Hamleto deixa de ser Hamleto como todos o conhecem.

Hamleto fora da nossa imaginação é um polvo fora d'água.

Ele pertence a todos e pertence a cada um em particular. O abalo que se experimenta ao ouvir o seu nome mágico parece a cada indivíduo um caso privado de simpatia. É que Hamleto é a misteriosa expressão da dúvida de cada um de nós. Todos nos embriagamos com esse doloroso e eternal idílio entre o conhecido e o desconhecido.

Pensar em Hamleto é pensar em Ofélia. Menos ideal do que ele, mais terrena, mais sensual, ela é também ainda assim uma visão intangível. Ofélia, toda branca, toda loura, toda amorosa, esbate-se como sombra abraçada à sombra de Hamleto; mas a loucura que nele é sonho e embriaga, nela é realidade e dói.

Só um instante ela é mulher. A sua carne de virgem desaparece desde que ela inclina a dourada fronte, vencida n'alma pela irresistível dúvida do seu príncipe incompreensível, e a pensativa sombra de Hamleto arrasta-a para o indefinido.

Ofélia é triste e contraditória estrela, que se acende à luz do dia e desmaia à sombra da noite. E' uma estrela afogada na noite da Dúvida.

O seu diálogo com Hamleto é o melancólico idílio de uma luz que morre e suspira com a treva que geme e arqueja.

Há por entre as suas frases doloridas todos os soluços da miséria humana, como entre as de Hamleto há toda a velha agonia da dúvida em que nos arrastamos na vida.

- Eu te amei... Outrora...

- Assim o supus...

- Não devias acreditar... Eu nunca te amei...

- Ai!...

- Entra para um convento... não queiras ser mãe de pecadores. Nós somos todos miseráveis... Fecha-te num claustro...

- Os mimos de amor que me destes aqui os tendes, levai-os... já não têm perfume... o coração que mos deu já me não ama...

- Ah! Ah! és virtuosa?...

- Senhor...

- És... bela?

- Meu senhor...

- Bela e virtuosa. Separa a tua formosura da tua virtude, porque a beleza tem garras fortes e a virtude fraca defesa...

- Meu senhor...

- Entra para um convento... Eu supunha que te amava dantes... Só agora é que te... Faze-te freira...

E a estrela apaga-se de todo e a treva fecha-se na treva, deixando para sempre no espírito de quem escutou o seu idílio a saudade de unia música indefinida, feita de suspiros e de soluços.

* * *

E, pois, quinta-feira passada corri ao teatro Lírico. E o Sr. Novelli disse-me do palco, não sei em nome de quem, que Hamleto era "Histrião por vingança".

E, com efeito, um calculado doido começou com a sua calculada loucura a intrigar, nem só todos os outros personagens da peça que se representava, como a mim próprio e aos outros espectadores que o ouviam.

Desconheci a tragédia. No fim de algum tempo perguntava a mim mesmo quem seria aquele violento intrigante, aquele sensual dinamarquês que vociferava contra os seus companheiros de cena.

E, â proporção que o Sr. Novelli refundia Shakespeare, Hamleto, a misteriosa sombra que persiste dentro de todo o homem que já leu dez livros literários, ia-se a pouco e pouco afastando de mim, até que, ao terminar o espetáculo, quando o falso doido estica-se e morre, já o meu querido e misterioso Príncipe da Dúvida, que nunca me abandonara o espírito desde que o conheci, tinha de todo me fugido; e eu comecei a sentir-me só, frio, abandonado moralmente, viúvo de um velho companheiro espiritual.

Tive vontade de chorar.

E então apoderou-se de mim um desejo forte, desensofrido de ver Hamleto, de ouvi-lo para matar saudades, de senti-lo vivo, para me convencer de que o Sr Novelli não o tinha assassinado para sempre.

Corri a casa e reli avidamente o divino poema da Dúvida.

Ah! felizmente, antes de adormecer, já de olhos fechados, achei de novo a querida sombra pensativa; estava defronte de mim, imóvel, a fitar-me com um triste olhar de tédio e de desdém, como se eu tivesse culpa do que. sucedeu quinta--feira no teatro Lírico.

Ela voltou, felizmente, mas do susto de a ter perdido é que já ninguém me livra.

E, agora, juro que o Sr. Novelli não ma roubará outra vez, ainda que por cinco minutos.

Nada, com cousas sérias não se brinca!


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 31 de maio de 2021

MISS CORISCO (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

 

 
MISS CORISCO
Alcântara Machado
 

Embora alguns nacionalistas teimassem em chamá-la de senhorita, o título oficial era Miss Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre que primeiro nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram uma caixa. Mas nunca viu um tostão porque o dinheiro que havia se gastou todo com ela. Miss Corisco foi eleita pelo sistema de exclusão. A filha do Bentinho era sardenta. A irmã do João tinha um defeito nas cadeiras. Logo de saída a Conceição se impôs: foi aclamada Miss Corisco.

Aí deu uma entrevista para o O Cachoeirense. Perguntaram: Qual a maior emoção de sua vida? Respondeu: Três: minha primeira comunhão, uma fita do Rodolfo Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e... não conto porque é segredo. Respeitamos o segredo (escreveu o jornal), pois naturalmente encobria uma linda história de amor. Depois perguntaram: Qual o seu maior desejo? Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda de todos os empreendimentos. Resposta admirável (comentou O Cachoeirense) que revela em Miss Corisco uma patriota digna de emparelhar com Clara Camarão, Anita Garibaldi, Dona Margarida de Barros e outras heroínas da nacionalidade. Finalmente perguntaram: O que pensa do amor? Respondeu: O amor, na minha fraca opinião, é uma coisa incompreensível mas que governa o mundo. Palavras (acentuou o órgão) que encerram uma profunda filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora Miss.

Miss Corisco foi retratada em várias posições: com um cachorrinho no colo, apanhando rosas no jardim, as costas das mãos sustentando o queixo. Deu também um autógrafo. Papel cor-de-rosa de bordas douradas, risquinhos de lápis para sair bem direitinho e as letras se equilibrando neles.

O cunhado ditou. Os representantes do O Cachoeirense se retiraram. Miss Corisco foi varrer a cozinha como era de sua obrigação todos os dias inclusive domingos e feriados e na manhã seguinte tomou a jardineira em companhia do irmão casado para comparecer na cidade perante o júri estadual.

O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás do júri a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a assistência entusiasmada erguia vivas ao Brasil e à raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado gosto. Os juízes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano e um português. Predominava neles o espírito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O doutor Noé Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrão: boca grande e olhos ternos. Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos.

Ouviu então o primeiro discurso que foi proferido com emoção que lhe embargava a voz e lenço de seda na mão, pelo doutor Noé Cavalheiro, segundo promotor público. Principiou este fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga Grécia se votava à formosura física. Acentuou depois a desvantagem de uma mens sana desde que não seja num corpore sano. Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catástrofes tem também mais de uma vez contribuído para o progresso geral dos povos, citando vários exemplos históricos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que lhe dedicou D. Pedro I à influência benéfica da Marquesa de Santos. Referiu-se à competência do júri, à sua isenção de ânimo e confessou que a única nota dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os protestos unânimes da assistência. Perorando entoou um hino inflamado à peregrina formosura de Miss Corisco. Disse então: Unindo à beleza clássica da Vênus de Milo a sedução estonteante da lendária rainha de Nínive, Miss Paraíba do Sul, maior do que Beatriz e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração de toda uma região! A Pátria não é somente, como soem pensar certos espíritos imbuídos de materialismo, ou a lei que garante a propriedade privada! A Pátria é mais alguma coisa, alguma coisa de sublime e divino! A Pátria é a estrela que nos contempla do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós, Miss Paraíba do Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as forças viris da nacionalidade! Para nós, patriotas, conscientes e eternos enamorados da Beleza, Miss Paraíba do Sul é neste momento o Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!)

Um a um os membros do júri beijaram as mãozinhas róseas e espirituais de Miss Paraíba do Sul enquanto a Corporação Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regência do maestro Pietro Zaccagna, atacava vigorosamente a imortal protofonia do Guarani.

Muito vermelha e batendo com ar ingênuo as pálpebras aveludadas, Miss Paraíba do Sul concedeu então as primeiras entrevistas. Externou sua opinião sobre a futura sucessão presidencial, a cultura da laranja, a questão religiosa no México, Mussolini, padre Cícero, a estabilização cambial, Victor Hugo, Coelho Neto, os perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febrônio, o diabo. No Grande Hotel Mundial era uma romaria de manhã à noite. Muito afável, Miss Paraíba do Sul recebia toda a gente com um encantador sorriso brincando nos lábios purpurinos. O camareiro do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um jornalista: É de uma amabilidade extraordinária. Recebe todos. Quem bate no quarto entra. Mas o irmão, pelo sim, pelo não, caiu de bofetadas em cima do camareiro. O caso foi parar na polícia onde o prestígio de Miss Paraíba do Sul conseguiu arranjar tudo do melhor modo possível.

Puseram à sua disposição um automóvel fechado, uma máquina de escrever portátil e um binóculo de corridas. Todos os dias choviam os presentes. O futuroso arquiteto Barros Jandaia pôs gratuitamente seus serviços profissionais às ordens de Miss Paraíba do Sul. O cabeleireiro não lhe quis cobrar nada e ainda por cima lhe deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens com Pixavon. A Livraria Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do Paraíso Perdido. E assim por diante.

Miss Paraíba do Sul foi recebida em audiência especial pelo presidente do Estado, respondeu com muita graça às perguntas de S. Exa. e distribuiu cigarros Petit Londrinos (ovalados) aos presos da cadeia pública. Visitou também a Câmara Municipal. Aí foi saudada por um vereador que a comparou à mimosa violeta dos nossos vergéis que não só atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e conquista pela sua modéstia exemplar.

Foram quinze dias bem cheios. Repletos. Não houve um minuto de folga. Miss Paraíba do Sul embora delicadamente deixou transparecer que a glória era um fardo pesado demais para seus ombros frágeis. E seguiu de vagão especial para a capital do país. Todas as cidades do percurso enviavam à estação o juiz de direito, o promotor, o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristão da matriz que se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vivório, o trem seguia. Miss Paraíba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça que não agüentava mesmo.

Começou a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas. E sonetos na seção livre dos jornais. E bilhetes de apaixonados anônimos. E baile na torpedeira Paraíba do Sul. E retratos de todo o jeito nas revistas. E chás com as rivais. E tesouradas gostosas nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um repórter mais audacioso penetrou no quarto de Miss Paraíba do Sul e tirou uma fotografia muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal deu de cara com um pé de sapato enquadrado pela seguinte nota: Enquanto Miss Paraíba do Sul jantava, conseguimos penetrar no seu aposento e cometemos a deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se encontrava sobre o toucador. Levamos a nossa indiscrição ao ponto de verificarmos o número: era trinta e três e meio! Para encanto dos nossos leitores publicamos um clichê do sapatinho da nova Maria Borralheira da Graça e da Beleza.

Coisas assim comovem. Miss Paraíba do Sul deu ao repórter como lembrança o famoso sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmão casado) já estava imprestável com a sola até fura não fura. Enorme multidão teve a felicidade de vê-lo exposto na redação do jornal. Não houve um parecer discordante: era de fato um amor de sapatinho.

Enfim vieram as provas do concurso. Miss Paraíba do Sul passeou de roupa de banho para os velhos do júri apreciarem bem as formas dela e submeteu-se ao exame antropométrico no Museu Nacional. Sua ficha foi discutida nas sociedades científicas, empolgou a imprensa, provocou desinteligências entre pessoas que se davam desde os bancos escolares. Tudo inútil porém. Miss Paraíba do Sul não foi considerada a mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston.

Chorou de verdade. Não se pode negar. Chorou.

Mas isso no hotel. Em público não perdeu a linha. Era toda sorriso diante de Miss Brasil. Entrevistada, declarou que a escolha do júri tinha sido justa. Admiradores seus protestaram com energia. Um grupo de estudantes deitou manifesto a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia coisas amáveis a respeito de Miss Brasil. Foi consagrada a Miss Pindorama, a Miss Terra de Santa Cruz, a Miss Simpatia Verde-Amarela. Todos reconheceram que a vitória moral lhe pertencia. Era um consolo.

De volta à capital do seu Estado, no entanto, ela resolveu mudar de atitude. Criticou duramente a decisão do júri. Miss Brasil? Uma beleza sem dúvida. Mas beleza impassível. E que vale a formosura sem a graça? Depois sem gosto algum. Cada vestido que só vendo. Todos de carregação. E era visível nos seus traços a ascendência estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston. A raça brasileira não. E por aí foi. Nem os organizadores do concurso escaparam. Amáveis, sim. Porém parciais. Um deles, careca barbado, vivia amolando as candidatas com galanteios muito bobos. Por isso mesmo levou um dia a sua. Uma das concorrentes lhe perguntou: Por que não corta um pedaço da barba e gruda na cabeça para fingir de cabelo? Disse isso sim. Como não. Na cara. Como não. E perto de gente. Ora se. Ele ficou enfiado.

Corisco recebeu de luto na alma a sua Vênus. O pai de Miss Paraíba do Sul sacudiu a cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça! Inutilmente ela e o irmão casado falavam na vitória moral, na simpatia do povo, nos protestos da imprensa. Ela contava: Uma vez quando saía do hotel um popular me disse que eu era a eleita do coração dos brasileiros! Então, papai, que tal?

Mas o velho não se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Aí é que está. Os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Injustiça. Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas depois era preciso jurar que não, que o Brasil ia muito bem, que a vitória moral era mais que suficiente, que dinheiro não faz a felicidade de ninguém porque Miss Corisco, Miss Paraíba do Sul, Miss Pindorama, Miss Terra de Santa Cruz, Miss Simpatia Verde-Amarela começava a chorar.

 

Literatura - Contos e Crônicas domingo, 30 de maio de 2021

BRINCAR COM FOGO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

BRINCAR COM FOGO

Machado de Assis

I

Lúcia e Maria chamavam-se as duas moças. A segunda era antes conhecida pelo diminutivo Mariquinhas que neste caso estava perfeitamente com a estatura da pessoa.

Mariquinhas era pequenina, refeitinha e bonitinha; tinha a cor morena, os olhos pretos, ou quase pretos, mãos e pés pouco menos invisíveis. Entrava nos seus dezoito anos, e contava já cerca de seis namoros consecutivos. Atualmente não tinha nenhum.

Lúcia era de estatura meã, tinha olhos e cabelos castanhos, pés e mãos regulares e proporcionados ao tamanho do corpo, e a tez clara. Deitava já pelas costas os dezoito e entrava nos dezenove. Namoros extintos: sete.

Tais eram as duas damas de cuja vida vou contar um episódio original, que servirá de aviso às que se acharem em iguais circunstâncias.

Lúcia e Mariquinhas eram muito amigas e quase parentas. O parentesco não vem ao caso, e por isso bastará saber que a primeira era filha de um velho médico — velho em todos os sentidos, porque a ciência para ele estava no mesmo ponto em que ele a conheceu em 1849. Mariquinhas já não tinha pai; vivia com sua mãe, que era viúva de um tabelião.

Eram íntimas amigas como disse acima, e sendo amigas e moças, eram naturais confidentes uma da outra. Namoro que uma encetasse era logo comunicado à outra. As cartas eram redigidas entre ambas, quando se achavam juntas ou simplesmente comunicadas por cópia no caso contrário. Algum beijo casual e raro que uma delas houvesse colhido ou concedido não deixava de ser contado à outra, que fazia o mesmo em idênticas circunstâncias.

Os namoros de que falo não eram com intenções casamenteiras. Nenhuma delas se sentia inclinada ao matrimônio — pelo menos, com os indivíduos escolhidos. Eram passatempos, namoravam para fazer alguma coisa, para ocupar o espírito ou simplesmente debicar o próximo.

Um dia a coisa seria mais grave, e nesse caso as confidências seriam menos freqüentes e completas. Tal dia porém não chegara ainda, e as duas moças passavam pelas mais atrevidas roedoras de corda que a natureza pôs no bairro dos Cajueiros. Lúcia morava na Rua da Princesa, e Mariquinhas na do Príncipe.

II

Como se visitavam a miúdo, e passavam dias e dias uma em casa da outra, aconteceu que pela Páscoa do ano de 1868 estavam ambas à janela da casa de Lúcia, quando viram ao longe uma cara nova. Cara nova quer dizer petimetre novo, ainda não explorador daquele bairro.

Efetivamente era a primeira vez que o sr. João dos Passos penetrava naquela região, conquanto nutrisse há muito tempo esse desejo. Naquele dia, ao almoço resolveu que iria aos Cajueiros. A ocasião não podia ser mais própria. Recebera do alfaiate a primeira calça da última moda, fazenda finíssima, e comprara na antevéspera um chapéu fabricado em Paris. tava no trinque. Tinha certeza de causar sensação.

Era João dos Passos um rapaz de vinte e tantos anos, estatura regular, bigode raro e barba rapada. Não era bonito nem feio; era assim. Tinha alguma elegância natural, que ele exagerava com uns meneios e jeito que dava ao corpo na idéia de que ficaria melhor.

Era ilusão, porque ficava péssimo. A natureza tinha-lhe dado uma vista agudíssima; a imitação deu-lhe uma luneta de um vidro só, que ele trazia pendente de uma fita larga ao pescoço. Fincava-a de quando em quando no olho esquerdo, sobretudo quando havia moças à janela.

Tal foi a cara nova que as duas amigas lobrigaram ao longe.

— Há de ser meu! dizia uma rindo.

— Não, senhora, aquele vem destinado à minha pessoa, reclamava a outra.

— Fique-se lá com o Abreu! — E você, porque não se fica com o Antonico? — Pois seja à sorte! — Não, há de ser a que ele preferir.

— Caluda! João dos Passos aproximava-se. Vinha pela calçada oposta, com a luneta assestada na janela em que as duas moças estavam. Quando viu que não eram desagradáveis, antes mui simpáticas e galantes, aperfeiçoou o jeitinho que dava ao corpo e entrou a fazer com a bengala de junco passagens difíceis e divertidas.

— Bravíssimo! dizia Mariquinhas à amiga.

— Que tal? perguntava Lúcia.

E ambas cravavam os olhos em João dos Passos, que, pela sua parte, tendo o olho direito desimpedido da luneta, podia ver claramente que as duas belas olhavam para a sua pessoa.

Foi passando e olhando sem que elas tirassem dele os olhos, o que sobremaneira comoveu o petimetre a ponto que o obrigou a voltar a cabeça cinco ou seis vezes. Na primeira esquina, que ficava um pouco distante, João dos Passos parou, tirou o lenço e enxugou a cara. Não havia necessidade disso, mas era conveniente dizer uma espécie de adeus com o lenço, quando o fosse guardar na algibeira. Feito isso, continuou João dos Passos o seu caminho.

— É comigo! dizia Mariquinhas a Lúcia.

Lúcia reclamava: — Boas! Aquilo é comigo. Eu bem vi que ele não tirava os olhos de mim. É um bonito rapaz…

— Talvez seja…

— Um pouco tolo? — Não te parece? — Talvez… Mas bonito é.

— Escusa de estar dizendo isso, porque ele é meu…

— Não senhora, é meu.

E as duas amigas reclamavam com ardor, e a rir, a pessoa do adventício gamenho, cuja preferência ainda estava por declarar. Nesse debate gastaram cerca de vinte minutos quando viram apontar ao longe a figura de João dos Passos.

— Lá vem ele! — Está filado! João dos Passos vinha outra vez pelo lado oposto; a meio caminho porém atravessou a rua, com o fim evidente de contemplar de perto as duas belas que teriam ao mesmo tempo ocasião de o examinar melhor. Atrevo-me a dizer isto, porque João dos Passos não duvidava da sua influência pessoal.

— Agora veremos com quem é a coisa, disse Lúcia.

— Veremos, assentiu Mariquinhas.

João dos Passos aproximava-se com os olhos na janela e bengala no ar. As duas moças não tiravam os olhos dele. O momento era decisivo. Cada uma delas buscava chamar exclusivamente a atenção do rapaz, mas a verdade é que ele olhava ora para uma, ora para outra, com a mesma expressão.

Na ocasião, porém, em que ele passava justamente por baixo das janelas da casa, que era assobradada, Mariquinhas com o ar sonso das namoradeiras de profissão, perguntou à outra: — Você amanhã há de ir lá passar o dia na Rua do Príncipe; sim? A resposta de Lúcia foi dar-lhe um beliscão, sem que uma nem outra desviassem os olhos de João dos Passos, o qual, chegando a dez passos de distância, deixou cair a bengala, para ter ocasião de olhar ainda uma vez para as duas moças. Na próxima esquina, lencinho fora, adeus disfarçado, e movimento giratório de bengala, até que de todo desapareceu no horizonte.

III

Lúcia disse coisas muito feias a Mariquinhas, por causa da habilidade com que esta indicara ao rapaz a rua em que morava. Mariquinhas repeliu dignamente as censuras de Lúcia, e ambas ficaram de acordo em que João dos Passos era pouco menos que desfrutável.

— Se a coisa for comigo, dizia Mariquinhas, eu prometo trazê-lo de canto chorado.

— E eu também, se a coisa for comigo, acudiu Lúcia.

Ficou assentado esse plano.

No dia seguinte Mariquinhas voltou para casa, mas nem na Rua do Príncipe nem na da Princesa, apareceu a figura de João dos Passos. Aconteceu o mesmo nos outros dias, e já uma e outra das duas amigas tinham perdido a esperança de o tornarem a ver, quando no domingo próximo surgiu ele na Rua do Príncipe. Só Lúcia estava à janela, mas nem por isso deixou de haver o cerimonial do domingo anterior.

— É comigo, pensou Lúcia.

E não se demorou em dar conta do ocorrido a Mariquinhas num bilhete que às pressas lhe escreveu e remeteu por uma negrinha. A negrinha partiu, e mal teria tempo de chegar à casa de Mariquinhas, quando um moleque da casa desta entregava a Lúcia uma cartinha da sinhá-moça.

Dizia assim: A coisa é comigo! Passou agora mesmo, e… não te digo mais nada.

A carta de Lúcia dizia pouco mais ou menos a mesma coisa. Imagina-se facilmente o efeito deste caso; e sabido o caráter galhofeiro das duas amigas facilmente se acreditará que na primeira ocasião assentassem de caçoar com o petimetre, até então anônimo para elas.

Assim foi.

Na forma dos anteriores namoros ficou assentado que as duas comunicariam uma à outra o que se fosse passando com o namorado. Desta vez era a coisa ainda mais picante; a comparação das cartas apaixonadas do mesmo homem devia ser coisa muito para divertir as duas amigas.

A primeira carta de João dos Passos às duas moças começava assim: “. Falava-lhes da cor dos cabelos, única parte em que a carta sofreu modificação. Quanto à idéia de matrimônio, havia um período em que alguma coisa transluzia, sendo a linguagem a mesma, e igualmente apaixonada.

A primeira idéia de Mariquinhas e Lúcia foi dar idêntica resposta ao novo namorado; mas a consideração de que semelhante recurso o desviaria, fez com que repelissem a idéia, limitando-se ambas a declarar a João dos Passos que alguma coisa sentiam por ele, e animando-o a persistir na campanha.

João dos Passos não era homem de recusar namoro. A facilidade que encontrara nas duas moças foi para ele uma grande animação. Começou então um verdadeiro entrudo epistolar. João dos Passos respondia pontualmente às namoradas; às vezes não se contentava com uma só resposta, e mal despedira uma carta, logo carregava e disparava outra, todas elas fulminantes e mortais. Nem por isso as moças deixavam de gozar perfeita saúde.

Um dia — duas semanas depois da inauguração do namoro —, João dos Passos a si mesmo perguntou se não era arriscado escrever com a mesma letra às duas namoradas.

Sendo amigas íntimas era natural que mostrassem as cartas uma à outra. Refletiu porém que se já houvessem mostrado as cartas teriam descoberto o estratagema. Logo, não eram tão íntimas como pareciam.

E se até agora não mostraram as cartas, continuou João dos Passos, é provável que nunca mais as mostrem.

Qual era o fim de João dos Passos entretendo este namoro? perguntará naturalmente o leitor.

Casar? Passar tempo? Uma e outra coisa.

Se dali surdisse um casamento, João dos Passos o aceitaria de boa vontade, apesar de não lhe dar muito o emprego que tinha na Casa da Misericórdia.

Se não surdisse casamento ficava ele ao menos com a satisfação de haver passado alegremente o tempo.

IV

O namoro prosseguiu assim durante alguns meses.

As duas amigas comunicavam regularmente as cartas e redigiam prontas as respostas.

Às vezes divertiam-se em dificultar-lhe a situação. Por exemplo, uma dizia que iria ver tal procissão da rua tal número tantos, e que o esperava à janela às tantas horas, ao passo que a outra marcava a mesma hora para o esperar à janela de sua casa. João dos Passos arranjava como podia o caso, sem escapar nunca aos arrufos de uma delas, coisa que o lisonjeava sobremaneira.

As expressões amorosas das cartas de Mariquinhas e Lúcia eram contrastadas pelas boas caçoadas que faziam do namorado.

— Como vai o bobo? — Cada vez melhor.

— Ontem, voltou-se tanto para trás, que esteve quase a esbarrar com um velho.

— Pois lá na Rua do Príncipe escapou de cair.

— Que pena! — Não cair? — Decerto.

— Tens razão. Tinha vontade de vê-lo de pernas para o ar.

— E eu! — E o andar dele, já reparaste? — Ora! — Parece um boneco de engonço.

— Imposturando com a luneta.

— É verdade; aquilo há de ser impostura.

— Pode ser que não… porque ele tem realmente a vista curta.

— Isso tem; curtíssima.

Tal era a opinião real que as duas moças faziam dele, mui diferente da que exprimiam nas cartas que João dos Passos recebia com o maior prazer deste mundo.

Quando estavam juntas e o viam vir ao longe, a linguagem delas era sempre do mesmo gênero. Mariquinhas, cujo espírito era tão buliçoso como o corpo, rompia sempre o diálogo.

— Olha! olha! — É ele? — O cujo… Como vem engraçado! — É verdade. Olha o braço esquerdo! — E o jeitinho do ombro? — Jesus! que rosa tamanha no peito! — Já vem rindo.

— É para mim.

— É para mim.

E João dos Passos aproximava-se nadando num mar de delícias, e satisfeito de si mesmo, visto estar convencido de que realmente embaçava as duas moças.

Durou esta situação, como disse, alguns meses, creio que três. Era tempo suficiente para aborrecer a comédia; ela porém continuava, com uma modificação apenas.

Qual seria? A pior de todas.

As cartas de João dos Passos começaram a não ser comunicadas entre as duas amigas.

Lúcia foi a primeira que disse não receber cartas de João dos Passos, e não tardou que a outra dissesse a mesma coisa. Ao mesmo tempo já a pessoa do namorado lhes não causava riso, e sendo ele a princípio o objeto quase exclusivo da conversa de ambas, dessa data em diante foi assunto interdito.

A razão, como o leitor adivinha, é que as duas amigas, estando a brincar com fogo, vieram a queimar-se. Nenhuma delas, entretanto, lendo no seu próprio coração, chegou a perceber que igual coisa se passava no coração da outra. Estavam convencidas de que se enganavam muito habilmente.

E ainda mais.

Lúcia refletia assim: — Ele, que já lhe não escreve e continua a escrever-me, é porque me ama.

Mariquinhas discorria deste modo: — Não tem que ver. Ele acabou com o gracejo de escrever a Lúcia, e a razão naturalmente é que só eu domino no seu coração.

Um dia, a Mariquinhas arriscou esta pergunta: — Então João dos Passos nunca mais te escreveu? — Nunca mais.

— Nem a mim.

— Naturalmente perdeu a esperança.

— Há de ser isso.

— Tenho pena! — E eu também.

E no seu interior a Lúcia ria da Mariquinhas, e a Mariquinhas ria da Lúcia.

V

João dos Passos, entretanto, fazia consigo a reflexão seguinte: — Onde irá isto parar? Ambas gostam de mim, e eu, por ora, gosto de ambas. Como só me devo casar com uma delas, tenho de escolher a melhor, e aqui começa a dificuldade.

O petimetre comparou em seguida as qualidades das duas namoradas.

O tipo de Lúcia era para ele excelente; gostava das mulheres claras e de estatura regular.

Mas o tipo de Mariquinhas dominava igualmente em seu coração, porque amara a muitas baixinhas e moreninhas.

Vacilava na escolha.

E por isso mesmo que vacilava na escolha, é que não amava verdadeiramente a nenhuma delas, e não amando verdadeiramente a nenhuma delas, era natural adiar a escolha para as calendas gregas.

As cartas continuavam a ser apaixonadíssimas, o que lisonjeava extremamente a João dos Passos.

O pai de Lúcia e a mãe de Mariquinhas, que até agora não entraram no conto, nem entrarão daqui em diante, por não serem precisos, admiravam-se da mudança que notavam nas filhas. Ambas estavam mais sérias do que nunca. Há namoro, concluíram eles, e cada um por sua parte procurou sondar o coração que lhe dizia respeito.

As duas moças confessaram que efetivamente amavam a um mancebo dotado de eminentes qualidades e merecedor de entrar na família. Obtiveram consentimento para fazer com que o mancebo de eminentes qualidades chegasse à fala.

Imagine o leitor o grau de contentamento das duas moças. Logo nesse dia cada uma delas tratou de escrever a João dos Passos dizendo que podia ir pedi-la em casamento.

Tenha paciência o leitor e continue a imaginar a surpresa de João dos Passos quando recebeu as duas cartas contendo a mesma coisa. Um homem que, ao partir um ovo cozido visse sair de dentro um elefante, não ficaria mais assombrado do que o nosso João dos Passos.

Sua primeira idéia foi uma suspeita. Desconfiou que ambas lhe armassem uma cilada, de acordo com as famílias. Repeliu porém a suspeita, refletindo que em nenhum caso, o pai de uma e a mãe de outra consentiriam no meio empregado. Compreendeu que era amado igualmente de uma e outra, explicação que o espelho confirmou eloqüentemente quando ele lhe lançou um olhar interrogativo.

Que faria ele em tal situação? Era a ocasião da escolha.

João dos Passos considerou o assunto por todos os lados. As duas moças eram as mais belas do bairro. Não tinham dinheiro, mas essa consideração desaparecia desde que ele pudesse meter inveja a meio mundo. A questão era saber a qual delas daria a preferência.

A Lúcia? A Mariquinhas? Resolveu estudar o caso mais detidamente; mas como era necessário mandar imediata resposta, escreveu duas cartas, uma para Mariquinhas, outra para Lúcia, pretextando uma demora indispensável.

As cartas foram.

A que ele escreveu a Lúcia dizia assim: Minha querida Lúcia.

Não imaginas o contentamento que me deste com a tua carta. Vou enfim obter a maior graça do céu, a de poder chamar-te minha esposa! Vejo que estás mais ou menos autorizada por teu pai, esse honrado ancião, de quem serei filho amante e obediente.

Obrigado! Devia ir hoje mesmo à tua casa e pedir-te em casamento. Uma circunstância, porém, me impede de o fazer. Apenas ela desapareça, e nunca irá além de uma semana, corro à ordem que o céu me envia pela mão de um dos seus anjos.

Ama-me como eu te amo.

Adeus! Teu, etc.

A carta dirigida a Mariquinhas era deste teor: Minha Mariquinhas do meu coração.

Faltam-me palavras para dizer o júbilo que me deu a tua carta. Eu era um desgraçado até há poucos meses. Repentinamente a felicidade começou a sorrir-me, e agora (oh! céus!) lá me acena com a maior ventura da terra, a de ser teu esposo.

Estou certo de que a tua respeitável mãe de algum modo te insinuou o passo que deste.

Boa e santa senhora! Anseio por chamá-la mãe, por adorá-la de joelhos! Não posso, como devia, ir hoje mesmo à tua casa.

Há uma razão que mo impede.

Descansa, que é razão passageira. Antes de oito dias lá estarei, e se Deus nos não tolher o passo, dentro de dois meses estaremos esposos.

Oh! Mariquinhas, que felicidade! Adeus! Teu, etc.

Ambas estas cartas traziam um post-scriptum, marcando a hora em que nessa noite ele passaria pela casa delas. A hora de Lúcia era às sete, a de Mariquinhas às oito.

As cartas foram entregues ao portador e levadas ao seu destino.

VI

Neste ponto da narrativa, qualquer outro que não prezasse a curiosidade da leitora, intercalaria um capítulo de considerações filosóficas, ou diria alguma coisa a respeito do namoro na antigüidade.

Eu não quero abusar da curiosidade da leitora. Minha obrigação é dizer que desenlace teve esta complicada situação.

As cartas foram, mas foram erradas; a de Lúcia foi entregue a Mariquinhas, e a de Mariquinhas a Lúcia.

Não tenho forças para pintar o desapontamento, a raiva, o desespero das duas moças, e muito menos os faniquitos que sobrevieram à crise, coisa indispensável em tal situação.

Se se achassem debaixo do mesmo teto é possível que o obituário fosse enriquecido com os nomes das duas belas moças. Felizmente cada uma delas estava em sua casa, pelo que tudo se passou menos tragicamente.

Os nomes que elas chamaram ao ingrato e pérfido gamenho, podiam escrever-se se houvesse papel suficiente. Os que elas disseram uma da outra orçavam pela mesma quantidade. Nisto gastaram os oito dias de prazo marcado por João dos Passos.

Notou este, logo na primeira noite, que nenhuma delas o esperou à janela conforme fora marcado. No dia seguinte sucedeu a mesma coisa.

João dos Passos indagou o que havia. Soube que as duas moças estavam incomodadas e de cama. Ainda assim não atinou com a causa, e limitou-se a mandar muitas lembranças, que os portadores aceitaram docilmente, apesar de terem ordem positivamente de não receberem nenhum recado mais. Há casos porém em que um portador de cartas desobedece; um deles é o caso de remuneração e foi esse o caso de João dos Passos.

No fim de oito dias ainda João dos Passos não tinha feito a sua escolha; mas o acaso, que governa a vida humana, quando a providência se cansa de a dirigir, trouxe à casa do petimetre uma prima da roça, cuja riqueza consistia em dois belos olhos e cinco excelentes prédios. João dos Passos era doido por olhos bonitos mas não desdenhava os prédios. Os prédios e os olhos da prima decidiram o nosso perplexo herói, que nunca mais voltou aos Cajueiros.

Lúcia e Mariquinhas casaram mais tarde, mas apesar da ingratidão de João dos Passos, e do tempo que decorreu, nunca mais se deram. Os esforços dos parentes foram baldados. Nenhuma delas seria capaz de casar em nenhuma hipótese com João dos Passos; e isto poderia levá-las a se estimarem como dantes. Não foi assim; tudo perdoaram, exceto a humilhação.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 30 de maio de 2021

O PAVÃO (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

O PAVÃO

Rubem Braga

 

 

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

        Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.

        Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 29 de maio de 2021

MEDO de se (CRÔNICA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

MEDO DE SE APAIXONAR

Fabrício Carpinejar



Você tem medo de se apaixonar. Medo de sofrer o que não está acostumada. Medo de se conhecer e esquecer outra vez. Medo de sacrificar a amizade. Medo de perder a vontade de trabalhar, de aguardar que alguma coisa mude de repente, de alterar o trajeto para apressar encontros. Medo se o telefone toca, se o telefone não toca. Medo da curiosidade, de ouvir o nome dele em qualquer conversa. Medo de inventar desculpa para se ver livre do medo. Medo de se sentir observada em excesso, de descobrir que a nudez ainda é pouca perto de um olhar insistente. Não suportar ser olhada com esmero e devoção. Nem os anjos, nem Deus agüentam uma reza por mais de duas horas. Medo de ser engolida como se fosse líquido, de ser beijada como se fosse líquen, de ser tragada como se fosse leve. Você tem medo de se apaixonar por si mesma logo agora que tinha desistido de sua vida. Medo de enfrentar a infância, o seio que criou para aquecer as mãos quando criança, medo de ser a última a vir para a mesa, a última a voltar da rua, a última a chorar. Você tem medo de se apaixonar e não prever o que pode sumir, o que pode desaparecer. Medo de se roubar para dar a ele, de ser roubada e pedir de volta. Medo de que ele seja um canalha, medo de que seja um poeta, medo de que seja amoroso, medo de que seja um pilantra, incerta do que realmente quer, talvez todos em um único homem, todos um pouco por dia. Medo do imprevisível que foi planejado. Medo de que ele morda os lábios e prove o seu sangue. Você tem medo de oferecer o lado mais fraco do corpo. O corpo mais lado da fraqueza. Medo de que ele seja o homem certo na hora errada, a hora certa para o homem errado. Medo de se ultrapassar e se esperar por anos, até que você antes disso e você depois disso possam se coincidir novamente. Medo de largar o tédio, afinal você e o tédio enfim se entendiam. Medo de que ele inspire a violência da posse, a violência do egoísmo, que não queira repartir ele com mais ninguém, nem com seu passado. Medo de que não queira se repartir com mais ninguém, além dele. Medo de que ele seja melhor do que suas respostas, pior do que as suas dúvidas. Medo de que ele não seja vulgar para escorraçar mas deliciosamente rude para chamar, que ele se vire para não dormir, que ele se acorde ao escutar sua voz. Medo de ser sugada como se fosse pólen, soprada como se fosse brasa, recolhida como se fosse paz. Medo de ser destruída, aniquilada, devastada e não reclamar da beleza das ruínas. Medo de ser antecipada e ficar sem ter o que dizer. Medo de não ser interessante o suficiente para prender sua atenção. Medo da independência dele, de sua algazarra, de sua facilidade em fazer amigas. Medo de que ele não precise de você. Medo de ser uma brincadeira dele quando fala sério ou que banque o sério quando faz uma brincadeira. Medo do cheiro dos travesseiros. Medo do cheiro das roupas. Medo do cheiro nos cabelos. Medo de não respirar sem recuar. Medo de que o medo de entrar no medo seja maior do que o medo de sair do medo. Medo de não ser convincente na cama, persuasiva no silêncio, carente no fôlego. Medo de que a alegria seja apreensão, de que o contentamento seja ansiedade. Medo de não soltar as pernas das pernas dele. Medo de soltar as pernas das pernas dele. Medo de convidá-lo a entrar, medo de deixá-lo ir. Medo da vergonha que vem junto da sinceridade. Medo da perfeição que não interessa. Medo de machucar, ferir, agredir para não ser machucada, ferida, agredida. Medo de estragar a felicidade por não merecê-la. Medo de não mastigar a felicidade por respeito. Medo de passar pela felicidade sem reconhecê-la. Medo do cansaço de parecer inteligente quando não há o que opinar. Medo de interromper o que recém iniciou, de começar o que terminou. Medo de faltar as aulas e mentir como foram. Medo do aniversário sem ele por perto, dos bares e das baladas sem ele por perto, do convívio sem alguém para se mostrar. Medo de enlouquecer sozinha. Não há nada mais triste do que enlouquecer sozinha. Você tem medo de já estar apaixonada.

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 29 de maio de 2021

O BANDEIRANTE (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O BANDEIRANTE

Olavo Bilac

 

Quando, em 1664, Fernão Dias Paes Leme se embrenhou nos sertões de Minas, raros homens civilizados haviam pisado essas regiões quase de todo desconhecidas.
 
Fernão Dias Paes Leme já era nesse tempo um velho. Tinha oitenta anos. Mas a idade não conseguira alquebrar o seu corpo, nem enfraquecer dentro da sua alma intrépida a coragem e a ambição.
 
Diziam que, no Rio São Francisco, abundavam esmeraldas.
 
A terra virgem do Brasil já dava muito ouro e muitos diamantes: mas ainda ninguém arrancara do seu seio as belas e preciosas pedras verdes, que Fernão Dias Paes Leme ia procurar, arrostando todos os perigos.
 
Perigos de toda sorte!... As florestas estavam cheias de feras: porém, maior ainda do que a delas, era a ferocidade dos índios brutos. Além disso, nas margens dos rios, reinavam febres assassinas. Com as enchentes, as plantas apodreciam, depositadas nas lezírias, e desfaziam-se em miasmas. E tudo, — feras, selvagens e febres, — tudo conspirava contra os exploradores, defendendo a região, não deixando que a civilização dela tomasse posse. 
 
Mas Fernão Dias Paes Leme só pensava na realização do seu grande sonho. Sonhava possuir as grandes riquezas acumuladas naquelas zonas longínquas. Passavam-lhe por diante dos olhos, quando a febre da ambição o alucinava, rios de pedras preciosas, rolando, rolando, com um brilho que cegava. Já se via senhor de montanhas de pedras verdes... E essa ambição o alimentava, abrasando-lhe o sangue, dando-lhe aos músculos um novo vigor e ao coração uma nova mocidade. Juntou um bando de companheiros decididos, e empreendeu a aventura arrojadíssima.
 
Eram mais de quinhentos. Quase todos já tinham explorado outras zonas de território, e estavam habituados àquela rude existência, de trabalhos sem fim, noites passadas ao relento, debaixo das grossas chuvas torrenciais, riscos sem conta, dificuldades sem número. Eram homens que essa vida tornara semibárbaros: convivendo com os animais ferozes e com os índios antropófagos, entendendo e falando os idiomas de várias tribos, acostumados a não temer a odiosidade dos povos indomáveis e as inclemências da natureza primitiva da América, tinham ficado corajosos como esses povos, rijos e primitivos como essa natureza. Quando a seca abrasava os matos, os bandeirantes, para mitigar a sede que os agoniava, bebiam o sangue dos animais que matavam. Comiam frutas, cascas de árvores, sapos, lagartos, cobras.
 
Não tinham bússola, não tinham armas aperfeiçoadas, não tinham remédios. Confiavam na sua boa estrela, e caminhavam ao acaso. Tinham de vadear torrentes, ladear pântanos, galgar serranias, atravessar florestas virgens. E a ambição e a coragem de Fernão Dias Paes Leme guiavam esses aventureiros intrépidos.
 
Dez anos durou a expedição. Enquanto caminhavam, de luta em luta, batalhando contra os índios, os bandeirantes iam, nos arredores do Rio São Francisco, lançando as bases de povoações, que são hoje cidades. Ao cabo desses dez anos, outros bandos tinham vindo juntar-se aos primeiros. Oito povoações tinham nascido, com edificações, surgindo como por encanto do solo, ao simples influxo da energia soberana de Fernão Dias Paes Leme. Quantidades fabulosas de arrobas de outro em pó e de imensos diamantes asseguravam aos aventureiros grande fortuna. E, quanto às esmeraldas que Fernão Dias buscava, apenas uma pequena quantidade delas fora colhida. E o velho chefe não se separava nunca da sacola de couro, em que guardava o precioso achado. Não era só o valor das pedras o que o fazia prezar aquela sacola: o que mais o satisfazia era o orgulho de ter sido o primeiro a descobrir esmeraldas nas terras da América.
 
Mas as forças o abandonavam. Esses dez últimos anos de vida tinham alquebrado o corpo do heroico velho. Enriquecido o seu bando de aventureiros, fixadas várias famílias nas povoações que fundara, Fernão Dias Paes Leme recolheu-se a Guaçuí, aldeia que, graças aos seus esforços, se desenvolvia e prosperava. 
 
Aí morreu ele, serenamente, sem imaginar a glória que estava reservada para o seu nome. Antes de expirar, chamou o filho, e confiou-lhe a guarda da sacola de esmeraldas. Recomendou-lhe que tornasse ao litoral, e, em viagem para a metrópole, para lá levasse as primeiras pedras verdes fornecidas pelas jazidas do Brasil.
 
O filho enterrou-o, piedosamente, em plena selva, no meio daquela admirável natureza cujos segredos o seu olhar atrevido fora o primeiro a devassar. O cadáver do velho bandeirante repousa em lugar ignorado hoje. Ninguém sabe em que arredor de Guaçuí, perto das margens fecundas do esplêndido São Francisco, está a ossada de Fernão Dias Paes Leme, — o caçador de esmeraldas. Mas, a memória dele vive perpétua nas regiões que a sua ousadia desbravou.
 
O filho do explorador, guardando a sacola de esmeraldas, não sabia que decepção o esperava: as pedras verdes eram simples crisólitas sem valor.
 
Mas o ouro e os diamantes adquiridos, durante os dez anos de expedição, lhe davam uma fortuna, capaz de consolar facilmente dessa desilusão. E, se Fernão Dias Paes Leme não teve a glória de descobrir esmeraldas no Brasil, teve em compensação a glória mais alta de ter lançado a semente da civilização nos sertões de Minas Gerais, fazendo oito cidades rebentarem de seu solo inculto.

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 28 de maio de 2021

O CALDO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O CALDO

Humberto de Campos

 

I

Como continuação da rua principal da pequena capital nortista, partia aquela estrada. Marginada de casas a princípio, pouco a pouco, se tornando mais deserta, solitária, mais abandonada. Serpeando aqui entre serrotes, cortando ali, retilínea, uma várzea; comprimindo-se na garganta de uma serra ou pulando o rio com o auxílio de um pontilhão, ganhava o sertão imenso, estabelecendo um longo traço de união entre o mundo agitado e aqueles longínquos sertões pastoris. Por ela, matando-lhe a relva teimosa sob os sapatos ferrados, haviam passado os primeiros desbravadores; por ela tinham descido, nos anos de seca e de fome, os rebanhos de sombras das populações flageladas; e por ela desciam e subiam agora as boiadas, e as tropas de muares demandando o litoral ou o interior, carregadas de algodão, de milho, de couros, de arroz, de queijos, produtos da terra, ou de sal, de querosene, de fazendas, para o pequeno comércio sertanejo. Às vezes, em uma das suas curvas longínquas, erguia-se uma nuvem de poeira amarelada, que faiscava à claridade forte do sol. À medida que a nuvem se ia aproximando, ia-se ouvindo um tilintar nervoso de guizos; e em um instante surgia, chouteando, a tropa numerosa, carregada de caixas ou de fardos, puxada pela burra-madrinha, animal inteligente e marchador, e fechada, atrás, pelos comboieiros, de chapéu de carnaúba e lenço vermelho ao pescoço, sentados na sela como imperadores de um povo itinerante.

- Toca p 'ra diante, Mimosa!...

- Endireita, Andorinha!...

E o estalo seco do chicote, tocando a tropa.

Era no alto sertão, já, para além da serra da Gameleira e da chapada dos Três Irmãos, mas à margem mesmo dessa estrada, que se erguia a casa de comércio e de moradia do coronel Antônio Solano. Antiga fazenda de gado e de cultura, havia, pouco a pouco, a Baixa-Verde caído em decadência com o seu último proprietário. O canavial e o engenho, que davam açúcar e aguardente para toda a região, tinham parado depois de 13 de maio, por falta de trabalhadores. O mato invadira as plantações, afogando-as, matando-as; e da velha casa engenho não restava agora senão uma parte do telhado sujo, tendo a outra desabado há muitos anos. A de moradia, essa, constava apenas da "venda", na frente, e uma sucessão de quartos e salas em abandono, por onde errava, fugitivo e soturno, o vulto pesado e grosseiro do coronel, último descendente de uma família ilustre e poderosa, que dominara em todo aquele sertão.

Antônio Solano era o tipo integral do sertanejo indomesticável. De estatura mediana, grosso e forte, andava pelos quarenta e cinco anos, carão largo, moreno, bigode curto e grisalho. Trazia o cabelo cortado rente, e possuía uns olhos pequenos, escuros, escondidos, como dois tigres, sob a moita das sobrancelhas. Como não tivesse família, pois que a mulher havia morrido e a filha havia casado, vivia ali sozinho, com um criado de confiança, o Libório, que era, ao mesmo tempo, seu cozinheiro, seu caixeiro e seu guarda-costas nas aventuras perigosas.

Com o abandono das culturas e a extinção do gado, vendido pouco a pouco na vila de acordo com as necessidades, vivia Antônio Solano, agora, do arrendamento de algumas braças de terra na Baixa, e dos vagos negócios daquela casa de comércio à beira da estrada. De longe em longe, uma ou duas vezes por dia, passava uma tropa. Os tropeiros acomodavam os animais, sob o telheiro do antigo engenho, apeavam-se, compravam aguardente, fósforos, farinha, rapadura, e, após um descanso ligeiro, continuavam o seu caminho. E isso alimentava a mediania do proprietário.

Indolente por natureza, o antigo fazendeiro não compreendia, contudo, como outros prosperavam na vizinhança. A fortuna alheia fazia-lhe mal. E era para esquecer esse ressentimento que soltava a brida, inteira, ao corcel da concupiscência, transformando-se em sultão único daquelas redondezas. Mal desabrochava para a mocidade e para o desejo o botão de rosa de um seio virgem, e logo murchava poluído pela lagarta repugnante do seu beijo. Contavam-se às dezenas as mulheres atiradas por ele, ainda meninas, à degradação. Das raparigas que faziam vida dissoluta nas vilas mais próximas, embebedando-se de aguardente nos quartos da feira, uma ou outra não havia sido lançada nesse caminho pela sua bestialidade revoltante.

Entre tantas vítimas uma houve, no entanto, que não esqueceu o ultraje recebido. Chamava-se Maria Rosa, e era clara e bonita. Aos quinze anos, após a morte do pai, com a mãe enferma de sezão, fora, com o irmão pequeno, à Casa Grande, pedir ao coronel que os não atirasse fora da terra por falta de pagamento. Quando o milho amadurecesse obteriam o suficiente para o arrendamento da terra em que tinham a cabana e o roçado.

Sentado fora do balcão, num tamborete, os pés sem meias afundados nos chinelos de couro, vestindo calça e camisa de riscado, pela abertura da qual aparecia, vultosa, a musculatura do peito forte, o coronel fitava a menina como a cobra magnetiza o pássaro que vai devorar. Sentia, já, mentalmente, os encantos virgens daquele corpo, a curva suave daquele colo, a maciez daquela boca cheirando a fruta. O menino havia ido, a mandado seu, pedir ao Libório, na cozinha, uma xícara de café. E quando voltou, encontrou a irmã chorando, abotoando o casaquinho de cassa, mas tendo na mão, nervosamente amarfanhado, o pedaço de papel com o recibo, por seis meses, do arrendamento da terra.

 

II

Um ano depois, pelo S. João, achava-se o coronel Solano à porta da casa, de onde havia partido uma tropa rumo do sertão. O cotovelo encostado no portal, a mão aberta sustentando a cabeça, olhava, sem ver, a natureza que o cercava. À frente, muito longe, a serra Dourada esfumava-se, coberta, aqui e ali, de lenços de bruma. Coleando para a direita e para a esquerda, arenosa e cheia de sol, a estrada deserta era como uma serpente imensa, de cauda presa ao sertão e cabeça mergulhada no mar. Em uma árvore próxima, chiavam cigarras, limando o silêncio. O sertanejo ouvia e olhava tudo isso estupidamente, quando, surgindo do oitão da casa, lhe apareceu um vulto de mulher, que não pôde logo reconhecer. Trazia nos braços uma criança adormecida, em um sujo pano de algodão.

Toda ela denunciava miséria, penúria, sofrimento. O cabelo sem trato, amarrado ao alto da cabeça, escapava-lhe, em falripas escuras, pelo pescoço, pelos ombros, pelo rosto. Devia ser moça, mas trazia, já, nas feições, os estigmas da velhice precoce.

- Boa tarde, "seu" coronel!

- Boa tarde! - respondeu, seco, O sertanejo, sem mudar de posição.

-"Seu" coronel não me conhece?

Antônio Solano examinava-a, sem compreender.

- Eu sou a Maria Rosa, filha do defunto Tranquilino, - aventurou a rapariga, medrosa.

E enquanto o coronel fechava a cara:

- Eu vim trazer a vossa senhoria o Antoninho, p'ra tomar a benção p'ro pai...

A essas palavras, ditas timidamente, com um tremor por todo o corpo e a ponto, quase, de soltar a criança, o antigo fazendeiro explodiu:

- Pai?... Que pai, nada!... Vocês andam por ai como as cabras com os bodes, com um e com outro, arranjam os seus moleques e, depois, o coronel Solano é que é o pai! Isso já é desaforo... Eu não estou aqui para trabalhar para os filhos dos outros... Vá procurar o pai, em outra parte!...

Pálida, ainda, dos martírios da maternidade, das privações que sofria, Maria Rosa tornara-se cor de cera. O filho deitado nos braços, quase caindo, os olhos súplices e sem uma gota de pranto, recordava certas imagens toscas de Nossa Senhora que se vêem, às vezes, nas igrejas coloniais. Parecia-lhe um sonho, o que ouvia. De repente, porém, tomou coragem, e, quase num soluço:

- Ele é seu filho, "seu" coronel... Eu juro... E se eu vim aqui, não foi por mim, foi por ele... Minha mãe morreu, na semana passada... Meu leite secou.... E o que eu vim pedir a vossa senhoria foi qualquer coisa para dar um caldinho p 'ra ele...

E como quem diz, com terror, uma coisa que lhe parece impossível:

- Senão ele morre...

- Caldos! Caldos!... - rugiu, indignado, o coronel, dando de entrar para o balcão. - Aos meus caldos querem viver vocês todos...

E, braço estirado, no rumo da Baixa:

- Vá embora!... Já!...

- Vossa senhoria nega um caldo para seu filho... Não é? - fez a rapariga, com firmeza.

- Vá embora!... Já lhe disse! - tornou Solano, colérico.

 

III

A noite começava a cair, envolvendo o sertão imenso. Uma cinza tênue e contínua envolvia as coisas, gastando-lhes os contornos. As seriemas soltavam ao longe o seu canto monótono de aves engasgadas. As moitas, povoadas de insetos, chiavam, como fervessem ao fogo. Uma primeira estrela abriu no céu, como uma açucena num lago sem ondas. E outras foram miúdas, piscando os olhos pequeninos.

Pesado, grosso, a cabeça inteiramente o coronel Antônio Solano pouco mudara, em vinte anos. A casa era a mesma. O criado o mesmo. E o mesmo, ainda, o lampião de querosene suspenso do teto sobre a mesa de jantar, onde se estendia a metade de uma toalha de algodão e se via, sobre a toalha, um prato e um talher.

- Libório, - chamou o ancião, tomando lugar à cabeceira da mesa; - traga o jantar.

A figura de um preto alto, cabeça alva como a do patrão, atravessou o compartimento, rumo da cozinha. E, um momento depois, voltava com um prato fundo, onde fumegava um caldo de carne, em que flutuavam fragmentos de tempero e bolhas de gordura. Colocou-o diante do coronel, e retirou-se, de novo, em direção à cozinha, para trazer, mais tarde, o arroz, o cozido, o feijão.

A colher na mão, Antônio Solano curvou-se para a frente, e bebeu a primeira colherada. Tomou a segunda. Se houvesse à sua frente um espelho, teria visto, talvez, nesse momento, que um homem, esgueirando-se pela porta, se aproximava, pé ante pé, da sua cadeira, com os olhos postos no seu pescoço taurino... Tomou a terceira colher... Dentes cerrados, o homem era novo e trazia à mão uma faca meticulosamente afiada, como a dos açougueiros. E o coronel tinha a boca cheia pela quarta colherada, quando uma grande mão lhe empurrou, violenta, o rosto no prato, ao mesmo tempo que uma lâmina certeira, navalhante, lhe decepava completamente, e de um golpe, cabeça vigorosa!

Quando o criado voltou com o cozido, soltou-o no chão, de pavor: o prato do caldo estava cheio de sangue, que transbordava pela toalha, pela mesa, pelo soalho encardido; e no prato, mergulhado no caldo sangrento, o rosto do patrão.

 

IV

A essa hora, uma lâmina em punho, fugia, em carreira desordenada, pulando as moitas, rumo da Baixa, um rapagão moreno, de vinte anos. Era o Antônio, filho da Maria Rosa.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 27 de maio de 2021

ONE ESTÃO OS NATAIS DE ANTANHO? (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

ONDE ESTÃO OS NATAIS DE ANTANHO?

Dalton Trevisan

 

Insinua-se pela cortina de veludo vermelho — úmida e pegajosa —, afasta a mão com nojo: filho bastardo do rei Midas, tudo o que toca se desfaz em podridão. No rosto o bafo quente da sala; entre casal suspeito e velho pervertido e o seu abrigo.

Senta-se na última fila, os pés sobre cascas de amendoim, pipoca, papel de bala. Alheio às sombras na tela, enfrentar?a passagem do Natal.

Escorraçou-o do bar a celebração ruidosa dos bêbados. Mais que ela, dois olhos aflitos no espelho da parede… Exílio de negridão viciosa, no cinema est?defendido. Distingue a tosse do guarda que, vez por outra, circulando no corredor, assusta os casais de tarados. No canto, a lâmpada amarela sobre a cortina que, ao ser erguida, espalha nuvem fétida; pela sua agitação incessante, o interesse do público ?mais lavar a mão do que assistir ao filme.

Entorpecido de álcool e do ar corrupto, cabeceia na cadeira dura. Uma voz melíflua pede-lhe docemente licença, enrosca-se no seu joelho — de todas as cadeiras vazias escolhe a do lado.

Sonolento, mal sustém a pálpebra aberta. Mascando e soprando a goma de bola, o mocinho a explode com beijo obsceno.

Patinhas de mosca na face, João espanta-a com a mão. Mosca não, o óculo brilhoso da criatura grudado no seu rosto: uma loira de voz rouca senta-se na cama. Estende a perna roliça, que o tipo lhe descalce o sapato. Ele arranca brutalmente o sapatinho dourado. Não ?assim, meu amor, assim não. Repete o mocinho no sopro da bola:

— Não gosto de bruto.

O herói resmunga, a camisa estraçalhada de mil tiros — por amor dela bateu-se com o vilão? A loira estira a outra perna: Não sou a sua gatinha?

— Gatinha não sou? — a queixa lamuriosa ao lado.

Com as duas mãos, o tipo a descalça e beija a ponta do p? Bem assim, meu amor. Sabe ser gentil.

O olho do mocinho escorre-lhe no rosto — baba fosfórea de lesma —, sem perder a legenda:

— Vai ser gentil, amor?

O durão de p? a heroína ?beira da cama; ergue o vestido de cetim brilhante, desprende a meia da cinta, oferece a linda perna comprida — mão tremente, ele enrola a meia desde a coxa. Raivoso, atira-a no tapete.

— Quieto, benzinho.

— Quietinho, meu bem — a voz aliciadora ?sufocada pela tosse do guarda. Pisoteando cascas, novo espectador instala-se duas cadeiras na frente, revolve o pacote de amendoim, chupa frenético o dente.

Estou doente, vou morrer — lamenta-se o machão, atingido pela bomba de cobalto, no deserto de provas ocultou-se da policia. Minha carne ?gélida. Bala de revólver não a atravessa metade homem, metade monstro de ferro.

O maníaco do amendoim assobia, o mocinho rumina a bola, João sofre as penas do herói.

Agora a loira corre o fecho do vestido, a nudez entrevista: Eu sou Rosinha. Posso derreter o aço. Sei abrasar o corpo gélido.

— Rosinha… sei abrasar… — insiste o eco suspiroso do mocinho.

Rebenta a bola de goma, esbarra-lhe no joelho e, entre as cadeiras vazias, senta-se ao lado do chupador de dente. Na tela a heroína furiosa rasga a camisa do tipo, descobre o ombro sardento. Unhas rapaces enterram-se — apesar do metal — na carne fofa.

João estremece: uma ratazana ali no corredor? Prestes a levantar-se, enxuga a mão no joelho.

?sua frente cochicha o moço com o vizinho, que deixa de assobiar. João não ergue o p? e mordendo o uivo, segue a corridinha da ratazana. Vir? em seu passeio tonto, enroscar-se no sapato e atarantada subir na perna?

No silêncio da sala escuta o alarido do peito. O guarda não tosse, o maníaco não assobia, apenas o crepitar das cascas, agora mais perto.

Violado o santuário, outra vez em pânico: uma gota de suor brinca-lhe na pálpebra. Perdido com as vozes sem respostas: Onde est?minha casa, minha mulher onde est? E onde estão afinal os Natais de antanho?

Luta com a imagem na tela, repete em voz baixa a legenda. Surgem das cadeiras vazias as filhas, tão pálidas, meu Deus, camisolinha em farrapos, descalças, a vagar gementes no deserto. Chorosa, indaga a menor, sem v?lo na penumbra: Onde foi papai? Que fim o levou?

Por mais aflito, não pode sair — ainda não, h?que esperar a passagem do Natal. Ficar?at?a explosão da última bomba. Tudo menos o quarto do hotel, medroso de certa gaveta, entre as meias sem pares o brilho da navalha…

Ali no cineminha pode esconder-se de si mesmo. Rei da terra, que foi feito de quem ele era? Sem mover a cabeça, relanceia o olho no corredor: as dores do mundo trazidas no focinho úmido da rata piolhenta.

Espavorido, o p?plantado nas cascas de amendoim — a ratazana que belisca a barra da calça?

L?fora os sinos, buzinas, gritos de bêbados.

— Outro de menos — resmunga João. — Deste eu estou livre.

Passada a hora pior, eis que um homem está salvo daquele Natal. Outro não haver antes de um ano inteiro.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 26 de maio de 2021

UM SÁBIO (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

UM SÁBIO

Coelho Neto

 

 

Foi em meados de março de 1883, numa triste, lutuosa noite de quaresma, que cheguei a São Paulo.

 

As ruas estavam apinhadas de povo que esperava, com ânsia devota, a passagem de uma procissão. A espaços, dobravam sinos plangentes e mulheres, sob negros biocos, passavam à pressa, surdamente, como sombras que desusassem.

 

O carro, depois de fazer grandes voltas lentas, deixou-me à porta do Hotel da Boa Vista, na esquina da ladeira do Porto Geral. Os hóspedes desse casarão taciturno eram, quase todos, estudantes e, escusado é dizer que me fizeram as honras da casa, não como os árabes costumam acolher nas tendas aqueles que os procuram, mas como os galos antigos dos poleiros recebem os frangos novos.

 

Não me demorei muito tempo no salão onde o agudo Érico, de mãos para as costas, os óculos brilhando no nariz afiado, ia e vinha criticando, com furor, aquela “miséria moral” — toda uma população abalada pelo fanatismo, a entupir as ruas, pondo no ar puro um fartum insuportável de suor e de banha. Não, o Estado devia intervir energicamente opondo-se àquelas cenas ridículas e impróprias de uma cidade civilizada. Outro acadêmico, esguio e louro, saiu em defesa da religião e do sem ritual, demonstrando a necessidade desse culto externo. Érico fitou o adversário e fulminou-o com um dito violento que provocou verdadeira conflagração.

 

Alguém, rompendo, então, o grupo, lembrou-se de pedir a minha opinião. “Sim, concordaram todos: que fale o calouro!...” Tremi e teria, certamente, de sofrer a pena ridícula que me impunham se o Érico não houvesse anunciado sisudamente:

 

— Lá vai a procissão, senhores. Vamos ver as pequenas.

 

E o bando de hereges abalou, deixando-me naquela sala imensa e obscura a ouvir os tristes sons da marcha fúnebre que lá ia. Recolhi ao meu quarto com a minha saudade.

 

No dia seguinte, cedo, Érico, que era meu vizinho, bateu à minha porta, chamando-me:

 

— Ó amigo, é sol nado; venha contemplar o grande Buda ebúrneo!

 

Não compreendi àquelas palavras misteriosas, mas saí e Érico, muito grave, levou-me pelo corredor, em silêncio, até à sala. Ali, fazendo-me chegar a uma das janelas, disse, mostrando-me a casa fronteira:

 

— Vê você esse pardieiro fechado? é o templo de Buda, o grande Sabedor, o Sete Chaves, o Homo Sapiens. O vulgo ignaro chama-lhe Justino, o conselheiro Justino. Celibatário e civilista, esse homem conhece todas as leis, menos as naturais — é assim que detesta a mulher e o vinho, a música e as flores, a retórica e a salada de pepinos. Vive ali com os livros como São Jerônimo vivia em Belém. E, fitando-me com pequeninos olhos, agudos estiletes: Conheces São Jerônimo? Pensas, talvez, que é o marido de Santa Bárbara, por que aparecem sempre juntos nas invocações? Não, criatura serôdia, essa aliança é iníqua — o santo nunca quis saber desse sexo comprometedor e, se escreveu à Paula, não passou disso. Mas deixemos as divagações. Olha, espera o Buda e, se tens relógio, acerta-o pela sua saída; nove e meia, nem mais, nem menos um segundo.

 

Efetivamente eu olhava quando vi sair da casa indicada um homem amarelo, magro, seco e rijo, de preto; os mesmos óculos que, de longe, lhe escaveiravam o rosto como duas órbitas fundas e vazias, eram escuros.

 

Grave, sem olhar para o nosso lado, seguiu com um bamboleio de corvo, dobrou a esquina e lá foi.

 

— Viste? pois, meu amigo, se anotas a tua vida, registra no teu diário este grande acontecimento. Esse homem sombrio, que parece um inquisidor, é o grande, o incomparável Justino, mais sábio que Hermes, mais virtuoso que Santo Antônio, mais seco da alma do que um arenque defumado. É lente; um dos mais respeitados da academia pelo seu grande saber. As suas preleções são verdadeiras derrubadas de bibliotecas. Se um novo cataclismo fizesse desaparecer o mundo e tudo que nele existe, esse homem, recolhido a uma arca, quando as águas baixassem, recomporia toda a ciência do Direito, desde as leis mais profundas até à mais reles chicana.

 

Érico, o fecundo Érico, que, pela sua grande força de generalização, não conseguira sair do curso anexo, onde era considerado o “ancestral maior”, deu uma volta pela sala, chuchando um dente, e tornou ponderoso, resumindo numa expressão, já usada por Ésquines com relação a Demóstenes, toda a sua admiração pelo civilista: “É um monstro!” Mas, vê tu, continuou com intimidade, espalmando a mão no meu ombro: é um rochedo, não produz uma linha, não tem um conceito, ninguém lhe atribui uma frase. E explicou: O homem é como a planta. Queres esterilizar uma árvore? aduba-a em demasia; cresce-lhe basta ramagem, multiplicam-se-lhe as folhas, mas as flores rareiam e quase nunca vem fruto.

 

O acúmulo de ciência mata as fontes da imaginação e da crítica. Quase que estou a dizer que a ignorância é preferível. Um homem como aquele vale por uma congregação e, que deixa? a memória rápida de uma vida, nada mais. Toda a gente afirma que tem um grande talento e eu afirmo como toda a gente, mas afirmo por afirmar, porque do talento desse homem vejo apenas os livros, às centenas, muito bem arrumados nas imensas estantes. É um carregador de ideias, um estivador de pensamentos: transporta-os dos compêndios, dos tratados, para as memórias dos alunos. Ou melhor: é uma alfândega, entende você? uma alfândega onde os autores estrangeiros descarregam as suas mercadorias e onde os jovens estudantes as vão buscar. É isso! Não, a ciência não é a esterilidade. Sábio não é simplesmente o que estuda, o que armazena, entesoura — é o que produz. O que é, em verdade, é um excelente método, isto sim, um método de vida e de estudo: honra e memória, ascetismo e rijeza. Érico deixou-me apressado ao ouvir tinir a campainha que anunciava o almoço, mas, a meio do caminho, voltou dizendo-me:

 

— Olha, é verdade — hoje não há aula, mas o homem, para não transigir com o hábito, lá vai a um passeio de uma hora, certamente fazendo uma preleção erudita, à meia voz, para os botões da sua sobrecasaca. Vem almoçar, são horas.

 

O Justino que eu vi nessa memorável manhã de quaresma, encontrei, dez anos depois, uma tarde, à porta de um ourives da Rua Quinze de Novembro — muito grave, de preto, óculos escuros, o cabelo muito empastado e luzente, a tez cor de velho marfim. Vendo-o, passou-me rapidamente pela imaginação esse tipo tão fielmente retratado pelo incomparável Queiroz na Correspondência de Fradique Mendes — o conselheiro Pacheco, o do imenso talento.

 

Não julguem, porém, os admiradores do grande mestre, em cujo rol me inscrevo, que eu seja capaz de medir o seu alto valor moral pelo estalão do Pacheco da sátira, não! O que eu analiso é o tipo físico, é aquele vulto severo e ríspido do homem de negro, metódico, reservado, taciturno.

 

O saber de Justino lampejava nas suas preleções e, se ele não deixou, em corpo perfeito, uma obra que leve o seu nome mais longe do que o levará a memória ingrata dos homens, aí estão as suas apostilas, que serviram a quase todos os que legislam para o país, como clarões passageiros do seu espírito, mas não sei porque, acho que o grande Pacheco devia ser como o finado Justino e, na assembleia, espetando o dedo para confundir com uma frase forte a oposição rumorosa, devia ter aquela mesma grave figura que dava, nas aulas, ao grande mestre o ar divino e ornitoide de um Thot venerável silvando ciência do alto de um poleiro, com o bico muito curvado e as negras azas encolhidas e imóveis. Ninguém o respeitou mais do que eu e, quando foi imposta a sua jubilação, provocada por um as somo irrefletido e injusto da mocidade, a minha pena, que sempre foi fiel aos moços, traiu-os nesse dia aliciando-se ao mestre, porque do seu lado, sobre estar a Razão, estava também a tradição do prestigio do velho convento.

 

E agora venho trazer veneradamente ao seu túmulo o meu preito de antigo aluno e de admirador do grande estudioso, do enérgico disciplinador e do homem exemplar que viveu moralmente fechado num programa rígido e seco, só comparável à velha casa em que acabou e que, no meio das construções modernas da cidade, parecia um protesto forte do passado, último remanescente ferrenho do arcaísmo, achatado entre as construções esbeltas do presente.

 

Como a casa era o homem, que Deus tenha.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 26 de maio de 2021

PERTENCER (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

PERTENCER

Clarice Lispector

 

 

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 25 de maio de 2021

UM VIZINHO ORIGINAL (CONTO DO FLUMINENSE rAUL POMPÉIA)

UM VIZINHO ORIGINAL

Raul Ponpéia

 

 

Eu tive um vizinho original.

Era magro, comprido, poeta e tísico, tudo em grande dose. Poeta da velha idolatria das brisas, tísico do terceiro grau.

Quem o visse, à rua, enfiado no velho croisé como num tubo, espirrando para baixo as mirradas canelas, para cima, um pescoço de garça, nodoso e interminável, frágil apoio da cabecinha viva e inquieta, projetada para a frente, com o longo cavaignac de poucos cabelos e os olhos fúlgidos arregalados, quem o encontrasse hesitaria em tomá-lo por um oficial de justiça, por causa do olhar extraordinário, e ver-se-ia reduzido a não formar opinião sobre aquele estranho transeunte, malvestido, delgado, célere, como se tivesse medo de chamar atenção, fugitivo, quase fantástico.

O nosso poeta tinha uma filha moça, digna filha! Alta como o pai, como ele magra, alvíssima, talvez tuberculosa, provavelmente poetisa. Representava os restos de uns amores do poeta que deram em casamento, de um casamento que dera em droga.

Vivia das esperanças fugazes de uma cadeira de professora pública que lhe prometiam, havia anos, e que lhe não davam nunca. Além disso, tocava piano.

Tocava piano não exprime bem. A donzela, repetia, várias vezes ao dia, repisava, remola, uma certa e determinada música, invariável, pertinaz, uma espécie de balada, lânguida, desafinada, medonha!

O piano era um memorável tacho, de não sei que fabricante, diabólico. Produzia sons novos, inauditos, fenomenais, que davam idéia de fabuloso armazém de ferros velhos em revolução, harmonias assombrosas, não sonhadas por Wagner. Por um efeito incrível de contágio, parece que a enfermidade dos donos se comunicara ao piano. Eu era capaz de jurar que aquele piano estava tísico, tão perfeitamente ético como o magro vizinho. Havia notas tossidas, havia escalas escarradas... Ninguém imagina!

Deste monte de horrores, o pianista tinha a habilidade de extrair a sua música, a tal peça eterna e desesperadora.

Era um prodígio desafinado de doçuras, enxame de moscas sonoras zumbindo na clave de fá sobre pieguices requebradas e sentidas da clave de sol, como sobre compotas. Via-se na música da filha, o gênio do pai. Estava presente todo o alfenim da magra sentimentalidade dos vates da antiga escola. Era uma melodia a pingar melado; a enjoar de doçura.

O poeta adorava essa música. Alimentava o seu estro na beterraba e na cana daquele açúcar. Fecundada por essa inspiração de confeitaria, o referido estro dava à luz estrofes idiliais, onde o leite e o mel corriam pelos regatos e as cordilheiras eram legítimos pães de açúcar alinhados como na Serra dos Órgãos.

Estas obras-primas de lirismo lacrimejante e apaixonado apareciam, como sonâmbulas, a bracejar desvairadas, pelas colunas ineditoriais das folhas.

Não se calcula o sacrifício que se impunha o trovador para exalar em público, por glória de seu nome, os suspiros de sua alma a seis vinténs a linha.

 

Um belo dia o piano calou-se. Mau agouro! E o poeta não saía à rua...

Quando já a vizinhança se dava parabéns, pelo feliz desaparecimento do tal piano e da tal música, eis que de novo ressurge a melodia!

Desta vez, custava-se a ouvir. As janelas fechadas da casinha do poeta cobriam a música com o abafador de uma espessa surdina.

Nunca me pareceram tão profundamente irritantes aqueles sons. Possuíam, então, uma ternura estranha, pungente, revoltante! As notas não cantavam mais nem suspiravam - estertoravam. Era como uma série arquejante de derradeiros suspiros, ao longe. Uma agonia longínqua e interminável.

Fazia raiva aquilo! Terrível conspiração daquela pianista com aquele piano, daquela música com aquelas vidraças descidas... para me darem cabo dos nervos naquele dia!

Felizmente, a agonia acabou. A música subiu, num crescendo de círio expirante e morreu de chofre, como se lhe houvessem faltado as cordas do piano.

..................................................................

No dia seguinte, me explicaram o significativo da casa fechada e do reaparecimento da música. Adoecera e morrera o poeta lírico. Adivinhando a morte, mandara a filha ao piano tocar a melodia querida.

E adormecera o grande sono, ninado por aquela música, a dulçurosa irmã do seu estro.

Lirismo e tísica, escreveu o médico na certidão de óbito.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 25 de maio de 2021

DONA JOAQUINA (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

DONA JOAQUINA

João do Rio

 

Aquele canto perto dos Telégrafos, às nove de uma noite de inverno... Em frente, os destroços da antiga Ucharia, embocando a rua Clapp, cheia de prédios grandes, com lanternas. Para baixo, os jardins sucessivos da praça até ao cais, sob o permanente espasmo de um estendal de lâmpadas elétricas - tantas que na poeira azul da luz os transeuntes se destacavam ao longe como vistos por um binóculo de teatro. Varrendo a praça, a sacudir árvores e rodopiar folhas secas, gargolejando pela rua da Assembléia, um vento álgido corria a sua tragédia sem causa. Era no centro da cidade. Estava ermo. Parecia ao menos ermo. E no abandono silencioso - único e seguido sintoma de vida urbana -, de instante a instante os inúmeros carros elétricos rolando como trovões a retinir sons metálicos de aviso...

Como achava prazer naquilo o Augusto Guimarães, tão fino, de tão lúcida inteligência? Havia dias, entretanto, conseguia arrastar-me, também a mim, por esses pontos equívocos de dramaticidade misteriosa.

- Compreenderás tu a minha nevrose? indagara dele. Estou que o sentimento é uma ilusão da civilização. A gente baixa tem apenas instintos. O sentimento da beleza, da bondade, do pudor, da honra - invenções nossas como os perfumes franceses e as modas da rua da Paz! Vê o doloroso estudo do mundo das mulheres perdidas na alta sociedade. Esse mundo é a esquina por onde passam todos os homens. Nada mais abjetamente artificial. É a antiga cocotte que feminiza, desfibra o homem contemporâneo, à força de momices, de luxos, de pretensões. Na pobre coitada que faz a rua à noite, o drama é a falta de alma, a falta de sentimento. Os homens conservam-se rudes e fortes. Eu desejaria encontrar uma alma nos manequins trágicos que acendem o desejo na forma noturna...

- És romântico.

- Não; sou doido.

Talvez eu também passasse por um período de loucura. O certo é que o acompanhava, sem preconceito, sem vergonha, por curiosidade. A vida normal, aliás, a vida dos ônibus e dos transeuntes, passava sem nos ver. A outra, a das esquinas de má fama, nem dos carros e dos pedrestes era vista nem por acaso os via. Augusto estudava. Pobre Augusto! Ficávamos horas a ver repetidas as mesmas cenas de luxúria animal e de sordidez. Os homens, marçanos, soldados, discutindo as moedas. As mulheres feias, sujas, maquinais. Nem por parte deles nem por parte delas havia o mais leve esboço de carícia - uns retendo o dinheiro, as outras já sem alma senão para sentir o desejo de não morrer de fome.

- Naquela noite, aparecera, entretanto, uma criatura de destaque no meio. Era velha. Tinha a face severa na queda das pelancas; curvava como se fosse muito idosa; caminhava com um andar de avó impertinente. E usava pelerine, sombrinha, mantilha de rendas sobre os cabelos grisalhos. Atroz! Se fosse uma pobre ninfomaníaca talvez causasse piedade; se estivesse como as outras a morrer de fome, dar-lhe-ia uma esmola. Mas não. Era hostil e comercial. Os marçanos em camisa e lenço de cor, que se aproximaram e discutiram somas, eram repelidos ou afastavam-se com medo. Alguns nem se chegavam. A velha demorou pouco. Tomou logo um transway.

Chamei a atenção de Augusto.

- Quem é aquela velha? indagou o psicólogo, a uma portuguesa magra e amarela, que passeava em chinelas, com um galho de arruda atrás da orelha.

- Não vês logo que está muito triques pra ser da zona?

- Dónde será então?

- É com certeza das sérias que fazem o Rocio. Dá-me a mascote, anda...

Melhor e mais digno é sempre não ter repugnâncias pelas misérias humanas. Nada mais relativo que a ignorância. Demos o que a criatura pedia. E no outro dia era eu a convidar Augusto para vermos as pobres mulheres da praça Tiradentes.

Realmente. Aquilo que nas esquinas das ruas próximas do cais passa como lepra, tomava no Rocio proporções de pornéia num quartel. Dizem que outros trechos urbanos resistem à civilização normalizadora, mantendo, apesar de tudo, a personalidade. Estávamos num ponto de movimento extraordinário, com a iluminação escandalosa dos teatros; por todos os lados, o turbilhão de conduções correndo, buzinando, rolando entre a multidão densa. E, entretanto, a praça mantinha as suas horrendas tradições. Com o acender dos reverberos e o abrir de chofre dos arcos-voltaicos era a aparição das primeiras figuras. Algumas ficavam até pelas duas da madrugada - andando. De preferência o lado do ministério, à frente da travessa Leopo1dina, as aléias do jardim separadas da rua apenas por um canteiro. Todas se saudavam, contavam pequenas intimidades.

- Boa noite.

- A sra. passou melhor?

- Qual! A constipação não me deixa.

- É do tempo...

Comportavam-se austeramente. Eram todas mais ou menos velhas, mas penteadas, calçadas, de colete, a blusa presa por um cinto, a saia preta. Caminhavam como quem vai a um determinado lugar. Paravam como quem espera o bonde. À aproximação de um indivíduo, punham-se em guarda, secas, impondo condições. Quando acediam, seguiam disfarçadamente. O desolador era, além do nivelamento daquele comércio, os mesmos aspectos de insensibilidade e de velhice. Certo, estavam acima das outras em modos e em roupas. Mas impunham mais o nojo pela falta de coração. E eram velhas. Oh! como eram velhas! Havia faces encarquilhadas com tinta; cabelos pretos e dentaduras postiças guarnecendo perfis chupados; dorsos que, apesar do espartilho, abalavam; colos que se cavavam em reentrâncias espaçadas. A tentativa primitiva dos artifícios aumentava a feiúra venerável. Nem um olhar ardente, nem uma graça. A velhice patente e desoladora.

A mulher que víramos em frente aos Telégrafos e de novo encontrávamos ali, era de todas a mais atroz - porque antipática. Descobrimo-la de novo num domingo. Nesses dias, o jardim e as calçadas ficam cheios de homens do povo endomingados. Na poeira, entre as árvores, no som das músicas vindas dos estabelecimentos de diversão, na própria irradiação da luz parece vibrar o instinto dos brutos soltos. As mulheres paradas lembram velhas aranhas à espreita. E os homens, de comum simples e tímidos pela ausência de convívio feminino, nesses dias aos bandos criam coragem e transformam a falta de ousadia em grosseria, em brutalidade, no desejo de amesquinhar, de ferir. São trabalhadores braçais, carroceiros, operários de jornal, e d'alma parecem crianças grandes. Dão gargalhadas, lançam dichotes, fazem propostas alvarmente, chegam ao encontrão, ao murro. Só cada um deles teria medo de se aproximar. Juntos criam como que uma coragem vingadora. E há sempre em cada grupo um mais esperto, que diz piadas aplaudidas...

O incorrigível Augusto Guimarães dizia:

- Estamos a ver um aspecto do instinto que os simples transeuntes não verão nunca! As angústias, as covardias dos brutos diante das mulheres... Dize-me se há aqui Amor, mesmo no sentido grego. Há ódio no apetite!

Nesse momento passávamos pela porta que fica em frente ao ministério. Estava lá a velha. Mas numa atitude trágica. Sobre ela caíra em verdadeira montaria um troço de marçanos encervejados. Choviam chufas. E ela, no cerco, esperava firme, o beiço trêmulo, o cabelo grisalho escapando-se da mantilha, a capa já de revés.

- Cachorros! Cachorros!

- Eh, velha... Vem cá...

- Canalhas!

- Ó Zé agüenta a velha aí...

No cruzar das piadas, quando um dos tipos já ia agarrá-la, a velha teve uma inspiração:

- Espera que eu chamo a polícia...

Foi como um golpe. Ela devia conhecê-los.

Não eram rufiões ou soldados que a lembrança da policia excita. Eram bem simples trabalhadores, com uma gota mais de cerveja pelo domingo de descanso. Logo romperam o grupo. À solidariedade de ataque à velha fazia-se desencontrado terror da cadeia. Foram uns para o centro do jardim, disfarçando, desceram outros a calçada, reuniu-se o resto pelas aléias.

A mulher estacou um instante, respirando, concertou os cabelos sujos. E seguiu.

Devo dizer que nem por momentos tive um vislumbre de dó pela criatura repugnante. Não seria eu a defendê-la. Quase ri - enquanto os marçanos a espicaçavam, porque nunca uma criatura me dera impressão tão seca de prostituição hostil. Sim, hostil.

Daí talvez a minha curiosidade, a minha quase obsessão. Espiava-a de longe, policialmente. Ela era mais dura ainda que as companheiras de serviço voluntário. Aparecia regularmente às oito, mercadejava a pelancaria com o ar irritado dos negociantes que nunca prosperaram, e retirava pela madrugada. Todas as noites! Que segredo sórdido acultava aquela voracidade crapulosa? Que drama esconderia a carcaça fatigada da velha?

Augusto Guimarães ainda mais me interessou dizendo-me:

- O curioso é que essas velhas são as envergonhadas do vício...

- Como?

- Salvo cinco ou seis, todas as outras têm ocupação, trabalho, família. Andam por aqui para ajudar ocultamente as despesas...

De Augusto Guimarães era natural admitir as mais extravagantes observações. Já me habituara de resto a hipóteses infames sem pestanejar, sem mesmo lhes compreender o alcance. Essa idéia, porém, impressionou-me. Assim, certa noite, quase à uma da madrugada, vinha eu de cear num clube de jogo, quando deparei na calçada deserta com a velha atroz. Aranha de horror, esperaria ainda alguém? De fato. No jardim estava um rapaz que a olhava. Grosseiro. Enfardelado numa roupa que parecia não chegar e era larga demais ao mesmo tempo. Mas dezoito anos ardentes, os olhos grandes, a face corada. Parei atônito. Podia ser neto da velha. Naquela mocidade não havia vestígios de sentimento de beleza ou pelo menos de respeito aos cabelos brancos? E a anciã? Tratá-lo-ia como aos outros ou teria desejo? Ele descia o jardim e ela aproximava-se do extremo que fica em frente à Companhia Telefônica. Mas, ao chegar aí, a velha deu de cara com um velho respeitável - sobrecasaca, chapéu-chile, três embrulhos, guarda-chuva. O velho exclamou:

- Por aqui, a estas horas, D. Joaquina?

- Boa noite, sr. Crescêncio. Venho da casa de D. Fortunata, lá na rua dos Andradas. Vou tomar o meu bonde...

Não era possível ouvir o que diziam. Falaram baixo. O adolescente parara com a esperança de que fosse curta a palestra. Foi. O velho despediu-se. Ouvi distintamente D. Joaquina dizer:

- Lembranças a D. Mariquinhas e às meninas. Qualquer dia apareço...

E ficou como à espera do elétrico. O velho seguiu sem voltar a cabeça. Então o rapaz, a que a demora dera coragem, aproximou-se, falou, discutiu e eu vi seguirem os dois rumo da rua Visconde do Rio Branco...

Fiquei num estado de nervos indizível. Ela era realmente uma criatura com relações de família! E corria as praças aos sessenta anos, talvez mais, e mercadejava-se a rapazolas do povo. Horrível pela fealdade, pela miséria da alma, pela hipocrisia, pelo vício - por tudo! Decididamente - na primeira que a visse havia de saber quem era!

O dia seguinte era sábado. Havia no S. Pedro récita de uma companhia lírica de segunda ordem. Tínhamos jantado juntos, eu e o Augusto Guimarães. Já, com o envenenamento causado pela velha, considerava as psicologias de Augusto simples degeneração pessoal. Estava resolvido a não o acompanhar mais. E a minha ironia fora inclemente durante o jantar. Assim, remontamos à nossa classe, de casaca, seguimos para o teatro pelo jardim, como transeuntes. Muita gente, vinda nos bondes que passavam do outro lado, cortava pelas alamedas. Era um contínuo passar de famílias, risos, boas de plumas, charpas de gaze, sedas de mantôs, perfumes... Íamos a sair em frente ao S. Pedro, quando ouvimos uma voz:

- Doutor Augusto...

Augusto voltou-se e naturalmente estendeu a mão.

- Como estás tu?

Era uma forte mulher morena, de cabelos negros, simpática. Augusto disse:

- Aqui tens a Cidália. Durante cinco anos, lavadeira na minha casa.

- Mas que relações!

- Este patrão!

- Depois deu para costureira do Arsenal e vem à noite para cá... Foi a minha informante inicial.

- Deixe de contar a vida dos outros.

- Também que fim levaste, Cidália?

- Doenças. Esta vida é um inferno.

Eu, nervoso com aquele encontro de Augusto, não os ouvia. Olhava na calçada a estranha velha, que falava com um rapazinho insignificante e bem vestido. A mulher atraía os rapazes! E aquele parecia um desses exploradores baratos tão comuns...

- Lá está a velha! fiz segurando o braço de Augusto.

- É D. Joaquina... interrompeu a Cidália, familiar.

- Conhece-a?

- Foi minha patroa quando eu cosia para o Arsenal.

- Hein?

- Coitada! Para dar vazão às costuras tem três empregadas e trabalha desde as seis da manhã!

- Como?

- É uma senhora muito direita. O marido dela foi negociante. A vida dá muita volta...

- Impossível! Vejo-a por aqui nesta miséria.

- Ela precisa tanto!

- Precisa tanto e não tem vergonha!

- Oh!

- Procura com cabelos brancos rapazes como o que lhe fala agora!

- Aquele é filho, sr. doutor.

Recuei. Olhei Augusto, que se modificara.

- Sim, é filho, continuou a Cidália. Ela tem dois - aquele e outro mais velho; de bigode. Por causa deles é que faz tudo. Também foi com mimo que os perdeu. Depois da morte do marido, só pensava nos filhos, queria os filhos estudantes, era tudo para os filhos. Os meninos cresceram mal-educados, com más companhias... o Sr. sabe como os rapazes se perdem. Ela dava tudo. Era só pedir por boca. Ah! se o Sr. visse aquela casa agora! Os rapazes não estudam nada, caíram na pândega. Acordam tarde. É ela quem lhes leva o chocolate à cama, quem os ajuda a vestir. E almoço na mesa, eles logo na rua e ela outra vez na máquina, até de noite. Foi uma vez quando voltava a pé, de levar costuras, sem dinheiro para o bonde, que encontrou aqui um sujeito atrevido. A fome é negra, e gostar de filho é pior que fome. D. Joaquina, coitada! viu que podia fazer mais algum dinheiro e voltou envergonhada. E, como o tempo habitua a tudo, agora tem este serão...

- E os filhos sabem?

- Como não? São lá tolos? Só não dizem porque não lhes convém. Cada vez mais vagabundos, mais exploradores. E ela gostando cada vez mais deles. A maior felicidade de D. Joaquina é quando eles atravessam o largo e vêm lhe pedir a bênção. Eles só vêm, os marotos, quando precisam de dinheiro...

Nós olhávamos o grupo. A velha tinha pela primeira vez a face alegre. Abria a bolsa, dava uma cédula ao tipinho. O tipinho esperava apenas por isso, porque logo estendeu a mão. E nós vimos o velho trapo da praça estender também a mão para que o rapaz a beijasse - tão transfigurada que parecia uma duquesa e parecia uma santa...

- Vamos embora, Augusto. Olha que perdemos o primeiro ato.

- Sim, perdemos, tartamudeou o incorrigível romântico.

Senti que desejava correr. Augusto parecia não querer andar. Passava por nós a velha pelancuda, infame, seca. E Cidália falava-lhe. Ainda as ouvimos.

- D. Joaquina! Já sei que está contente. O seu José veio vê-la...

- Coitado! Rebentou a botina e queria ir ao baile hoje. O meu filho! Cidália, uma pobre mãe não deve poupar sacrifícios, quando Deus lhe deu dois filhos seus amigos...

Tomei do braço de Augusto.

- Como nos enganamos!

- Nunca, murmurou o psicólogo, nunca nos enganamos! A vida é sempre muito mais atroz do que se imagina...

E entramos no teatro com a boca amarga, a tristeza inútil n'alma para discutir nos intervalos com senhoras e cavalheiros a voz do tenor e a plástica da prima-dona. Seria uma calamidade se todas as coisas fossem imprevistas...


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 23 de maio de 2021

O CARRO DA SEMANA SANTA (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

O CARRO DA SEMANA SANTA

João do Rio

 

Para nós, vindos de peregrinar pelas igrejas, a luz Auer que iluminava o café era talvez desagradável. Ficáramos todos lívidos, com uma face de orgia. Sob o teto baixo, entre as mesas de mármore lustroso, os criados arrastavam os passos já meio exaustos, e como a sala fosse forrada de espelhos, velhos espelhos que reproduziam apagadamente os perfis, estávamos como num aquário, esquisitos, espectadores de uma cena em que tomávamos parte, em que nos víamos a representar noutro mundo -um mundo sem data, sem tempo, sem fim. Algumas vezes dávamos com um gesto nosso a desaparecer de súbito esburado pela falta de aço num pedaço de espelho, e era desinteressante, desoladoramente desinteressante. De resto, a noite fora curiosa. Éramos um pequeno grupo: dois homens que riam de tudo e pagavam a despesa, um menino com ares de Antino viçoso, cujos princípios todos ignoravam, um poeta obrigado a ser espirituoso, dois jornalistas, eu. Havia também um homem chamado Honório. Tomavamos uma mistura repugnante de álcoois variados e tínhamos vindo cansados de dar encontrões na última igreja. A quinta-feira santa dissolvera na cidade a impalpável essência da luxúria e dos maus instintos. Quanta coisa de profano, de sacrílego, de horrível havíamos visto no redemoinhar da turba pela nave dos templos? Fúfias dos bairros sórdidos esmolando com a opa das irmandades para o Senhor morto, bandos de rapazes estabelecendo o arroxo junto do altar-mor para beliscar as nádegas das raparigas, adolescentes do comércio com os olhos injetados roçando-se silenciosamente entre as mulheres, e mulheres, muitas mulheres, raparigas vestidas de branco de azul, de cores vivas, matronas de luto fechado, pretas quase apagadas em panos negros, mestiças cheirando a éter floral, com gargalhadinhas agudas, o olhar ardente, todas como que picadas pela tarântula do desejo. A dolorosa cerimônia tinha qualquer coisa da orgíaco, como em geral as cerimônias religiosas deste fim de raça, em que os instintos inconfessáveis se escancaram ao atrito dos corpos, nos grandes agrupamentos. Na Candelária, junto a uma das colunas, o rapaz que lembrava Antino tivera a lembrança de se colocar entre uma cabrocha e um alentado sujeito «para verificar o escândalo» dizia ele. Em S. Francisco, o cidadão Honório batera no ombro de uma espanhola de mantilha, apontando-lhe a porta, para dizer-nos quando já ela se sumia: «Uma nevrosada gatuna de carteiras pela semana santa». E nós estávamos afinal, naquele café do Carceler, perto de duas igrejas a comentar a extravagância sensual da multidão.

– Fazer horrores junto ao corpo do Senhor morto! Mas deve ser uma delícia! paradoxou o jovem ambíguo.

– Pois está visto! gaguejou um dos desconhecidos que pagara.

Nós sorriamos, fartos de igrejas e de sacrilégios, e íamos sair, quando o cidadão Honório, que até aquele momento não falara, murmurou:

– Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante. Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de pornéia. As turbas estrebucham. Todas as vesânias anônimas, todas as hiperestesias ignoradas, as obsessões ocultas, as degenerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebolam, sobem na maré desse oceano. Há histéricas batendo nos peitos ao lado de carnações ardentes ao beliscão dos machos; há nevropatas místicas junto a invertidos em que os círios, os altares, os panos negros dos templos acendem o braseiro, o incêndio, o vulcão das paixões perversas. A semana santa! Tenho medo desta quinta-feira. Para quem conhece bem uma grande cidade, esse dia especial sem rumores, sem campainhas, é um tremendo dia em que os súcubos e os íncubosvoltam a viver. Até as ruas cheias de sombra parecem incitar ao crime, até o céu cheio de estrelas e de luar põe no corpo dos homens a ânsia vaga e sensual de um prazer que se espera.

Às palavras do cidadão Honório fizera-se em torno um espectante silêncio. O homem era pálido, de uma palidez bistrada. Estava vestido de preto e a sua mão exangue tinha no dedo mínimo como a quebra-lo um negro morcego de aço prendendo entre as garras o turvo brilho de uma opala. Só então reparamos que não ria e talvez assustasse almas menos céticas. Ele, de resto, após uma pausa, continuou sem que lho pedissem.

– Oh! sim! Tenho medo desta quinta-feira porque vocês vêm o vício aparente, o vício às claras, o vício que os jornais não noticiam apenas em atenção ao arcebispado. Eu vi o vício que se não vê e dá o calafrio do supremo horror, o vício misterioso e devorador rodando em torno das igrejas. Ha três anos acompanho-o. Ainda agora, ao sairmos da Candelária, lá estava ele na praça, fatal, definitivo, cruel, esperando…

Aquela confissão era a de um doente. O pequeno Antino abriu a polpa carnuda do lábio num sorriso de flor que desabrocha.

– Honório, que vício é esse? Fale. Morremos de curiosidade.

– O vício que ninguém vê? Conta lá.

– É o carro da semana santa.

– O carro? regougou um dos cavalheiros, é boa, é muito boa!

– Quem sabe? fez Honório pensativo. Depois, num repente: Há três anos, quinta-feira de endoenças, resolvi sair à noite. Não deveria ter saído. Neste dia a cidade visita igrejas. Além das igrejas só a impressionam as confeitarias com os seus balcões de bombons e os botequins. Saí, entretanto, assim de preto, com um fraque idêntico. Estive numa confeitaria, hesitei alguns minutos, e afinal, como estivesse no largo da Carioca, comecei a subir para a igreja da Ordem 3ª.

Ia inconscientemente quase. Ao deixar a confeitaria, tinha o vago desejo de ver se encontrava qualquer coisa de interessante, e estava ali, de repente, com vontade de uma perversão qualquer, com o instinto de qualquer coisa de bem baixo, de bem vil, de bem indigno, em que refocilar o meu temperamento à solta. Talvez as luzes trêmulas, aquela gente que subia devagar e descia depressa, o cheiro de suor, de perfume barato, de cosméticos e de cera, o roçar da canalha, o contato do meu corpo com outros corpos, peles de mãos ásperas umas, algumas macias, sugestionassem os nervos do meu pobre ser; talvez apenas fosse o fundo de lama com que fomos todos feitos… O fato é que ao voltar a rua da Carioca, eu era um homem que deseja, cuja percepção da luxúria é mais aguda, cujos nervos vibram mais. Uma saia repuxada, o relevo forte de uma anca, Os encontrões brutais dos marçanos em traje de ver a Deus, dois olhos mais acesos, faziam-me parar, retroceder, pensar em frases, morder o bigode, andar devagar em torno dos vendedores de doces e de refrescos, excitado pela frescura das peles, pelos trechos de carne ocultos, com as têmporas a suar frio e um calor nas faces, uma palpitação… A vontade do acanalhamento devorava-me, e eu ao mesmo tempo que queria satisfaze-la, queria oculta-la.

Ninguém, todavia, dera ainda por aquela nevrose, quando senti perfeitamente dois olhos pregados nos meus movimentos. Onde esses dois olhos? Eu os sentia, eu os sentia bem. Onde? Voltei-me, observei, desconfiado. A turba rumorejava na semi-penumbra. Não havia ali cara que me olhasse. Só, perto do chafariz, dando àquele canto uma nota anormal, uma velha berlindacom os stores arriados, parecia esperar alguém. Que berlinda, filhos! Lembrava um velho carro da Assistência. Era suja, era grande, era vasta, quase um leito. Na boléia o cocheiro parecia de pedra, e os stores de pano vermelho estavam imóveis. Estaria vazia? Esperava mesmo alguém? Dei uma volta indagadora em torno, e tive, oh! sim! tive a certeza de que ali dentro havia uma criatura, que ali vibrava estranhamente alguém, porque assim como sentira o calor, o fluido ardente de dois olhos fixos sobre mim, a descobrir-me a alma, sentia agora que a minha observação perturbava esses olhos. Quem estaria naquele carro? Quem? Um homem? Uma mulher? Quis falar ao cocheiro, mas, de repente, a berlinda pôs-se em movimento, desaparecendo pesadamente na rua do Uruguaiana.

Fiquei um instante trepidante, nervoso. Mas é um fato que quando as crises de pornéia da multidão agem sobre os nervos dos fracos, esses começam por desejar seguir alguém, seja quem for, com desejo flutuante, o seio indeciso e como que tocado também de uma curiosidade malsã pelo vício dos outros. O carro desaparecendo caiu-me uma vaga tristeza. Como seria agradável o que se fazia dentro, nas suas velhas almofadas! Larguei-me para a Candelária, que me pareceu um teatro tanta era a gente e tanta a luz elétrica, e estava lá roçando-me à turba, quando vi um conhecido. Saí então, à pressa, sem lhe dar tempo aos cumprimentos e às fatais perguntas; saí, mergulhei de novo nas ruas mal iluminadas, em que o luar punha uma suave pulverização de sonho. Iria a S. Bento, que tem um morro, árvores, mais sombras, mais recantos sugestivos, o Arsenal pegado e a vista do mar -o pai de todos os grandes vícios incomensuráveis…

Quando, porém, ia chegando ao Arsenal, lá dei com o carro outra vez, vasto como um quarto, com o cocheiro impassível e os stores vermelhos. A sombra cobria a calçada; no céu andava a lua num estendal de ouro pálido. Que esquisito peregrinar! que estranha peregrinação! Abriguei-me no desvão de uma porta. Passaram-se dez minutos assim, e era impossível apagar a ansiedade dos meus nervos para descobrir o enigma. A berlinda parecia tremer a capota empoeirada sob o sudário do luar. Depois, rodou devagar, como se tivesse uma alma e estivesse a disfarçar uma ação feia. Ao chegar ao escuro beco de Bragança parou, a portinhola abriu-se, uma sombra golfou, a então aí a berlinda precipitou a marcha. Deus! que seria aquilo? Um crime? Uma extravagância? A passeata de algum crente agonizando, que tivesse feito a promessa de arrastar a sua agonia aos pés de todos os corpos de Jesus expostos? Mas a sombra? Eu amo o horror das coisas inacreditáveis. Meti-me quase a correr pelo beco. No meu cérebro havia um escachoar de idéias…

Não encontrei a sombra, o vulto que eu vira sair do carro. E a procura-la, de rua em rua, com a face a queimar, fui até a igreja do Rosário. Como? Não sei. O sangue latejava-me nas têmporas, um suor viscoso molhava-me a palma das mãos. Quando dei por mim, tinha diante de mim a velha igreja, e ao canto esquerdo do templo, exatamente igual, tal qual, a velha berlinda. Concidência… Há desses encontros de gente que nunca se falará, em reuniões dominadas pelo vício. Não filosofei, porém. Fui ao cocheiro, querendo saber. -«Olá, camarada, desocupado?». -«Não», respondeu ele seco. -«Pago bem». -«Não posso, já disse». -«Tem alguém aí então?». O cocheiro cuspiu para o lado. «Ó seu, vá se pondo fora, se não quer que lhe aconteça alguma». Fiquei sem palavra e ele tocou.

Mas o desejo de conhecer a razão daquelas paradas à beira das igrejas era muito. Segui por onde vira perder-se a berlinda. «Ainda a vejo hoje!» pensava. E de fato, fui encontra-la quase ao fim da noite, em frente à catedral, do lado do largo do Paço. Não me aproximei. Era melhor esperar de longe. O trecho da rua ardia em luzes, tal qual como hoje. Vendedores ambulantes serviam com estrépito refrescos e doces. Gente de preto ia, vinha, passava, desdobrando pelas calçadas negras serpentes intérminas. Fuzileiros navais ébrios, malandros de calça bombacha, marinheiros, formavam grupos perigosos, fora da calçada. Criaturas ambíguas chispavam olhares desvairados de esguelha, no borborinho da populaça. De repente, o carro começou a mover-se, foi até a Rua Sete, depois embicou para a esquerda, para o lado dos jardins. Precipitei-me. A berlinda misteriosa acompanhava um marinheiro, forte homenzarrão hercúleo e jovem. Não havia dúvida. Era. Oh! se era! Ia devagar, devagar… O marinheiro, a princípio hesitava. Em seguida pareceu compreender a ínutilidade de fugir, relanceou os olhos a ver se o espreitavam, e seguiu bamboleando o passo -um passo que espera o chamado. Em frente ao Telégrafo parou, cortou pelo jardim, como se fosse para o ex-mercado. A berlinda rodou mais depressa pela primeira quebra dos jardins, e foi encontra-lo, já atravessando a rua para a rampa. Aí o rapagão estacou. O carro também. De dentro falaram, deviam ter falado, porque o marinheiro aproximou-se da portinhola que se abriu, tragando-o. Fiquei estarrecido, com tais palpitações que sentia no pescoço a artéria bater. Já a berlinda descia lentamente, como quem dá uma volta à espera de freguês. Perto de mim, meia dúzia de catraeiros olhavam com esse ar de mordente complacência que a canalha tem para receber as fraquezas da gente da alta. Compus a fisionomia, indaguei.

– É boa aquela do carro, hein?

– É danada! respondeu um dos tipos.

– O que admira é a resistência dela! exclamou outro.

– Como resistência?

– Pois v. s. não sabe? É a mulher do carro da semana santa. Já está muito conhecida. Vem sempre naquele carro e chama os que lhe agradam…

– E vocês vão?

– Rapaziada não respeita… ela paga bem.

– E são muitos?

– Ela só aparece na semana santa. Mas é até pela manhãzinha.

Recuei. Ali, naquele velho carro, rodando à beira das igrejas, uma Górgona de vício abria a fauce tragando as flores da ralé, gente que lhe servia de pasto a troco de dinheiro; naquele carro silencioso estorcia-se uma nevrose desesperada; naquela berlinda, misteriosamente a fúria de um súcubo, a ânsia de uma diabólica fundia nos braços um bando de homens com o desespero sensual despedaçador! Oh! o vício que se não vê! Essa criatura, essa criatura! E, há três anos, todas as quintas-feiras santas, acompanho a berlinda procurando vê-la, procurando encarar o polvo de luxúria, que lá dentro distende os tentáculos. Quem será? Uma senhora de sociedade? Uma perdida? Sei lá! Uma louca, uma desvairada, uma desgraçada, de que ninguém sabe o nome, de que ninguém talvez possa reconhecer o semblante, na rua, quando passa…».

– Delicioso caso! fez o efebo literato erguendo o corpo airoso, que recordava os pagens dos Valois.

Honório pôs-se de pé. Todos nós fizemos o mesmo em silêncio. A história impressionara, e principalmente a ele, ao Honório, ao próprio narrador. Talvez quisesse ainda rever a berlinda. O fato é que chegou à porta, consultou o relógio, e ia despedir-se, quando de súbito esticou a mão exangue, onde a opala lembrava o perturbado brilho de sua alma.

– Olhem, lá está ela, lá está… Era fatal… Ninguém sabe o que encerra. É o segredo das vítimas. Não. É o segredo dela apenas… Espera de certo alguém. Estão vendo? Naquele pedaço de sombra, junto à igreja… Ao lado há um beco. A vítima sairá do beco… Espantoso. Já ouvi dizer que é uma mulher com bexigas, outrora bela. Um dos convidados conseguiu, disse-me, ver-lhe a cara através do véu. Conta que é queimada. Mas não. Outros asseguram que tem pústulas. É a lenda. A opinião geral é mesmo a de ser uma formosa senhora de alta posição. Não! não é nada disso. É apenas o horrível vício que se não vê. A luxúria exasperada…

Nós olhávamos a sombra, nervosos, como à espera. Honório falava entrecortado, estava quase de cera, e parou subitamente de falar. Uma camisa branca surgira à portinhola da berlinda, parara. Era um adolescente. Vimos um gesto de negativa, vimos, apesar do gesto, a portinhola abrir-se, vimos o rapaz pôr o pé no estribo, ser como que puxado, e logo o ruído seco da portinhola.

– Mas é um crime! ganiu um dos senhores que pagavam as despesas.

– Quem sabe? fez frio o cidadão Honório.

Nesse momento as luminárias da igreja apagaram. Acabara a visitação ao Senhor morto. Havia a confusão natural nos fins de tais solenidades: gente apressada, senhoras nervosas por apanhar conduções, homens parados a ver se lhe agradavam as mulheres, gritos mais fortes de vendedores ambulantes, estalar de chicotes, carros, chamados, pragas. E, como a rua tivesse caído na sombra, já se sentia o luar da noite esplêndida iluminar os jardins intérminos, lá, mais longe.

O cidadão Honório despediu-se. O carro rodava devagar no meio da turba compacta. Era o mesmo carro de que ouvíramos a história, velho, sujo, vasto, lembrando a Assistência, o mesmo a levar o horror desesperado, a fúria da volúpia voraz. O pavoroso mistério do vício delirante.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 22 de maio de 2021

COMO SE INVENTARAM OS ALMANAQUES

COMO SE INVENtARAM OS ALMANAQUES

Machado de Assis

 

 

Come-te, bibliógrafo! Não tenho nada contigo. Nem contigo, curioso de histórias poentas. Sumam-se todos; o que vou contar interessa a outras pessoas menos especiais e muito menos aborrecidas. Vou dizer como se inventaram os almanaques.

Sabem que o Tempo é, desde que nasceu, um velho de barbas brancas. Os poetas não lhe dão outro nome: o velho Tempo. Ninguém o pintou de outra maneira. E como há quem tome liberdades com os velhos, uns batem-lhe na barriga (são os patuscos), outros chegam a desafiá-lo; outros lutam com ele, mas o diabo vence-os a todos; é de regra.

Entretanto, uma coisa é barba, outra é coração. As barbas podem ser velhas e os corações novos; e vice-versa: há corações velhos com barbas recentes. Não é regra, mas dá-se. Deu-se com o Tempo. Um dia o Tempo viu uma menina de quinze anos, bela como a tarde, risonha como a manhã, sossegada como a noite, um composto de graças raras e finas, e sentiu que alguma coisa lhe batia do lado esquerdo. Olhou para ela e as pancadas cresceram. Os olhos da menina, verdadeiros fogos, faziam arder os dele só com fitá-los.

- Que é isto? murmurou o velho.

E os beiços do Tempo entraram a tremer e o sangue andava mais depressa, como cavalo chicoteado, e todo ele era outro. Sentiu que era amor; mas olhou para o oceano, vasto espelho, e achou-se velho. Amaria aquela menina a um varão tão idoso? Deixou o mar, deixou a bela, e foi pensar na batalha de Salamina.

As batalhas velhas eram para ele como para nós os velhos sapatos. Que lhe importava Salamina? Repetiu-a de memória, e por desgraça dele, viu a mesma donzela entre os combatentes, ao lado de Temístocles. Dias depois trepou a um píncaro, o Chimborazo; desceu ao deserto de Sinai; morou no Sol, morou na Lua; em toda parte lhe aparecia a figura de bela menina de quinze anos. Afinal ousou ir ter com ela.

- Como te chamas, linda criatura?

- Esperança é o meu nome.

- Queres amar-me?

- Tu estás carregado de anos, respondeu ela; eu estou na flor deles. O casamento é impossível. Como te chamas?

- Não te importe o meu nome; basta saber que te posso dar todas as pérolas de Golconda...

- Adeus!

- Os diamantes de Ofir...

- Adeus!

- As rosas de Saarão...

- Adeus! adeus!

- As vinhas de Engaddi...

- Adeus! adeus! adeus! Tudo isso há de ser meu um dia; um dia breve ou longe, um dia...

Esperança fugiu. O Tempo ficou a olhar, calado, até que a perdeu de todo. Abriu a boca para amaldiçoá-la, mas as palavras que lhe saiam eram todas de benção; quis cuspir no lugar em que a donzela pousara os pés, mas não pôde impedir-se de beijá-lo.

Foi por essa ocasião que lhe acudiu a idéia do almanaque. Não se usavam almanaques. Vivia-se sem eles; negociava-se, adoecia-se, morria-se, sem se consultar tais livros. Conhecia-se a marcha do sol e da lua; contavam-se os meses e os anos; era, ao cabo, a mesma coisa; mas não ficava escrito, não se numeravam anos e semanas, não se nomeavam dias nem meses, nada; tudo ia correndo, como passarada que não deixa vestígios no ar.

- Se eu achar um modo de trazer presente aos olhos os dias e os meses, e o reproduzir todos os anos, para que ela veja palpavelmente ir-se-lhe a mocidade...

Raciocínio de velho, mas tudo se perdoa ao amor, ainda quando ele brota de ruínas. O Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão somente os dias, as semanas, os meses e os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a língua das cidades e dos campos em que caía. Assim toda a terra possuiu, no mesmo instante, os primeiros almanaques. Se muitos povos os não tem ainda hoje, se outros morreram sem os ler, é porque vieram depois dos acontecimentos que estou narrando. Naquela ocasião o dilúvio foi universal.

- Agora, sim, disse Esperança pegando no folheto que achou na horta; agora já me não engano nos dias das amigas. Irei jantar ou passar a noite com elas, marcando aqui nas folhas, com sinais de cor os dias escolhidos.

Todas tinham almanaques. Nem só elas, mas também as matronas, e os velhos e os rapazes, juizes, sacerdotes, comerciantes, governadores, fâmulos; era moda trazer o almanaque na algibeira. Um poeta compôs um poema atribuindo a invenção da obra às Estações, por ordem de seus pais, o Sol e a Lua; um astrônomo,. ao contrário, provou que os almanaques eram destroços de um astro onde desde a origem dos séculos estavam escritas as línguas faladas na terra e provavelmente nos outros planetas. A explicação dos teólogos foi outra. Um grande físico entendeu que os almanaques eram obra da própria terra, cuias palavras, acumuladas no ar, formaram-se em ordem, imprimiram-se no próprio ar, convertido em folhas de papeI, graças... Não continuou; tantas e tais eram as sentenças, que a de Esperança foi a mais aceita do povo.

- Eu creio que o almanaque é o almanaque, dizia ela rindo. Quando chegou o fim do ano, toda a gente, que trazia o almanaque com mil cuidados, para consultá-lo no ano seguinte, ficou espantada de ver cair à noite outra chuva de almanaques. Toda a terra amanheceu alastrada deles; eram os do ano novo. Guardaram naturalmente os velhos. Ano findo, outro almanaque; assim foram eles vindo, até que Esperança contou vinte e cinco anos, ou, como então se dizia, vinte e cinco almanaques.

Nunca os dias pareceram correr tão depressa. Voavam as semanas, com elas os meses, e, mal o ano começava, estava logo findo. Esse efeito entristeceu a terra. A própria Esperança, vendo que os dias passavam tão velozes, e não achando marido, pareceu desanimada; mas foi só um instante. Nesse mesmo instante apareceu-lhe o Tempo.

- Aqui estou, não deixes que te chegue a velhice... Ama-me...

Esperança respondeu-lhe com duas gaifonas, e deixou-se estar solteira. Há de vir o noivo, pensou ela.

Olhando-se ao espelho, viu que mui pouco mudara. Os vinte e cinco almanaques quase lhe não apagaram a frescura dos quinze. Era a mesma linda e jovem Esperança. O velho Tempo, cada vez mais afogueado em paixão, ia deixando cair os almanaques, ano por ano, até que ela chegou aos trinta e daí aos trinta e cinco.

Eram já vinte almanaques; toda a gente começava a odiá-los, menos Esperança, que era a mesma menina das quinze primaveras. Trinta almanaques, quarenta,. cinqüenta, sessenta, cem almanaques; velhices rápidas, mortes sobre mortes, recordações amargas e duras. A própria Esperança, indo ao espelho, descobriu um fio de cabelo branco e uma ruga.

- Uma ruga! uma só!

Outras vieram, à medida dos almanaques. Afinal a cabeça de Esperança ficou sendo um pico de neve, a cara um mapa de linhas. Só o coração era verde como acontecia ao Tempo; verdes ambos, eternamente verdes. Os almanaques iam sempre caindo. Um dia, o Tempo desceu a ver a bela Esperança; achou-a anciã, mas forte, com um perpétuo riso nos lábios.

- Ainda assim te amo, e te peço... disse ele.

Esperança abanou a cabeça; mas, logo depois, estendeu-lhe a mão.

- Vá lá, disse ela; ambos velhos, não será longo o consórcio.

- Pode ser indefinido.

- Como assim?

O velho Tempo pegou da noiva e foi com ela para um espaço azul e sem termos, onde a alma de um deu à alma de outro o beijo da eternidade. Toda a criação estremeceu deliciosamente. A verdura dos corações ficou ainda mais verde.

Esperança, daí em diante, colaborou nos almanaques. Cada ano, em cada almanaque, atava Esperança uma fita verde. Então a tristeza dos almanaques era assim alegrada por ela; e nunca o Tempo dobrou urna semana que a esposa não pusesse um mistério na semana seguinte. Deste modo todas elas foram passando, vazias ou cheias, mas sempre acenando com alguma coisa que enchia a alma dos homens de paciência e de vida.

Assim as semanas, assim os meses, assim os anos.

E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem. E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a oficina da vida.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 21 de maio de 2021

PORQUE NÃO SE MATAVA (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

PORQUE NÃO SE MATAVA

Lima Barreto

 

Esse meu amigo era o homem mais enigmático que conheci. Era a um tempo taciturno e expansivo, egoísta e generoso, bravo e covarde, trabalhador e vadio. Havia no seu temperamento uma desesperadora mistura de qualidades opostas e, na sua inteligência, um encontro curioso de lucidez e confusão, de agudeza e embotamento.

Nós nos dávamos desde muito tempo. Aí pelos doze anos, quando comecei a estudar os preparatórios, encontrei-o no colégio e fizemos relações. Gostei da sua fisionomia, da estranheza do seu caráter e mesmo ao descansarmos no recreio, após as aulas, a minha meninice contemplava maravilhada aquele seu longo olhar cismático, que se ia tão demoradamente pelas coisas e pelas pessoas.

Continuamos sempre juntos até à escola superior, onde andei conversando; e, aos poucos, fui verificando que as suas qualidades se acentuavam e os seus defeitos também.

Ele entendia maravilhosamente a mecânica, mas não havia jeito de estudar essas coisas de câmbio, de jogo de bolsa. Era assim: para umas coisas, muita penetração; para outras, incompreensão.

Formou-se, mas nunca fez uso da carta. Tinha um pequeno rendimento e sempre viveu dele, afastado dessa humilhante coisa que é a caça ao emprego.

Era sentimental, era emotivo; mas nunca lhe conheci amor. Isto eu consegui decifrar, e era fácil. A sua delicadeza e a sua timidez faziam a compartilha com outro, as coisas secretas de sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que havia de secreto e profundo na sua alma.

Há dias encontrei-o no chope, diante de uma alta pilha de rodelas de papelão, marcando com solenidade o número de copos bebidos.

Foi ali, no Adolfo, à Rua da Assembléia, onde aos poucos temos conseguido reunir uma roda de poetas, literatos, jornalistas, médicos, advogados, a viver na máxima harmonia, trocando idéias, conversando e bebendo sempre.

E uma casa por demais simpática, talvez a mais antiga no gênero, e que já conheceu duas gerações de poetas. Por ela, passaram o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga Duque, o B. Lopes, o Mário Pederneiras, o Lima Campos, o Malagutti e outros pintores que completavam essa brilhante sociedade de homens inteligentes.

Escura e oculta à vista da rua, é um ninho e também uma academia. Mais do que uma academia. São duas ou três. Somos tantos e de feições mentais tão diferentes, que bem formamos uma modesta miniatura do Silogeu.

Não se fazem discursos à entrada: bebe-se e joga-se bagatela, lá ao fundo, cercado de uma platéia ansiosa por ver o Amorim Júnior fazer sucessivos dezoitos.

Fui encontrá-lo lá, mas o meu amigo se havia afastado do ruidoso cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.

Pareceu-me triste e a nossa conversa não foi logo abundantemente sustentada. Estivemos alguns minutos calados, sorvendo aos goles a cerveja consoladora.

O gasto de copos aumentou e ele então falou com mais abundância e calor. Em princípio, tratamos de coisas gerais de arte e letras. Ele não é literato, mas gosta das letras, e as acompanha com carinho e atenção. Ao fim de digressões a tal respeito, ele me disse de repente:

— Sabes por que não me mato?

Não me espantei, porque tenho por hábito não me espantar com as coisas que se passam no chope. Disse-lhe muito naturalmente:

—Não.

— És contra o suicídio?

— Nem contra, nem a favor; aceito-o.

— Bem. Compreendes perfeitamente que não tenho mais motivo para viver. Estou sem destino, a minha vida não tem fim determinado. Não quero ser senador, não quero ser deputado, não quero ser nada. Não tenho ambições de riqueza, não tenho paixões nem desejos. A minha vida me aparece de uma inutilidade de trapo. Já descri de tudo, da arte, da religião e da ciência.

O Manuel serviu-nos mais dois chopes, com aquela delicadeza tão dele, e o meu amigo continuou:

— Tudo o que há na vida, o que lhe dá encanto, já não me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes, é coisa que sai sempre uma caceteação; não quero mulher, esposa, porque não quero ter filhos, continuar assim a longa cadeia de desgraças que herdei e está em mim em estado virtual para passar aos outros. Não quero viajar; enfada. Que hei de fazer?

Eu quis dar-lhe um conselho final, mas abstive-me, e respondi, em contestação:

— Matar-te.

— É isso que eu penso; mas...

A luz elétrica enfraqueceu um pouco e cri que uma nuvem lhe passava no olhar doce e tranqüilo.

— Não tens coragem? - perguntei eu.

— Um pouco; mas não é isso o que me afasta do fim natural da minha vida.

— Que é, então?

— E a falta de dinheiro!

—Como? Um revólver é barato.

— Eu me explico. Admito a piedade em mim, para os outros; mas não admito a piedade dos outros para mim. Compreendes bem que não vivo bem; o dinheiro que tenho é curto, mas dá para as minhas despesas, de forma que estou sempre com cobres curtos. Se eu ingerir aí qualquer droga, as autoridades vão dar com o meu cadáver miseravelmente privado de notas do Tesouro. Que comentários farão? Como vão explicar o meu suicídio? Por falta de dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha vida, ato de suprema justiça e profunda sinceridade, vai ser interpretado, através da piedade profissional dos jornais, como reles questão de dinheiro. Eu não quero isso...

Do fundo da sala, vinha a alegria dos jogadores de bagatela; mas aquele casquinar não diminuía em nada a exposição das palavras sinistras do meu amigo.

— Eu não quero isso - continuou ele. Quero que se de ao ato o seu justo valor e que nenhuma consideração subalterna lhe diminua a elevação.

— Mas escreve.

— Não sei escrever. A aversão que há na minha alma excede às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo o que de desespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na banalidade e as nuanças fugidias dos meus sentimentos não serão registradas. Eu queria mostrar a todos que fui traído; que me prometeram muito e nada me deram; que tudo isso é vão e sem sentido, estando no fundo dessas coisas pomposas, arte, ciência, religião, a impotência de todos nós diante de augusto mistério do mundo. Nada disso nos dá o sentido do nosso destino; nada disto nos dá uma regra exata de conduta, não nos leva à felicidade, nem tira as coisas hediondas da sociedade. Era isso...

— Mas vem cá: se tu morresses com dinheiro na algibeira, nem por tal...

— Há nisso uma causa: a causa da miséria ficaria arredada.

— Mas podia ser atribuído ao amor.

— Qual. Não recebo cartas de mulher, não namoro, não requesto mulher alguma; e não podiam, portanto, atribuir ao amor o meu desespero.

— Entretanto, a causa não viria à tona e o teu ato não seria aquilatado devidamente.

— De fato, é verdade; mas a causa-miséria não seria evidente. Queres saber de uma coisa? Uma vez, eu me dispus. Fiz uma transação, arranjei uns quinhentos mil-réis. Queria morrer em beleza; mandei fazer uma casaca; comprei camisas, etc. Quando contei o dinheiro, já era pouco. De outra, fiz o mesmo. Meti-me em uma grandeza e, ao amanhecer em casa, estava a níqueis.

— De forma que é ter dinheiro para matar-te, zás, tens vontade de divertir-te.

— Tem me acontecido isso; mas não julgues que estou prosando. Falo sério e franco.

Nós nos calamos um pouco, bebemos um pouco de cerveja, e depois eu observei:

— O teu modo de matar-te não é violento, é suave. Estás a afogar-te em cerveja e é pena que não tenhas quinhentos contos, porque nunca te matarias.

— Não. Quando o dinheiro acabasse, era fatal.

— Zás, para o necrotério na miséria; e então?

— E verdade... Continuava a viver.

Rimo-nos um pouco do encaminhamento que a nossa palestra tomava.

Pagamos a despesa, apertamos a mão ao Adolfo, dissemos duas pilhérias ao Quincas e saímos.

Na rua, os bondes passavam com estrépido; homens e mulheres se agitavam nas calçadas; carros e automóveis iam e vinham...

A vida continuava sem esmorecimentos, indiferente que houvesse tristes e alegres, felizes e desgraçados, aproveitando a todos eles para o seu drama e a sua complexidade.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 21 de maio de 2021

FERRABRAZ (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

FERRABRAZ

Humberto de Campos

 

O coronel Otaviano de Meireles, comandante de um batalhão da Guarda Nacional aquartelado em Niterói, era conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em especial, pela sua intransigência em questões de honra. Casado com uma das senhoras mais formosas do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que ninguém se atrevia, sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que tal fizesse, era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.

 

Foi por esse tempo, e quando mais se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que passou a residir na vizinha capital o jovem advogado Dr. Otacílio Fernandes, que não era coronel, nem major, nem capitão, nem tenente, mas fora, sempre, um dos mais famosos namoradores de Niterói. Proprietário do prédio em que o coronel residia, não foi necessário grande esforço da parte do moço para travar amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão sincera, que, uma semana depois, era o Dr. Otacílio convidado para um almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso militar.

 

Chegado o dia, lá estava, na praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável, dissimulando com um sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu o dono da casa ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à sala, onde madame já o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como uma grande rosa, das espumas de neve do seu elegantíssimo "peignoir" de linho e renda.

 

— O Dr. Otacílio Fernandes — apresentou o coronel.

 

E ao recém-chegado:

 

— Minha esposa...

 

Minutos depois, sentados à mesa redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial, feliz, entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone tilintou. Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença, urgente, na estação das barcas, para ultimação de um negócio inadiável.

 

— Diabo! — exclamou o bravo militar. Tenho de ir, não há remédio!

 

E virando-se para o capitalista, enquanto desamarrava o guardanapo:

 

— Esteja à vontade, doutor. É questão de meia hora. Fique por aí; eu não demoro!

 

E para a esposa:

 

— Orminda, faze as honras da casa; eu venho já!

 

Mal o coronel tomou o bonde, duas taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente aquele encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a saudação, que, ao reentrar em casa, o coronel foi encontrar os dois no seu gabinete, num colóquio de excessiva intimidade. Apanhado em flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido. Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:

 

— Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!

 

Pálido, trêmulo, o advogado lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última hora da sua vida.

 

— Sim, senhor! — tornou o militar.

 

E abrandando a voz:

 

— Você não tem medo de uma congestão?


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 20 de maio de 2021

RENDAS E FITAS (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

RENDAS E FITAS

Aluísio Azevedo

 

 

I

- Olá! exclamei eu, vendo saltar do bonde de Botafogo o meu querido Ernesto Branco. Bons ares te tragam! Como vais tu? Mas que diabo de cara tens agora? Estás zangado?

- Ora! Não me fales! Não estou zangado; estou aborrecido. Aborrecido com esta vida infernal do Rio de Janeiro; aborrecido com este calor selvagem, este calor inimigo da civilização e do trabalho; e aborrecido principalmente com as nossas patrícias, esses monstros de olhos sedutores e sorrisos virginais!

- Ó diabo! a cousa agora é mais grave... Dar-se-á o caso de que o meu espirituoso amigo levasse tábua de alguma moça com quem estivesse para casar?...

- Hein?! Casar?! Eu?! Com quem?!

- Oh! com qualquer moça do teu gosto...

- Por quê ! Que mal fiz eu, para me condenarem assim, sem apelação nem agravo!... Casar! Casar com uma dessas criaturinhas que neste instante acabam de encher-me de indignação e de vergonha? Casar com uma dessas moças ignorantezinhas, pretensiosas e malcriadas? Oh, nunca! Nunca! Nunca! Antes ser cão de cego; antes ser ministro do Sr. Floriano; antes ser leitor do Fígaro!

- Mas, que te fizeram, Santo Deus! para te ver neste estado de cólera contra o sexo mimoso?... para te ver assim terrível e feroz contra essas belas flores com alma, que são o encanto da nossa vida, o perfume do nosso lar, a segurança da nossa felicidade?...

- Que me fizeram? perguntas tu! Oh! dir-se-ia que nunca viajaste em um bonde em que vão patrícias nossas! Dir-se-ia que nunca cedeste o lugar a uma senhora, para vê-la aceitar a tua fineza, sem voltar sequer o rosto, quanto mais dizer "Muito obrigada!"

- Acanhamento!...

- Qual acanhamento! São acanhadas para cumprir com tão insignificante preceito de boa educação, mas não lhes falta desembaraço para protestar com uma careta, e às vezes até com um muxoxo, quando lhes chega a vez de se incomodarem para te dar passagem!

E o modo afrontoso e impertinente com que elas observam e esmerilham, medindo da cabeça aos pés, as pessoas que entram no bonde, será também acanhamento ...

- Curiosidade de mulher...

- De mulher mal-educada! E' muito feio que uma moça, pressuposta inocente e virginal, ou mesmo uma senhora já casada ou viúva, não possam ver entrar uma cocote no bonde, sem se voltarem de nariz torcido, sem a medirem com desprezo e azedume, arriscando-se a ouvirem uma merecida resposta! E não é preciso que seja uma de chapéu tapageur e vestido de cor criard a pessoa que entre no bonde, para ser analisada deste modo; basta ser uma estrangeira, uma estrangeira que não se vista pelo detestável gosto com que se vestem as nossas damas; quer dizer que não venha coberta de seda e veludo por um dia de sol ardente e não traga em cima de si todas as cores do céu e do inferno!

- Tu exageras!

- Não exagero tal! Agora mesmo acabo de presenciar revoltado uma dessas cenas. Estava uma família ocupando o banco em frente do meu: uma velha, uma senhora de meia idade, e duas moças de quinze a vinte anos; todas as quatro tudo que há de mais tipo brasileiro e de mais ridículo.

O grupo formava uma orgia de cores, de flores e de fitas; uma loucura de sedas, de lãs, de veludo, e de algodão.

Entra um casal americano do norte. O homem de calça e paletó de brim, chapéu de palha com toalha em volta, e guarda-sol de pano claro, a mulher com um singelo vestido de linho cor de palha, enfeitado de rendas da mesma cor, e na cabeça um abat-jour de linho branco, preso despretensiosamente ao pescoço por duas pontas largas de cadarço.

Pois, meu amigo, não imaginas o rebuliço que se produziu naquela família com a chegada deste casal, que aliás, nada mais fez do que entrar, assentar-se e pôr-se a conversar em voz baixa, natural e discretamente.

Oito olhos arregalados cravaram-se imediatamente sobre a americana com tal insistência que a nobre senhora começou a examinar-se, e perguntou depois ao seu cavalheiro se ela tinha em si alguma cousa que chamasse a atenção.

"Deus te livre!" disse a velha, com arrelia, dando um estalo de língua e torcendo enojada a cabeça, como para não continuar a ver um espetáculo indecoroso.

"Iche! desdenhou por sua vez a quarentona. Esta gente não tem vergonha de sair assim à rua?... Parecem mascarados, Deus me perdoe!"

E as duas moças começaram, de lenço contra a boca, a emitir consecutivas gaitadas de riso, e a remexerem-se no banco, e a cochicharem tão impertinentemente, que os americanos voltavam a cabeça de vez em quando, patenteando na fisionomia o mais completo ar de intriga e de assombro.

Não ouvi o que eles disseram lá entre si; vi, apenas, o desdenhoso movimento dos seus lábios e senti venetas de estrangular aquela família brasileira, tão tola, tão ridícula, tão chinfrim!

E ainda me vens falar em casamento! Mas a idéia que me dá ânimo para continuar a viver; a única razão por que não me atiro ao mar; o meu único momento de felicidade, é quando me lembro de que aqui no Rio de Janeiro, onde todos são mais ou menos casados, eu me conservo solteiro como no dia em que nasci! E, juro-te que não é da febre-amarela, que tenho medo, nem das bexigas, nem do beribéri, nem da legalidade do Sr. Floriano, nem da queixada do Sr. Aristides, é daquilo que ali vem. - Olha!

E Ernesto apontou para um grupo de três mocinhas que se aproximavam de nós, muito risonhas, acompanhadas pela mamãe; e deitou a fugir como um louco em direção contrária, a gritar.

- Livra! Livra!

E foi-se.

Combate, 15 de março de 1892.

 

II

 

Não, Ernesto, vem cá. Senta-te aqui; conversemos tranqüilamente. Não comeces a gesticular como um louco e a dardejar paradoxos a torto e a direito! Ouve-me quieto e responde com bons modos, se não me queres ver tomar o chapéu e desaparecer pela porta da rua.

- Vamos lá!

- Foste ontem injusto e severo demais com as nossas patrícias. Concordo que nem todas as brasileiras mereçam a minha defesa; sei que há por aí muita mocinha impertinente e muita senhora insuportável, mas ninguém pode negar que a brasileira em geral é meiga, virtuosa e asseada,

- Não foi disso que tratei!

- Ouve. Tu conheces bem o tipo da inglesa, com a sua barriga de tábua, com o seu cabelinho louro grudado à cabeça e enrolado pobremente sobre a nuca; com a sua cintura de lâmina, muito estreita vista de lado, muito larga vista de frente; com os seus pés espalmados e longos, como uma canoa de pescador emborcada sobre a praia; conheces a famosa Miss, tão celebrada pelo lápis de Gavarni; essa misteriosa criatura de olhos celestiais, que em viagem se parece com um guarda-chuva inglês, metido cuidadosamente dentro da capa, e que em casa, no interior, lembra um vaporoso e fino caramelo encimado por uma trouxa de fios de ovos. Conheces a mulher inglesa?.

- Se conheço! Theóphile Gautier, o meridional romântico, o beduíno francês, que viveu para adorar as mulheres, e que amava e cultivava os gatos, por não poder fazer o mesmo com a pantera (que, depois da mulher, é o bicho mais feroz de criação), Theóphile Gautier dizia e repetia que as inglesas são as mulheres mais formosas do mundo!

- É exato. O que não impede que os outros franceses, ao vê-las atravessar o boulevard, tenham, sempre para ela as pilhérias mais terríveis e os ditos mais ridículos. Mas, passemos adiante: conheces igualmente a espanhola?

- Oh! Pergunta-me antes se conheço Byronl Não conhecer o tipo da espanhola!... Dançante seguidilha de amor que se transforma em mulher! Oh! se conheço! Mantilha, leque, castanholas e touros! Sou louco por ela! Vamos adiante!

- Pois, meu amigo, fica sabendo que as espanholas têm cousas detestáveis nos seus costumes. Â mesa, por exemplo: não há espanhola, por mais bem educada, que não leve a faca à boca, como se fosse um saltimbanco engulidor de espadas; e todas elas lambem os dedos; tiram com a língua o que fica de comida entre os dentes, e...

- É falso! É mentira! Não prossigas, ó caluniador! que te estrangulo aqui mesmo!

- E a italiana?...

- Oh! oh! O velho amor cavalheiresco! Beijos e punhaladas. Lábios grossos e quentes; punhais frios e penetrantes. Um conde assassinado ao luar, debaixo de uma ponte; a condessa veneziana fugindo com um tenor de olhos ardentes!...

Conheço! conheço! mas tudo isso cheira-me um pouco a macarrão e realejo!

- Quando não cheira pior... porque, meu caro, debaixo de todo aquele romanesco lírico e daqueles transportes de paixão, com punhal, cabelos soltos e dentes cerrados, mal sabes o que vai! A italiana em geral é boa para ser vista de longe. Só tem efeitos cenográficos. Não te aproximes muito dela, se queres conservar a bela impressão artística que recebeste!

- E da francesa? que me dizes tu da encantadora francesa?...

- Digo-te que é a mais vulgar de todas as mulheres... a que menos tem a linha original...

- Socorro! Socorro! Este homem acaba de enlouquecer!

- Não! Não enlouqueci! Não confundas a francesa com a parisiense. Fala-me desta, e eu te direi que a parisiense é a mulher mais feia e mais sedutora entre todas as filhas de Eva; eu te direi que só ela tem o segredo do amor que ri, e canta, e brinca; o segredo da amabilidade que satiriza e confunde como um piparote na ponta do nariz. Não é uma mulher, é uma bonita fantasia feita de cançonetas, aljôfares de champagne e rendas valencianas!

- Seduzem-no mais o espírito do que os sentidos. E' a primeira mulher do mundo.

- Não! A primeira mulher do mundo, meu querido Ernesto, é a brasileira.

- E por que não a portuguesa?

- Porque a portuguesa aos trinta anos, idade da grande afeição da beleza feminil, em geral começa a barbar e a criar umas singulares bochechinhas ao lado do queixo, que lhe tiram todo o encanto e lhe dão ares de abadessa.

- E a brasileira então? A brasileira aos trinta anos está coberta de sardas; já se não aperta; já se não penteia; anda em casa com o roupão desabotoado sobre o ventre; arrasta os chinelos, e, às vezes, fuma até cachimbo!

- Não é verdade! Ou tens consciência de que estás mentindo ou não sei que diabo de brasileiras conheces tu! Repito: a brasileira é a primeira mulher do mundo. Sela se reúne tudo o que as outras possuem de melhor; ela tem a graça e o donaire da espanhola; tem o calor e o arrebatamento da italiana; tem o coquetismo da francesa, tem o asseio e a virtude das inglesas e o talento doméstico da alemã.

- Só lhe faltam, para ser completa, as barbas à portuguesa!

- Mas tem uma cousa ideal, que nenhuma outra possui como ela, e é a meiguice, o carinho profundamente sincero, a dedicação sem limites pela pessoa amada. Só a brasileira, só ela no mundo, tem o segredo de dar cafunés e de fazer certos quitutes e certos doces que nos arrebatam! Só ela...

Mas Ernesto não me deixou prosseguir, ergueu-se indignado e exclamou, enterrando o chapéu na cabeça:

- Ora, vai-te para o diabo! Estás apaixonado por alguma pasteleira! E eu a dar ouvidos a este comilão!

E foi-se.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 18 de maio de 2021

LISETTA (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

LISETTA

Alcântara Machado

 

Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tão engraçadinho.

Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz.

– Olha o ursinho que lindo, mamãe!

– Stai zitta!

A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importância.

Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras.

– As patas também mexem, mamã. Olha lá!

– Stai ferma!

Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta mil-réis na Casa São Nicolau.

– Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa?

– Ah!

– Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe.

A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.

Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha:

– In casa me lo pagherai!

E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles.

Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.

– Hã! Hã! Hã! Hã! Eu que…ro o ur…so! O ur…so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que…ro o… o… o… Hã! Hã!

– Stai ferina o ti amazzo, parola d’onore!

– Um pou…qui…nho só! Hã! E… hã! E… hã! Um pou…qui…

– Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!

Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez.

O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo.

– Non piangere più adesso!

Impossível.

O urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.

Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem!

– Olha à direita!

Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.

A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.

Logo na porta um safanão. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.

O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.

Mas o Ugo chegou da oficina.

– Você assim machuca a menina, mamãe! Cotadinha dela!

Também Lisetta já não agüentava mais.

– Toma pra você. Mas não escache.

Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.

Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo tomá-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada:

– Ele é meu! O Ugo me deu!

Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 17 de maio de 2021

UNS BRAÇOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UNS BRAÇOS

Machado de Assis

Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.

- Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!

- Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!

D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.

Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.

Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, - ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória.

- Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.

 Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.

- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais.

Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.

Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.

- Não tenho nada.

- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: - vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.

Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.

 Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

- Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.

 Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.

 D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.

 A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.

 Um domingo, - nunca ele esqueceu esse domingo, - estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal.

 Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.

 É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal.

 Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.

 D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. Uma criança! disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.

- Uma criança!

E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, - dormir e talvez sonhar.

Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, - ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio.

 Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:

- Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.

- Sim, senhor. A Sra. D. Severina...

- Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela.

Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana:

- E foi um sonho! um simples sonho!


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 17 de maio de 2021

A OUTRA NOITE (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

A OUTRA NOITE

Rubem Braga

 

Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.

Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou o sinal fechado para voltar-se para mim:

-O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar lá em cima?

Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.

-Mas, que coisa...

Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa.

-Ora, sim senhor...

E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 14 de maio de 2021

O CABEÇA DE FERRO (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O CABEÇA DE FERRO

Olavo Bilac

Nesse ano de 1782, em Minas, no mesmo lugar em que assenta hoje a cidade de Diamantina, as autoridades de Portugal, monopolizando para a Coroa portuguesa o comércio dos diamantes, eram implacáveis no seu despotismo.

 

Entre os trabalhadores empregados na extração, a miséria era grande. Quase todos os escravos sofriam fome, enquanto pelas suas mãos passavam milhões de pedras, que valiam quantias assombrosas, e iam enriquecer o tesouro português.

O trabalho era duro. Primeiro, era preciso descobrir o trecho do rio, em cujo fundo se esperava achar a jazida. Cavava-se ao lado dele um vale, forrado de tábuas unidas e calafetadas: Cercava-se depois o rio: desviavam-se as suas águas para o vale. Então, secava-se o leito assim descoberto. Quebravam-se as rochas que o forravam, tirava-se a camada inútil de terras e areias: e via-se logo, sob a forma de um cascalho feio e grosseiro, a preciosa mina, em que dormiam as grandes e rutilantes pedras preciosas. Muitas vezes, o trabalho ficava perdido: não se encontravam diamantes na porção explorada do rio, e era preciso recomeçar mais longe a mesma dura tarefa.

Tratados com um rigor intolerável, privados de tudo, sofrendo pela menor falta castigos horrorosos, trabalhando sem cessar de sol a sol, os desgraçados entendiam-se com os contrabandistas, a quem vendiam os diamantes que furtavam. As autoridades condenavam sem processo os acusados desse crime. Os contrabandistas, que eram conhecidos pelo nome de garimpeiros, eram perseguidos sem trégua pela tropa. Às vezes, desesperados, acossados pela patrulha da metrópole, os garimpeiros organizavam guerrilhas e resistiam. Corria o sangue de parte a parte.

Os escravos suspeitos eram condenados à morte, sumariamente. Não se abriam devassas. Não se admitiam defesas. Bastava uma simples denúncia. Alguns, amarrados a troncos de árvores, eram surrados até morrer; outros acabavam crivados de balas; outros expiravam de fome, no fundo de masmorras sem ar.

Em 1782, era Intendente dos Diamantes José de Meirelles, homem cruel que conseguia ser ainda mais tirano do que os seus antecessores. O povo dava-lhe o nome de Cabeça de Ferro. Violento, fez pesar sobre Minas a sua maldade. Quem por esse tempo viajava pela região, que ficava sob o domínio do Cabeça de Ferro, via, de espaço a espaço, corpos no chão, varados de tiro de espingarda, cadáveres de enforcados oscilando nos galhos das árvores. Eram as vítimas do Intendente.

Mas não eram somente os suspeitos do crime de contrabando que sofriam o peso do seu ódio. Bastava ter pena do sofrimento dos pobres escravos para ser considerado cúmplice deles. A cadeia do arraial estava constantemente cheia de inocentes, cujo crime único era o ter dado um pedaço de pão a um trabalhador faminto. O Cabeça de Ferro era onipotente. Quem ousava contrariá-lo, se escapava da morte, era degredado para a África, e deixava a família na miséria, porque todos os seus bens eram confiscados para o Estado. E, quando o Intendente atravessava o povoado, arrogante, de sobrecenho cerrado, seguido da multidão de seus guardas armados, o terror corria as ruas. Portas e janelas fechavam-se. Nenhum olhar atrevia a fitar o olhar do orgulhoso Senhor, que tinha nas mãos o destino de todo o povo.

Essa tirania já durava três anos, quando, por ocasião de se celebrar uma festa religiosa no arraial, veio para pregar o sermão, na Vila do Príncipe, um sacerdote modesto, — homem de rara virtude, cuja palavra ardente estava sempre cheia de bênçãos para os humildes e de maldições para os orgulhosos. Era o vigário Brandão. Ninguém imaginaria, vendo-o pequenino, fraco, de olhos postos no chão, tão pobremente vestido que causava dó, ser aquele o homem que nunca recearia dizer a Verdade, por terrível que fosse, aos grandes da terra. O povo, quando o viu chegar, acolheu-se sob sua proteção.

O vigário viu os arredores do povoado cobertos de cadáveres sem sepultura; viu as casas dos suspeitos incendiadas por ordem do Intendente; viu a cadeia cheia de infelizes, que gemiam sob o peso dos ferros, vítimas quase todos de acusações infundadas; e, com palavras duras, que o amor da justiça inspirava, intimou o Cabeça de Ferro a respeitar as leis da Humanidade. O Intendente sorriu. E a sua crueldade aumentou.

Chegou o dia da festa.

A igreja, cheia de povo, resplandecia de luzes. Quando o vigário ia falar, entrou o Intendente; seguia-o a sua guarda: e o implacável tirano, arrogante, caminhava de olhos erguidos, dominando com a sua presença temerosa a multidão que tremia.

O vigário começou a falar. A sua voz clara e colérica tinha uma majestade divina. Falou dos magistrados que apenas para oprimir os pequenos e os pobres sabiam usar do poder que a vontade de Deus lhe confiara.

O seu olhar não se afastava do ponto em que estava o Intendente, e o seu gesto, dirigido para ele, apontava-o como o causador da desgraça das famílias condenadas à orfandade e à fome; lançava-lhe em rosto o assassinato frio de tantos inocentes; condenava-o a vagar sozinho na terra, fadado a uma velhice de angústias e de remorsos, para pagar a sua desumanidade: e descrevia, ao vivo, o sofrimento dos que jaziam no fundo de masmorras escuras, dormindo sobre a lama, gemendo de sede, com os corpos chagados pela pressão das cadeias de ferro...

O povo todo, imóvel de assombro, diante de tamanha audácia, escutava em silêncio. O Cabeça de Ferro, com as faces acesas de cólera, tremia na sua cadeira. Levantou-se, cruzou os braços, e encarou o pregador.

Durante minutos, que pareciam séculos, esses dois homens — um, todo poderoso, temido, rico, arrumado, cercado de tropa, representando a autoridade despótica de El Rey — e o outro, fraco, pobre, sem armas, sem soldados, tendo apenas por si a Verdade, — longamente se fitaram em silêncio. Foi o homem poderoso que cedeu.

O Intendente baixou os olhos, com todo o corpo abalado de um tremor convulsivo. O povo murmurava. E o padre, sem tirar os olhos do criminoso, clamava:

— Ministro de Satanás! Como aferrolhas míseros inocentes nesse horrível calabouço, quando o seu crime só foi terem tirado da terra os tesouros que a Providência ali ocultou, para que igualmente a todos os homens servissem? Um dia, a inocência clamará contra ti, no tribunal divino, longe das paixões do mundo: e a maldição de Deus pesará sobre a tua cabeça!

Houve um movimento geral na multidão. Viram todos que o Intendente, de cabeça baixa, trêmulo e abatido, se encaminhava para a porta da Igreja. Seguiam-no os soldados da sua guarda: e o povo abria alas para deixar passar, humilhado com um réu, aquele que, havia pouco, passara sobranceiro como um deus.

Houve ainda quem temesse que, ao sair dali, o Cabeça-de-Ferro fosse preparar a sua vingança contra o atrevido que o injuriara, cobrindo de opróbrio e de vergonha.

Mas, no dia seguinte, soube-se no arraial, com alívio, que todos os que estavam presos injustamente tinham sido postos em liberdade; que os cadáveres que jaziam nos arredores sem sepultura, servindo de pasto aos corvos, tinham sido enterrados; e que a sorte dos criminosos, nos calabouços, tinha sido suavizada. E, de então por adiante, todo o povo respirou, vendo o Intendente reconciliado com a justiça e com a humanidade.

Porque, quando o amor do Bem e da Verdade palpitam na voz humilde de um justo, essa voz, por si só, é bastante para iluminar e purificar a alma endurecida de um tirano...


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 13 de maio de 2021

Q=AVENTURA DE HOTEL (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

AVENTURA DE HOTEL

João do Rio

Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade heteróclita mas toda bem colocada. O proprietário orgulhava-se de ter o senador Gomes com as suas sobrecasacas imundas, o ex-vice-presidente da ex-missão do México, a primeira ex-grande atriz de revista, com o seu cachorro, mme de Santarém, divorciada pela quarta vez em diversas religiões, o barão de Somerino do Instituto Histórico, um negociante tuberculoso chegado das altitudes suíças com o fardo enorme da esposa, o engenheiro Pereira mais a mulher, mais sete filhos, mais a criada, a notável trágica Zulmira Simões em conclusão da sua última peregrinação provincial em companhia do elegante Raimundo de Souza, duas senhoras entre viúvas, solteiras ou estritamente casadas, enfim, todo um mundo variado, mas que pagava bem. De resto, o proprietário, como assegurava a ex-estrela de revista, correspondia, isto é, servia com cuidado. Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês.

 

Ao almoço era curioso ver toda aquela gente na sala de baixo, ornada de palmeiras e de flores comuns, entre os metais polidos das guarnições das mesas. A sala era baixa, com uma luz baça de recanto submarino. Parecia um aquário. A mim pelo menos. As atrizes tomavam ares graves de peixes evoluindo cerimoniosamente no fundo d'água para cumprimentar as damas sem palco; os homens eram reservadíssimos. Tudo aquilo mastigava calado, cada um na sua mesa, batendo o talher. Só quando havia hóspede novo é que surgiam frases breves.

 

— Quem é?

 

— O deputado Gomensoro.

 

— Ah!

 

Sempre grandes nomes, gente importante, um complexo armorial de celebridades funcionárias e de titulares empastilhados. E à noite, no saguão de entrada, saguão de mármore que o gerente forrara de velha tapeçaria e guarnecera de um indizível mobiliário hesitante entre o estilo otomano, os belchiorese o confortável inglês, podia-se ver os representantes de todas as classes sociais desde a diplomacia até o trololó.

 

Precisamente tínhamos mais dois hóspedes, o velho ministro do Supremo, Melchior, e seu sobrinho Raul Pontes, rapaz elegante, vivaz, espirituoso, com vinte anos irresistíveis. Todos no hotel respeitavam Melchior e gostavam do Raul, e ainda ninguém esquecera a sua verve quando o deputado Gomensoro, depois de apertar-lhe a mão, dera por falta do relógio. Onde se fora o relógio? No bonde? Roubado? Saíra Gomensoro com ele? O Dr. Raul Pontes ria a bom rir. O relógio evaporara-se decerto. Era o calor. E ficou muito bem aquele estouvamento, tanto mais quanto o velho Melchior, representante da justiça, mostrava-se incomodado.

 

No dia seguinte, ao vestir-me para o almoço, lembrei que na minha gravata creme ficava bem um alfinete de turmalina azul com brilhantes do Cabo, linda jóia e lindo presente. Abri a gaveta onde o deixara à noite. Não estava lá. Abri outras gavetas, procurei, remexi malas e bolsas. O alfinete desaparecera. Quis descer, prevenir o gerente. Mas contive-me. Podia tê-lo atirado para qualquer canto. Quando se quer achar um objeto, a gente está vendo-o e é como se não o visse. Depois uma queixa sem provas contra o criado acirra a má vontade. Menos talvez que as queixas com provas, mas sempre o bastante para sermos mal servidos. Eu sou prudente. Três ou quatro dias depois, no saguão, o senador Gomes, que só tinha livros e roupas velhas no seu aposento, perguntou-me de repente:

 

— Você tem um alfinete de turmalina azul, não?

 

Além de prudente, sou inteligente. Porque diabo naquele distinto hotel, o senador indagava de um alfinete desaparecido? Tê-lo-ia apanhado por farsa? Era pouco próprio para o alto cargo legislativo, mas para mim uma confiança simpática, fez-me o efeito de um piparote no ventre. Respondi:

 

— Tenho sim. Porque pergunta? Ainda hoje saí com ele...

 

Gomes travara com a genial Zulmira Simões, oráculo teatral de aquém e de além mar, uma discussão superior sobre Calderón de la Barca, a quem, aliás, ambos imputavam várias peças de Lope de Vega. Em tão elevada esfera da dramaturgia espanhola, Gomes não respondeu à minha pergunta, e eu que nessa noite não saí de casa, ao subir antes do chá, encontrei no corredor apenas o velho Melchior meio abatido, fechei a porta por dentro, dormi e no dia seguinte dei por falta do meu porte-monnaie de prata. Coisa estúpida afinal!

 

O gatuno -porque era o gatuno, não havia dúvida-, o gatuno ou farsista sem graça deixara a minha carteira e deixara até os níqueis, certo para mostrar que aquilo era seu, que aquilo estava ali porque ele voltaria. Que fazer? Prevenir o proprietário? Mas eu estava num hotel tão distinto! Era pouco correto e estabeleceria o desequilíbrio na confiança geral. Não! seria melhor esperar.

 

No dia seguinte, como voltasse de ouvir o d. Cesar de Bazan com Zulmira Simões e o brumeliano de Sousa, enquanto de Sousa subia à frente, a atriz murmurou:

 

— Ah! meu amigo, este hotel tem casos curiosos... Sabe que fui roubada?

 

— Sério?

 

— Sim. O objeto tinha um valor todo estimativo, era um berloque que me dera o Raimundo logo no começo da nossa ligação. Não lhe diga nada que o incomodaria. De resto, não sou eu a única. O dr. Pontes foi também roubado no seu porte-monnaie.

 

— Como eu!

 

— O Sr. também? Mas estamos na caverna de Ali-Babá.

 

Horas depois felizmente rebentava o escândalo. Pela manhã, mme de Santarém dera queixa por lhe terem roubado um face à main de madrepérola com incrustações de ouro sob desenhos, dizia ela, de um pintor húngaro. E o gerente pôs fora o criado Antônio, porque a ele faltavam também passadores de guardanapos -dois, três por dia. Antônio saiu protestando, furioso. Falou até de processo por perdas e danos. Era um ladrão cínico. E durante o almoço a conversa generalizou-se. Ninguém escapara. O que acontecera comigo acontecera com de Sousa, com o barão de Somerino, com o negociante tuberculoso, com o ex-vice-presidente da ex-missão do México, com a estrela revisteira, com o dr. Melchior. Todos tinham sido roubados e confessavam por desabafar. Havia até mesmo recordações. O dr. Pontes, o nosso caro Raul, indagava da genial Simões:

 

— V. ex. andava à cata do ladrão naquele dia em que a encontrei no corredor?

 

— Não; ainda não sabia. Tive apenas um pressentimento. Acho que deviam prender o homem.

 

— Mas não há provas! exclamava mme de Santarém. Não encontraram nada! Era esperto. No dia em que desapareceu o meu face à main, não saí do quarto.

 

— Roubos excepcionais...

 

— Estamos no domínio dos ladrões geniais. Precisamos de um grande agente dedutivo para resolver o crime...

 

— E prender o Antônio copeiro? Ora para ladrões desse gênero basta a nossa polícia!

 

Aliás o tal Antônio gatuno parecia mais um doente. O homem afinal não tirara nunca dinheiro, e as argolas de guardanapos do hotel eram lastimáveis como valores. Mas, fosse gatuno genial ou doente, Antônio partira e a confiança renascia. Passamos assim uma semana e, com grande pasmo nosso, mme de Santarém e a atriz Zulmira Simões, no mesmo dia, à mesma hora, encontraram em cima do lavatório, uma o seu face à main, outra o seu berloque.

 

— É uma aventura! É um caso de diabolismo! sentenciava o negociante tuberculoso.

 

O hotel convulsionava-se. Só o senador Gomes resmungou.

 

— Que besta!

 

E aquela frase dita tristemente preocupou-me. No fundo, porém, o sujo e ilustre homem tinha razão. O gatuno, ou o sportsman da ladroeira não era Antônio, era outro, existia, anunciava a sua presença, estava ali, ao nosso lado. Audácia? Loucura? Estupidez? No dia seguinte deu-se por falta do colar de ouro com pedras finas da atriz Simões, os brincos da mulher do tuberculoso sumiram-se. Foi o terror. Os hóspedes trancavam o quarto e saíam levando os valores no bolso, mesmo para almoçar. A limpeza era feita na presença dos respectivos locatários. Já ninguém se falava direito, já ninguém conversava. Havia entre nós um ladrão. Um ladrão! O medo prendia as senhoras aos quartos. Ninguém saía sem necessidade urgente, com receio de ser apontado pelo menos um segundo, como o fora o Antônio. Éramos os forçados daqueles crimes; tínhamos que chegar à tragédia. O gerente, lívido, armava uma polícia interna ferocíssima; os criados serviam, coitados! com uma humildade dolorosa, temendo a suspeita, o ex-vice-presidente da ex-missão do México teimava em escrever ao chefe de polícia, em varejar os quartos.

 

— Pelo amor de Deus! gemia o proprietário.

 

— É outra tolice, acrescentava Gomes. Nós temos aqui gente respeitável.

 

— Pois está claro! dizia logo mme de Santarém, divorciada pela quarta vez.

 

E apesar da vigilância, continuarem a desaparecer objetos. Não era possível! Ou sair, ou dar queixa à polícia.

 

Uma vez encontrei na cidade Melchior e Pontes, acompanhando mme de Santarém a uma confeitaria. Eram duas horas da tarde. Voltei à pensão. Por uma coincidência, morava no mesmo corredor que essas três pessoas, mesmo pegado ao senador Gomes. Estava a despir-me, quando senti passos abafados. Abri a porta devagar. Era o alegre e sempre espirituoso Pontes. Vinha para o seu quarto. Mas não. Parou no quarto de mme de Santarém, experimentou uma chave, torceu, entrou. Oh! a imoralidade dos hotéis honestos! O felizardo ia gozar as delicias de um aprés-midi amoroso com a honestíssima senhora! Pouco depois, porém, ouvi um leve rumor, espiei de novo. Era Pontes, com o ar mais natural, que fechava o quarto e andava ligeiro. Quis fazer-lhe uma pilhéria, gritar; -ah maganão! ou outra parvoice qualquer -porque eu sou de natural pândego. Mas deixei para o jantar, recolhi. E no jantar mme de Santarém, que chegara momentos antes, apareceu transmudada: tinham-lhe roubado o broche de rubis.

 

Estávamos todos no salão e sustiveram-se todos num pasmo raivoso, quando a gentil senhora bradou:

 

— Acabam de roubar o meu broche de rubis! Mais um!

 

Os meus olhos cravaram-se no dr. Pontes. Tinha o mesmo pasmo dos outros, o mesmo ar, o mesmo olhar.

 

Uma idéia atravessou-me o espirito. Era ele o gatuno! Não havia dúvida. Era agarra-lo ali, logo... Mas se fosse apenas o amante? Afinal era um homem que devia respeitar a família e o tio! As provas eram contra ele, absolutamente contra. No hotel ninguém poderia lembrar-se de sair depois daqueles roubos. A situação precisava ficar clara. Eu cometeria um escândalo, diria ali que o vira entrar no quarto de mme de Santarém e as explicações viriam depois.

 

Ia falar, ia contar tudo, quando senti que pesavam em mim os dois olhos do senador Gomes, enquanto este, balançando a cabeça, balançando a faca entre os dedos, parecia por todos os modos pedir-me para não dizer nada. Gomes sabia! Desde o dia em que falara do meu alfinete! Contive-me. Mesmo porque entravam a Pepita, mais o seu cachorro, ambos desesperados com o desaparecimento de um anel marquise, admirável, segundo a opinião da estrela.

 

O engenheiro Pereira ergueu-se.

 

— Gerente! Não fico mais um dia no seu hotel. A situação é delicada para o primeiro que sair do ergástulo, mas eu arrosto-a. Tenho família, tenho uma esposa nervosa e tenho valores. Sou o engenheiro Salústio Pereira. As minhas malas passam pelo seu balcão, para o exame. Tire-me a conta...

 

O diplomata, que, entretanto, devia cinco semanas, teve um esforço:

 

— Eu também saio.

 

Os outros ficaram quietos, incapazes, mas com grande admiração minha, o dr. Pontes falou:

 

— Vivemos nesta aflição há já algum tempo. Há um gatuno aqui, ou um gatuno de fora que possui a chave.

 

— É isso, a chave..., atalhei eu.

 

— Mas apesar do mútuo respeito que nos devemos, a desconfiança existe. Ora, eu já pensei mal de meu tio. Proponho, pois, que ao sair daqui, façamos uma passeata pelo hotel, entrando e varejando todos os quartos. Serve?

 

Eu tinha acabado de sorver o café e admirei Pontes: ou um gatuno esplêndido ou um inocente. Em compensação, o senador Gomes olhava a porta absolutamente pálido. Que se iria passar?

 

— Serve? tornou a dizer Pontes.

 

— Mas está claro, fez o Gomes. Partimos todos para a passeata lá da entrada. É o meio alegre de acabar com uma pressão séria.

 

— Apoiado! Este Pontes sempre o mesmo!

 

Mas Gomes erguia-se no rumor das exclamações. Ergui-me, alcancei-o no corredor. Estávamos sós. Sussurrei-lhe:

 

— O gatuno é ele. Vi-o entrar no quarto da Santarém...

 

— Não é.

 

— Então quem é?

 

— Não sei.

 

— É impossível negar mais tempo. Ou o senhor diz-me ou eu explico tudo em público. Só o muito respeito...

 

Gomes teve um gesto alucinado, junto à escada que dava para os aposentos superiores.

 

— Nada de palavras inúteis. Jura segredo?

 

— É um crime.

 

— Jura?

 

— Juro.

 

— Pois salvemos uma pobre mulher, salvemos uma desvairada, meu amigo, salve-mo-la! Não pergunte porque. Amo-a como pai, como amante, como quiser.

 

É ela que rouba, é ela. Não há meio de impedir. Vou manda-la embora e ao mesmo tempo tremo de vê-la no cárcere. É louca. Neste momento mesmo estamos à mercê da sorte e do disparate do Pontes, a quem eu devia odiar. Mas vamos salva-la. É preciso salva-la. Tudo será restituído. Já tenho feito isso. Psiu! Esconda-se, esconda-se. Aí, debaixo da escada. Não a veja, não a veja...

 

Alguém descia a escada sutilmente. Escondi-me com o coração batendo, enquanto Gomes amparava-se ao corrimão. O silêncio parecia aumentar a vastidão da escada. A voz do Gomes indagou:

 

— Tudo?

 

— Sim, meu medroso, sim, eu tinha tudo junto. Toma. E agora, até...

 

O vulto passou para o saguão de entrada. Da sala de jantar vinham vindo os hóspedes, excitados com aquela investigação policial aos quartos. Trêmulo, lívido, Gomes meteu-me na mão um embrulho, enquanto empurrava nas vastas algibeiras da sobrecasaca e da calça outros pequenos rolos, a dizer:

 

— Amanhã, restituiremos pelo correio, amanhã saem muitos. Sê bom, salva-a!

 

Era atroz, era trágico, era ridículo ver aquele homem ilustre e honesto a guardar os roubos de uma cleptômana satânica e era estúpido o que eu fazia! Mas irresistível.

 

Fosse quem fosse essa gatuna inteligente, era de uma ousadia, de um plano, de uma afliteza, de um egoísmo diabolicamente esplendidos. Estiquei o pescoço na ânsia da curiosidade, a saber quem era, a ver quem podia ser no hotel tão cheio de hóspedes, aquela de que me fazia cúmplice, aquela que misteriosamente, impalpavelmente, durante um mês, trouxera ao hotel atmosfera de dúvida, de crime, de infâmia. E, contendo um grito de pasmo, vi mme de Santarém entrar no saguão sorridente e calma.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 12 de maio de 2021

MORFINA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

MORFINA

Humberto de Campos

Quando o Carvalho Souto, meu companheiro de escritório, sofreu aquele acidente de automóvel em que fraturou duas costelas e o braço esquerdo, eu, ia vê-lo quase diariamente à Casa de Saúde Santa Genoveva, na Tijuca. A solicitude persistente com que velava pelo meu amigo, fez-me, em pouco tempo, íntimo dos médicos do estabelecimento. E de tal maneira que, trinta e quatro dias depois, quando o Souto recebeu o boletim concedendo-lhe "alta", eu contava já um amigo novo, na pessoa amável e mansa do Dr. Augusto de Miranda, que exercia, então, ali, as funções de subdiretor. Filho de médico, e neto de médico, Miranda nascera, pode-se dizer, no quarto ano de medicina. Aos sete anos já utilizava o seu pequenino serrote de fazer gaiolas, serrando, com ele, a perna dos passarinhos que apareciam com alguma unha doente.

Mediano de estatura, robusto de tórax, cabelos alourados e olhos entre o azul e o verde, o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva era uma figura grave e simpática. O rosto largo, e escanhoado, transpirava a energia serena e boa das almas fortes e tranqüilas. Daí a confiança que entre nós rapidamente se estabeleceu, a franqueza com que me falou, naquela manhã, de uma das suas doentes que ali se achava, ainda, hospitalizada.

- Quer vê-la? Vamos... - convidou.

A Casa de Saúde Santa Genoveva está situada, como se sabe, na Estrada Velha da Tijuca, em um ponto pitoresco, dominando a cidade. Ensombram-lhe as cercanias de antigo solar, algumas dezenas de mangueiras enormes, e árvores outras, de fronde compacta e agasalhadora. Sob uma dessas mangueiras, estirada em uma espreguiçadeira de pano branco e vermelho, achava-se uma senhora alta, de rosto longo e olhos cavados, mas apresentando na fisionomia cansada e enferma os traços da antiga distinção. Devia ter sido bela, com os seus cabelos negros de ondulação larga. E elegantíssima de porte, a avaliar pela graça do busto posto em relevo na postura em que se encontrava.

- Preste atenção, vamos passando... Depois que você conhecer a história trágica de sua vida, voltaremos... - disse-me o Dr. Miranda.

Entramos por uma estrada de mangueiras vetustas, e, enquanto caminhávamos lentamente na manhã fresca, o subdiretor, a voz tranqüila e pausada, me falava desta maneira:

- Aquela senhora que acaba de ver, foi casada com um dos meus companheiros de turma na Faculdade, e é a heroína de uma das tragédias mais terríveis que vieram ter aqui dentro o seu desfecho...

- O marido morreu? - indaguei.

- Não. Ela, porém, o perdeu sem que ele morresse: está desquitada. As senhoras desquitadas, são, em nossa terra, as viúvas dos maridos vivos.

Apanhou, no chão, um pequeno ramo uma nódoa na estrada limpa, e reatou:

- Filha de um advogado que morreu sem fortuna, esta moça, aos dezessete anos, casou com o colega de que lhe falo, o qual fez um dos mais belos cursos do seu tempo, mas não foi igualmente feliz na vida prática. No primeiro ano de casamento, veio-lhe um filho. Linda criança! Vi-a uma tarde, na rua, em companhia do pai, e não esqueci, jamais, a sua graça infantil... Quatro anos depois de casados, foi esta senhora uma noite atacada de cólica hepática de extraordinária violência. O marido recorreu à terapêutica indicada no caso, mas inutilmente. Compadeceu-se, e aplicou-lhe uma injeção de morfina. A doente sentiu alívio imediato, e dormiu, até à noite. Ao acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em seguida, a gritar. Nova injeção. Novo sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram os gemidos queixando-se ela dos mesmos padecimentos. Gemia, debatia-se, gritava, reclamando a injeção. Profissional inteligente, o marido certificou-se de que, verdadeira a princípio, a dor, agora, era simplesmente simulada. A morfina havia exercido a sua influência funesta! Por isso, não deu a injeção. Desiludida de alcançar o que pretendia, a esposa calou-se. E a tranqüilidade voltou, de novo, à intimidade do casal.

- E a tragédia?

- Espere, que a história é longa... Ao fim de algumas semanas, começou o meu colega a observar na senhora uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era marido. Pôs-se vigilante, e descobriu a verdade terrível: a esposa, seduzida pelas sensações das injeções que ele lhe aplicara, era presa, já, da morfinomania, consumindo diversas ampolas por dia! A sua assinatura havia sido falsificada, já, por mais de uma vez, no papel do consultório, em receitas de responsabilidade, pondo em perigo a sua reputação profissional.

O Dr. Miranda parou, por um momento, para acender um cigarro, e tornou:

- Com a sua experiência de clínico, o marido compreendeu a ineficiência do seu esforço individual para salvar a companheira infeliz. Por esse tempo, havia chegado da Europa um colega nosso, o Dr. Stewenson, que se tinha especializado na Alemanha e na Suíça na cura da toxicomania. Era um belo homem e um belo espírito, e o marido daquela senhora foi à sua procura, e expôs lealmente o seu caso doméstico. Pediu-lhe que tomasse sob os seus cuidados a esposa, e levou-a, no dia seguinte, ao consultório. Stewenson marcou o início do tratamento para outro dia. A moça foi, sozinha. O médico fê-la entrar para o seu gabinete, e fechou-o a chave. Em seguida, encheu duas seringas, aplicando uma injeção na cliente, e outra em si mesmo. E rolaram, os dois, abraçados, como dois loucos... Stewenson era morfinômano, e o seu anúncio como especialista contra os entorpecentes não visava senão atrair as senhoras viciadas, conquistando companheiras para os seus delírios...

- Que horror!...

- Ao fim de algumas semanas, o marido da pobre moça descobria a extensão tomada pelo seu infortúnio. A esposa, ela própria, confessou-lhe tudo, fornecendo-lhe os elementos para apurar a verdade. E ele apurou que era duas vezes desgraçado: o Dr. Stewenson era amante de sua mulher!... Diante disso, veio a separação, com o desquite. Não tendo sido judicial, o meu antigo colega de turma passou a dar uma pensão à esposa, que fixou residência apartamento em Copacabana, ficando ele num hotel no centro da cidade. Ele era, porém, um homem de temperamento apaixonado, e não podia esquecer a criatura a quem amara tanto, e que lhe havia dado as horas de paixão mais intensas da vida. Nenhuma outra mulher lhe satisfazia os sentidos e o coração. E ei-lo, na da noite, alta madrugada, abandonando o seu hotel e indo secretamente, bater à porta do apartamento de Copacabana, tornando-se um dos amantes de sua antiga mulher.

- Mas, isso é verdade? - perguntei,

- É verdade, e é ciência, - respondeu-me o Dr. Miranda.

Havia rodeando um tronco de mangueira, um banco circular, de pedra. Sentamo-nos. E o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva reatou:

- A esposa, agora entregue a si mesma, continuava a tomar morfina, absorvendo doses espantosas. Uma tarde, achando-se em casa, encheu a seringa, e meteu a agulha na parte anterior da coxa. Apertou o sifão. O líquido desapareceu da agulha. No mesmo instante, porém, a pobre rapariga soltou um grito. Uma nódoa vermelha surgira-lhe diante dos olhos. E essa nódoa se transformou em chamas, em labaredas enormes, que a envolviam como se a tivessem precipitado numa fogueira. Um calor intenso, infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face, a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia: "Chamem meu marido, que eu estou morrendo!". Dizia, aos gritos, que estava sendo queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis, pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. Quando o ex-marido chegou, encontrou-a totalmente nua, o sangue a correr-lhe da testa. E descobriu, logo, a origem daquela crise: a agulha alcançara a artéria, entrando a morfina, diretamente, na circulação... Daí a sensação de incêndio dentro do qual se debatia, e a impressão de labaredas que a envolvessem e as tivesse diante dos olhos... Não podendo detê-la sozinho, chamou o ex-esposo dois empregados do prédio, que a subjugaram, e a amarraram, inteiramente despida, na cama, a fim de receber a única medicação aconselhável no caso, e evitar que se mutilasse na fúria com que se atirava pelo chão, pelos armários, pelas paredes...

- Coitada!

- Afinal, passou a crise. Dias e dias tinha ela permanecido entre a vida e a morte. Após as injeções sedativas desamarraram-na. Mas ficara com os braços feridos, as mãos feridas, o rosto ferido... O ex-esposo foi, então, de uma solicitude acima de todo louvor... Não a abandonou um só instante. Amor ou piedade, o certo é que ficou a seu lado até que a viu fora de perigo... Um dos primeiros cuidados da pobre moça, logo que recobrou os sentidos, foi ver o filhinho, que contava, então, cinco anos, e ficara com o pai, que o internara em um colégio em Botafogo. O desejo era legítimo, e, ao vê-la melhor, o pai foi buscar o menino. A desventurada, chorou muito, beijou muito o garoto, e, como fosse hora do almoço, o meu colega foi para a mesa, com outras pessoas da família que ali se achavam de visita, ficando a mãe e o filho no quarto próximo. De repente as Pessoas que se encontravam à mesa ouviram um grito: "Corram que eu estou matando meu filho! Corram, pelo amor de Deus!". Correram todos, e soltaram, diante do que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos crispadas em torno do pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as mãos, e não podia! Ao contrário do seu desejo, os dedos cada vez mais se contraíam, comprimindo as carnes do pequenito, que se tornara roxo, e cuja língua saía, já, da boca, com um filete de sangue... "Salvem meu filho!... Matem-me, mas salvem meu filho!...", gritava a pobre. Bateram-lhe nas mãos até lhe ferirem os dedos. Quase lhe quebram os braços, com as pancadas que lhe deram, para libertar a criança. Quando o conseguiram, era tarde. Minutos depois, o pequenino morria...

O subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva não procurou ver o espanto que se estampava em meu rosto. Acendeu outro cigarro, e pôs-se de pé. Fiz o mesmo.

- Agora, - continuou, - a desventurada senhora que ali viu, está boa. Mas a nossa vigilância em torno dela é enorme.

- Para que não volte à morfina?

O Dr. Miranda sacudiu a cabeça, lentamente:

- Não. Para que não corte, como tem tentado, as mãos com que estrangulou o seu filho!

E pusemo-nos a andar, de regresso, a cabeça baixa, em silêncio, um ao lado do outro.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 12 de maio de 2021

O VARREDOR (CRÔNICA DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

O VARREDOR

Dalton Trevisan

 

Entra ano
sai ano
e eu?
varrendo sempre
as mesmas folhas secas
das mesmas velhas árvores
nesta mesma cidade fantasma!


Literatura - Contos e Crônicas terça, 11 de maio de 2021

QUEM TUDO QUER, TUDO PERDE (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

QUEM TUDO QUER, TUDO PERDE

Coelho Neto

 

— Parece que bateram! — disse o carvoeiro.

— Foi o vento, — respondeu a mulher.
 
Efetivamente, a velha cabana, levantada junto às primeiras árvores da floresta, parecia gemer, e tremia, abalada pelo vendaval, que levantava, em torvelinho, as folhas secas, arrancava robustas árvores, deixando-as tombadas, com as raízes retorcidas à flor da terra.
 
Os filhos do carvoeiro, três rapazitos e uma menina, que era a mais nova, cercavam-no, pálidos de medo, persignando-se toda vez que um relâmpago alumiava a cabana.
 
A chuva jorrava com fragor e na floresta crescia o barulho das árvores.
 
De novo o carvoeiro disso:
 
— Parece que bateram! Talvez seja algum viajante fugindo à tempestade!
 
Nenhum dos pequenos se atreveu a ir à porta, que rangia aos empurrões do vento. 
 
A pequenita, porém, enchendo-se de coragem, decidiu a ver se havia alguém.
 
Justamente chegava à porta, quando, de novo, bateram clamando:
 
— Dai-me um agasalho, pelo amor de Deus!
 
Sem hesitar, a pequenita virou o ferrolho, e, com uma lufada violenta, ao clarão de um relâmpago, um velho precipitou-se no interior humilde.
 
Era alto e magro, estava coberto de andrajos. No lugar em que se deteve, ainda atordoado, ficou uma poça d’água, tão encharcado estava.
 
O carvoeiro levantou-se para recebê-lo; o velho, depois de abençoar a pequenita, abeirou-se do lume, tiritando, a falar da devastação que a tempestade ia fazendo por aquelas terras.
 
Deram-lhe do que havia no armário: pão, queijo e frutas, e o peregrino, confortado, tomando ao colo a pequenita, pôs-se a afagá-la carinhosamente.
 
Lá fora a tormenta continuava a rugir.
 
— Habitais um sítio muito arredado e triste, disse o velho carvoeiro.
 
— É verdade, é bem triste! Dá-me a floresta que vendo, a água que bebo, e a caça de que me nutro. O lugar é melancólico, mas nunca nos faltou o necessário, porque o meu trabalho o sabe tirar das árvores e das tocas.
 
Depois de um silêncio, em que pareceu meditar, o velho disse, alisando os cabelos da pequenita:
 
— Tendes, entretanto, a fortuna muito perto de casa. Na caverna da floresta há um tesouro guardado desde os tempos do rei Salomão. Quem lá for, e tirar, de cada vez, quando possa conduzir sem fadiga, tornará ao lar tranquilamente; aquele porém que se exceder na carga, terá no próprio sítio o castigo da ambição.
 
— O que dizeis é verdade!? — exclamou o carvoeiro alvoroçado.
 
— Só a verdade vos digo, — afirmou o velho.
 
Os pequenitos, que tudo ouviram, logo resolveram visitar, na manhã seguinte, a caverna da floresta em procura do tesouro.
 
Caindo a noite, amainada a borrasca, o velho, apesar das instâncias do carvoeiro e da mulher, tomou o cajado, depois de agradecer a hospedagem e de abençoar a pequenita.
 
Na cabana ninguém dormiu; e, aos primeiros albores da madrugada, saíram todos — o carvoeiro, a mulher e os três rapazitos.
 
A pequena ficou para guardar a casa e preparar a refeição.
 
Embrenhou-se a família. Cada qual levava um saco, contando regressar com grande cópia de ouro.
 
Chegaram a caverna, que ficava em sítio temeroso, e vagarosamente, penetraram.
 
Bem ao fundo viram como um monte de brasas que topetava com a abóbada — eram luzentes barras de ouro.
 
Rojaram-se todos, e, esquecidos das palavras prudentes do velho, puseram-se a encher os sacos, sempre achando pouco o que guardavam.
 
O carvoeiro levantou-se, e, com esforço, aos arrancos, arrastou seu saco até o limiar da caverna, sem poder erguê-lo, tão superior às suas forças era a carga.
 
A mulher mal se podia mover, tirava o seu saco aos empuxões, arquejando; o mesmo faziam os pequenos com o exemplo dos pais.
 
Um deles, porém, recordou as palavras do velho; mas o carvoeiro irritou-se:
 
— Ora, o velho... se bem andou, longe vai! Quem sabe se eu me havia de abalar de casa por uma barra de ouro! Temos a fortuna à mão, tolos seremos se a não aproveitarmos!
 
Lentamente, esforçadamente, chegaram ao limiar da caverna, mas logo se sentiram presos.
 
Os pés afundaram no solo alongando-se em raízes, os corpos mudaram-se em troncos, os braços estenderam-se em folhagem, e transformados em árvores, ali, ficaram, bracejando ao vento.
 
Debalde a pequenita esperou-os para o jantar. Em vez deles, chegou a noite. 
 
Na manhã seguinte, foi ela à floresta, procurou-os, chamou-os, e, guiando-se pelas pegadas que haviam ficado na terra mole, foi ter à caverna.
 
Passou pelas árvores, sem perceber que eram os seus parentes, e estacou deslumbrada diante do cógulo de ouro.
 
Alegre, rindo, apanhou três barras das mais luzentes; sentindo, porém, o peso demasiado, e, lembrando-se da recomendação do velho, desfez-se de uma, e, folgadamente, ia saindo, quando ouviu as vozes escarninhas:
 
— Por tão pouco não valia apena teres vindo de tão longe! Volta à caverna, e toma outras barras de ouro!
 
Sem dar ouvidos à sedução, a pequenita passou as árvores, e regressou à cabana.
 
No dia seguinte, tornou à caverna, e com mais duas barras voltou contente. Repetindo a viagem durante meses, tornou-se dona de todo tesouro.
 
Uma tarde, sentada à porta da cabana, chorava, quando viu vir uma velhinha que parava de instante em instante, fatigada.
 
Convidou-a a descansar um momento, e deu-lhe do que tinha, e enquanto comia, a velha pediu-lhe a razão das lágrimas que lhe arrasavam os olhos.
 
— Choro os que perdi, meus pais e meus irmãos. Sou rica, riquíssima! Tenho mais ouro nesta cabana do que tem o rei no seu erário; dá-lo-ia todo, de bom grado, pela antiga pobreza, se, com ela, voltassem os que perdi!
 
Enquanto ela chorava, ia a velha, astutamente, recolhendo as suas lágrimas em um pequenino vaso de cristal. E disse-lhe, por fim:
 
— Vamos à caverna! És digna de ser amerceada!
 
E logo, ágil como se a levassem asas invisíveis, a velhinha transportou-se da cabana à floresta, levando a pequenita.
 
À entrada da caverna, pôs-se a aspergir as árvores com as lágrimas, e logo se desfazia o encanto, e, um a um, reapareceram o carvoeiro, a mulher e os rapazitos.
 
Antes, porém, que eles se tirassem do espanto, disse a velha à pequena:
 
— Aqui os tens! Leva-os contigo, e que lhes fique na memória este caso! Toda a ambição é prejudicial. O homem não deve tentar o impossível: quem muito quer, tudo perde; e é com perseverança e trabalho que se consegue a fortuna.
 
Como um fumo que se dissolve, a velha desapareceu, e a pequenita, abraçando os pais e os irmãos, reconduze-os à cabana, onde lhes mostrou a riqueza acumulada com paciência se sem fadiga, com a qual passaram a viver na cidade, com o fausto que o ouro lhes garantia.
 
E o carvoeiro, bendizendo o coração da filha, referia-lhe os tormentos que haviam sofrido, ele e os seus, durante o tempo que viveram metamorfoseados em árvores.

Literatura - Contos e Crônicas terça, 11 de maio de 2021

O PRIMEIRO BEIJO (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

O PRIMEIRO BEIJO

Clarice Lispector

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 10 de maio de 2021

CARICATURAS REAIS - O PIANO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

CARICATURAS REAIS - O PIANO

Raul Pompéia

 

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Grande cousa o piano!

Os dotes da educação, pensava Maria das Dores, suprem perfeitamente a falta de dotes físicos... Por que não? Cada um caça como pode.

Pois, uma insinuante escala cromática não valerá um requebro de olhar, uma semicolcheia não valerá um sorriso, o pianíssimo não poderá fazer vezes de um traço de meiguice diluído pela fisionomia?!

A arte poderosa inventa beleza. Uma donzela desprestigiada pela boa fada da formosura bem pode salvar o deficit, adquirindo um dote artístico. A música... a música, por exemplo, impressiona, cativa como os belos olhos!

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... re... dó...

Maria das Dores era feia.

Cara comprida, o queixo a estender-se-lhe para baixo como se quisesse alojar-se entre as clavículas; o nariz, delgada lâmina em forma de leme, erguida no meio do rosto, com receio talvez de que se vissem um ao outro os implicantes olhinhos; os olhos negros, miúdos, brilhantes, encravados em fundas órbitas; testa larga, cabelos rareados... Feia incontestavelmente.

Os dezessete anos sugeriram a arrojada hipótese do casamento. Arrojada é bem dito, porque Maria das Dores tinha a difícil franqueza de se achar feia. Feia de cara, pior de corpo..... uma carcaça.

Aos dezessete anos encontraram-se de frente a carcaça e a hipótese.

Maria das Dores, a principio, recuou espavorida como se houvesse visto um espelho. Em nossos maiores desalentos, porém, encontramos sempre a saída falsa de uma esperança. A donzela lembrou-se oportunamente da arte. Sabia que algumas moças haviam inspirado até paixão sendo feias, graças aos sedutores recursos do talento musical, muito capaz de acordar sentimentos simpáticos que só um belo semblante, em geral, produz.

De combinação com o pai, a moça atirou-se ao método de Huntem.

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Alguns anos rodaram.

Maria das Dores ficou mais velha.

O pai dava festinhas em casa. Os rapazes apareciam.

A menina tocava piano.

Não fizera muito progresso, é certo; mas a arte é longa, já o disse Goethe, e o piano custa.

Maria das Dores, animada por um dito amável de qualquer rapaz, fantasiava logo ideais castelos... sonhos deleitosos de ménage... vida de família... filhinhos... ternuras... Quase esquecia o nariz e os olhinhos pretos muito unidos e o queixo.

Era já a influência da arte!

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...

Entretanto, bate a bota o velho.

Morreu ab-intestato, mas a partilha do espólio era fácil. Deixou viúva e filha por herdeiros; como herança, um piano usado de Bord e um nome sem mácula.

Ficou o nome imaculado para a viúva em meação e o Piano de Bord para a filha.

Passados os meses de luto, Maria das Dores voltou ao querido instrumento. Voltou com gana.

Precisava agora, mais do que nunca. Quase na miséria, vivendo dos milagres de recursos da mãe, era preciso apressar os preparativos do casamento. Está entendido que o preparativo era o estudo do piano. Armava-se a rede, depois era só precisar o noivo.

Fazia gosto vê-la a estudar.

Dó... re... mi... fá... sol.

Passa o tempo..

Maria das Dores envelhece. Aos desagradáveis traços fisionômicos, junta-se agora o incidente. pé-de-galinha. Maria não desanima... Ataca pós de arroz... e corre ao piano.

Ainda hoje, que ela dobrou o cabo dos trinta, passem-lhe pela casinha, ali na rua... passem por lá bem tarde, na hora em que os arrabaldes ressonam, ao barulho das primeiras vassouradas da limpeza pública, à hora em que se fecham os teatros, passem que hão de ver, através das venezianas da rótula e da bandeira envidraçada, luz na sala e hão de ouvir o piano.

É Maria das Dores que até aquelas horas estuda. É Maria das Dores a esperançosa, embevecida na sua fé.

Não há mais festas em casa; os rapazes não aparecem mais. Ela espera ainda, espera sempre, confiada na onipotência da arte e do merecimento da educação das donzelas...

Dó... ré... mi... fá... sol... mi... fá... ré... dó...


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 09 de maio de 2021

CANTIGAS ESPONAIS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

CANTIGAS ESPONSAIS

Machado de Assis

 

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão" - equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; - ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias." Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

- Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

- Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.

- Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...

- Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: - moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

- Para quê? disse o mestre. Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, - outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

"Está acabado", pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:

- Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: - rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

- Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...

O princípio do canto rematava em um certo ; este , que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

- Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao ....

Lá, lá, lá...

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

Lá... lá... lá...

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo  trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 09 de maio de 2021

O ÚNICO ASSASSINATO DE CAZUZA (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

O ÚNICO ASSASINATO DE CAZUZA

Lima Barreto

Hildegardo Brandão, conhecido familiarmente por Cazuza. tinha chegado aos seus cinqüenta anos e poucos, desesperançado; mas não desesperado. Depois de violentas crises de desespero, rancor e despeito, diante das injustiças, que tinha sofrido em todas as coisas nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de santo e uma calma grave de quem se prepara para a morte.

Tudo tentara e em tudo mais ou menos falhara. Tentara formar-se, foi reprovado; tentara o funcionalismo, foi sempre preterido por colegas inferiores em tudo a ele, mesmo no burocracismo; fizera literatura e se, de todo, não falhou, foi devido à audácia de que se revestiu, audácia de quem "queimou os seus navios". Assim mesmo, todas as picuinhas lhe eram feitas. As vezes, julgavam-no inferior a certo outro, porque não tinha pasta de marroquim; outras vezes tinham-no por inferior a determinado "antologista", porque semelhante autor havia, quando "encostado" ao Consulado do Brasil, em Paris, recebido como presente do Sião, uma bengala de legítimo junco da Índia. Por essas do rei e outras ele se aborreceu e resolveu retirar-se da liça. Com alguma renda, tendo uma pequena casa, num subúrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para nunca mais ver o mundo, como o herói de Jules Verne, no seu "Náutilus". Comprou os seus últimos livros e nunca mais apareceu na Rua do Ouvidor. Não se arrependeu nunca de sua independência e da sua honestidade intelectual.

Ao cinqüenta e três anos, não tinha mais um parente próximo junto de si. Vivia, por assim dizer, só, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos quais ele sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente.

A sua vida, nos dias de semana, decorria assim: pela manhã, tomava café e ia até a venda, que supria a sua casa, ler os jornais sem deixar de servir-se, com moderação. de alguns cálices de parati, de que infelizmente abusara na mocidade. Voltava para a casa, almoçava e lia os seus livros, porque acumulara uma pequena biblioteca de mais de mil volumes. Quando se cansava, dormia. Jantava e, se fazia bom tempo, passeava a esmo pelos arredores, tão alheio e soturno que não perturbava nem um namoro que viesse a topar.

Aos domingos, porém, esse seu viver se quebrava. Ele fazia uma visita, uma única e sempre a mesma. Era também a um desalentado amigo seu. Médico, de real capacidade, nunca o quiseram reconhecer porque ele escrevia "propositalmente" e não "propositadamente", "de súbito" e não - "às súbitas", etc., etc.

Tinham sido colegas de preparatórios e, muito íntimos, dispensavam-se de usar confidências mútuas. Um entendia o outro, somente pelo olhar.

Pelos domingos, como já foi dito, era costume de Hildegardo ir, logo pela manhã, após o café, à casa do amigo, que ficava próximo, ler lá os jornais e tomar parte no " ajantarado", da família.

Naquele domingo, o Cazuza, para os íntimos, foi fazer a visita habitual a seu amigo doutor Ponciano.

Este comprava certos jornais; e Hildegardo, outros. O médico sentava-se a uma cadeira de balanço; e o seu amigo numa dessas a que chamam de bordo ou; de lona. De permeio, ficava-lhes a secretária. A sala era vasta e clara e toda ela adornada de quadros anatômicos. Liam e depois conversavam. Assim fizeram, naquele domingo.

Hildegardo disse, ao fim da leitura dos quotidianos:

— Não sei como se pode viver no interior do Brasil .

— Porque ?

— Mata-se à toa por dá cá aquela palha. As paixões, mesquinhas paixões políticas, exaltam os ânimos de tal modo, que uma facção não teme eliminar o adversário por meio do assassinato, às vezes o revestindo da forma mais cruel. O predomínio, a chefia da política local é o único fim visado nesses homicídios, quando não são questões de família, de herança, de terras e, às vezes, causas menores. Não leio os jornais que não me apavore com tais notícias. Não é aqui, nem ali; é em todo o Brasil, mesmo às portas do Rio de Janeiro. É um horror! Além desses assassinatos, praticados por capangas - que nome horrível! - há os praticados pelos policiais e semelhantes nas pessoas dos adversários dos governos locais, adversários ou tidos como adversários. Basta um boquejo, para chegar uma escolta, varejar fazendas, talar plantações, arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que, pelo seu trabalho, devia merecer mais respeito. Penso, de mim para mim, ao ler tais notícias, que a fortuna dessa gente que está na câmara, no senado, nos ministérios, até na presidência da república se alicerça no crime, no assassinato. Que acha você ?

— Aqui, a diferença não é tão grande para o interior nesse ponto. Já houve quem dissesse que, quem não mandou um mortal deste para o outro mundo, não faz carreira na política do Rio de Janeiro.

— É verdade; mas, aqui, ao menos, as naturezas delicadas se podem abster de política; mas, no interior, não. Vêm as relações, os

pedidos e você se alista. A estreiteza do meio impõe isso, esse obséquio a um camarada, favor que parece insignificante. As coisas vão bem; mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou por aquilo, rompe com o seu antigo chefe. Você, por lealdade, o segue; e eis você arriscado a levar uma estocada em urna das virilhas ou a ser assassinado a pauladas como um cão danado. E eu quis ir viver no interior !. De que me livrei, santo Deus .

— Eu já tinha dito a você que esse negócio de paz na vida da roça é história. Quando cliniquei, no interior, já havia observado esse prurido, essa ostentação de valentia de que os caipiras gostam de fazer e que, as mais das vezes, é causa de assassinatos estúpidos. Poderia contar a você muitos casos dessa ostentação de assassinato, que parte da gente da roça, mas não vale a pena. É coisa sem valia e só pode interessar a especialistas em estudos de criminologia.

— Penso - observou Hildegardo - que esse êxodo da população dos campos para as cidades, pode ser em parte atribuído à falta de segurança que existe na roça. Um qualquer cabo de destacamento é um César naquelas paragens - que fará então um delegado ou subdelegado É um horror!

Os dois calaram-se e, silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa mesma coisa: em encontrar remédio para um tão deplorável estado de coisas. Mal acabavam de fumar, Ponciano disse desalentado:

— E não há remédio.

Hildegardo secundou-o.

— Não acho nenhum.

Continuaram calados alguns instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e, dirigindo-se ao amigo, disse:

— Deus não me castigue, mas eu temo mais matar do que morrer. Não posso compreender como esses políticos, que andam por aí, vivam satisfeitos, quando a estrada de sua ascensão é marcada por cruzes. Se porventura matasse creia que eu, a que não tem deixado passar pela cabeça sonhos de Raskólnikoff, sentiria como ele: as minhas relações com a humanidade seriam de todo outras, daí em diante. Não haveria castigo que me tirasse semelhante remorso da consciência, fosse de que modo fosse, perpetrado o assassinato. Que acha você?

— Eu também; mas você sabe o que dizem esses políticos que sobem às alturas com dezenas de assassinatos nas costas?

— Não.

— Que todos nós matamos.

Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda a serenidade:

— Estou de acordo. Já matei também.

O médico espantou-se e exclamou:

— Você, Cazuza!

— Sim, eu! - confirmou Cazuza.

— Como? Se você ainda agora mesmo...

— Eu conto a coisa a você. Tinha eu sete anos e minha mãe ainda vivia. Você sabe que, a bem dizer, não conheci minha mãe .

— Sei.

— Só me lembro dela no caixão quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o seu cadáver. Durante toda a minha vida, fez-me muita falta. Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém - o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio, o cansaço da vida e uma certa misantropia.

Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoção muito forte e os olhos úmidos, cortou-lhe a confissão dolorosa com um apelo alegre:

— Vamos, Carleto; conta o assassinato que você perpetrou.

Hildegardo ou Cazuza conteve-se e começou a narrar.

— Eu tinha sete anos e minha mãe ainda vivia. Morávamos em Paula Matos... Nunca mais subi a esse morro, depois da morte de minha mãe...

— Conte a história, homem ! - fez impaciente o doutor Ponciano.

— A casa, na frente, não se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à diferença de nível, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo a escada, distraído, no momento em que punha o pé no chão do quintal, o meu pé descalço apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando, soluçando e gritando: "Mamãe, mamãe! Matei, matei..." Os soluços me tomavam a fala e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando: "O que é, meu filho !. Quem é que você matou?" Afinal, pude dizer: "Matei um pinto, com o pé."

E contei como o caso se havia passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de água de flor e mandou-me sentar a um canto: "Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia." E eu fiquei muito sossegado a Um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua, pois esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que não é da natureza daqueles que nos erguem às altas posições políticas, porque, até hoje, eu...

Dona Margarida, mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a conversa, avisando-os que o "ajantarado" estava na mesa.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 08 de maio de 2021

CARTA A MINHA MÃE (CRÔNICA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

CARTA A MINHA MÃE

Humberto de Campos

 

 

Hoje, mamãe, eu não te escrevo daquele gabinete cheio de livros sábios, onde o teu filho, pobre e enfermo, via passar os espectros dos enigmas humanos, junto da lâmpada que, aos poucos, lhe devorava os olhos, no silêncio da noite.

A mão que me serve de porta-caneta é a mão cansada de um homem paupérrimo, que trabalhou o dia inteiro buscando o pão amargo e cotidiano dos que lutam e sofrem. A minha secretária é uma tripeça tosca à guisa de mesa e as paredes que me rodeiam são nuas e tristes, como aquelas da nossa casa desconfortável em Pedra do Sal.
O telhado sem forro deixa passar a ventania lamentosa da noite e desse remanso humilde, onde a pobreza se esconde exausta e desalentada, eu te escrevo sem insônias e sem fadigas, para contar-te que ainda estou vivendo para amar e querer a mais nobre das mães.

Quereria voltar ao mundo que deixei, para ser novamente teu filho, desejando fazer-me um menino, aprendendo a rezar com o teu espírito santificado nos sofrimentos. A saudade do teu afeto leva-me constantemente a essa Parnaíba das nossas recordações, cujas ruas arenosas, saturadas do vento salitroso do mar, sensibilizam a minha personalidade e, dentro do crepúsculo estrelado da tua velhice cheia de crença e de esperança, vou contigo, em espírito, nos retrospectos prodigiosos da imaginação, aos nossos tempos distantes. Vejo-te com os teus vestidos modestos, em nossa casa de Miritiba, suportando com serenidade e devotamento os caprichos alegres de meu pai. Depois, faço a recapitulação dos teus dias de viuvez dolorosa, junto da máquina de costura e do teu “terço” de orações, sacrificando a mocidade e a saúde pelos filhos, chorando com eles a orfandade que o destino lhes reservara, e, junto da figura gorda e risonha da Midoca, ajoelho-me aos teus pés e repito: – “Meu Senhor Jesus-Cristo, se eu não tiver de ter uma boa sorte, levai-me deste mundo, dando-me uma boa morte.”

Muitas vezes o destino te fez crer que partirias antes daqueles que havias nutrido com o beijo das tuas caricias, demandando os mundos ermos e frios da Morte. Mas, partimos e tu ficaste. Ficaste no cadinho doloroso da saudade, prolongando a esperança numa vida melhor no seio imenso da Eternidade. E o culto dos filhos é o consolo suave do teu coração.

Acariciando os teus netos, guardas com o mesmo desvelo o meu cajueiro, que aí ficou, como um símbolo plantado no coração da terra parnaibana, e, carinhosamente, colhes das suas castanhas e das suas folhas fartas e verdes, para que as almas boas conservem uma lembrança do teu filho, arrebatado no turbilhão da Dor e da Morte.

Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de seiva, na carne moça da terra, pedi velasse pelos teus dias de insulamento e velhice, substituindo-me junto do teu coração. Todos os nossos te estendem as suas mãos bondosas e amigas e é assombrada que, hoje, ouves a minha voz, através das mensagens que tenho para quantos me possam compreender. Sensibilizam-me as tuas lágrimas, quando passas os olhos cansados sobre as minhas páginas póstumas e procuro dissipar as dúvidas que torturam o teu coração, combalido nas lutas. Assalta-te o desejo de me encontrares, tocando-me com a generosa ternura de tuas mãos, lamentando as tuas vacilações e os teus escrúpulos, temendo aceitar as verdades espíritas, em detrimento da fé católica, que te vem sustentando nas provações. Mas, não é preciso, mãe, que me procures nas organizações espíritas e, para creres na sobrevivência do teu filho, não é preciso que abandones os princípios da tua fé. Já não há mais tempo para que teu espírito excursione em experiências no caminho vasto das filosofias religiosas. Numa de suas páginas, dizia Coelho Neto que as religiões são como as linguagens. Cada doutrina envia a Deus, a seu modo, o voto de súplica ou de adoração. Muitas mentalidades entregam-se, aí no mundo, aos trabalhos elucidativos da polêmica ou da discussão. Chega, porém, um dia em que o homem acha melhor repousar na fé a que se habituou, nas suas meditações e suas lutas. Esse dia, mamãe, é o que estás vivendo, refugiada no conforto triste das lágrimas e das recordações. Ascendendo às culminâncias do teu Calvário de saudade e angústia, fixas os olhos na celeste expressão do Crucificado e Jesus, que é a providência misericordiosa de todos os desamparados e de todos os tristes, te fala ao coração dos vinhos suaves e doces de Caná, que se metamorfosearam no vinagre amargoso dos martírios, e das palmas verdes de Jerusalém, que se transformaram na pesada coroa de espinhos. A cruz, então, se te afigura mais leve e caminhas. Amigos devotados e carinhosos te enviam de longe o terno consolo dos seus afetos e, prosseguindo no teu culto de amor aos filhos distantes, esperas que o Senhor, com as suas mãos prestigiosas, venha decifrar para os teus olhos os grandes mistérios da Vida.

Esperar e sofrer têm sido os dois grandes motivos, em torno dos quais rodopiaram os teus quase setenta e cinco anos de provações, de viuvez e de orfandade. E eu, minha mãe, não estou mais aí para afagar-te as mãos trêmulas e os cabelos brancos que as dores santificaram. Não posso prover-te de pão e nem guardar-te da fúria da tempestade, mas, abraçando o teu Espírito, sou a força que adquires na oração, como se absorvesses um vinho misterioso e divino.

Inquirido, certa vez, pelo grande Luiz Gama sobre as necessidades da sua alforria, um jovem escravo observou: – “Não, meu senhor!… a liberdade que me oferece me doeria mais que o ferrete da escravidão, porque minha mãe, cansada e decrépita, ficaria sozinha nos misteres do cativeiro.”

Se Deus me perguntasse, mamãe, sobre os imperativos da minha emancipação espiritual, eu teria preferido ficar, não obstante a claridade apagada e triste dos meus olhos e a hipertrofia que me transformava num monstro, para levar-te o meu carinho e a minha afeição, até que pudéssemos partir juntos, desse mundo onde tudo sonhamos para nada alcançar. Mas, se a Morte parte os grilhões frágeis do corpo, é impotente para dissolver as algemas inquebrantáveis do espírito.

Deixa que o teu coração prossiga, oficiando no altar da saudade e da oração; cântaro divino e santificado. Deus colocará dentro dele o mel abençoado da esperança e da crença, e um dia, no portal ignorado do mundo das Sombras, eu virei, de mãos entrelaçadas com a Midoca, retrocedendo no tempo, para nos transformarmos em tuas crianças bem-amadas.

Seremos agasalhados, então, nos teus braços cariciosos, como dois passarinhos minúsculos, ansiosos da doçura quente e suave das asas maternas, e guardaremos as nossas lágrimas nos cofres de Deus, onde elas se cristalizam como as moedas fulgurantes e eternas do erário de todos os infelizes e desafortunados do mundo. Tuas mãos segurarão ainda o “terço” das preces inesquecidas e nos ensinarás, de joelhos, a implorar, de mãos postas, as bênçãos prestigiosas do Céu. E, enquanto os teus lábios sussurrarem de mansinho – “Salve Rainha… mãe de misericórdia…” começaremos juntos a viagem ditosa do Infinito, sob o dossel luminoso das nuvens claras, tênues e alegres do Amor.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 07 de maio de 2021

UM FRUTO DA ÉPOCA (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO DE AZEVEDO)

UM FRUTO DA ÉPOCA

Aluísio Azevedo

 

Ontem, quando saí do trabalho, para ir tomar o aperitivo do costume antes do jantar, dou com o nosso querido escritor, o Ernesto Branco, que eu não via há muito tempo.

 

– Olá! exclamei. Bons ares te restituam à rua do Ouvidor. Como vai isso, poeta? Que tens feito? Qual é agora o teu livro? Qual é o teu novo amor?

Ernesto respondeu-me a tudo isso com um gesto seco, acompanhado de um triste sorriso, que até então nunca lhe vira nos lábios.

E notei que a sua inteligente fisionomia perdera a primitiva expressão de alegre coragem, e parecia agora fechada sobre um surdo desgosto, desses que nos acabrunham, não pela violência da dor, mas pela pungente convicção de que não há esperança de remédio para eles.

– Que tens? perguntei-lhe, encarando-o. Parece-me doente.

– Tédio, murmurou o meu amigo, fechando por um instante os olhos e levando lentamente o charuto à boca.

– Tomaste já o teu vermouth?

– Já não tomo vermouth

– Tomarás hoje. Vem daí.

Subimos até ao largo de S. Francisco e fomos ter àquela confeitaria onde há um viveiro de passarinhos.

Uma vez instalados ao canto mais sombrio do botequim, disse-nos Ernesto enquanto o servente esperava as nossas ordens:

– Não bebas vermouth francês. Li numa revista médica muito séria, que essa detestável bebida é de todos os veículos alcoólicos o mais rápido para chegar à morte ou ao delirium tremens. Depois dele é que está classificado o ilustre absinto, e em terceiro lugar o piperment.

– Pois tomemos uma passagem de segunda classe. Garçom, dois absintos!

– Com goma?

– Não! com água e gelo. Para que adoçar os meios de morte?…

E, voltando-me de todo para o meu amigo, atirei-lhe misteriosamente a nova pergunta a respeito do que ele fazia nesse momento. Era impossível que Ernesto, o fecundo trabalhador das letras brasileiras, não tivesse em mão um novo livro. Quem sabe mesmo se não seria o excesso de trabalho o que lhe dera ao semblante aquele ar de fadiga e aborrecimento ?… Escrever com arte é coisa tão penosa e acabrunhante!… E eu sabia perfeitamente que Ernesto era desses artistas que, quanto mais produzem, melhor e mais acabado querem produzir; desses que, ao terminar uma obra, pensam logo em principiar outra, porque aquela lhes parece ainda incompleta e falhada. Qual seria, pois, a minha desilusão, qual seria o meu desgosto, notando que Ernesto, em vez de responder ao sincero interesse da minha pergunta de admirador e de amigo, deixara pender a cabeça e olhava vagamente para o seu copo?

– Então?! insisti. E’ segredo?! Fala-me do teu novo livro! Dize-me o que estás escrevendo agora…

– Nada…

– Nada ?! Ora essa! Por quê?

– Não vale a pena!

– Ó injusto! Ó ingrato! Pois tu, o único homem de letras que ultimamente no Brasil tem ganho dinheiro… tu, que tens leitores certos; que tens editores para tudo o que escreves; tu, ó felizardo! tens a coragem de falar desse modo…. Vai para o diabo que te carregue! Não sei que queres tu então!

– Estás enganado… – replicou-me Ernesto sem se alterar. Estás muito enganado a meu respeito. Eu tinha com efeito três leitores, mas um abandonou-me para entregar de corpo e alma ao jogo da bolsa e agora só pensa em salvar-se do naufrágio em que o lançaram; o outro deixou-me pela política e, perseguido pelo governo atual, só pensa em salvar da fome a mulher e os filhos e em livrar do cutelo da legalidade a própria cabeça ameaçada. Bem vês que quem tem a pensar em coisas tão preciosas – o dinheiro e a vida, – não se pode dar ao luxo de ler os meus livros.

– E o terceiro?

– Ah! com o terceiro não conto; não contei nunca para pôr o livro no prelo ou a panela no fogo.

O terceiro é o meu colega, é o literato, é o jornalista, é o crítico; é o leitor que foi muito meu amigo enquanto as minhas obras nada rendiam, e que começou a dar-me bordoada de cego, desde que a coisa cheirou a sucesso de livraria.

Não o amaldiçoa; devo-lhe talvez mesmo a coragem triunfante com que trabalhei durante de anos; devo-lhe a convicção do meu valor e da minha energia, agora apagados; devo-lhe o cuidado crescente com que fui caprichando mais e mais toda a nova obra que eu produzia; mas não estou disposto a escrever só para ele, por uma razão muito simples, porque esse leitor não paga!

– Não! bradei eu com um murro na mesa. Não tens razão. Ou te esvaziaste o teu saco, meu rapaz, ou foste invadido pela preguiça! Os teus paradoxos são desculpas de cabo de esquadra! Dize-me que te esgotaste, e nada protestarei, mas…

– Não! Creio que não me esgotei, porque preciso empregar verdadeira violência para não continuar a escrever. Mas trabalhar para quê? por quê? para quem? em que língua? Nesta que falamos? Mas isso é escrever para a família; isto é o mesmo que falar para dentro de um garrafão vazio? E’ ridículo escrever na língua portuguesa!

– Uma bela língua!

– Qual história! Uma língua incompleta e dificílima; uma língua sem prestígio, sem utilidade, sem vocabulário técnico para a ciência e para as coisas da vida moderna; unia língua que nem sequer tem ortografia, porque não tem ainda um dicionário definitivo; uma língua tão mesquinha, que não tem palavras de tratamento. – O homem é senhor, a mulher é senhoira, e acabou-se! Demoiselle, Miss, Senhorita não têm tradução em português. Uma língua em que é preciso errar, quando se não quer ser afetado na linguagem, porque não se há de fazer os personagens tratarem-se por vós, quando o que se usa é você. Você é gíria, é uma asneira que não existe autorizada por língua nenhuma do mundo!

– Você é a corrupção de Vossa Mercê.

– Não é tal! Vossa Mercê é um tratamento respeitoso, e eu não posso perguntar a urna senhora a quem falo pela primeira vez: “Você como vai?” o Usted espanhol, sim, é que pode ser usado e corresponde em respeito e legalidade ao desusado e inútil Vossa Mercê da língua portuguesa.

– Não! Pode-se perfeitamente falar ou escrever a boa língua portuguesa sem errar.

– Sem afetação clássica é impossível. Diz-me a gramática que o imperativo consta de “Faze tu; fazei vós; e eu digo todos os dias ao meu criado: “Faça isto: faça aquilo”. Um horror! Pois eu posso lá continuar a escrever em semelhante língua?… Maldita a hora em que nô-la impingiram os donos dela, A língua portuguesa foi um presente grego!

– Ninguém pode negar que é um idioma elegante…

– Elegante e limpo: A barba que se usa por debaixo do queixo chama-se “Passa-piolho”. A nostalgia da pátria chama-se “Morrinha galega”.

O Antônio Castilho para dizer numa página que, no lugar descrito por ele, havia grande número de raparigas, exprimiu-se assim: “havia moçame à tripa forra”… Que elegância! Que distinção!

– Não concordo contigo.

– Pois não concordes. Ainda não há muito tempo, o Azeredo Coutinho, fazendo a tradução de uma comédia francesa, viu-se em sérios embaraços, para dizer em português um diálogo travado entre dois personagens de sexo diferente, porque os dois não deviam, nem podiam tratar–se por tu, mas também não deviam tratar-se por senhor, que é tratamento muito cerimonioso; e como não existe ou não se usa em português o tratamento de vós, o nobre tradutor, para não abandonar a sua obra, teve de fazer, sabes o teve de dar um título a cada um dos dois personagens, a mulher fez baronesa, e ao homem conde, para que eles pudessem conversar do seguinte modo, sem se tratarem por tu, nem por senhor: “A Baronesa é cruel”, “Não diga isso, Conde”, “A Baronesa não quer ouvir-me, mas eu hei de fazer-me ouvir pela Baronesa…”, “Oh, o Conde não tem razão, mas eu perdoo o Conde”. Delicioso! Mas ainda assim, prefiro que os senhores tradutores vão imitando Portugal na farta distribuição de títulos, ruas não imitem os atuais escritores portugueses que, apertados como o Azeredo na dificuldade do tratamento, recorreram ao passivo si, fazendo-o concordar com a pessoa com quem se fala; de sorte que, escritas por esses mestres aquelas frases citadas, ficariam assim: “A Baronesa não quer ouvir-me, ruas eu hei de fazer-me ouvir por si”, “O Conde não tem razão, mas eu perdoo a si”. Ah, bandidos! E queres tu, meu amigo, que eu escreva em semelhante língua, e para semelhante público de imbecis?!… Não! antes uma boa morte!

E Ernesto, com a resolução de um suicida, gritou para o moço do botequim:

– Garçom! traz um expresso de segunda ordem, bem carregado, bem forte, bem rápido, que me atire o mais depressa possível ao outro inundo! Ao menos lá hei de falar alguma língua que não seja a do padre Sena Freitas!


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 07 de maio de 2021

GUERRA CIVIL (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO

GUERRA CIVIL

Alcântara Machado

 

Em Caguaçu os revolucionários. Em São Tiago os legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no vôo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saúde.

De noite tinha o silêncio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente fraternal.

Porém uma manhã chegou a Boniteza a notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a cousa iria mesmo.

Boniteza se surpreendeu mas não se acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava.

A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leônidas Cacundeiro.

Era infeliz porque sofria de dor de dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.

Leônidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as águas do Jacaré. Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.

Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando vocês sentirem frio pensem no Pólo Norte e sentirão logo calor. Pensou no Pólo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma.

Deu um berro: – Alto!

Ficou em posição de tiro. O soldado não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas.

Leônidas pensou: – Que negócio será aquele?

Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: – Que negócio será aquele? Vá chamar o tenente!

Leônidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de seda, verificou se o revólver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: – Que negócio será aquele? Vá chamar o major!

Leônidas partiu em busca do major. No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigüi ao lado do Correio. O major apareceu na janela com má vontade. Resmungou: – Já vou. Leônidas comboiou o major até o rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou lá de cima: – Que negócio será aquele? Vá chamar o comandante!

O anspeçada primeiro não queria acordar o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:

– Às seis estou lá.

Eram cinco, Leônidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.

Então já havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones não resplendia na luz da manhãzinha. Toques de cometa chegavam de longe despedaçados. Na banda de lá do Jacaré o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava.

O Coronel Jurupari ouviu calado a narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre assuntos de estratégia e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira observação foi: – É um cabo e não tem má cara. Depois de uns minutos veio a segunda: – Hoje é dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos presentes: – Mas que negócio será aquele? Daí a uns instantes repetiu: – Mas que diabo de negócio será mesmo aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas: – Vá chamar o sinaleiro!

O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do lápis na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade nos olhos.

O sinaleiro se levantou, ficou em posição de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade.

O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 06 de maio de 2021

UM BILHETE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM BILHETE

Machado de Assis

Antes mesmo que acabasse o baile, Maria Adelaide dizia à mãe que não queria ficar um minuto mais que fosse.

— Que é isso? disse-lhe a mãe. Deu uma hora agora mesmo.

— Não quero saber. Vamo-nos embora.

— Ora, meu Deus!

— Vamos, vamos.

Não havia que dizer, a mãe era governada pela filha, e perderia o lugar no céu, se tanto fosse preciso, para não desgostá-la. Note-se que não cedia pouco desta vez; cedia a ceia, que era excelente, e a boa viúva professava esta filosofia: — que as ceias excelentes são preferíveis às boas, as boas às más e as más às que não têm existência. Sacrificava a melhor parte do baile; mas, enfim, contanto que a filha não padecesse.

Padecer, padecia. No carro, logo que as duas entraram, Maria Adelaide começou a ralhar com tudo, com o carro, com a capa, com o calor, com o pó, com a mãe e consigo mesma. A mãe entendeu logo: era algum desgosto que o Chico Alves lhe dera. Realmente, lembrou-se que o Chico Alves, indo despedir-se delas, nem alcançou que Maria Adelaide olhasse para ele. A moça deu-lhe os dedos, a pontinha apenas, e falou-lhe de costas; naturalmente estavam brigados.

A viagem foi atribulada. Nunca o mau humor da moça foi tamanho nem tão explosivo. A mãe pagou pelo namorado, mas como era prudente e estava com fome, preferiu não dizer nada.

Em casa, continuou o mau humor. A pobre criada da moça padeceu como nunca. Maria Adelaide entrou para os seus aposentos, furiosa, despiu-se às tontas, dizendo coisas duras, rasgando uma das mangas do vestido, atirando as flores ao chão, raivosa e indignada sem causa aparente. No fim, disse à criada que se fosse embora, e ficando só rebentaram-lhe as lágrimas. Assim mesmo sozinha, ia falando, mordendo os lábios, dando punhadas no joelhos. Depois arrancou da cadeira, foi à secretária e escreveu este bilhete:

Nunca pensei que o senhor fosse tão pérfido. Nunca imaginei que pudesse proceder como fez no baile; creia que não manifestei o meu desgosto, por dois motivos: — o primeiro, porque ainda tive força de me dominar; segundo, porque depois do que o senhor me fez, nada pode haver mais entre nós. Case-se com a viúva, se quer. Mande as minhas cartas e adeus. Esta determinação é irrevogável. Qualquer tentativa de reconciliação obrigar-me-á ao que não quero.

Tinha dado expansão à cólera, deitou-se para dormir. O sono não veio logo; a raiva agitou a pobre moça, e só quando começou a madrugada foi que ela pôde dormir um pouco. No dia seguinte, o Chico Alves recebia este bilhete:

Desculpa algumas palavras que te disse ontem no baile. Estava muito zangada. Vem hoje tomar chá, e eu te explico tudo.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 06 de maio de 2021

AS COISAS BOAS DA VIDA (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

AS COISAS BOAS DA VIDA

Rubem Braga

As Boas Coisas da Vida

Uma revista mais ou menos frívola pediu a várias pessoas para dizer as “dez coisas que fazem a vida valer a pena”. Sem pensar demasiado, fiz esta pequena lista:

- Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.

- Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.

- Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos servente de pedreiro.

- Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.

- Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.

- Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.

- Viajar, partir…

- Voltar.

- Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio.

- Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 05 de maio de 2021

MEDICINA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

MEDICINA

Olavo Bilarc

 

Rita Rosa, camponesa,
Tendo no dedo um tumor,
Foi consultar com tristeza
Padre Jacinto Prior.

O Padre, com gravidade
De um verdadeiro doutor,
Diz: "A sua enfermidade
Tem um remédio: o calor...

Traga o dedo sempre quente...
Sempre com muito calor...
E há-de ver que, finalmente,
Rebentará o tumor!"

Passa um dia. Volta a Rita,
Bela e cheia de rubor...
E, na alegria que a agita,
Cai aos pés do confessor:

"Meu padre! estou tão contente!...
Que grande coisa o calor!
Pus o dedo em lugar quente...
E rebentou o tumor..."

E o padre: "É feliz, menina!
Eu também tenho um tumor...
Tão grande, que me alucina,
Que me alucina de dor...

"Ó padre! mostre o dedo,
(Diz a Rita) por favor!
Mostre! porque há-de ter medo
De lhe aplicar o calor?

Deixe ver! eu sou tão quente!....
Que dedo grande! que horror!
Ai! padre... vá... lentamente...
Vá gozando... do calor...

Parabéns... padre Jacinto!
Eu... logo... vi... que o calor...
Parabéns, padre... Já sinto
Que rebentou o tumor..."


Literatura - Contos e Crônicas terça, 04 de maio de 2021

A REFORMA DAS CORISTAS

 A REFORMA DAS CORISTAS

João do Rio

 

 

Naturalmente nós todos começamos a rir. A pequena tinha jeito para a coisa. Cada gesto seu era um modelo de topete e de cinismo, deste cinismo de bombonière em montra de confeiteiro, um cinismo que se oferecia, que se ofertava, que estava ali. No meio das outras, os cabelos louros repuxados para trás como a crina de uma poldra, o dorso cilhado pelas barbatanas do colete que lhe comiam o ventre, pondo em relevo a linha das ancas, o busto empinado, as mãos adejantes, a garota dançava como ninguém a vertigem do cake-walk. Fora Cinira Polônio, a estrela coruscante, que com seu faro de teatro descobrira na linha de vinte coristas aquele diabo.

- Olhem - fazia ela - por que não dançam vocês com a pequena?

Imediatamente, todos os olhos convergiram para o bichinho, minutos antes anônimo. O maestro parou: "- Homem, realmente, estou vendo isso mesmo!" O empresário coçou a cabeça, e todo o teatro, naquela hora de ensaio, em que a crua violência do sol do terraço tomava um esmorecido ar cerúleo para os lados do palco, esperou com um sorriso pregado na face. As coristas, algumas conservavam as mãos no ar e eram uma galeria de caras empapuçadas ainda do sono da manhã, mas bem moças, bem fortes. Cinira Polônio fez um gesto.

- Venha cá você.

A pequena sorriu e aproximou-se num passo de footing, o passo esporte inaugurado por certas cocotas nas fatigantes exibições do Castelões. Tinha um enorme chapéu de palha-do-chile com fitas de veludo, e era a única de lábios pintados.

- Pronto.

- Nunca trabalhaste em teatro?

- Não senhora, agora é que estréio.

- Ah! estréias agora, - sorriu a estrela acentuando o verbo. - E donde vens?

- Venho da casa de Chica Pereira, estou lá por causa de um sujeito que me queria explorar. Compreende, eu não sou dessas. Foi lá que eu aprendi o cake-walk com os ingleses, uns diabos, madame, que é chegar e é vestirem-se com a roupa da gente.

- E que idade tens tu?

- Eu vou fazer quinze.

- Bom, - fez o empresário - vamos vê-la dançar o negócio, mas só.

O maestro fez soar os primeiros acordes, e ela empinou-se, e como estava sendo observada, exagerou, caricaturou a dança num delírio que era uma pândega, brandindo a sombrinha e gritando away! Naturalmente, então, nós começávamos a rir, quando um empregado trouxe desdobrado um papel da Justiça para o ensaiador.

Embaixo, na platéia, um magote de agentes secretos e de soldados da polícia olhava o ensaio.

- Quem é aqui a Etelvina dos Santos? - indagou o ensaiador.

- Sou eu, sim senhor. Ainda esses canalhas!..

- É, o juiz manda entrega-la aos agentes. Você é menor, vai ser depositada numa casa de família.

- Imbecis! Já me mandaram buscar três vezes à casa da Chica. Não querem deixar a gente ser o que deseja. Mas eu os arranjo!

Todo o pessoal do teatro, coristas e carpinteiros, atrizes e atores, não teve uma pilhéria. A pequena tomou o seu ar mais arrogante, desceu à platéia, sumiu-se no terraço com os agentes, como quem vai esbofetear alguém.

- Mas que juiz esse que deseja moralizar uma pequena de tanta força.

- O diabo é que a rapariga tem jeito. Bom! A postos, minhas senhoras. Maestro, repita.

De novo o piano começou o cake-walk e as mulheres de capa larga, com a face desbotada pela noite em claro, moveram-se num rumor de sedas roçadas. Eu, a um canto, vendo passar no palco aquele punhado de mulheres, que à noite acenderia desejos na platéia, pensava na vida curiosa das coristas nacionais. Ah, as coristas! Neste país em que as mulheres não têm grandes necessidades, o posto de corista era positivamente dado às infelizes. Os autores nada lhes faziam nas peças alegres, nem as punham em relevo. Eram damas ou muito gordas ou muito magras, lamentavelmente sem graça. Quando aparecia uma criatura mais moça, ou não demorava, ou morria, ou era logo artista empurrada pelos cômicos, jungida às ligações violentas. E era uma tristeza ver mulheres velhas com famílias numerosas, o ventre enorme, o corpo numa elefantíase de linhas, cambando os sapatos e sujando as gazes, clamarem nos revistões cariocas: "Nós somos as ninfas", ou outra qualquer afirmação ainda mais escandalosa, para ganhar cinco mil-réis... Era angustioso. Nos ensaios, os ensaiadores esgoelavam-se para fazê-las compreender um gesto comezinho, nos intervalos, algumas davam de mamar aos filhos enquanto as outras se remordiam numa inconsciente miséria entre os carpinteiros bastante maus para atirar-lhes cenários e maços de cordas. As coristas! Eram os canhões de bucha, enquanto a estrela mudava de roupa e o ator principal punha outro colarinho. E não havia quem quisesse ser corista. Algumas tinham vinte anos de trabalho efetivo, talvez mais. Algumas eram contemporâneas da primeira revista nacional.

E agora, com a transformação das ruas, a cidade escamava de súbito a indignidade e o vício, mostrava todas as furnas do caftismo e nós víamos, ao desejo do luxo, ao contato com o horror, uma flora precoce de pequenas depravadas, galgando o tablado com uma ânsia de bacanal e piscando de lá o olho, na idade em que deviam brincar o ciranda-cirandinha das estalagens onde nasceram... Era ou não a civilização, era ou não o Rio reflexo de Paris, era ou não a cidade igual a todas as outras cidades, com as mesmas necessidades, a coréia de cinismo e o mesmo apetite pelos frutos ácidos, pela mocidade que todas as cidades velhas possuem? De embrulhada, o teatro também se transformava, e no gênero alegre nós iríamos ouvir as graças (sim, as graças, tudo é possível...) dos revisteiros apimentadas, esquentadas por todo aquele excesso de provocações fesceninas...

Mas que iriam fazer as outras, as velhas, as mães de família? Que iriam fazer esses bonecos de música desafinada, que durante decênios se estatelaram em cena, cantando como que a mesma coisa sempre? Como se alimentariam as pobres, agora, depois de uma vida inteira passada a dizer - "Nós somos, nós somos...", num coro vazio e lamentável, vestindo em cetins baratos todas as fantasias desde a de flor à de animal?

Oh! Era a reforma das coristas, reforma desoladora apenas para as reformadas, mas com um bando de recrutas, em que se sentia todo um exército feito por um sorteio indireto e lambanceiro.

O cake-walk acabava. Deixei o teatro, subi a Rua do Espírito Santo. Mais adiante outro buraco dramático. Enfiei, e oh! Deus do céu. Dei exatamente noutro escândalo da reforma.

No terraço, sob o riso dos carpinteiros e do pessoal barato, um tipo baixinho, magro, de calça larga e bigode torcido, espumava pragas contra uma menina de vestido curto, mal-ajambrada, ainda pouco limpa, com os olhos de animal e uma boca vermelha, uma boca sangrenta, uma boca que parecia um fruto. Já tinha mandado chamar o diretor, o tipo. Estava decidido.

- Mas o que é? - fiz, intervindo.

- Que tem com isso? - indagou ele. Venho buscar minha mulher.

- Quem é sua mulher?

- Sou eu - chorou a pequena. Sou eu, mas estou separada há seis meses dele, porque mamã disse que homem sem trabalho não é marido. Eu casei, não foi por gostar; foi porque o delegado obrigou. Burro!

- Desavergonhada!

- Mas que é isto? Você, menina, que idade tem?

- Quatorze, sim senhor, mas já sou maior e separada; e não vou, não vou, porque quero representar e ganhar a minha vida.

Deu uma rabanada e partiu para o palco, num bamboleio feroz de todo o corpo, enquanto o marido batia o pé, danado.

Neste momento, porém, apareceu o diretor.

- Não repares, filho. São as coristas novas. a reforma. Tudo voluntário, mas uma desorganização feroz.

- Sinto pelas outras e compreendo a miséria, o vício, o horror desses destroços precoces.

- Bonita frase! Anda daí, vamos tomar um grogue. Ó José, ponha esse marido lá fora...

E fomos tomar grogue gelado com algumas atrizes maduras e loucas de riso - porque os incidentes da reforma eram realmente alegres - enquanto o marido, empurrado pelos carpinteiros, saía aos trancos, praguejando...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 04 de maio de 2021

LADRÃO!... (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

LADRÃO!...

Humberto de Campos

 

A sala do júri da cidade provinciana enchera-se, desde o amanhecer, da melhor gente, não só do lugar, do perímetro urbano, como de todo o município e, ainda, dos municípios vizinhos. O processo que naquele dia se ia julgar, era, talvez, o mais sensacional formado na comarca. Tratava-se, na opinião geral, de um desses casos de degradação pela miséria ou pelo vício, da queda inesperada de um rapaz ainda novo, e dos mais considerados na sociedade local, da revelação, em suma, de um caráter baixo e depravado, que se disfarçara, até então, sob a roupagem do brio, da honra e das boas maneiras.

Amplo e simples, o salão do tribunal era uma grande peça com doze janelas, na ala direita do andar térreo e único da Câmara Municipal. Sobre um estrado, a mesa pesada e tradicional, para o juiz e os auxiliares. Em frente ao magistrado, o tosco banco dos réus. Ao lado, separado por uma grade convencional, os membros do conselho de sentença. Do lado oposto, a tribuna, pequeno púlpito de roça. E atrás, como no recinto de um cinema, os bancos para os espectadores, nos quais a multidão se comprimia, abanando-se com os leques, com os lenços, com os chapéus. Pintadas recentemente, as paredes eram brancas, de cal. Nestas, uma nódoa única, e essa mesma, sagrada: a imagem do Crucificado, a cabeça pendente, os braços abertos e flácidos ao peso do corpo, como num conforto triste aos que fossem, como ele, vitimas da justiça dos homens.

Embrulhado na sua toga, o juiz apareceu, cercado pelo silêncio geral. Era um homem alto, seco, de tez tostada, bigode curto e grisalho. Houve um movimento de cadeiras. A campainha soou, como nos atos litúrgicos. E a uma ordem do magistrado, entrou o réu, entre dois soldados.

Abelardo Padilha Porto era acadêmico de medicina no Rio quando, com a morte do pai, teve de interromper os estudos e regressar precipitadamente à sua cidade natal. Os negócios do velho agricultor não tinham corrido bem, nos últimos tempos. Endividado, os credores, logo após a morte do devedor, haviam-se apossado da fazenda, da casa, do gado, das plantações. E se ele, e a velha mãe, ainda viviam na propriedade, era apenas enquanto esta não era vendida, para rateio judiciário do produto. Era esta a sua situação de pobreza, e de vergonha iminente, quando se deu o crime, que espantara a cidade.

Entre os estabelecimentos mais movimentados da rua do Sal, estava o do português Antônio Rocha, constituído por uma casa de secos e molhados, cujo comércio diário subia a várias centenas de mil réis. A casa de negócio do gordo comerciante era, como em geral sucede no interior, o desdobramento, apenas, da sua casa de moradia. Com quatro portas de frente, três pertenciam ao armazém, e uma, apenas, à família, instalada nos fundos do prédio. A entrada para a casa de residência era, assim, independente; e feita por um corredor, comunicando-se, embora, a sala de jantar com o armazém, para o trânsito dos moradores.

Era aí, segregada do mundo, sem uma janela por onde olhasse a rua, que vivia, há dois anos, uma das moças mais bonitas da modesta cidade provinciana. Casada por necessidade, escondera no seu coração, ao entregar-se para sempre ao homem que era o seu marido, uma afeição que lhe nascera na infância, e que sabia correspondida. Por vários anos relutara, na esperança de uma longínqua felicidade. E quando não pudera mais, quando a velha mãe, já tuberculosa, lhe anunciou que não duraria muito na terra, foi que resolveu aceder ao pedido de casamento do vendeiro português, entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua alma.

A chegada de Abelardo Padilha ao município, para liquidar os negócios paternos, havia abalado, fundo, o coração de Santinha Rocha. Amava-o como nos tempos de menina, e, se a sua virtude, a sua condição de mulher honesta, lhe não permitiam mais a realização de um sonho que alimentara desde criança, restava-lhe, pelo menos, o consolo de dar-lhe, na situação que atravessava, uma demonstração concreta, e pura, da sua amizade de irmã. Possuía economias, feitas pouco a pouco, possuía jóias, que o marido lhe havia dado; e tudo aquilo seria dele, do homem a quem amara sempre, daquele que fora, na vida, a única esperança do seu destino irremediável. E se ela possuía meios, recursos sem aplicação, por que não o socorria, evitando-lhe uma vergonha, e, com a vergonha, a miséria, a fome, e, quem sabe? o suicídio aos olhos da pobre mãe entrevada? Urgia, pois, chamá-lo, falar com ele, socorrê-lo. Procurá-lo, não ser ia possível, pois que o marido não a deixava sair desacompanhada. O remédio, era, portanto, fazê-lo vir à sua casa, sem testemunhas, na noite em que Antônio estivesse ausente.

O processo era perigoso, mas era o único. Ademais, onde a estrada escura e coberta de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores? E foi instado, solicitado, insistido, por dois, cinco, dez bilhetes de coração, que o Abelardo aquiescera em penetrar, naquela noite triste, na casa do comerciante.

Antônio da Rocha havia saído, já há meia hora, em visita a um amigo, quando o vulto do antigo estudante surgiu à esquina, à claridade medrosa do pequeno lampião solitário. Parou, olhou em torno, examinando a rua. Não havia ninguém. Cauteloso, mergulhou de novo na sombra, e caminhava cosido com a parede, quando, em frente, exatamente, à porta do Antônio da Rocha, ouviu o seu nome, num sussurro, que o fizera estremecer:

- Abelardo... Entra!...

E logo duas mãos esguias, geladas, que apertavam as suas no escuro, e que, posta a porta no trinco, pois que o marido havia levado a chave, o conduziam, amigas, para a sala de jantar.

Pondo o coração nas palavras, a moça contou-lhe, nervosa, os olhos cheios dágua, o motivo daquela temeridade. Que ele não fizesse mau juízo da sua virtude, da sua seriedade de mulher. Amava-o, sem dúvida; mas amava-o com saudade, não com esperança. Quem o havia chamado ali, não era a noiva, era a irmã, a companheira dos outros tempos. Queria-o de todo o coração. E não consentiria que ele, e principalmente sua mãe, tão idosa e tão santa, passassem pela vergonha de serem postos na rua, sem um abrigo ou um pedaço de pão.

- Não é uma esmola que te dou, Abelardo; é um empréstimo que te faço! - disse, estendendo-lhe um maço de cédulas, que o rapaz, com a vergonha no rosto, recusava aceitar.

Nesse momento, porém, a porta estalou na fechadura.

- Meu Deus!... O Antônio!... - gemeu a moça, com olhos de terror.

E como alucinada, empurrando o rapaz pela porta que dava para o armazém:

- Foge!... Foge!... Pelo amor de Deus!...

E enfiando-lhe o dinheiro no bolso do casaco, às pressas:

- Toma!... Foge!...

Pesado e mole, com a atenção emaranhada nas cifras, o vendeiro levou, ainda, alguns minutos para limpar os pés no capacho, trancar a porta, experimentar os ferrolhos; e minutos tão longos que, quando chegou à sala de jantar, a mulher já estava no quarto de dormir, simulando o primeiro sono.

Antônio da Rocha fora criado, porém, com espírito de prudência e sentido de previsão. Três vezes por semana, antes de deitar-se, tomava de uma vela e percorria, examinando meticulosamente os menores recantos, os dois compartimentos do armazém. E naquela noite, mandava-lhe a consciência, mecanicamente, que cumprisse aquela obrigação.

A vela na mão esquerda, a direita no bolso da calça, o comerciante caminhava, despreocupado, entre pilhas de charque e sacos de arroz, quando ouviu, de súbito, um rumor de papéis remexidos. Estacou desconfiado e, depois de prestar melhor ouvido ao barulho, regressou ao quarto de dormir, apanhando o revólver e dizendo, para a mulher:

- Temos ladrão em casa... Vem cá!

- Antônio!... - exclamou a moça, sentando-se repentinamente na cama, as mãos na cabeça.

Tomando aquela exclamação como um grito de medo, Antônio da Rocha marchou, resoluto, para o armazém. E, à porta do compartimento das vendas, gritou:

- Quem está aí?

E outra vez:

- Se não responder, eu atiro!

E esse tempo, o comerciante, que apagara a vela, havia já alcançado o comutador da eletricidade. E quando uma onda de claridade se espalhou pela casa, iluminando tudo, Antônio da Rocha estacou, estarrecido: diante dele, encostado a uma das prateleiras, estava o "doutor" Abelardo Padilha, corretamente vestido, a fisionomia serena, tendo nas mãos, amontoadas em pilhas, várias mercadorias apanhadas apressadamente no escuro: latas de leite condensado, vidros de conserva, maços de fósforos, um queijo, um pequeno embrulho de café.

- O senhor... um ladrão!... - exclamou o vendeiro, a boca torcida, em uma ironia que era, ao mesmo tempo, de raiva e prazer.

A essas palavras, Abelardo Padilha estremeceu. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto, cegando-o. Teve ímpetos de atirar tudo aquilo para o lado, e estrangular o miserável que assim o insultava. Lembrou-se, porém, de Santinha, da sua reputação, do seu destino, do dever, que lhe cabia, de salvá-la, dando a sua honra de homem pela sua honra de mulher. E, baixando a cabeça, deixou cair, tudo aquilo, com estrondo, no chão.

E ali estava, agora, diante da cidade toda, para ser julgado.

- O acusado - indagou o juiz, a voz pausada e serena, - o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas... Que motivo o levou ali?

- O roubo, sr. juiz! - declarou Padilha, a voz trêmula.

E mergulhando a cabeça entre os braços desatou a chorar...

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 03 de maio de 2021

O ESPIÃO (CRÔNICA DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

O ESPIÃO

Dalton Trevisan

"Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar os homens se aglomeram. (...) A opinião unânime está a um milímetro do erro, do equívoco, da iniqüidade. (...) Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar." (Nelson Rodrigues)

"Foi o caso que uma boba domesticou de sua cadeira de rodas uma pombinha. Onde ia ela, ia a pombinha, só se afastava para ligeiro vôo ao redor do pátio - a paralítica estalava os dedos de aflição. Trazia uma vara na mão, sebosa de tanto a alisar: a ave prisioneira no círculo de alguns metros. Da varinha saltava para seu ombro, as duas beijavam-se na boca. As meninas faziam roda assustadas com a aleijada e deslumbradas com o bichinho pomposo, a cauda enfunada em leque, exibindo-se de galocha vermelha. De manhã, a pombinha morta. A paralítica gemeu sem sossego: a ave guardada numa caixa de sapato, não queria que a enterrassem. Para a acalmar, deram-lhe outra pombinha branca, e o que fez? Cravou-lhe no peito as agulhas de tricô."
 
 

Literatura - Contos e Crônicas segunda, 03 de maio de 2021

OS DOIS MENINOS (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

OS DOIS MENINOS

Coelho Neto

 

Ia um menino por uma estrada, cantando como os passarinhos que voavam de ramo em ramo, quando ouviu uma voz que chamava:

  • Menino loiro que ides passando ao sol com tamanha pres­sa, por que não descansais? Vinde aqui um instante: tenho mel e

bolos de farinha, e leite e dar-vos-ei tanto ouro quanto possa conter a bôl- sa que sobraçais.

  • Eu vos agradeço, disse o me­nino loiro, mas, como as horas voam e já soou a sineta, não me posso de­ter um só instante.

  • E aonde 1) vos levam passos tão ligeiros?

  • À escola.

  • Bem feliz sou eu que vivo sôbre moedas de ouro neste palácio de colunas de prata, cercado de gozos.

Que me importa 2) saber como nasce a planta, por que brilha a estrela, e o que houve dantes que me importa ? Sei que tenho tesouros, escravos, lei­tos fofos de penas onde me estiro pre­guiçosamente . . . que me importa o mais? Vais trabalhar tanto!… tenho pena de ti.

Anos depois, já moço, tornava o menino loiro a casa de seus pais, quando, ao passar no antigo sítio onde outrora avultava o palácio, lembrou-se do menino que o chamara e pôs-se a procurar os muros fortes, mas só via urtigas e ruínas, erva brava e escom­bros e uma. voz saiu dentre as ruínas:

seleta7-2

  • Esmola a um pobrezinho pelo amor de Deus! O moço loi­ro deu então com um homem alquebrado e envelhecido que estendia a mão trêmula. Caridosamente deu uma moeda ao pobre e lem­brou-se de perguntar pelo palácio que ali houvera 3) em tempos.

  • Ah! meu senhor, suspirou o infeliz. Quem o visse tão forte nas suas bases de granito e de mármore, não o julgaria tão fraco. Levaram-no as águas tumultuosas do rio num inverno, e todo o tesouro, que era grande, foi-se águas abaixo.

    • E o menino que nele vivia, que é feito dêle?

    • Aqui o tendes, senhor, nesta miséria que vêdes, sou eu mesmo. Vivo de esmolas, porque nada tenho e nada sei. Tudo quanto eu valia as águas levaram.

    O moço loiro, ouvindo êsses lamentos do infeliz, agradeceu no coração os cuidados paternos e bendisse as noites que passara debruçado à mesa dos estudos; caminhando dizia:

    • Ah! a fortuna que eu trago acumulada na cabeça, não a

    roubarão ladrões, não a levarão torrentes, porque as suas bases são mais fortes de que o granito e o mármore. Pobre menino do palácio de ouro! Coelho Neto.

1) Que diferença há entre onde, aonde, donde?

2) Que significa aqui o verbo importar? é transitivo ou intransitivo? é pessoal ou impessoal?

3) Que ali houvera = existira. O verbo haver acompanhado do complemento objetivo, significando existência de uma pessoa ou coisa, é impessoal e emprega-se na 3? pessoa do singular, assim: Há, havia, houve, haverá, haja homens. Houve sempre mulheres ilustres em todo gênero de virtudes. (N. Flor. IV. 246). Seria grave solecismo — houveram mulheres.

dois-meninos

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 02 de maio de 2021

O HOMEM É (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

O HOMEM É

Clarice Lispector

O homem. Como o homem é simpático. Ainda bem. O homem é a nossa fonte de inspiração? É. O homem é o nosso desafio? É. O homem é o nosso inimigo? É. O homem é o nosso rival estimulante? É. O homem é o nosso igual ao mesmo tempo inteiramente diferente? É. O homem é bonito? É. O homem é engraçado? É. O homem é um menino? É. O homem também é um pai? É. Nós brigamos com o homem? Brigamos. Nós não podemos passar sem o homem com quem brigamos? Não. Nós somos interessantes porque o homem gosta de mulher interessante? Somos. O homem é a pessoa com quem temos o diálogo mais importante? É. O homem é um chato? Também. Nós gostamos de ser chateadas pelo homem? Gostamos.

Poderia continuar com esta lista interminável até meu diretor mandar parar. Mas acho que ninguém mais me mandaria parar. Pois penso que toquei num ponto nevrálgico. E, sendo um ponto nevrálgico, como o homem nos dói. E como a mulher dói no homem.

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 01 de maio de 2021

CARICATURAS REAIS - ESTOU ROUBADO (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

CARICATURAS REAIS

Estou Roubado!

Raul Pompéia

 

Estou roubado! exclamou o Tancredo num dia de expansões.

Ele tinha expansões. Era do seu caráter exibir-se de vez em quando voltado ao avesso. Punha na rua todas as franquezas. Franquezas ou fraquezas, como queiram, porque no caso vertente Tancredo era franco a respeito de si próprio.

Há no Norte o costume grotesco de andarem os cafajestes, durante o entrudo, com os paletós virados, mostrando o forro e as costuras, por causa do polvilho que se arremessa aos transeuntes. Tancredo fazia uma cousa assim, mais ou menos. Quando estava de lua, lá saía... Todas essas intimidades que o recato encobre, todo esse estofo que forma o avesso das aparências sociais, ele punha à mostra. Inventava, no gênero cômico, o extremo oposto de Tartufo. Exibia desabridamente o forro de si mesmo.

 

Alguns dias depois de casado encontra-se ele com o primeiro conhecido. Era por um dia dos tais. Falam do consórcio.

Estou roubado! bradou Tancredo.

- Pois esse casamento não era o teu sonho de ventura?!

- Ah! meu amigo. Enganei-me redondamente... Sabes o meu gênio... Eu sonhava um amor de fogo. Chamas, chamas, chamas, um amor vulcânico, feito de incêndio e lava, um inferno de amor que me calcinasse o peito... Imagina lá que me saiu uma esposa fria!... Fria, meu amigo!... Estou casado com o polo Norte em pessoa!... Lembras-te do Capitão Hatteras de Júlio Verne?...Minha mulher é aquilo... Ora só a mim sucederia uma destas... Casado com um iceberg!

- Pois não a conhecias?

- Ora, qual! ver, amar, casar, foi o que fiz...

"Sonhava uma mulher ardente, com pólvora nas veias, capaz de voar pelos ares ao fogo da minha paixão. Qual explosão nem nada!... Aos meus afagos, boceja! Desarma os meus carinhos com uma frieza revoltante... Não sei a que expediente recorrer...

- Mas a tua esposa não te ama?

- Eu lá sei!... As mulheres frias amam alguém neste mundo? O que afianço é que a minha cara-metade me congela... Não sei como, a estas horas, não estou sorvete, exposto aos rigores daquele inverno!... Inverno, meu bom amigo, inverno para mim que sonhava um matrimônio de primaveras e verões. Quem diria! quando eu me inflamava ao fogo daquele olhar... que naquele olhar não havia fogo! Tanto viço, tanta mocidade! e uma frieza tamanha.

Ao vê-la, eu acreditava na embriaguez do amor, na febre do sentimento, no vinho de Hebe e nos seus efeitos. Qual vinho de Hebe! Puro Fritz, Mack & C. Ainda em cima, frappé!...

"Estou roubado! roubado nas minhas ilusões!... Queria uma mulher... E o senhor meu sogro serviu-me uma cajuada! Ora, cajuadas tenho eu no Leite Borges!... Banhos frios, de igreja... quando tinha o meu chuveiro!...

- Homem, Tancredo, não acredito muito nessa história de mulheres de gelo... A questão é achar-se a corda sensível...

- Qual corda sensível!... Minha mulher não tem corda sensível!...

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 01 de maio de 2021

A MAIS ESTRANHA MOLÉSTIA (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A MAIS ESTRANHA MOLÉSTIA

João do Rio

 

- Ah! Eu sou um monstro!

- Palavra?

- E um monstro, meus amigos, que pode confessar os seus apetites sem correr o risco de poder contemplar o mundo através das grades de um cárcere. Eu sou um infame.

Ditas estas palavras, Luciano de Barros estendeu-se, desalentado, no divã e soprou para o ar o fumo do charuto. Era depois de jantar e nós estávamos em casa de Lauriana de Araújo, uma das mais elegantes raparigas, de uma vaga semi-sociedade em falha, sustentada por um velho banqueiro de tavolagens e com grandes pretensões a mulher de espírito e à literatura. Os jantares eram sempre excelentes; o "maitre d'hôtel" irrepreensível, os serviços lindos, e bem se podia notar naquele ambiente, onde o velho banqueiro tinha o bom gosto de não aparecer, que Lauriana de Araújo sabia escolher com arte uma roda de homens citável. Havia nomes da Academia, nomes da alta elegåncia, o creme das duas casas do Parlamento, e sempre as altas figuras em trånsito propagador. Naquela casa de jantar cor-de-morango com frisos de faiança representando a glória de Pomonajá tinham estado um embaixador severo e um quase presidente de grande república européia. Ao acabar os jantares, Lauriana, sempre de rendas brancas, como envolta em espumas, acendia um cigarro e palestrava. Os homens recostavam-se nos divãs e posavam. De vez em quando tocava-se piano. Quase sempre, entretanto, na varanda guarnecida de jasmins, ouvia-se um séptuor de instrumentos de cordas. Era perfeitamente agradável. Ninguém ignorava que a anfitriã amável realizara já uma grande fortuna e que sabia, como ninguém, liquidar em seu proveito o dinheiro alheio sem estrépitos escandalosos. Só como amante de um ministro, obtendo concessões entre beijos, no espaço de três meses arranjara quinhentos contos.

- Farsista! Tu, infame? Tu não passas de um ingênuo... Era o conselheiro Andrade, conhecido por quarenta anos de ceias consecutivas, desde o remoto Rocher de Cancale até os desvairamentos dos "cercles" atuais.

- Eu, ingênuo?

- Pois então? Um infame, nunca diz que o é.

- Conforme.

- Afinal, intervinha Lauriana, o Luciano disse que era um monstro quando eu perguntava como compreendia o amor. O Luciano é sempre bizarro. Vai dizer para aí alguma barbaridade e liquida a infåmia.

- É impossível, minha amiga. Por que sou eu o dedicado servidor, e servidor sem interesse, de todas as mulheres? Nunca ninguém me perguntou. E, entretanto, é apenas por um permanente e cruciante remorso. Tenho trinta e dois anos, um físico menos mau, visto discretamente, sou mais inteligente do que o vulgar e tenho algum dinheiro. Para vocês, nada mais banal. Com esses elementos congregados, porém, e com uma alma incapaz de amar e de se dedicar senão à variedade, consigo numa sociedade moderna ser simplesmente o monstro. Como? Ora, como! Fazendo-me amar...

Um prolongado riso correu pelo salão de fumar


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 30 de abril de 2021

CANTIGA DE ESPONSAIS, CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS

CANTIGA DE ESPONSAIS

Machado de Assis

 

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão" - equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; - ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias." Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

- Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha.

- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

- Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me hoje adoentado.

- Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...

- Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...

O boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso dizer que ele padecia do coração: - moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

- Para quê? disse o mestre. Isto passa.

O dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão, - outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

"Está acabado", pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:

- Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: - rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

- Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...

O princípio do canto rematava em um certo ; este , que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

- Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...

Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao ....

Lá, lá, lá...

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.

Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

Lá... lá... lá...

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo  trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 29 de abril de 2021

AS PERDIZES, CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS

AS PERDIZES

Humberto de Campos

 

30 de janeiro

Chegado do interior de Minas, onde nasceu, vive, e não sabe se morrerá, o capitão Venâncio Pimentel, coletor em Poço Fundo, ficou deslumbrado com o Rio de janeiro. Com uma dezena de contos no bolso, provenientes da arrecadação semestral da coletoria, tomou o simpático sertanejo a deliberação de conhecer a cidade, guiando-se por si mesmo, dispensando, em tudo, o auxilio de estranhos. Teatros, cinemas, restaurantes, subúrbios, estabelecimentos públicos, tudo isso recebeu, de passagem, a visita da sua curiosidade.

Nada, porém, lhe causou tanta admiração, como a quantidade de mulheres desacompanhadas que encontrava na rua, principalmente nas proximidades do ponto dos bondes da Jardim Botânico, depois das nove horas da noite. Adivinhando-lhe a procedência, e farejando-lhe o dinheiro, essas criaturas infelizes acercavam-se do forasteiro, olhando-o de esguelha, sorrindo-lhe com brejeirice, num desafio maneiroso e calculado. Ele fixava então, a leviana, que tomava o bonde, e acompanhava-a até a Lapa, até o Catete, ou até a Glória, de onde voltava ao ponto de partida, para experimentar, de novo, quatro, cinco, seis, oito vezes, as mesmas sensações da conquista.

Uma destas noites, ia eu tomar o carro, às onze horas, em companhia do Sr. deputado Antônio Carlos, quando este descobriu, no ponto de costume, o capitão Venâncio, a quem me apresentou, contando-me, ao mesmo tempo, a fraqueza do seu velho correligionário e concidadão.

- Que gosto acha o senhor nessa extravagancia, Sr. Pimentel? - perguntei eu, escandalizado, ao mineiro, acentuando as palavras com a tonalidade proposital da minha censura.

- Gosto? - atalhou o sertanejo. - Gosto, eu não acho nenhum. Eu acho é engraçado.

- Engraçado? - estranhei.

- Sim, senhor. Eu faço isso para me lembrar de Minas, das minhas caçadas no Poço Fundo. Cada mulherzinha dessas é mesmo que perdiz.

- Perdiz? - interveio o Dr. Antônio Carlos, admirado.

- Sim, senhor. Vossa Senhoria nunca andou caçando perdiz?

E explicou, ajudando a palavra com a mímica:

- A gente vai, às vezes, pelo mato, pisando aqui, pisando ali, cauteloso. com a espingarda calada, quando ouve, de repente, um barulho no chão, entre as folhas. Olha, e vê: é a perdiz que está no folhedo, imóvel, quieta, olhando p'ra gente. Sentindo-se descoberta, solta um vôo baixo, rasteiro, junto do solo. A gente não atira: vai andando, vai seguindo, vai acompanhando a bicha, até que ela, afinal, chega no ninho.

- E quando a perdiz chega no ninho, que é que faz? - indaguei, curioso.

E o capitão, rindo:

- Que é que faz? Deita-se!

E saltou para o estribo de um bonde, espantando uma revoada...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 28 de abril de 2021

COLABORAÇÃO, CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO

COLABORAÇÃO

Aluísio Azevedo

 

Há uma cousa verdadeiramente horrorosa para todo o desgraçado em cujos dedos a triste sorte enfiou uma pena, ainda mesmo quando essa pena seja tão desatilada e tão romba como a minha – é a obrigação de concorrer com algum produto de sua lavra sempre que os amigos se lembram de realizar qualquer empresa ou empreender qualquer negócio.

Essa pequenina obrigação, que vista isoladamente não tem o mínimo valor, transforma-se todavia em um compromisso grave, em um martírio implacável, desde que ela representa a promessa de vinte, trinta, cem, mil artigos, destinados aos fins mais diversos e mais desencontrados.

E a graça é que não se pode a gente recusar a nenhum dos amigos, porque todos eles querem muito pouco: “Duas palavrinhas! Apenas duas palavrinhas, com o nosso nome por baixo!…” Ou então querem uma simples carta, uma simples notícia, um ligeiro pensamento, uma frase, um verso, uma palavra.

Este deseja que lhe escrevamos um anúncio de gosto, com que ele possa chamar a atenção do público sobre os seus queijos ou sobre os seus chapéus de pêlo: aquele quer apenas que lhe façamos uma boa resposta a uma certa carta que lhe enviou certa e determinada pessoa; estoutro não exige de nós senão uma página no seu álbum; aqueloutro contenta-se com um discurso que ele tem de pronunciar por ocasião do aniversário natalício de seu sócio; aqui é uma reclamaçãozinha pela imprensa a respeito dos escândalos que se dão em tal rua; ali uma introdução para o livro de um amigo e colega que vai estrear; mais adiante um artiguinho para encher o número do jornal, que nesse dia está fraco. Hoje – a poliantéia do senhor fulano; amanhã – o número especial da folha do Dr. Beltrano; depois – folhetim sobre os trabalhos de cicrano, rodapé pr’a cá, artigo de fundo p’ra lá, crônica para acolá.

Uf! É um nunca terminar de pequeninas maçadas que, reunidas são o bastante para nos amargurar a existência.

Chega-se a perder o gosto de sair de casa, de procurar os amigos de fazer a sua palestra; porque a cada passo surge-nos um dos tais credores de artiguinhos e pensamentos filosóficos.

“Então, fulano, aquilo!…”

“Aposto que ainda não fizeste o que te pedi!…”

“Trouxeste o artigo que prometeste?… “

“Quando estarás disposto a dar um passeio pelas nossas colunas?…”

“Queres ou não queres aprontar a correspondência?…”

E cada um, por que pede muito pouco, entende que não merecemos ser desculpados pela demora.

– Oh! Duas linhas! Duas linhas escrevem-se em três minutos!

– Mas filho! é que me falta a idéia! Estou seco, não sei o que te escreva!

– Qualquer cousa, homem!

– Enche aí duas tiras. Seja o que for.

– Seja o que for?… Pois bem, ora espera! Vais ver como te ensino!


Literatura - Contos e Crônicas terça, 27 de abril de 2021

GAETANINHO, CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO

 

GAETANINHO

Alcântara Machado

 

“- Xi, Gaetaninho, como é bom!

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
– Eh! Gaetaninho Vem pra dentro.
Grito materno sim : até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.

– Subito!

Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.

Eta salame de mestre!
Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.

O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.

Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.

Que beleza , rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO.

Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.

Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.

Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com mania de cantar o “Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou.

Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio. Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.

Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.

O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.

– Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
– Meu pai deu uma vez na cara dele.
– Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
– Assim não jogo mais ! O Gaetaninho está atraplhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.

O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.

– Passa pro Beppino!

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.

– Vá dar tiro no inferno!
– Cala a boca, palestrino!
– Traga a bola!

Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.

No bonde vinha o pai de Gaetaninho.

Agurizada assustada espalhou a notícia na noite.

– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!

A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Lá no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.

Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.”

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 27 de abril de 2021

BAGATELA, CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS

BAGATELA

Machado de Assis

 

I

 

Um dia do mês de maio de 1842, numa das últimas janelas de uma casa, que forma a esquina da rua Hautefeuille e da rua Serpente, estava encostado um moço pensativo e melancólico.

 

Era — para usar da expressão da Torre de Nesle — uma bela cabeça que mais de uma rapariga teria visto passar em seus sonhos. Não uma bela cabeça, à maneira dos keepsakes mas a pálida e inteligente fisionomia que se encontra muitas vezes nas obras de Lemud e em seu mestre Volfrand, além de outras; bem o sabeis, leitor, este ouvinte atraente e grave do primeiro plano.

 

Percebia-se a vida da alma através do invólucro do corpo; e depois de contemplar aquele rosto que revelava o trabalho interior, não podia haver engano, e era força exclamar: — É um artista ou um poeta.

 

Henrique d'Auberseint era com efeito uma e outra coisa. Poeta, ele o era, como todas as criaturas felizmente dotadas e maravilhosamente organizadas para o sofrimento. Porquanto a alma do homem inteligente, o coração do poeta, do artista ou do filósofo, é um alaúde que vibra harmonioso e sonoro ao sopro de todas as paixões humanas, grandes, fortes e belas.

 

Henrique era, pois, poeta. Mas sobretudo era artista. Há nos cais, nas exposições de amostras de certos comerciantes, essas fitas que não estão seladas com um nome, mas que são obras-primas. Uma obra-prima, assinada com um nome obscuro, será acaso uma obra-prima? Obscuro — quanto nos temos votado a este rude trabalho, orvalhado de suor do sangue, que se chama vida de artista — obscuro quer dizer pobre. Henrique era pobre. Ah! Implacável e madrasta natureza, bem faz aquele que te morde no seio para forçar-te a alimentá-la! É andar — há de ser sempre feliz...

 

Henrique foi perturbado em seu cismar por um rumor de passos precipitados que se fez ouvir na escada. A porta da mansarda abriu-se bruscamente e entrou uma mulher.

 

— Bagatela! — exclamou o artista levantando-se e indo ao seu encontro.

 

— Onde está ele? — pronunciou ela com uma voz entrecortada pela fadiga, tomando a mão do mancebo e voltando para ele seus olhos obscurecidos pelas lágrimas.

 

Henrique não compreendeu ao princípio esta pergunta proferida de envolta com um soluço aos seus ouvidos inquietos, e durante alguns minutos ele contemplou Bagatela com admiração.

 

O semblante da moça radiava neste momento com uma beleza sobrenatural que não lhe era comum talvez. As grandes dores desfiguram, assim como as grandes alegrias.

 

Ela era bela, como uma bela virgem — com a elegância de maneiras e fineza de trato de uma parisiense. Era bela, muito bela!

 

— Mas o que acontece? pergunta Henrique com uma ansiedade, que crescia de minuto em minuto.

 

— Mas desapareceu! Há dois dias que não se tem notícias dele! — respondeu Bagatela com um ar sombrio. E se meus pressentimentos não se enganam, — ajuntou ela com um novo soluço e novas lágrimas — morreu!

 

Henrique soltou um grito.

 

— Tomai, — continuou a moça apresentando-lhe uma carta — lede depressa... eu vo-lo conjuro... Lede depressa... Acabam de ma entregar e é para vós... Reconheci a letra do nosso amigo... Estive a ponto de abri-la... Vede... Lede, Henrique, lede em nome do céu!

 

Henrique, trêmulo, com os olhos perturbados, abriu convulsivamente a carta que a moça lhe apresentara, e leu o que segue:

 

É um morto que te escreve, meu caro Henrique, um verdadeiro morto, com a tinta negra do Estígio lago, e com uma pena arrancada à asa de uma qualquer ave noturna ou maligna, vampiro ou o que quiseres.

 

Não grites, não lamentes, não chores. As lamentações ensurdecem, e as lágrimas, vês-tu, são uma parvoíce... O fato está já consumado, e não é mais possível uma volta:

 

— Quem volta de tão longe?...

 

Faço-te a minha derradeira confissão, com certos conselhos e certas recomendações, que te peço tenhas sempre em vista.

 

Tive uma mãe, como qualquer porteiro, mas, conquanto saibamos sempre que procedemos de alguém — segundo a opinião de Brid'oison, estou, todavia, embaraçadíssimo quanto a afirmar de quem sou filho. É imoral, mas é verdade. Quanto ao meu nome — nada sei de legal — pela ausência de qualquer declaração de meus autores nos registros da municipalidade. Mas eu tenho um, fantasiado, todo ao acaso, entre os nomes calendários: é — Máximo — nem mais, nem menos.

 

Máximo — fui criado; Máximo — cresci; Máximo — vou desta para a outra vida. Tu sabes, além disso, que entre a rapaziada chamava-me Max, por enquanto a vida é tão curta... e inútil é alongá-la com três letras realmente inúteis.

 

Isto, quanto ao meu nascimento e quanto ao meu passado — um pouco semelhante às origens do Nilo. Não sabendo donde vinha, compreendes bem que eu nunca saberia onde ia. Um bastão tem sempre duas pontas; — um começo e um fim. Por muito tempo embalei-me na esperança de ter um fim e assemelhar-me, ao menos por aqui a um bastão. Eu acreditaria de boa vontade na eternidade das rosas, mas sempre me repugnou acreditar na eternidade da eternidade...

 

Se eu não conheci os meus autores — em desforra conheci a vida — triste conhecimento, entre parênteses. Tiveste muita vez um espécimen de meu caráter fantástico e razoável. Eu era ao mesmo tempo o mais jovial rapaz, e o mais aborrecido indivíduo que se possa imaginar. Pamérgio forrado de Trenmor. Muitas vezes me levantava com projetos fantásticos que, postos em execução teriam feito arrebentar de riso a venerável estátua do Hospital. Muitas vezes entrava para casa com o semblante pálido, enrugado — e envelhecido horrivelmente. Lançava-me à cama, enchia de fumo o cachimbo, fumava-o e atirava-o pela janela com uma raiva surda — sem respeito à sua cor poética de bistre. Nesses dias eu seria capaz de devorar um policial — com as bandeirolas, mas sem as botas, entretanto.

 

Não repares nos arabescos do meu estilo; estes gracejos são um vestido de arlequim — o coração palpita embaixo. Hoje, ao escrever-te, sinto-me disposto a rir e rio-me. Vale isso mais, acredita-me, do que atirar poeira ao céu, como os Gracos. É meia-noite, acabo de encontrar alguns frangos éticos, fugindo de mim nas ruelas sombrias da Cité. Deu-me isso uma alegria! Por quê? Ah! sim, porque! sempre este ponto de interrogação!

 

Abro-te a porta da alcova dos meus sentimentos; não é a primeira vez, mas a última. Passava uma vida de tédio neste planeta, e além disso tenho um instinto viajor que me impelia sempre para as estepes infinitas do incógnito. Corro para lá, em teus braços, grande X., corro para lá, abre-os bastante!...

 

Estou, pois, a esta hora em marcha para a famosa viagem ao campo de que falam alguns. O abade de Saint-Pierre. Eu mesmo me forneci um passaporte inglês de Wester; não encontro, embora, alfândegas nas fronteiras da vida!... Meti audaciosamente a mão na urna do destino — e antes da minha hora — subtraí — o meu número... Eis tudo!

 

Agora falemos um pouco de ti — e dela, dela! dela!... Prometi-te um conselho, vou dar-to. Tu tens talento, Henrique, um grande talento: confirma-o perante a multidão, ela não achará dificuldades em acreditá-lo. Foste talhado por um Deus de Homero; em três passos atingirás ao termo, mas é preciso dar o primeiro; mãos à obra, os outros dois é apenas uma pernada.

 

Isto quanto ao conselho. Agora aos legados. Faço-te meu herdeiro universal. Tudo o que existe em minha oficina é teu. Sabes o que valem as telas de um artista morto? As minhas te ajudarão a viver. Vende-as!

 

Leva à Bagatela aquela pintura que eu fiz ligeiramente um dia em sua casa... Mostra-lhe esta carta, consola-a, ama-a, protege-a; responder-me-ás por ela.

 

Bagatela é a escolhida de meu coração... Um dia, em que ela estava triste e eu alegre, dei-lhe este nome de Bagatela que prevaleceu sobre o seu de — Gabriela. Peço-lhe que o conserve, é minha vontade; fui eu que lho deu! Tu e ela foram para mim o mundo. Ela era o amor — tu, eras a amizade. Por que me não bastavam estas duas felicidades? Por quê? ainda este maldito ponto de interrogação...

 

Assim, chego à recomendação que te queria fazer: — é grave, é um morto que ta faz, Henrique. Cumpre obedecer religiosamente. Que Bagatela seja tua irmã, Henrique; sê o seu protetor, seu amigo, seu pai — mas, nada mais. Pensai em mim algumas vezes e entretanto sede ambos fiéis à minha memória

 

Dixi — Adeus, Henrique, adeus, Bagatela, adeus ...

 

Máximo — vulgo o Velho!

 

“Todo como o velho Palma !...”

 

 

 

II

 

— Morto! — murmurou Auberseint com uma voz sombria. — Morto sem me ter apertado a mão!

 

— Morto! repetiu por sua vez a moça — meus pressentimentos não me enganaram... Meu Deus! Meu Deus!...

 

Pronunciando estas palavras, vacilaram-lhe os joelhos; a trepidação compulsiva de seu corpo tornou-se mesmo tão violenta que se Henrique não a tivesse retido nos braços ela rolaria pelo chão.

 

— Gabriela! Gabriela! — gritou Henrique com um desespero cheio de solicitude.

 

— Ah! Max! querido Max! — soluçou Bagatela — Max por que nos deixas assim?

 

— Como ela o ama! — murmurou Henrique — Feliz morto!

 

— Ah! Henrique — tornou Bagatela — não sabeis o que perco eu na morte dele! aquele nobre espírito, com o nobre coração... Eu lhe devia tanto, que nem todos os amores, e adorações bastariam para pagar-lhe!... Não o sabíeis, Henrique, pois que a sua delicadeza com semelhante confissão teria sofrido. — Ele levantou-me da calçada em que eu estava na rua, uma noite de inverno, eu tiritava de frio, tinha fome, e minha mãe acabava de morrer... Nossa história, a minha e de minha mãe — não vo-la contarei... é banal como a miséria, simples como a dor!... Eu estava pois na rua — exposta ao vento e à neve, desfalecida, semimorta e quase louca!... Máximo passou. Quando ele viu as lágrimas que corriam pelas minhas faces azuladas pelo frio, quando ele viu a minha miséria e o meu desespero, levou-me para a sua casa de artista, deu-me a chave dela, e pelo espaço de três meses, foi para comigo respeitoso, benfeitor e dedicado. Procurou-me trabalho... Enfim, uma manhã bateu à minha porta — “Minha menina — me disse ele com tristeza — é preciso que nos separemos... Tenho uma má reputação, ao que parece, e é mister que a vossa não sofra. Não deveis desmerecer aos olhos das pessoas de bem... Aluguei para vós, em vosso nome, na rua do Oeste, uma pequena habitação — donde se descortinam os jardins de Luxemburgo e onde eu vos pedirei como um favor — a permissão de ir algumas vezes, como amigo...”

 

— “Oh! sempre, senhor Máximo! sempre quando quiser... Eu não sou senão o que me fizeste: uma costureira modesta e feliz por viver do produto de seu trabalho... Esta ventura.., eu vo-la devo... Deus vos abençoe por isso!”

 

— Eis aqui o que eu respondi a Max com as lágrimas nos olhos, ajuntou Bagatela.

 

— Bem sabeis, Henrique, como foi nobre e desinteressada a conduta do nosso amigo... Eu o amava — nunca lho disse... mas dir-lho-ia um dia se ele esperasse um pouco... Acreditou talvez na minha frieza, na minha indiferença, e contudo Deus sabe com que gratidão eu aceitaria a oferta de seu coração e de seu nome!

 

Bagatela calou-se. Era grande a sua emoção na evocação destas recordações.

 

Com efeito, ela amara tão ingenuamente Max! como Gretchen ela fizera tanto por ele — que ele já nada lhe tinha a fazer... Porém Max tinha cousas singulares no cérebro... amava profundamente Bagatela... cercara-a sempre de cuidados delicados de atenções ternas, mas sempre de mistura com uma espécie de respeito. Ela era para ele mais que uma irmã e menos que uma amante. Quando trabalhava, entre ela e Henrique, ele lhe lançava de vez em quando um olhar paternal e amoroso ao mesmo tempo, e murmurava depois: “Há de ser minha mulher!”

 

— Oh! Max! Max! murmurou de novo Bagatela.

 

— Ah! feliz morto! — murmurou de novo Henrique.

 

Na tarde desse dia, o jornal — O Mensageiro — publicou estas linhas: — “Acabamos de saber da desaparição de Mr. Máximo — vulgo o Velho — Mr. Máximo tinha há algum tempo acessos de febre ardente e tudo faz crer que em um desses momentos pôs fim aos seus dias... É uma perda imensa para a arte de que Mr. Máximo era um digno representante... Cumpre registrar a sua morte no martirológio dos grandes pintores — que o desespero, uma paixão continuada ou qualquer outra cousa levaram ao suicídio... Depois de David, morto longe da Pátria, depois de Gros — agonizando no Sena, depois de Leopoldo Roberto, que se degolou em Veneza — depois de Gericault Sigalon, citamos o fim doloroso de Mr. Máximo!

 

É assim que se escreve a História!”

 

Alguns meses se passaram e — é mister confessá-lo para vergonha eterna deste pedaço de caoutchouc (borracha) que se chama coração humano — e cada dia levava consigo uma porção do amor e da amizade que Henrique e Bagatela votavam a esse pobre Max, morte sem dúvida, para os fazer felizes.

 

Toda a dor desaparece com o tempo por mais profunda que seja... cedo os pesares deixam de manchar o estofo cambiante da existência... Nem custa a desembaraçar a alma das recordações, que ligam ainda os vivos aos mortos... Assim, vai o mundo! Ontem, dor que parecia ser eterna, — sim, eterna como a aurora; hoje, esquecimento total das criaturas extintas, e cuja presença, além disso, seria importuna! E, realmente, os mortos são bem maçantes personagens em exigir uma memória sua sobre a terra. Para quê?

 

Todavia, não nos devemos apressar em deitar a primeira pedra da exprobração a essas duas pobres crianças. Max não estava totalmente morto na memória e no coração de Bagatela e de Henrique. Este último, sobretudo, quase às portas da miséria, apesar da herança que lhe deixara seu amigo, parecia acabrunhado por um remorso secreto de resto, bem fraco pela idéia de que Bagatela não partilhava seu criminoso amor. Primeiro que tudo, por uma dessas delicadezas do coração, que os amantes hão de compreender — tinha perdido o hábito de pronunciar esse nome de Bagatela sob o qual Max amara a mulher que ele amava também, posto que sem esperança. Em segundo lugar perdera ele também o hábito de se dirigir para o lado da casa de Bagatela.

 

Esta, por seu turno, não ousara queixar-se deste apartamento, mas lastimava-o porque o viu sofrer, e as mulheres que têm uma missão sobre a terra de mansidão, de comiseração, de afetuosidade, nunca faltam a ela. Bagatela sabia que Henrique era pobre e orgulhoso, e atribuía à sua miséria, que ele quisera suavizar, a dureza e grosseria que mostrava. Somente de vez em quando afligia-se a pobre moça com seu silêncio tenebroso, quando o interrogava delicada e amigavelmente sobre as causas dessa dor que o minava surdamente... Henrique não podia confessar-lhe que era o seu amor por ela a causa única de seus tormentos e de seus combates de cada dia. Não ousava confessar-lho receando chamar sobre si sua cólera e desprezo... Belas, completas, e ingênuas eram aquelas naturezas! Como Henrique se assemelhava a esses D. Juans que inundam os salões e os bastidores, e que imaginam como Hans Svederlick, que não há honra nem favor que não possam colher, querendo para eles, “toda a galante flor!” Pobre namorado! pobre poeta! pobre artista!

 

Compreendendo, enfim, que aquele amor o mataria, Henrique resolveu um dia matar-se e acabar com um golpe suas irresoluções e sofrimentos. Mas, ele não queria morrer na rua para ser transportado e exposto figura hedionda — sobre as hediondas tábuas da Morgue! Não!... a morte na sua pequena mansarda, ao pé de seus quadros, de suas obras: — na sua mansarda ainda perfumada com a presença de Bagatela: na sua mansarda, onde ele vivia com a imagem adorada, onde ela chorara; e onde lhe apertara a mão ao despedir-se! Essa morte, sim, valia a pena!

 

Além disso, ele morria descansado sobre a sorte dessa mulher por quem ia morrer; porquanto no primeiro dia de cada mês, à noitinha, um velho, cujo semblante austero e melancólico causava respeito, apresentava-se em casa de Bagatela, dava-lhe um rolo de 150 francos, rendimento mensal que lhe deixara Max; depois retirava-se cumprimentando, mas sem proferir uma palavra.

 

Uma noite, pois, Henrique entrou em casa resolvido a pôr termo à existência que o acabrunhava. Acendeu a lâmpada, correu os ferrolhos da porta, que não se fechava de todo, e depois de algumas disposições testamentárias, tomou uma pistola que pusera ao entrar em uma mesa e carregou-a...

 

— Amo-a muito, murmurou ele penivelmente, para não persistir em minha resolução... Sede fiel à minha memória! — disse Max.., serei fiel à sua memória... vamos... Daqui a poucos minutos estarei de jornada para a eternidade!... Ele gracejava nos seus últimos momentos... Max! Tinha essa coragem... Ah! É que era amado! Por que matou-se? Eu nunca ousara conceber esta esperança que faz minha alegria e suplício... Adeus, pois, vós todos objetos queridos que vou abandonar, adeus!

 

Henrique inclinou orgulhosamente a cabeça. No momento em que colocava na fronte o cano da pistola, bateram na porta. Abaixou a arma e esperou. Bateram de novo, mas com uma violência inaudita. E a porta rodou sobre os gonzos...

 

— Henrique! que íeis fazer? — exclamou Bagatela, precipitando-se ao mancebo e arrancando-lhe a pistola.

 

— Bem o vedes! — respondeu ele com uma voz surda — ia morrer!

 

— Morrer! tu, Henrique! oh! não deves morrer... eu to proíbo!

 

Dois olhos e dois lábios que dizem eloqüentemente: — vivei! têm o direito de serem ouvidos. Henrique sentiu desvanecerem-se as suas veleidades de suicídio... sobretudo quando Bagatela ajuntou:

 

— Há muito tempo que eu adivinhei o teu amor — porque eu também te amava; sofrias, dizes tu? E eu? Eu! acreditas então que eu não houvesse mister de coragem, ou antes de crueldade, para deixar-te assim esperar-me, sofrer e chorar? Combatias contra o vão fantasma de um passado que lá vai... lutavas com um remorso que não deve mais pesar em teu coração, agora que eu venho a ti, e te absolvo! Se é um crime esse nosso amor, meu doce amigo, tomo sobre mim a responsabilidade e a vergonha... Podemos ser felizes de hora avante, Henrique, pois que eu sou rica... um parente de minha mãe deixou-me uma herança... É uma bênção do céu! não teremos mais necessidade dos benefícios póstumos de Máximo.

 

Mr. Heine tem razão: “Todos sabem o que são cacetadas; mas o que é amor, todos ainda ignoram!”

 

— Gabriela! — respondeu Henrique com um desespero misturado de tristeza. — Fugi, deixai-me só... Há entre nós uma barreira que não podemos transpor... a lembrança de Máximo?

 

— Mas tu não me amas, Henrique?

 

— Não te amo! Mas não é por ti que eu quero morrer? Deixa-me... não quero ser perjuro!... vai-te!

 

— Ficarei aqui! — disse Bagatela com uma voz resoluta. — Há oito dias que te espero... oito séculos! pois que eu os contei... Tu não me procuraste... procurei-te eu... Venho dizer-te: separados, éramos infelizes; reunidos...

 

— Oh! não acabes, Gabriela.

 

— Então morramos ambos morramos...

 

— Ainda não, meus filhos — disse uma voz.

 

Bagatela e Henrique voltaram-se e viram, a primeira com medo, o segundo com espanto, aproximar-se um velho, cujo casacão pardo e cabelos brancos tinham um ar respeitável.

 

— O desconhecido! — murmurou a moça.

 

— Senhora, eu vos saúdo — disse o velho com uma voz trêmula e um pouco desfalecida. — Bom dia, Senhor! estão ambos espantados... que tínheis! Queríeis morrer, meu jovem amigo? Ah! fora com isso! é bom para os maníacos, e vós tendes juízo.

 

— Ah! esta voz! esta voz!... — exclamaram Bagatela e Henrique.

 

— É a de um homem que vos ama e quer a vossa felicidade, meus filhos... — retrucou o velho; — eu soube apreciar-vos ambos, há bastante tempo, posto que pouco me conheceis. Mr. Máximo, de quem fui amigo outrora, deixou-me o cuidado de velar sobre vós... Obedeci-lhe religiosamente... Vós que sois tão dignos um do outro, — (aqui a voz do velho fez-se um pouco irônica, o que não notaram os nossos amantes; tão ocupados estavam em recordar-se onde tinham ouvido essa voz tão fresca e suave ainda, apesar de seu abalo tremor de ancião)! Vós que sois tão dignos um do outro... ide tocar a meta da ventura! eis aqui o vosso dote... não é considerável... porém Max ficará satisfeito — lá em cima, se o aceitardes.... É a última recordação que ele vos dá... Minha missão está terminada... O que vos peço ainda, em nome de Max, é de vos lembrardes algumas vezes, de vez em quando, quando não tiverdes outra coisa a fazer... nas vossas horas de tédio, ou de prazer, que um homem existiu, que vos criou, e levou consigo a consolação de ter ao menos as vossas saudades... é bem pouco uma recordação... e bem pouco uma lágrima... Fazei algumas vezes essa melancólica esmola dos vivos a um morto, que só tem aqui na terra uma preocupação: — a vossa ventura. Adeus, só me vereis ainda uma vez, no dia do vosso casamento; até mais ver, meus filhos e... até mais ver!....

 

E sem esperar uma resposta de Bagatela ou de Henrique, o velho desapareceu.

 

— Henrique, murmurou Bagatela com uma doce melancolia. Henrique... bem o vedes... Nada mais se opõe à vossa ventura... Mas não vos quis legar um remorso...

 

Coisa estranha! — justamente em razão daquela absolvição que Max dera, de além-túmulo aos seus criminosos pensamentos, Bagatela e Henrique sentiam a consciência agitar-se, e apenas o artista morto levantava os seus escrúpulos eles renasciam mais vivos em suas almas...

 

— Oh! Max valia mais do que eu! — respondeu Henrique, voltando a cabeça, para ocultar à Bagatela a vista de uma lágrima que lhe resvalara furtivamente na face.

 

 

 

III

 

Um mês se tinha passado e em uma capela da Igreja de S. Sulpício, um padre abençoava dois jovens que tomavam diante de Deus o cargo de se amarem até a morte.

 

A um canto da capela estava um velho imóvel, com o pescoço estendido, que seguia com o olhar febril e quebrado cada movimento dos novos esposos que eram Bagatela e Henrique... apenas a moça pronunciou corando de ventura o sim fatal, o velho estremeceu e a sua fisionomia exprimiu uma angústia dolorosa...

 

Terminada a cerimônia dispersou-se a multidão. Bagatela estava radiante com o vestido azul do céu que parecia abençoar esta união e sorrir a esta festa. Henrique tinha por momentos, um ar pensativo e triste e quando subiu para o carro, procurou e fez procurar por toda parte o velho; mas ele tinha desaparecido.

 

Enquanto os noivos se iam de seu lado contentes e brilhantes, ele apressava o passo com um ar sombrio, para chegar mais depressa.

 

Subiu uma escada de uma casa da rua dos Mártires, abriu uma porta e achou-se em uma oficina povoada de quadros, de estátuas, e objetos de arte. Parou então, pôs a mão sobre o coração e contou as pancadas. — Tudo está acabado! murmurou ele com uma voz quebrada. — Ela e ele são felizes... Está bem...

 

E ficou entregue a uma meditação profunda que tinha por fim incessante uma determinação terrível.

 

— Nada de saudades estéreis! Nada de desejos quiméricos! — disse ele contemplando com olhar quebrado e resignado as nuvens que purpureavam o horizonte — lá vai o tempo das saudades e desejos... agora é a agonia... é a morte... a morte! Oh! ela já está em mim... em mim todo!

 

E pôs a mão sobre a fronte!

 

— A inteligência, esse archote soberbo que irradia isoladamente ao lado do próprio sol?... Está apagada em mim...

 

Pôs a mão no coração:

 

— O coração, esse diamante precioso que nada altera... Meu coração! quebrou-se em mil pedaços, como vidro...

 

Sorriu amargamente e continuou:

 

— Ah! os cantos de meu coração, e as marcas da minha vida são como cipós da Via Apiena: não há mais que cinzas e aqui jaz! Sobre os destroços dos meus amores e de minhas esperanças, só tinha de dormitar agora... Ah! a vida é feita de abrolhos e espinhos... Pobres ovelhas que o invisível pastor leva ao matadouro da morte, deixam lã a cada espinheiro, sangue a cada fonte de pedra... Pus o dedo sobre a ventura e a ventura fugiu-me para não voltar mais...

 

As divinas promessas do amor esvaneceram-se ao sopro gelado da indiferença... como eu era insensato! crer na coragem de Henrique e na virtude de Bagatela! Oh! queridos ídolos derrocados! Mas para que inventar Galatéas impossíveis? por que quis eu apoiar a ventura de toda a minha vida na areia movediça das paixões? — Quis, fatal pensamento! — submeter o amor de um e a amizade de outro à pedra de toque da ausência, e essa experiência provou-me o egoísmo dessas duas afeições sem as quais eu não podia viver... No fundo da ânfora onde as lancei ambas, resta um pouco de ouro puro e muita terra...

 

Não me amam mais, não me podem mais amar... E é tal o desencanto horrível de minha alma que nesta hora solene chega a duvidar que eles me amassem!... Mas que importa? Eu os amava, eu os amo ainda, ingratas crianças que me esqueceram tão depressa!... E a sua virtude me é cara, apesar de haver quebrado a minha... Ah! a ventura! a ventura! — repetiu ele com violento furor — a ventura! ... por ventura nós a conhecemos — nós os eleitos, os predestinados, os gloriosos, cuja vida é um calvário de estações dolorosas... A ventura nunca vem cedo; chega mesmo tarde demais. É um viajante descuidado e fantástico, que não sabe onde vai, onde deve comer, onde deve dormir, e que uma noite vem por fantasia bater à nossa porta. Mas já a velhice cá estava: a cabeça está calva, os olhos sombrios, a boca fechada; nós nos habituamos à imobilidade da sepultura, pela imobilidade da idéia. Todavia abre-se a porta a esse viajante estouvado e falador que para vir à nossa casa solitária toma um caminho mais longe... que retardou-se na viagem a cercar com as mãos as cinturas das jovens aldeãs encontradas, e a contar-lhes loucas histórias que as fizeram corar — de prazer! Abrimos a porta mas, rosnando; por que temos reumatismos: abrimos rosnando e tossindo, escandalizados das risadas intempestivas e da alegria extravagante desse hóspede, cuja vinda, que nos importuna tantas vezes, há bom tempo saudamos com efusão e gratidão... Não lhe compreendemos o falar... Já nos é um estrangeiro; mais que um estrangeiro mesmo, um inimigo; por que sua presença agora em nossa casa é uma ironia amarga, é um insulto. Mas não somos maus; não sabemos sê-lo; a dor habitua à bondade; e em vez de dizer a esse estranho que nos perturba o sono de ancião, batendo precipitadamente na porta fechada de nosso coração: “Já não vem a tempo!” — dizemos-lhe melancolicamente: — “É bastante tarde!”

 

— Ah! coisa terrível.., coisa terrível... a ventura!

 

Durante um instante ficou ele com a cabeça entre as mãos crispadas; depois continuou com os olhos mais úmidos de lágrimas, porém mais enternecidos:

 

— Ouço soar em meu coração sinfonias inebriantes da mocidade, como um alegre concerto de vozes amadas... Ouço minhas alegres e frescas recordações de mancebo bater carga e rolar louca e impetuosamente por meu pobre cérebro... Ah! toque insensato, amante risonho dessas recordações, dessas sinfonias me fazem mal!... Quero dormir o meu último sono, embalado pelo pensamento de que meu fantasma doce e triste atravessará talvez a vida de Henrique e Bagatela, e deixará um vestígio perfumado em seus corações... Ah! ainda vem ver, por que tentei essa prova maldita?... Antes de morrer experimentei a morte... Magoadora experiência! não sei se devo alegrar-me com ela, pois eles são felizes, ou entristecer-me uma vez que morro! Oh! meus ídolos! ídolos amados, caístes do pedestal em que vos elevei!... Eu devera morrer logo... teria lançado a campo, crença, fé, ilusão!... não assistira à tua fraqueza Henrique! não assistira à tua queda, Gabriela!...

 

Depois, desembaraçando-se do vestuário do velho que o incomodava, Max dirigiu-se pálido, grave, com a fronte carregada de idéias sinistras, para o fundo da sua oficina e para diante de uma tela branca que parecia esperar dele o movimento e a vida...

 

O rosto viril do artista refletiu, nesse instante, as torturas sem nome, as angústias horríveis, as dores inauditas que lhe rasgavam a alma desde o dia em que voluntariamente deixara Henrique e Bagatela... Estava acostumado ao uso das decepções como Mitrídates ao uso dos venenos; mas desta vez a dose era forte demais: matava-o!...

 

Nesse instante, ele odiava a vida com todas as forças que lhe restavam... desenganado deste mundo, chegava quase aos lábios a taça fatal quando o vento lhe trouxe o eco fraco de um canto lançado no espaço: Pôs-se a escutar. A voz dizia:

 

Debalde semeei formosas crenças.

Nem um raio de sol desceu-me aos prados!

Veio a dor às campinas da esperança

Como vai joio ao trigo.

 

— É a voz de um poeta! — murmurou Max com um melancólico sorriso. — Não sou só eu a sofrer!

 

Chegou-se depois ao seu cavalete, tomou os pincéis e na tela colocada em frente dela construiu em uma hora, que passou como um relâmpago — o poema melancólico e pungente de sua vida despedaçada ainda no começo... Evocou por um momento os dois entes adorados que tinham vindo um após outro cravar-lhe o punhal no coração... E essa tela animou-se como por encanto! Iluminou-se de reflexos fantásticos e vertiginosos! Max dava assim o derradeiro esforço de seu gênio, o último grito de sua alma, a última vibração de seu coração...

 

Mas esse esforço sobrenatural devido à febre e ao desespero, esmagou-o... Ele arrastou-se até a janela para contemplar ainda uma vez o céu que lhe negava, como suprema consolação, fechar os olhos nos seios de uma mulher, e nos braços de um amigo; palpitava-lhe o peito convulsivamente...

 

Grossas nuvens pardas, levadas por um vento. Estas acumulavam-se no horizonte como uma massa de neve. O sol, em seu ocaso, espalhava sobre a cidade uma cor sombria em harmonia com as sombrias idéias do artista...

 

— Vamos! — exclamou ele voltando à mesa onde depusera ao entrar um pequeno frasco contendo um licor escuro. — Que o sacrifício se consuma! Agora que todas as afeições estão mortas, que as minhas ilusões estão extintas, vou extinguir-me com elas, como elas vou morrer... O aventureiro Gabor tinha razão: — “A vida é uma caçoada amarga!...”

 

E de um trago, o heróico artista absorveu o licor do vidro que descompôs-lhe o semblante rapidamente.

 

Corria-lhe o olhar sangrento e úmido de um a outro objeto, roçando de leve muitas recordações que se prendiam a duas criaturas queridas e amadas demais.

 

De repente, esse olhar moribundo parou na tela deslumbrante em que seu gênio lançara a última palavra... Parecia-lhe que legar aos vivos, aos indiferentes, aos felizes o admirável poema que ele esboçara seria uma profanação, um sacrilégio, uma impiedade e reunindo então as poucas forças que lhe deixava o veneno, arrastou-se penivelmente até o cavalete, tomou uma faca e em um sublime e último esforço rasgou e despedaçou freneticamente a tela... Depois seus braços se torceram, os dedos se lhe crisparam, soltou um grito surdo, um grito de angústia e de saudades supremas que o eco repetiu.

 

— Tudo acabara.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 26 de abril de 2021

NÃO AMEIS A DISTÂNCIA, CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA

Rubem Braga

 

EM UMA cidade há um milhão e meio de pessoas, em outra há outros milhões; e as cidades são tão longe uma da outra que nesta é verão quando naquela é inverno. Em cada uma dessas cidades há’ uma pessoa; e essas pessoas tão distantes acaso pensareis que podem cultivar em segredo, como plantinha de estufa, um amor à distância?

Andam em ruas tão diferentes e passam o dia falando línguas diversas; cada uma tem em torno de si uma presença constante e inumerável de olhos, vozes, notícias. Não se telefonam mais; é tão caro e demorado e tão ruim e além disso, que se diriam? Escrevem-se. Mas uma carta leva dias para chegar; ainda que venha vibrando, cálida, cheia de sentimento, quem sabe se no momento em que é lida já não poderia ter sido escrita? A carta não diz o que a outra pessoa está sentindo, diz o que sentiu na semana passada… e as semanas passam de maneira assustadora, os domingos se precipitam mal começam as noites de sábado, as segundas retornam com veemência gritando — “outra semana!”, e as quartas já têm um gosto de sexta, e o abril de dejá-hoje é mudado em agosto…

Sim, há uma frase na carta cheia de calor, cheia de luz; mas a vida presente é traiçoeira e os astrônomos não dizem que muita vez ficamos como patetas a ver uma linda estrela jurando pela sua existência — e no entanto há séculos ela se apagou na escuridão do caos, sua luz é que custou a fazer a viagem? Direi que não importa a estrela em si mesma, e sim a luz que ela nos manda; e eu vos direi: amai para entendê-las!

Ao que ama o que lhe importa não é a luz nem o som, é a própria,pessoa amada mesma, o seu vero cabelo, e o vero pêlo, o osso de seu joelho, sua terna e úmida presença carnal, o imediato calor; é o de hoje, o agora, o aqui — e isso não há.

Então a outra pessoa vira retratinho no bolso, borboleta perdida no ar, brisa que a testa recebe na esquina, tudo o que for eco, sombra, imagem, um pequeno fantasma, e nada mais. E a vida de todo dia vai gastando insensivelmente a outra pessoa, hoje lhe tira um modesto fio de cabelo, amanhã apenas passa a unha de leve fazendo um traço branco na sua coxa queimada pelo sol, de súbito a outra pessoa entra em fading um sábado inteiro, está-se gastando, perdendo seu poder
emissor à distância.

Cuidai amar uma pessoa, e ao fim vosso amor é um maço de cartas e fotografias no fundo de uma gaveta que se abre cada vez menos… Não ameis à distância, não ameis, não ameis!


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 15 de março de 2021

TANGERINE-GIRL (CONTO DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)

TANGERINE-GIRL

Rachel de Qeiroz

 

De princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim” nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.

Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U. S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.

O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento — sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.

Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!”— embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.

A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U. S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também — não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.

Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.

Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve idéia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.

Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.

Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de “Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava á luz da manhã, tinha um brilho acobreadao de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto 0 outro, da janelinha, olhava e dava adeus.

Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangeríne-Gírl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.

A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela? Sim, decerto… e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer “a hora depois do meio-dia”.

Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho — e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.

Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada, aproximando-se.

Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão — até parecia manobra militar —, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.

E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo…

Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base — só viu escárnio, familiaridade insolente… Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja… decerto pensavam… Meu Deus do Céu!

Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:

— Desculpem… houve engano… um engano…

E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.

Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 14 de março de 2021

MÃE MARIA (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

MÃE MARIA

Olavo Bilac

(Grafia original)

 

É ainda esta, no fim de minha longa vida, tão cheia de alegrias e de tristezas, a recordação mais funda que guardo dento da alma.


Fechando os olhos, para mais claramente evocar a memória dos dias da minha infância, vejo logo, nitidamente desenhada pela minha saudade, a doce figura da velha mãe Maria. Tão velha!... Quando nasci, já o seu cabelo encarapinhado embranquecia. Ainda viveu comigo uns treze anos. E nunca ninguém me soube dizer onde morreu, e onde foi dormir o último sono o seu corpo de velha escrava, alquebrado por quase um século de cativeiro e de trabalho.

* * *

Comprar e vender escravos era, naquele tempo, uma coisa natural. Ninguém perguntava a um negro comprado o seu passado, como ninguém procurava saber de onde vinha a carne com que se alimentava ou a fazenda com que se vestia. De onde vinha a velha Maria, quando, logo depois de meu nascimento, meu pai a comprou? Sei apenas que era africana; e tinha talvez um passado terrível: porque, quando a interrogavam a esse respeito, um grande terror lhe dilatava os olhos, e as suas negras mãos reluzentes e calejadas eram sacudidas de um tremor convulsivo.

Conosco, a sua vida foi quase feliz. Na cidade, o cativeiro era infinitamente mais brando que na roça. Aqui, se havia menos trabalho sem tréguas, não havia, ao menos, o chicote do feitor. Lá fora, sim! lá fora, era a labuta estalfante do café, os dias terríveis sob o sol implacável, a comida pouca e o castigo muito. Maria, quando eu às vezes lhe perguntava o que era a roça, ficava calada, olhando o chão, como se estivesse revendo com horror o tormento dessa vida antiga. Um dia, despiu a meio a camisa de algodão grosso, e mostrou-me as costas e o peito. A pele preta estava de espaço a espaço cortada de largos vergões, cicatrizes, sinais de queimaduras. Eu, com os meus inocentes olhos de seis anos, olhava aquilo sem compreender. “Como foi isso, mãe Maria?”. “Maldades dos homens, sinhozinho, maldades dos homens...”. Certa noite, como ela me contasse uma história em que se falava de crianças roubadas aos pais, perguntei: “Você nunca teve filho, mãe Maria?” A pobre negra limpou uma lágrima, e não respondeu: mudou de conversa, e continuou, com a sua meia língua atrapalhada, a contar a história, — uma dessas compridas histórias da roça, em que há saci-pererês e caiporas, almas do outro mundo e anjos do céu. E eu olhava-a, com uma secreta mágoa... Não que compreendesse bem aquilo: mas a minha inteligência de criança já adivinhava uma parte daquela dolorosa vida de cativa.

Como ainda me lembro dessas noites!... Era na sala de jantar, que tinha uma grande varanda, deitando para o quintal. Estou ainda vendo o velho sofá de madeira negra em que meu pai dormia a sesta, a longa tábua de engomar em que as mucamas passavam a ferro a roupa branca, e perto da mesa em que ardia o grande lampião de azeite, minha mãe imóvel e pálida, na sua feia e enorme cadeira de paralítica.

Moça ainda, ficara ela assim, logo depois de ter eu vindo ao mundo. Como a perdi muito cedo, não me lembro bem dela: apenas sei que era bonita e que não falava nunca. Olhava para mim, para meu pai, para as escravas, com um olhar apagado, de louca resignada e mansa.

Assim, a velha Maria foi minha verdadeira mãe. Havia ainda em casa uma senhora idosa, prima de meu pai, que era quem dirigia tudo. Essa, porém, apenas tinha tempo para governar as escravas, fazer doces, e cuidar das costuras e das roupas engomadas. — Boa mãe Maria! era ela quem me aturava... Quando eu não queria obedecer, procurava fingir-se zangada, e ameaçava-me: “Nhô Amâncio! Nhô Amâncio!” E acalmava-me, por fim, prometendo-me uma nova história. Sentava-se no chão, cruzava as pernas, e começava. Ouvia-se apenas na sala o ressonar de meu pai que dormia a sesta, o pigarro da velha prima que cosia, o ruído que faziam os ferros de engomar sobre as tábuas, e a voz arrastada de mãe Maria, falando de saci-pererês, de caiporas, de almas do outro mundo e de anjos do Senhor.

Todo aquele enredo fantástico, em que passavam bruxas cavalgando cabos de vassouras, príncipes que roubavam princesas, arcanjos que desciam do céu para curar as feridas dos escravos no tronco, negras aleijadas, que invocavam o diabo, à meia-noite, no meio do mato, e eram afinal arrebatadas por ele, numa nuvem de fogo e enxofre, — tudo aquilo se atropelava na minha cabeça, cansando-me, dando-me arrepios e vertigens de medo.

Daí a meia hora, pesavam-me as pálpebras. Aos meus ouvidos, a voz de Maria chegava cada vez mais fraca: até que quase sumia de todo, parecia vir de longe, de muito longe, vaga e indistinta como um eco. Eu deixava cair a cabeça sobre o seu colo e dormia. E era ela quem, carinhosamente, me levava para a cama, era ela quem me despia, e, obrigando-me a ficar de joelhos, tonto de sono, me fazia repetir o Padre Nosso, estropiado pela sua língua de africana.

***

Quando tive de ir para o colégio, — um internato sério de onde os alunos só saíam uma vez por ano, — chorei muito tempo, abraçando Mãe Maria, agarrado à sua grossa saia de riscado azul. Ela chorava também, chamando-me seu filho, beijando-me, consolando-me:

— Vai, Nhô Amâncio! vai, meu filho! vai pra ser homem! vai, Nhô Amâncio! a sua negra velha fica rezando a Nosso Senhor! a velha fica rezando!

Pela mão de meu pai, fui pela rua, soluçando, soluçando.

***

Oh! os primeiros dias de internato! Que casa! As salas, muito altas e muito claras, tinham um silêncio que dava medo. Entre as bancas de estudo, o padre Francisco passeava, batendo com força os tacões dos sapatos, fungando pitadas de rapé. Eu, com a morte da alma, lembrava-me da casa, lembrava-me da varanda que dava para o quintal, de minha mãe imóvel na sua enorme e feia cadeira de paralítica, da velha prima que costurava, e de mãe Maria... de mãe Maria!... e das suas mãos calejadas e reluzentes! e do seu cabelo encarapinhado! e da sua voz! e das suas histórias! E as letras do livro iam-se confundindo e dançando, vistas através das lágrimas que me embaciavam os olhos.

 Mas passou a primeira semana, passou o primeiro mês, passou o primeiro trimestre. Criei amizade aos companheiros. E a minha saudade foi diminuindo, diminuindo, diminuindo...

Quando o primeiro semestre findou, já mãe Maria, e sua face, e sua carapinha, e as suas mãos, e a sua voz, e as suas histórias, me apareciam indistintamente, como no fundo de um passado remoto. À noite, quando me deitava, depois do exercício violento da cabra-cega e da barra, o sono já não me deixava pensar naquela que ficara rezando a Nosso Senhor por Nhô Amâncio. Nhô Amâncio só se lembrou de mãe Maria quando as férias chegaram...

“Ah! Nhô Amâncio! — dizia a preta chorando, de joelhos, beijando-me as mãos — como Nhô Amâncio está crescido e bonito!”

Um ano de colégio bastara para me transformar. E, agora, eu aparecia à velha ama-seca, como um novo sinhô-moço, — um sinhô-moço que tinha onze anos, que já sabia ler e escrever, que já se julgava um homem, e que às histórias atrapalhadas e tolas de mãe Maria preferia a malha e a ginástica.

A vida da casa era mesma. Apenas mãe Maria, não tendo agora sinhô-moço para criar, passara a tratar da lavagem da roupa.

E era no quintal que estava agora quase sempre, de saia levantada, patinhando na água da barreia, indo de coradouro a coradouro, — um pouco mais velha, um pouco mais trôpega, mas ainda robusta.

Foi durante essas férias que se deu o caso, cuja recordação ainda hoje, no fim da minha longa via, tão cheia de alegrias e de tristezas, é a mais viva das que guardo dentro da alma.

***

Uma tarde, mãe Maria lavava roupa no quintal. Desci. Ao fundo, ficavam os cercados das galinhas. Comecei a atirar-lhes pedras. Mãe Maria protestou logo: “Nhô Amâncio! que maldade, menino! deixa os bichos, Nhô Amâncio!” Eu ria, e continuava.

Entre mim e os cercados do galinheiro, ficavam os coradouros. As pedras passavam sobre a cabeça da velha.

— “Nhô Amâncio! Nhô Amâncio! Deus castiga, Nhô Amâncio!” — repetia a preta, mas sem gritar, receando que meu pai a ouvisse. E eu ria, e continuava. Correu então para mim... Eu ria. E as pedras passavam por elas, rentes algumas, na direção dos cercados.

Não sei como foi... Vi-a cambalear e cair, levando as mãos à cabeça, de onde o sangue corri aos borbotões. Senti no coração uma pancada seca, dolorosa. Uma nuvem de pranto me cresceu nos olhos. Corri para a velha, com a garganta sufocada de soluços.

Uma pedrada lhe quebrara a cabeça: e o sangue ensopava a sua carapinha dura, já quase toda branca. Principiei a gritar, alucinadamente. E ela, trêmula, desfalecida, apertando a ferida com a mão manchada de vermelho, murmurava:

“Não grita, Nhô Amâncio! não grita! não foi nada! não grita, que Sinhô ouve!”

Mas eu gritava. Todo o antigo afeto esquecido renascia ali, diante da minha velha mãe Maria, toda banhada em sangue, ferida por mim. Toda a casa acudira aos meus gritos. Vi junto de nós meu pai, a prima, as escravas. Então tive medo do castigo...

Mas a velha negra já tinha um sorriso nos lábios. E, olhando meu pai, que indagava a causa daquilo, dizia: “Não foi nada, Sinhô, não foi nada! A negra velha escorregou no sabão, e quebrou a cabeça nas pedras. Mas Nhô Amâncio acudiu logo. Não foi nada, Sinhô não foi nada!”

....................................................................

Quando, pensada a ferida, eu, a sós com ela, a vi salva e repousada, — caí nos seus braços, pedindo-lhe perdão, cobrindo de beijos aquela face que me parecia tão bela, tão clara, tão iluminada, como a face de um daqueles anjos do Senhor, de que ela me falava nas suas compridas histórias da roça. E ela, chorando também:

“Que é isso Nhô Amâncio? que foi que mãe Maria fez?... tinha que ver que Nhô Amâncio fosse apanhar um sova por causa do cangalho de uma negra velha!...”

 ***

Daí a um ano, quando de novo voltei do colégio, ainda abracei mãe Maria. Vi-a e abracei-a ainda pelo Natal, dois anos seguidos. Depois... morto meu pai, morta minha mãe, vendidos todos os escravos da casa, — nunca tive quem me dissesse onde foi dormir o seu último sono a minha velha mãe Maria, alquebrada por quase um século de cativeiro e trabalho.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 13 de março de 2021

A PESTE (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A PESTE

João do Rio

(Grafia original)

 

E de súbito, um indizível pavor prega-me ao banco. É um dia brumosamente invernal. O azul do céu parece tecido de filamentos de brumas. O sol como que desabrocha, entre as brumas. O ar, um pouco úmido e um pouco cortante, congela as mãos, tonifica a vegetação, e o mar, que se vê à distância num recanto de lodo, tem reflexos espelhentos de grandes escaras de chagas, de óleo escorrido de feridas, à superfície quase imóvel. O cheiro de desinfecção e ácido fênico, o movimento sinistro das carrocinhas e dos automóveis galopando e correndo pela rua de mau piso, aquela sujeira requeimada e manchada das calçadas, o ar sem pingo de sangue ou supremamente indiferente dos empregados da higiene, a sinistra galeria de caras de choro que os meus olhos vão vendo, põem-me no peito um apressado bater de coração e na garganta como um laço de medo. A bexiga! A bexiga! É verdade que há uma epidemia... E eu vou para lá, eu vou para o isolamento, eu!

Um mês antes ria dessa epidemia. Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico, roem para todo o sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar? E Francisco, o meu querido Francisco, a quem eu amava como a melhor coisa do mundo, pensava todo o dia, lia os jornais, tomava informações. "A média de casos fatais é de trinta por dia. Ela vem aí, a vermelha", dizia. E já organizara um regime, tomara quinino, tinha o quarto cheio de anti-sépticos, os bolsos com pedras das farmácias para afastar o vírus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe dizia:

- Mas criatura, não tenhas medo. Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos teatros. Qual varíola! Vê como toda gente ri e goza. Deixa de preocupações.

De manhã, porém, nós líamos juntos, ao almoço, os jornais. Para que mentir? Havia, havia sim! A sinistra rebentava em purulências toda a cidade. Um dia em que passava por uma igreja, Francisco ouviu os sinos a badalar sinistramente. Teve a curiosidade de saber por quem tão tristes badalavam e perguntou a um velho.

- É promessa, meu senhor, é para que Santo António não mate a todos nós de bexiga.

Francisco ficou como desvairado. Ao jantar encontrou-se comigo.

- Ah!, filho, falta-me o apetite. Estamos perdidos. É impossível lutar. Ela está aí.

- Acabas doido.

- Antes! - fez, no orgulho da sua beleza.

Há uma semana, indo por uma rua de subúrbio, encontrou com gritos e imprecações um bando de gente que arrastava ao sol um caixão. Era uma pobre família levando à igreja o cadáver de uma criança em holocausto, para que Deus tivesse piedade e misericórdia. A impressão prostrou-o. Chegou à casa ainda mais assustado.

- Sabes! Estamos perdidos. A polícia já deixa arrastarem os variolosos pela rua. Dentro em pouco só lepra, a lepra de dentro encherá as ruas. Cada dia aumenta mais, cada dia aumenta. Quando chegará a nossa vez?

- Mas vai embora, homem, sobe a montanha, afasta-te...

E comecei eu também a indagar, a querer saber. Então, continuava? Como era? Como se morria de bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia várias espécies. A pior é a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente, apodrecendo em horas! Palavra, não era para brincadeiras. O Francisco abalara para o Corcovado, uma noite, sem me falar, sem me dar um abraço, e de repente naquela manhã, hoje, sabia por uma nota que ele estava no São Sebastião, com bexiga também, talvez morto! Deu-me um grande ímpeto! Covarde! Fora o medo. E agora? Era preciso vê-lo, não era possível deixa-lo morrer sem um amigo ao lado. Nunca tive medo de moléstias, morre quem tem de morrer. Depois a cidade estava tão alegre, tão movimentada, tão descuidosa. Tomei o tramway quase tranqüilo. Mas ali, tudo indica a morte, a angústia, o horror, ali é impossível, e eu sentia um frio, um frio...

"- Estamos no ponto terminal; não salta?" diz-me o condutor, virando os bancos. Faço um esforço, salto. E vou. Vou devagar, vou não querendo ir. A impressão de fim, de extinção violenta! Aquele recanto, aquele hospital com ar de cottage inglês aviltado por usinas de porcelana, é bem o grande forno da peste sangrenta. Como deve morrer gente ali, como devem estar morrendo naquele instante. Desço a rua atordoado, com um zumbido nos ouvidos. O mar é um vasto coalho de putrefações, de lodo que se bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morna. O chão está todo sujo, e passam carroças da Assistência, carroças que vêm de lá, que para lá vão. Quase não há rumor. É como se os transeuntes trouxessem rama de algodão nos pés. Só as carroças fazem barulho. E quando param - como elas param! - é o pavor de ver descer um monstro varioloso, desfeito em pus, seguindo para a cova... Espero que não haja nenhuma carroça à porta, precipito-me pela alameda que sobe ao hospital. Vou quase a correr, paro à porta de uma sala que parece escritório.

- O diretor?

- É alguma coisa de urgente? - indaga um jovem.

- É. É e não é.

- Vou preveni-lo. Sente-se. O senhor está pálido.

Caio numa cadeira. Sinto as mãos frias. As pernas tremem. Eu tenho medo, oh! muito medo... E aquele trecho da secretaria não é para acalmar o destrambelhamento dos meus nervos. Tudo é branco, limpo, asseado, com o ar indiferente nas paredes, nos móveis sem uma poeira. Os empregados, porém, movem-se com a precipitação triste a que a morte obriga os que ficam. Retintins de telefones repicam seguidamente nos quatro cantos. Os diálogos cruzam-se, diálogos em que as vozes falam para dores indizíveis.

- Mais um doente?

- Ah! sim, ciente.

- Qual? Não há mais lugar. O de nome José Bernardino? Vou ver.

E mais adiante:

- Olhe, 425? Morreu ontem à noite. Se já seguiu? Já.

Enquanto essas notícias são dadas às bocas dos fones, há mulheres pálidas e desgrenhadas que esperam novas dos seus doentes, há velhos, há homens de face desfeita, uma série de caras em que o mistério da morte, lá fora, entre as árvores, incute um apavorado respeito e uma sinistra revolta. Quantas mães sem filhos! Quantos pais à espera da certeza da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para tratar do enterro dos que lhe deram o ser. Ela não respeita idade, passa a foice purulenta em tudo, está lá reinando, fora, no jardim, entre as árvores, morro acima. Os funcionários têm uma delicadeza fria.

- Que deseja, minha senhora?

- Saber do meu filho. É o 390.

- Há quantos dias?

- Há quatro. Ainda elas não tinham saído. Foi o médico que disse. Ai! O meu pequeno!

- Está decerto no pavilhão de observação. Vou mandar ver.

- Meu senhor, a minha mulherinha, diga-me por Deus, diga-me.

- Espere, homem. Nada de barulho.

Os retintins telefônicos continuam. Algumas faces não dizem nada. Estão lá sentadas, esperando, esperando, esperando. E há marcados, marcados do terrível mal, que vão sair, não morreram, estarão dentro em pouco na rua com a fisionomia torcida, roída, desfeita para todo o sempre. E ele? E Francisco? Ficará assim? Assim, horrível, horrível... É preciso vê-lo! É preciso!

O rapaz volta, faz-me um gesto, sigo-o, dou no gabinete do diretor, muito louro, com a sua face inteligente vincada de tristeza.

- Então, por cá? Não teve medo? Está com a mão fria. Ah! meu amigo, a apostar que não acreditava na devastação do mal? Pois é horrível, é inaudito. Tenho presentemente no hospital setecentos e vinte doentes, desde varíola hemorrágica, que mata em horas, até a bexiga branca, que nem sempre mata. Já não há lugares. Nunca São Sebastião esteve assim. Mandei construir às pressas mais dois pavilhões. Estou arrasado de trabalho e desolado. Afinal, por mais que se esteja habituado, sempre se tem coração para sentir a dolorosa atmosfera de desgraça... Mas que deseja? Diga.

- Eu desejava tomar uma informação. Está aqui no hospital um rapaz do norte, Francisco Nogueira, estudante...

- Francisco? Há tanta gente que entra e tão pouca que sai. Em que dia entrou?

- Creio que anteontem.

- Vou mandar ver.

Tocou um tímpano. Apareceu um funcionário. Falaram ambos.

O funcionário saiu, e desde que saiu, um tremor apoderou-se do meu corpo. Estaria morto? Estaria vivo? Aquela carne feita de ouro e de rosas já teria se transformado numa chaga purulenta? E se estivesse morto? Uma criança tão cheia de esperanças, tão entusiástica, tão pura, sem os pais aqui, sem ninguém a não ser eu, que tremia. Nossa Senhora! Que me viriam dizer? E ao mesmo tempo, o desejo de encobrir tamanha emoção forçava-me a fingir um sorriso, a dizer mundanamente coisas frívolas ao homem bom cujos olhos tinham tanta piedade.

- É o diabo. A epidemia tem impedido vários prazeres da season. As grandes estrelas mundiais, os teatros...

- Pouca gente.

- Menos do que se devia esperar. Não freqüenta?

- Não tenho tempo.

- Ninguém dirá entretanto que a varíola...

- Nas grandes cidades as pestes dão uma impressão muito menos dolorosa do que outrora...

- Na Idade Média, não, doutor?

Mas um nó subitâneo estrangula-me a frase. O funcionário voltara, dava informações baixo ao diretor. O médico pôs-se de pé e diante de mim.

- Está cá. Entrou anteontem. Está vivo. O médico da enfermaria diz que há esperanças.

- Quero vê-lo, doutor.

Houve uma pausa grave.

- É vacinado?

- Sou.

- Já viu um varioloso?

- Não.

- Gosta desse rapaz?

- É meu amigo.

O diretor pensou. Depois:

- E melhor não vê-lo. Aceite o meu conselho. A ele nada falta. O senhor parece tão comovido. Tenha esperança, vá descansar. As emoções fazem mal neste período...

- Quero vê-lo, doutor, quero. É um grande obséquio que lhe fico a dever.

O diretor ainda hesitou um instante, mas diante da minha resolução que se fazia súplica, fez um gesto e eu acompanhei o funcionário, passei a secretaria, entrei no jardim, comecei a subir para o morro onde entre as árvores erguiam-se os grandes pavilhões, com as redes das janelas pintadas de vermelho. Era ali, naqueles enormes galpões, com janelas forradas de tela rubra que a varíola punha putrefações e gangrenas nos corpos dias antes bons. O homem ia depressa, e eu arquejava atrás, com as têmporas batendo. Meu Deus! Que iria ver? Que se daria? De repente parou, subiu uma escada. Subi também. Abriu uma porta de tela, entro. Entrei com ele. Abriu outra, passou. Passei com ele. Encaminhou-se para um compartimento. Segui-o. Onde estava eu? Sei lá! Não sabia! Não sabia! Vi-me diante de um leito, onde um cobertor tapava, por completo, pequeno volume. Para diante havia outros leitos cobertos de vermelho, outros muitos cobrindo a negregada. Certo cavalheiro indagava: "- Quer ver então?" "- Sim, senhor." "- Não é grave. Este escapa. Mas tenha coragem!"

Depois, com infinito cuidado, pegou das pontas do cobertor e foi levantando aos poucos. Fechei os olhos, abri-os, tornei a fecha-los. "  Não há engano?" "- A papeleta não erra. É ele mesmo."

Eu tinha diante de mim um monstro. As faces inchadas, vermelhas e em pus, os lábios lívidos, como para arrebentar em sânie. Os olhos desaparecidos meio afundados em lama amarela, já sem pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes. Era como se aquela face fosse queimada por dentro e estalasse em empolas e em apostemas a epiderme. Quis recuar, quis aproximar-me. Só consegui dizer para o horror: "- Francisco, Francisco, então como vais?" Os lábios moveram-se, e uma voz, outra voz, uma voz que era outra, passou vagarosa: "- Ah! és tu?"

Enquanto isso o corpo não fazia um gesto. Era ele, ele, sim, porque sobre o travesseiro, só uma coisa não desaparecera dele e da podridão parecia tomar um redobro de brilho: a sua enorme cabeleira negra, com reflexos de ouro azul-tinta...

Então veio-me um louco desejo de chorar, um desejo desvairado. Fiz um vago gesto. O funcionário abriu-me a porta e eu saí tropeçando, desci o morro a correr quase, entre os empregados num vaivém constante e as macas que subiam com as podridões. Um delírio tomava-me. As plantas, as flores dos canteiros, o barro das encostas, as grades de ferro do portão, os homens, as roupas, a rua suja, o recanto do mar escamoso, as árvores, pareciam atacados daquele horror de sangue maculado e de gangrena. Parei. Encarei o sol, e o próprio sol, na apoteoso de luz, pareceu-me gangrenado e pútrido. Deus do céu! Eu tinha febre. Corri mais, corri daquela casa, daquele laboratório de horror em que o africano deus selvagem da Bexiga, Obaluaiê, escancarava a face deglutindo pus. E atirei-me ao bonde, tremendo, tremendo, tremendo...

Há epidemia, oh! sim, há epidemia! E eu tenho medo, meu amigo, um grande, um desastrado pavor...

E Luciano Torres, após a narrativa, caiu-me nos braços a soluçar. Era de noite e foi há dois dias. Ontem vieram dizer-me que Luciano Torres, meu amigo e colega, fora conduzido em automóvel da Assistência do seu elegante apartamento das Laranjeiras para o posto de observação. Está com varíola.


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