AUTOS E "TÁXIS"
Humberto de Campos
Com o pensamento, talvez, de aperfeiçoar a raça, já de si tão robusta e formosa, votou o Parlamento uruguaio um projeto de lei determinando às autoridades que não realizem mais casamentos sem que os noivos se tenham submetido, com resultado negativo, à reação de Wasserman. Acham os legisladores de Montevidéu que a mulher constitui para os homens uma cruz, e foi com pena deles, provavelmente, que se tomou a providência. Que seria, em verdade, do mortal que tomasse aos ombros a cruz da família depois de ter duas, ou três, constatadas num paciente exame de sangue?
Vindo de uma época excessivamente escrupulosa, em que os pais dos namorados sindicavam das condições sanitárias dos antepassados até à quinta geração, e em que os próprios noivos tomavam um purgativo de óleo de rícino oito dias antes do casamento, — eu não podia ser contrário à humanitária medida promulgada pelo governo do Uruguai. O meu espírito faltaria, entretanto, ao seu dever de sinceridade, aos hábitos de franqueza incondicional, se não confessasse o temor, que tenho, de que essa exigência venha reduzir, ali, o número de casamentos.
O casamento é, realmente, hoje, encarado por um prisma original, que degrada, é certo, a mulher, mas reintegra a espécie na natureza, permitindo-lhe a realização do seu verdadeiro destino. Dessa teoria, dava-me, ontem, uma perfeita imagem industrial o Sr. Roberto de Aguiar, agente de pneumáticos americanos, ao explicar-me, sem constrangimento nem entraves na língua:
— O casamento só pode ser julgado com segurança senhor conselheiro, por pessoa que já teve automóvel. A esposa ou o esposo definitivo é, para o homem ou para a mulher, uma espécie de automóvel particular. E nada há no mundo, como o senhor sabe, que, como um automóvel particular, dê tanto trabalho: um dia, é uma peça que falta; no outro, é a gasolina; mais tarde, é a capota, que está estragada. O dono de um automóvel vive a fazer despesas todos os dias, a incomodar-se a todo instante, e, quando mais precisa do carro, tem a notícia de que ele não pode funcionar!
Eu encarei o homenzinho, disposto a deixá-lo, àquela hora da madrugada, na primeira esquina da Avenida, e ele continuou:
— Com a amante, ou o amante, não; o amante, qualquer que seja o sexo, é o "táxi" do coração: a gente toma-o, paga-o, e salta onde entende, sem perguntar, sequer, o nome da "garage". Marido ou amante, auto particular ou "táxi", que importa à mulher, ou ao homem, a espécie do veículo, se ele faz a viagem da mesma maneira? E isso com a vantagem de, ao abandonar o carro, não ter passageiro que se incomodar com o estado do motor, nem com a qualidade dos lubrificantes.
Nesse momento, soavam, monótonas, em uma torre da Avenida, três badaladas metálicas, quebrando o silêncio da noite, quase acabada:
— Três horas! — espantou-se o major Afonso Gomide, que ia conosco. — Vamo-nos?
O agente americano estendeu os olhos pela Avenida deserta, e lamentou:
— Sim, senhor! Nem um "táxi"!... E agora?
— Vamos no meu automóvel, — convidou o major, fazendo sinal ao seu "chauffeur".
Desabituado desses luxos, eu continuei o meu caminho, a pé...
SÃO FILOMENO
Humberto de Campos
A estação de Cariri, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de planície, onde se estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos, desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou ali menos densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de pastagem.
Contrastando com esse panorama desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve oásis em que as árvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram os primeiros amores de Zeus. É ali, nesse breve refrigério da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja, descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos, à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias fatigadas.
— Que bosque é este? — perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e pescoço de touro.
— Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.
— E esse Nicolau, mora aqui? — indaguei.
O caboclo sorriu, zombeteiro, e explicou:
— Não mora, não, senhor; já morou.
O caso, como era natural, intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.
— Antes da seca de 77 — começou — havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria, um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno, padroeiro do lugar, não queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode morreu nesse ano. E começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os moradores reuniram-se uma noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E como não entrassem em acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau pensasse e deliberasse por todos.
— E quem era esse Nicolau? — interrompi.
— Espere lá, já lhe digo. Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem novena, nem ladainha, e ia até o Cariri, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça. Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se, nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.
— Milagre?
— Sim, senhor. Diz ele que, assim que pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo; crescendo, até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinza porque, todos nele são pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" — "É possível, senhor?!" — exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em explicações, limitando-se a dizer: — "Olha, Nicolau, o momento não é para vinganças nem para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a verdade. Toma, — disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; — toma estas sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela, tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo, voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo, distribuiu as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos depois, voltaram.
— E então?
— E então? Então, encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!
— Nasceu, então, até a semente da porta do Nicolau?
O caboclo sorriu, e atendeu:
— A porta do Nicolau era ali.
E indicou um pé de jatobá imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe, os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Cariri.
UM QUARTO DE SÉCULO
Machado de Assis
CAPÍTULO PRIMEIRO
Eram quatro horas da tarde. Oliveira e Tomás conversavam à porta da casa do Desmarais, Rua do Ouvidor, ano de 1868, quando passou do lado oposto uma senhora, vestida de preto. Oliveira disse a Tomás:
— É a viúva Sales; espera.
E atravessando a rua, foi falar à viúva Sales, cinco a seis minutos apenas. As últimas palavras foram estas:
— Mas não posso contar com a senhora?
— Mana Rita está constipada; se ela ficar boa, vamos.
— Vou rezar para que fique boa.
— Os hereges não rezam, replicou a viúva sorrindo e despedindo-se.
Oliveira tornou à porta do Desmarais. Tomás seguiu com os olhos a viúva, até que ela dobrou a primeira esquina.
— Não é possível, disse ele.
— Que é que não possível?
— Essa viúva... É viúva de um médico, um doutor João Sales?
— Isso.
— D. Raquel?
— Exatamente.
— Filha de um conselheiro de guerra?
— Xavier de Matos. Conheces?
— Sim, conheço, isto é, conheci. Foi há muitos anos. Está mudada.
— Um pouco mais gorda.
— Conhecia-a magrinha.
— Mas não está mais velha. Queres vê-la, queres jantar com ela, lá em casa, sábado?
— Ela vai?
— Prometeu que iria, se a mana ficasse boa.
— Sim, Mariana, mais velha que ela.
— Não, Rita, mais moça. A mais velha morreu há anos; era casada com um deputado do Norte. A mais moça não casou. Vivem juntas.
— Vou.
— Seis em ponto.
— Em ponto.
— Bem, agora que a viste, que tens algumas notícias, que vais jantar com ela e conosco, sábado, às seis horas em ponto, quero que me digas tudo ou só metade, o que puder ser contado.
— Tudo é nada, respondeu Tomás. Que diabo de idéia é essa?
— Meu caro, quando eu me despedi dela, tu não me viste chegar ao pé de ti; ias atrás dela com os olhos, com os ouvidos, com tudo. O coração batia-te que se ouvia cá fora como o meu relógio de parede bate as horas, nos primeiros dias da semana, por estar de corda nova. Relojoeiro, desfaz o teu relógio.
Tomás sorriu, mas não sorriu bem; parecia acanhado. Oliveira não soube ser discreto. Íntimos desde a Faculdade de Direito de S. Paulo, onde se formaram, foram confidentes um do outro, até o dia em que a vida os separou; novamente ligados, Oliveira cuidava estar no mesmo ponto em que a vida os deixara antes. Tomás, pela sua parte, vacilava. Evidentemente, havia alguma coisa que dizer.
— Tudo é pouco.
— Esse pouco.
— Gostei dela em solteira, mas foi coisa que passou, como outras. Sabes que nós, por esse tempo, namorávamos a todas.
— Mas nunca me falaste desta.
— Provavelmente, falei; mas eram tantas! Bom tempo, Oliveira! Era melhor que isto de hoje com os nossos bigodes grisalhos, tu pai de filhos, eu solteirão desamparado, quarenta e quatro anos no lombo; tu tens mais três.
— Mais dois.
— Creio que já foram quatro, mas o tempo diminui tudo, começando por si mesmo.
— Vai para o diabo. Quarenta e seis, feitos em março.
Trocaram ainda algumas palavras, e despediram-se. Oliveira meteu-se no carro que estava no largo de S. Francisco de Paulo e foi para Andaraí. Tomás meteu-se na gôndola e guiou para o Catete.
CAPÍTULO II
Tomás de Castro Rodrigues tinha realmente alguns fios de prata nos bigodes e nos cabelos; vieram-lhe cedo e tendiam a multiplicar-se. Bonita figura, bem posta sobre uns pés pequenos, elegante com certa graça do outono, dava ainda um noivo decente. Não casara por não achar noiva que o quisesse, dizia ele; mas, realmente, por causa de uma paixão da mocidade, esta mesma viúva Sales que passou agora na Rua do Ouvidor, então Raquel, simples Raquel.
Não tomes isto ao pé da letra, para me não acusares de romantismo. É certo que ele prometeu não casar nunca, depois da paixão de Raquel; mas, não foi precisamente a paixão que o deixou solteiro. Esta doeu-lhe por muito tempo, fê-lo empreender uma viagem à Europa, onde se demorou quatro anos. Os quatro anos, porém, não foram gastos em suspirar. O tempo e a distância depressa o fizeram sarar; a própria vida é que o confinou na solidão. Solidão fácil, aliás, composta de prazeres, viagens, distrações amorosas e outras. Quando se afastou da Europa, tornou para o Rio de Janeiro, onde assistiu à morte do pai, que lhe deixou todos os seus bens. Tomás era filho único. Já então Raquel, tendo casado com um negociante de Pelotas, havia partido para o Sul. Tomás começou a advogar; parece que defendeu algumas causas, perdeu-as todas, ou quase todas. Não fechou a banca; mas achava meio de não se meter em muito trabalho; este foi naturalmente fugindo, de maneira que, em pouco tempo, acabaram os clientes. A banca era pretexto para ter um lugar de descanso e conversação, e dar emprego a um servente.
Assim se passaram três a quatro anos. A Europa entrou a fazer cócegas ao advogado sem causas; mas o amigo Oliveira, já então casado, deu-lhe de conselho que entrasse na política. A idéia de ser ministro foi talvez o único motivo de aceitação deste conselho por um homem que não tinha partido nem inclinações políticas. Na Faculdade escrevera e falara nas liberdades públicas, no futuro dos povos, nas instituições democráticas, tudo isso, porém, sem convicção profunda nem superficial, um simples uso, uma espécie de oração necessária. Concluindo o curso, não pensou em libertar nem oprimir os povos. Agora a perspectiva ministerial fez alguma coisa; podia ser até que ele desse um bom orador, tendo sido dos melhores de seu tempo em S. Paulo.
Oliveira arranjou-lhe a cadeira, por intermédio de um parente ministro; aproveitou-se uma vaga, e Tomás entrou na Câmara. No distrito que o elegeu ficou o seu nome execrado; disseram-lhe todas as coisas feias, ambicioso vulgar, intruso, lacaio de ministro, gatuno, e besta. “Não é diploma que ele leva aqui; é uma gazua”, escreveu um jornal. Tomás quis rejeitar o diploma; não tinha a ambição necessária, ou qualquer sentimento equivalente, para suportar todo esse desejo de injúrias; mas Oliveira riu-lhe na cara, disse-lhe que não fosse tolo e ficasse; que os autores da palavrada não sentiam nada do que diziam, era a irritação própria da pretensão de outro candidato. Tomás obedeceu e entrou na Câmara.
Não foi ministro, proferiu dois discursos, aborreceu-se ao fim de algum tempo; cinco anos depois fazia outra viagem à Europa. Lá esteve, tornou a ir e regressou agora, há quatro meses, sem carreira, sem ambições, sem família. Conservava a riqueza, isso sim, não era gastador, vivia das rendas.
Resta dizer da paixão que primeiro o levou a andar por esse mundo. Já notei que, indiretamente, foi ela que o impediu de casar. É possível que, se houvesse de fazer vida regular, casasse e fundasse família. Raquel tinha vinte anos, quando ele a viu pela primeira vez, em um baile do Cassino Fluminenses. Era linda entre as lindas. Não lhe parecendo que ela o rejeitasse, buscou relacionar-se com a família. Houve da parte dele confiança demasiada; desde que começou a ir à casa dela, Raquel retraiu-se. Mas isto mesmo tornou mais forte a paixão do rapaz, — ou antes, foi isso que verdadeiramente a gerou. Até então o sentimento não passava do tom médio e comum de tantos amores que acabam em nada ou em casamento. Que motivo tinha Raquel para aceitá-lo a princípio e retrair-se depois? Talvez a lua o explique, talvez o vento. Não foi o mesmo que teve, mais tarde, para aceitá-lo novamente; aqui foi a piedade. Em verdade, a paixão do moço era tal que ela entendeu de bom aviso dar-lhe novas esperanças, e acabar casando. Pode ser que fosse assim, se ela não adoecesse daí a algumas semanas, indo para Minas, convalescer. Antes de concluído o prazo, Tomás correu a visitá-la. Esse encontro, após a ausência e a moléstia, devia desenganá-lo. Raquel desacostumara-se de o ver, não teve saudades, não lhe escrevera apesar das cartas dele, e o acolhimento foi apenas polido, senão pior. A piedade gastara as forças na tentativa de um amor que não queria nascer. Tomás voltou desesperado.
A verdade parece ser que Raquel era, mais que tudo, desconfiada e tímida. Pelo mesmo tempo em que Tomás a cortejava, era pretendida por mais dois homens, e essa competência produziu efeito contrário ao que se devia supor. Em casa, Raquel era chamada esquisitona. Acresce que um dos dois pretendentes, depois de desenganado, casou com outra moça, amiga dela, sem intervalo de dois meses. Essa facilidade de passar de uma a outra mulher fê-la ainda mais tímida e desconfiada. Tinha medo de entregar-se. De resto, foi a própria violência do amor de Tomás que o perdeu. Raquel achou a nota excessiva e teve medo. A separação fez-se com dor para ele, naturalmente sem saudade para ela. Nenhum pretendente os separou. Foi só depois que apareceu o negociante de Pelotas, sem paixão, apresentado pelo pai, como moço de muito futuro, e sério. Sales tinha trinta anos. Raquel aceitou-o sem combate nem entusiasmo; casou e partiu. Já Tomás estava na Europa.
Sales, negociante de Pelotas e doutor em medicina, liquidou a casa no fim de poucos anos e veio para o Rio de Janeiro. A idéia dele era viver uma vida elegante, participar de todos os prazeres da alta roda da capital. Contava com o papel eminente que caberia à mulher, agora mais bela que nunca. Assim foi. Em poucas semanas, em três meses, o nome de Raquel andava em todas as bocas, e a pessoa em todos os bailes e teatros. Toda a gente a conhecia na rua. Sales comprou uma carruagem e uma parelha de cavalos ingleses. A primeira modista era dela. Não eram dela as primeiras modas porque vinham feitas da Europa; mas entre as primeiras divulgadoras de um corte, de uma fazenda ou de um chapéu, estava a bela Raquel, — ou a bela Sales, como iam dizendo alguns, até que este nome se generalizou.
Pouco mais de um ano bastou a cansar o marido. Os hábitos do comércio ou da província, — os dele, ao menos, — não se podiam casar com a vida agitada que ele mesmo quisera e escolhera. Os bailes pareciam-lhes tristes, ao cabo de uma ou duas horas. Quando havia jogo, Sales atirava-se às cartas, enquanto a mulher valsava ou polcava. Gostava mais do teatro, e particularmente do teatro lírico; mas, se a primeira e segunda estação o encantaram, a terceira entrou a aborrecê-lo. Em casa, recebia bem e estava mais a gosto; mas tudo somado, a realidade da vida elegante não correspondia à expectação. Além do mais, para um homem afeito às lidas do comércio, a vida ociosa era pesada e vazia. Não sabendo que fazer do tempo, Sales lembrou-se de exercer a medicina. Curava de graça; não lhe faltavam doentes, e atrás deles a reputação. Assim passou alguns anos, até que ele próprio adoeceu, e, mais infeliz que os seus enfermos, sucumbiu.
No sábado marcado, Tomás acudiu a Andaraí, onde já achou a viúva. Oliveira tinha anunciado a vinda do amigo, mas nem então, nem quando este chegou, houve da parte de Raquel a menor emoção. Ela falou ao namorado de outros dias, como se nada houvesse passado entre ambos, em bem ou em mal. Oliveira fê-los sentar, à mesa, ao pé um do outro; mas a vizinhança não alterou a disposição da viúva.
Tomás achou-a ainda bela, e, a muitos respeitos, melhor. Trinta e sete ou trinta e oito anos é o que devia ter. Era conversada, interessante, atenta, falando de tudo e bem, sem excesso, sem impertinência, calando a tempo, tudo isso com uma boca fresca e uns olhos capazes de paixão e de mando. Assim pareceram eles a Tomás, que estava comovido e ia-se sentindo acanhado. Para um homem vivido, o estado era inexplicável, se não fora a situação especialíssima. Ele supôs, e qualquer pessoa o suporia, que o longo celibato e a diferença dos tempos o teriam armado contra essa senhora, e foi contrário. Já não falo dos termos da separação de outrora, que eram um atrativo mais, não diminuído pela viuvez. A viuvez era antes um pico.
Raquel demorou-se pouco. A irmã, que estava presente, embora restabelecida, não podia apanhar sereno e a noite esfriava. Foi a razão dada pela viúva Sales para sair e não cantar, como lhe pedia Oliveira.
— Uma só daquelas músicas espanholas, que a senhora canta com tanta graça.
— Deixei a graça em casa; fica para outra vez.
A mulher de Oliveira ofereceu-lhes pousada por uma noite. Era impossível que D. Rita saísse; podiam ficar; iria levá-las no dia seguinte. Raquel não aceitou nada e despediram-se às nove horas. Tomás não ousou apertar fortemente a mão que ela lhe estendeu, à despedida, posto que esse fosse o seu desejo; tocou-lhe apenas nos dedos. Entretanto, esperava que ela lhe oferecesse a casa, e Raquel não lhe ofereceu coisa nenhuma.
Oliveira deu o braço a D. Rita, até o carro, deixando ao amigo a fineza de ir com a viúva. Tomás aproveitou o favor. Entre a casa, que ficava no centro de uma chácara, e a rua, havia cerca de trinta passos; Tomás fê-los compridos como léguas, sem achar uma palavra que dizer. Sentia o braço dela no seu, francamente pousado, sem cerimônia nem medo, e a sensação que isto lhe dava ainda mais lhe atava a língua. Enfim, chegaram ao carro.
— Obrigada, disse-lhe Raquel estendendo a mão.
Quando o carro partiu:
— Que tal a achaste? perguntou Oliveira.
— Achei-a bem.
— Estavas pálido.
— Eu?
— Deixa ver a tua mão; está fria. Seriamente, tu sentiste alguma coisa.
— Coisa nenhuma; tive recordações, mas, aos quarenta e quatro anos, as recordações são como brinquedos velhos e quebrados. Achei-a elegante. Queres que te diga? Mais distinta que em solteira.
— Mais senhora, mais tranqüila. O que tu queres dizer é que, em solteira, dava-te as mãos para que as beijasses.
— Nunca lhe beijei as mãos.
— Nunca! Nem os olhos?
— Menos ainda os olhos. Era muito arisca.
Tinham subido a escada de pedra, e parado à porta da sala de visitas. Oliveira pegou na mão do amigo, e, depois de alguns segundos:
— Se resolveres casar com ela, fala-me, disse.
— Casar?
— Fala-me, repetiu Oliveira.
— Tu estás tonto...
— Não é conselho que te estou dando; digo-te só que, se resolveres, estou pronto a servir de terceiro. Faz-se isto aos amigos velhos. Tu estás velho.
— Um pedido; não digas nada à tua mulher.
— De quê?
— Do que houve entre mim e Raquel.
— Já sabe. Contei-lhe tudo hoje de manhã; mas descansa, é discreta. Anda tomar uma xícara de chá; tens as mãos frias...
Tomás foi acabar a noite em um teatro. Não perdeu o sono, e acordou à hora do costume. Entretanto, a segunda ou terceira idéia que lhe acudiu, depois de acordado, foi a formosa viúva. Gostou de pensar nela; reconhecia que ela fora apenas polida, nem sequer faceira, nada que revelasse o desejo de lhe parecer bem. Durante uma semana pensou muitas vezes em Raquel. Chegou a esperá-la na Rua do Ouvidor. Sabendo onde morava, passou por lá duas vezes, sem a ver. Quinze dias depois do jantar, indo a Niterói, achou-a na barca. Ia só, com um véu pelo rosto, e parece que o vira, porque voltou a cara para o lado do mar. Tomás hesitou um instante; afinal foi cumprimentá-la. Raquel falou-lhe com afabilidade; ele sentou-se no mesmo banco.
— Há de crer que não vou à Praia Grande há dez anos? disse ele.
— Eu há dois meses. Vou visitar uma tia que está doente.
— Uma tia? Não me lembra, aventurou Tomás.
— Uma tia do finado.
O finado era o marido. Raquel referiu-lhe a moléstia, a idade, os costumes da pessoa, como se fossem coisas que o interessassem. Depois falou do mar. Depois falou do céu. Tudo como quem mata a alfinetadas um tempo que não quer morrer. Tomás pouco dizia; todo ele era ouvidos para escutá-la, olhos para vê-la, com os seus ombros fortes, as mãos finamente enluvadas, e os olhos, que pareciam de esfinge, agora que o céu os cobria. Pareciam ao nosso herói; ele é que o dizia consigo, romanticamente, não eu, que apenas traduzo aqui o próprio sentir do solteirão. Esfinge era a imagem velha; mas tinha para ele a mocidade de sua mocidade.
Repetiram-se os encontros. Poucas semanas depois, Tomás fazia à viúva a sua primeira visita. Já então se podia dizer completamente enamorado, posto não ousasse confessá-lo, antes buscasse encobri-lo. Nada lhe dava certeza de poder ser aceito; mas também é verdade que não achava aparência de recusa. A viúva era atraente, cortês, interessante, ouvia-o com muito prazer, chegava a falar de outros tempos sem hesitação.
O quarto de século de distância eliminou-se como um castelo em ruínas de um teatro dá lugar a um campo alastrado de verdura, ao aceno do contra-regra. Tudo se renovava inteiramente. Casamento de um, ausência, dispersão de sentimentos, cansaço, fastio, desapareceram; e não foi só a moça que substituiu a viúva, mas o próprio sonho antigo que integralmente emergiu dos tempos. Tomás achou em si a força necessária para restaurar as suas imaginações perdidas. O que ele outrora pedia ao casamento com a solteira, achou-o nas mãos da viúva, como se o ofício delas não fosse mais que esperar por ele, guardando-se intactas do mundo e seus favores.
Seis meses não é pouco tempo entre um solteirão e uma viúva; mas tal foi o prazo decorrido sem que ele dissesse nada. Oliveira, a princípio, quis precipitar as coisas; a mulher disse-lhe que não; seria tomar a responsabilidade do que podia acontecer.
— Não são duas crianças, observou ela.
— Por isso mesmo, confirmou Oliveira rindo.
Um dia, enfim, Tomás resolveu pedir a viúva.
Escreveu-lhe uma carta, que rasgou, por achá-la extensa; escreveu outra, mais extensa, e mandou-lha.
Raquel, logo que deu com as primeiras palavras, interrompeu a leitura e deixou-se estar com os olhos no ar, perdidos. Sabia o conteúdo do papel; talvez houvesse ajudado a escrevê-lo. É o que perguntava agora a si mesma, um pouco arrependida, um pouco satisfeita. Não vos admireis deste sentimento duplo, que parecerá contraditório, e na verdade o é; mas a contradição também é deste mundo. Raquel, já viúva, rejeitara duas propostas de casamento. Era a terceira, e podia rejeitá-la, como as outras. Que é que a impedia de o fazer? Não chegava a explicar-se.
A idéia de que ele ficara solteiro, para não casar nunca, e rompia a promessa para acabar casando com ela, foi a causa principal da animação que lhe dera agora. A animação tinha de produzir os seus efeitos. Diante destes é que a viúva parecia espantada. Os olhos perderam-se cada vez mais, até que buscaram a carta e leram o que dizia.
O estilo era inflamado. Uma só vez a carta aludia ao passado: “Se achar que este meu modo de sentir é juvenil, saiba que dia houve em que o meu coração parou, e que a minha idade é a dele”. Raquel releu a carta, naturalmente não lhe respondeu logo; fá-lo-ia no dia seguinte. Tinha de refletir primeiro.
— Sim ou não? perguntou a si mesma.
E depois de alguns minutos:
— Amanhã; tenho tempo.
Parecerá esquisito que ainda agora hesitasse; mas a esquisitice também é deste mundo. Gostava do antigo noivo; não encarava até então a idéia de casar. Podia propor um adiamento. Verdade é que o adiamento acabaria, e sempre chegaria a necessidade de dar resposta. No dia seguinte, sentou-se, pegou na pena e começou dez vezes um bilhete em que lhe dizia que ia pensar; não atinava com o modo de concluir, e, por fim, achou que o alvitre era mau. O melhor era recusar logo. Com que palavras escreveria a negativa? Era melhor aceitar; mas, como?
Tudo isso parecer-vos-á insuportável, leitora atenta, e a mim também, que o estou contando, não menos que à própria dama em cujo cérebro todos esses pensamentos se esbarravam uns nos outros, sem vitória de nenhum. Passaram-se três dias. Ao quarto, Raquel consultou a irmã, que a animou a aceitar o marido.
— Estás certa que nenhum interesse o atrai?
— Seguramente.
— Pois aceita.
Raquel respondeu enfim, com duas linhas apenas, que pareceram a Tomás muito mais compridas que a longa carta que lhe escrevera: “Dou-lhe a minha mão, e espero que sejamos felizes”. Tomás foi agradecer-lhe a resposta. Estava trêmulo, como se contasse vinte anos, e fosse aquele o primeiro amor. A própria Raquel, uma vez decidida, tinha a comoção da adolescência. Pouco mediou entre a aceitação e a realização. Dois meses depois estavam casados.
CAPÍTULO V
Após um quarto de século, voltara Tomás ao ponto de onde partira. Tendo navegado mares longos e enfadonhos, ei-lo que aporta à mesma terra vizinha, cujo acesso fora o sonho dos primeiros anos.
— Raquel, vinte e cinco anos de separação e desesperança, disse ele na carruagem que o trazia da igreja.
A lua-de-mel foi passada em Petrópolis, longe do universo, porque eles acharam uma casa separada do centro, e não saíram dela uns três dias. O plano do marido era não sair nunca; uma tarde, porém, transpondo o jardim, chegaram à rua, depois à outra rua. No dia seguinte, foram à Rua do Imperador; antes do fim da semana seguiram em carro ao alto da serra, a ver chegar o trem.
Não se pense que lhes foi indiferente a vista de coisas estranhas. Ao contrário, acharam certo prazer em mostrar aos outros a própria felicidade, Raquel ainda mais que o marido. Duas semanas depois de subidos a Petrópolis, recebeu Tomás uma carta de Oliveira. Era longa, banal, mas amiga; acabava perguntando quando esperavam descer do céu.
— Podemos ir amanhã, propôs a mulher.
— Já!
— Se você quiser; eu estou bem.
Tomás refletiu um instante.
— Sim, podemos ir amanhã ou depois.
A eternidade ficou reduzida de alguns séculos de séculos; mas, como todas as eternidades deste mundo são assim, a questão é saber em que proporção se reduzem. Ora, eles tiveram duas semanas de lua-de-mel; havia-as muito menores.
Três, quatro, cinco meses passaram, sem acontecimento apreciável. Mas há uma falta de acontecimentos, que o estado moral supre, e um homem e uma mulher podem viver mais que Alexandre ou César. Tal não era o estado do casal recente. Ao cabo de três meses, Tomás sentia em Raquel uma placidez de espírito, que não era o alvoroço que esperava, nem ainda o dos primeiros dias. Esse mesmo dos dias iniciais não correspondeu à esperança, mas confundia-se com o dele, e ambos lhe pareceram no mesmo grau infinito. Pouco a pouco, o estado normal vingou; ao fim de seis semanas, a diferença apareceu, até que, dobrado o prazo, Raquel ficou sendo uma senhora tranqüila, sem assomos de nenhuma espécie, sem inquietações nem saudades. Tudo o que pode definir bem a ausência de paixão parecia reunir-se nela. Quando a convicção desse estado entrou no ânimo do marido, houve uma tal ou qual sombra no céu conjugal. O pior é que ela não deu pelo fenômeno. Tomás encerrava-se longas horas no gabinete, a pretexto de trabalho, mas realmente para ler romances parisienses, comprados às dúzias. Raquel não iria arrancá-lo ao suposto trabalho, nem ralhava pelo excesso de esforço que devia atribuir-lhe. Um dia, quando muito, perguntou-lhe o que estava fazendo.
— Estou compondo um livro, disse ele, um estudo, uma obra política.
— Você quer ser deputado?
— Não.
E depois de um instante, sorrindo:
— Você gostaria de ouvir os meus discursos na câmara?
— Naturalmente.
Há mil modos de dizer naturalmente; Raquel escolheu um que não significava a co-participação da glória, e não o fez por afligi-lo, mas por não saber de outro. Tomás, que de começo, lia os romances com pouca atenção, acabou lendo-os por gosto e voltando assim a uma das suas diversões antigas. As longas reclusões eram menos aborrecidas que antes. Outras vezes demorava-se fora, ia a reuniões, ao teatro, a jantares, sem que Raquel achasse que dizer uma palavra amarga. Também não o recebia triste nem alegre. Uma ou outra vez bocejava este gracejo:
— Sim, senhor, bela vida para um homem casado.
— Eu te explico...
Tomás explicava-se, mas era difícil saber se ela escutava a explicação. Não tinha nos olhos sequer uma sombra de desconfiança. Nem ciúmes, nem despeito, nem nada.
Ao fim de seis meses Raquel foi a um baile. Havia anos que não pisava em nenhum, e já depois de casada, recusara ir a dois. Aceitara aquele. Não teve a folgança de outro tempo, mas achou alguma coisa que podia trazê-la. Daí a aceitação do segundo em que dançou, e de mais dois. O marido, fez-se sócio do Cassino Fluminense, a pedido dela.
— Com uma condição, disse Raquel; é que uma quadrilha será nossa.
— Justo.
Assim fizeram nos dois primeiros bailes; no terceiro, já não dançaram juntos.
— Raquel casou comigo, sem entusiasmo, pensava ele; foi como quem aceita um vestido novo. Não digo novo, mas bonito, talhado à moda...
Um dia, chegou a insinuar-lhe isto mesmo, no terraço da casa, antes do jantar. Ambos liam; ele, erguendo os olhos da página, viu que ela estava com o livro no regaço e as pálpebras caídas.
— É do livro ou do companheiro? perguntou ele.
Raquel sorriu constrangida, mas não disse nada.
Como ele insistisse:
— É do companheiro, respondeu.
— Talvez.
— Que idéia!
— Sim, a resposta é de gracejo, mas pode ser exata, sem que você dê por isso. Não me há de fazer crer que lhe dou a felicidade esperada, se é que esperou alguma. Não; você casou para fugir à importunação. A liberdade era melhor; podia ser até, — quem sabe? — podia ser que a sorte... Não falemos nisto!
Raquel olhava espantada. Tomás atirara o livro para um sofá e erguera-se, metendo as mãos nas algibeiras das calças. Mordia o beiço, e olhava para fora. Raquel fechou tranqüilamente o livro.
— Tomás, que idéias são essas?
— Que idéias?
— Essas.
— Essas quais?
— Essas! Não compreendo nada do que você me acaba de dizer. Principalmente, não compreendo que na nossa idade... Não somos crianças, Tomás, esses arrufos são bons para os vinte anos. Pois você crê que eu viva aborrecida...?
— Não vive de outra maneira, interrompeu o marido. Eu sinto, eu vejo, eu percebo tudo. Peço-lhe que não me obrigue a ir adiante. Olhe se os bailes a aborrecem, apesar de não ser criança? Tudo que é ir divertir-se é excelente; a minha companhia é que é um aborrecimento mortal.
Era a primeira vez que ele falava assim, em tal maneira, e com tal despeito, que Raquel sentiu-se lisonjeada. Vendo que era sincero, posto lhe parecesse esquisito, ela disse quatro ou cinco palavras amigas e alegres; ergueu-se, arrancou-lhe as mãos do bolso e fechou-as nas suas.
— Criança! disse. Pois você então pensa deveras que me aborrece? Tudo porque fechei os olhos, lendo um livro aborrecido. Ora, Tomás! Vamos, ria, ria um pouco.
— Deixa...
— Há de rir. Vamos, ria!
Tomás acabou rindo. O melhor era terminar ali mesmo o debate, e, se não estivessem expostos, terminá-lo com um beijo. Mas o riso do marido foi tão forçado que a mulher entendeu desculpar-se do que lhe parecia fastio ou indiferença. Era o modo dela. Nunca fora expansiva; a própria mãe a achava sempre assim; ia a falar do primeiro marido, mas recuou a tempo.
Um tanto vexado da cena, Tomás depressa se reconciliou; ela por sua parte, buscou trocar de maneiras; troca difícil. Tomás não achara no casamento a realização esperada de um sonho de longos anos. Toda essa mulher, deixada em botão, achada em flor, parecia uma flor sem cheiro. Raquel sacrificou os seus bailes; passou a fazer reuniões em casa, dava jantares, cercava-se de amigas. Conseguia prendê-lo; lia até o fim, com os olhos abertos, todos os livros que ele lhe dava. Entrou a censurá-lo, quando ele se demorava fora; e, em vez de ir dormir, como a princípio, deixava-se estar até uma e duas horas, quando ele voltava do teatro, nas noites em que ia só ou com algum amigo. A solicitude teve o mesmo efeito da indiferença; tudo acabou no mesmo tédio.
— Talvez o mal esteja em mim, pensou ele um dia.
E inclinando o espírito aos tempos de solteiro, sentiu grande saudade. Para reaver um pouco da sensação antiga, convidou a mulher a uma viagem à Europa; foram, gastaram dois anos, tornaram mais conservados; mas a viagem não apertou os laços da afeição. Realmente, o consórcio era para ele mesmo um ofício novo, aprendido fora de tempo, quando a pessoa só ama e conhece outro ofício.
Já se não queixava; deixava-se ir com os anos. Vieram os cinqüenta. A cunhada morreu. A casa fez-se mais deserta. Tomás, fora do voltarete, só achava prazer na Rua do Ouvidor. Era ainda e sempre o mesmo homem elegante. Deleitava-se em ver passar as senhoras, mirá-las, acompanhá-las com os olhos e as idéias. Chamava a isto liberdade — uma liberdade que perdeu, que entregou por seu gosto nas mãos do casamento.
Mudando de casa por esse tempo, mandou preparar ao rés-do-chão um gabinete para si, exclusivo, reprodução do último aposento de solteiro. Nada havia ali que cheirasse ao casamento, nem a fotografia da mulher, nada. Era a casa do celibato, em que ele se metia duas e três horas diariamente, para viver outra vida não totalmente outra, mas algo que a lembrasse.
Raquel não se opôs à alteração nem a sentiu. Viviam em boa paz, uma santa paz bocejada e ininterrupta. Os anos vieram vindo. Um dia, Raquel caiu doente, uma febre perniciosa que a levou em poucos dias. Tomás foi dedicado, não poupou esforços de toda a espécie para salvá-la; ela morreu-lhe nos braços, ele quis acompanhá-la ao enterro. Oliveira foi ter com o amigo.
— Tomás, disse-lhe, tu não podes viver só aqui; anda cá para casa. Arranjo-te um cômodo grande e livre; ficas a teu gosto.
— Obrigado, Oliveira; deixa-me; algum dia, pode ser.
Meteu-se no aposento de solteiro, agora de viúvo, sempre de solitário. Nada alterou a casa, em cima, onde almoçava e jantava. Fez no ano seguinte outra viagem à Europa, muito mais alegre, como um pássaro livre. Gostava da lufa-lufa de estradas de ferro, de hotéis, de teatros, de revistas militares, bulevares; foi à França, foi à Inglaterra, à Alemanha, e voltou o mesmo velho petimetre. Vinte e quatro horas depois de chegado, estava no cemitério, visitando a sepultura da mulher. Deu-lhe um mausoléu rico e belo, obra de um escultor italiano, e continuou a visitá-la naquele palácio último. Os empregados do cemitério já o conheciam.
— É o viúvo da D. Raquel, diziam eles pelo epitáfio. Se todos fossem como este!
Não podiam crer, nem eu digo isto, que ele amasse mais a mulher morta que viva; é falso. O que se pode admitir é que ele sentia antes a perda da mulher que do casamento.
O BRAVO
Humberto de Campos
Pai de uma menina que era um encanto, o coronel Peregrino encontrara na vida, pela primeira vez, uma dificuldade que lhe detivera o passo: o casamento da filha, a escolha de um noivo digno, bravo, correto, entre os jovens oficiais da guarnição. Três tenentes, nada menos, disputavam-lhe a mão, e era essa rivalidade, exatamente, que dificultava a solução do problema. Todos eram galantes rapazes e elegantíssimos oficiais, e, como a pequena se não decidisse por si mesma, o caso era atirado, inteiro, à delicada responsabilidade do pai.
Certo dia, reunida no quartel a oficialidade da guarnição, chamou o coronel à parte os três jovens tenentes, e, torcendo marcialmente, com as duas mãos, as fortes guias do bigode grisalho, propôs, severo:
— Eu sei que os senhores, os três, têm paixão pela minha filha, cuja mão já me pediram em casamento... A escolha, entre os senhores, é dificílima. Se eu fosse comerciante, preferiria o mais rico. Se fosse fidalgo, o mais nobre. Se me preocupasse com as aparências, o mais elegantemente vestido. Sou, porém, um soldado, e, como, tal, faço questão de escolher para genro o mais valente, o mais bravo, o mais corajoso. Não acham justo?
— Perfeitamente! — exclamou o tenente Coimbra.
— Perfeitamente! — confirmou o tenente Torres.
— Perfeitamente! — concordou o tenente Samuel.
— Nesse caso — tornou o coronel — vou submetê-los a uma prova.
E ordenou; para dentro:
— Cabo Matias, prepare a metralhadora.
O inferior puxou a máquina para o pátio, mexeu nas munições, remexeu nas ferragens, e avisou:
— Pronto, Sr. coronel.
O velho militar examinou a arma e, vendo que tudo ia bem, tomou os rapazes pelo braço, colocou-os a seis metros do aparelho mortífero, e ordenou, com voz de comando:
— Um!... Dois!...
E ia dar o último sinal para descarga da metralha, quando dois vultos pularam, rápidos, num movimento de terror, colocando-se fora do alvo.
— Covardes! — trovejou o coronel. E eram estes pusilânimes que pretendiam a mão da minha filha!...
E dirigindo-se ao terceiro, que se não afastara do lugar:
— O senhor, sim, é um bravo! A menina é sua!
E, estendendo-lhe a mão:
— Venha daí; vamos ver a sua noiva.
O oficial detinha-se, porém, imóvel.
— Vamos, homem! — insistiu.
O tenente olhou para um lado, olhou para outro, e, afinal, confessou:
— Posso lá o que! Se eu pudesse sair daqui, eu tinha corrido!
E para o cabo:
— Matias, empresta-me a tua calça?
PRIMAS DE SAPUCAIA!
Machado de Assis
(Grafia original)
Ha umas occasiões opportunas e fugitivas, em que o acaso nos inflige duas ou trez primas de Sapucaia; outras vezes, ao contrario, as primas de Sapucaia são antes um beneficio do que um infortunio.
Era á porta de uma egreja. Eu esperava que as minhas primas Claudina e Rosa tomassem agua benta, para conduzil-as á nossa casa, onde estavam hospedadas. Tinham vindo de Sapucaia, pelo Carnaval, e demoraram-se dois mezes na côrte. Era eu que as acompanhava a toda a parte, missas, theatros, rua do Ouvidor, porque minha mãi, com o seu rheumatico, mal podia mover-se dentro de casa, e ellas não sabiam andar sós. Sapucaia era a nossa patria commum. Embora todos os parentes estivessem dispersos, alli nasceu o tronco da familia. Meu tio José Ribeiro, pai d'estas primas, foi o unico, de cinco irmãos, que lá ficou lavrando a terra e figurando na politica do logar. Eu vim cedo para a côrte, d'onde segui a estudar e bacharelar-me em S. Paulo. Voltei uma só vez a Sapucaia, para pleitear uma eleição, que perdi.
Rigorosamente, todas estas noticias são desnecessarias para a comprehensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma cousa, antes de entrar em materia, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a redea á penna, e ella que vá andando, até achar entrada. Hade haver alguma; tudo depende das circumstancias, regra que tanto serve para o estylo como para a vida; palavra puxa palavra, uma idéa traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compoz as suas especies.
Portanto, agua benta e porta de egreja. Era a egreja de S. José. A missa acabára; Claudina e Rosa fizeram uma cruz na testa, com o dedo pollegar, molhado na agua benta e descalçado unicamente para esse gesto. Depois ajustaram os manteletes, emquanto eu, ao portal, ia vendo as damas que sahiam. De repente, estremeço, inclino-me para fóra, chego mesmo a dar dous passos na direcção da rua.
--Que foi, primo?
--Nada, nada.
Era uma senhora, que passára rentesinha com a egreja, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapellinho de sol; ia pela rua da Misericordia acima. Para explicar a minha commoção, é preciso dizer que era a segunda vez que a via. A primeira foi no Prado Fluminense, dous mezes antes, com um homem que, pelos modos, era seu marido, mas tanto podia ser marido como pai. Estava então um pouco de espavento, vestida de escarlate, com grandes enfeites vistosos, e umas argolas demasiado grossas nas orelhas; mas os olhos e a bocca resgatavam o resto. Namorámos ás bandeiras despregadas. Se disser que sahi d'alli apaixonado, não metto a minha alma no inferno, porque é a verdade pura. Sahi tonto, mas sahi tambem desapontado, perdia-a de vista na multidão. Nunca mais pude dar com ella, nem ninguem me soube dizer quem fosse.
Calcule-se o meu enfado, vendo que a fortuna vinha trazel-a outra vez ao meu caminho, e que umas primas fortuitas não me deixavam lançar-lhe as mãos. Não será difficil calculal-o, porque estas primas de Sapucaia tomam todas as fórmas, e o leitor, se não as teve de um modo, teve-as de outro. Umas vezes copiam o ar confidencial de um cavalheiro informado da ultima crise do ministerio, de todas as causas apparentes ou secretas, dissensões novas ou antigas, interesses aggravados, conspiração, crise. Outras vezes, enfronham-se na figura d'aquelle eterno cidadão que affirma de um modo ponderoso e abotoado, que não ha leis sem costumes, _nisi lege sine moribus_. Outras, afivellam a mascara de um Dangeau de esquina, que nos conta miudamente as fitas e rendas que esta, aquella, aquell'outra dama levara ao baile ou ao theatro. E durante esse tempo, a Occasião passa, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapellinho de sol: passa, dobra a esquina, e adeus... O ministerio esphacelava-se; malinas e bruxellas; _nisi lege sine moribus_...
Esteve a pique de dizer ás primas, que se fossem embora; moravamos na rua do Carmo, não era longe; mas abri mão da idéa. Já na rua pensei tambem em deixal-as na egreja, á minha espera, e ir ver se agarrava a Occasião pela calva. Creio mesmo que cheguei a parar um momento, mas rejeitei egualmente esse alvitre e fui andando.
Fui andando com ellas para o lado opposto ao da minha incognita. Olhei para traz repetidas vezes, até perdel-a n'uma das curvas da rua, com os olhos no chão, como quem reflecte, devaneia ou espera uma hora marcada. Não minto dizendo que esta ultima idéa trouxe-me a emoção do ciume. Sou exclusivo e pessoal; daria um triste amante de mulheres casadas. Não importa que entre mim e aquella dama existisse apenas uma contemplação fugitiva de algumas horas; desde que a minha personalidade ia para ella, a partilha tornava-se-me insupportavel. Sou tambem imaginoso; engenhei logo uma aventura e um aventureiro, dei-me ao prazer morbido de affligir-me sem motivo nem necessidade. As primas iam adiante, e falavam-me de quando em quando; eu respondia mal, se respondia alguma cousa. Cordialmente, execrava-as.
Ao chegar á porta de casa, consultei o relogio, como si tivesse alguma cousa que fazer; depois disse ás primas que subissem e fossem almoçando. Corri á rua da Misericordia. Fui primeiro até á Escola de Medicina; depois voltei e vim até a Camara dos Deputados, então mais devagar, esperando vel-a ao chegar a cada curva da rua; mas nem sombra. Era insensato, não era? Todavia, ainda subi outra vez a rua, porque adverti que, a pé e de vagar, mal teria tempo de ir em meio da praia de Santa Luzia, se acaso não parára antes; e ahi fui, rua acima e praia fóra, até o convento da Ajuda. Não encontrei nada, cousa nenhuma. Nem por isso perdi as esperanças; arripiei caminho e vim, a passo lento ou apressado, conforme se me afigurava que era possivel apanhal-a adiante, ou dar tempo a que sahisse de alguma parte. Desde que a minha imaginação reproduzia a dama, todo eu sentia um abalo, como se realmente tivesse de vel-a d'ahi a alguns minutos. Comprehendi a emoção dos doudos.
Entretanto, nada. Desci a rua sem achar o menor vestigio da minha incognita. Felizes os cães, que pelo faro dão com os amigos! Quem sabe se não estaria alli bem perto, no interior de alguma casa, talvez a propria casa d'ella? Lembrou-me indagar; mas de quem, e como? Um padeiro, encostado ao portal espiava-me; algumas mulheres faziam a mesma cousa enfiando os olhos pelos postigos. Naturalmente desconfiavam do transeunte, do andar vagaroso ou apressado, do olhar inquisidor, do gesto inquieto. Deixei-me ir até á Camara dos Deputados, e parei uns cinco minutos, sem saber que fizesse. Era perto de meio-dia. Esperei mais dez minutos, depois mais cinco, parado, com a esperança de vel-a; afinal, desesperei e fui almoçar.
Não almocei em casa. Não queria ver os demonios das primas, que me impediram de seguir a dama incognita. Fui a um hotel. Escolhi uma mesa no fim da sala, e sentei-me de costas para as outras; não queria ser visto nem conversado. Comecei a comer o que me deram. Pedi alguns jornaes, mas confesso que não li nada seguidamente, e apenas entendi tres quartas partes do que ia lendo. No meio de uma noticia ou de um artigo, escorregava-me o espirito e cahia na rua da Misericordia, á porta da egreja, vendo passar a incognita, vagarosa, cabisbaixa, apoiando-se no chapellinho de sol.
A ultima vez que me aconteceu essa separação da _outra_ e da _besta_, estava já no café, e tinha diante de mim um discurso parlamentar. Achei-me ainda uma vez á porta da egreja; imaginei então que as primas não estavam commigo, e que eu seguia atraz da bella dama. Assim é que se consolam os preteridos da loteria; assim é que se fartam as ambições mallogradas.
Não me peçam minucias nem preliminares do encontro. Os sonhos desdenham as linhas finas e o acabado das paysagens; contentam-se de quatro ou cinco brochadas grossas, mas representativas. Minha imaginação galgou as difficuldades da primeira falla, e foi direita á rua do Lavradio ou dos Invalidos, á propria casa de Adriana. Chama-se Adriana. Não viera á rua da Misericordia por motivos de amores, mas a ver alguem, uma parenta ou uma comadre, ou uma costureira. Conheceu-me, e teve egual commoção. Escrevi-lhe; respondeu-me. Nossas pessoas foram uma para a outra por cima de uma multidão de regras moraes e de perigos. Adriana é casada; o marido conta cincoenta e dous annos, ella trinta imperfeitos. Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer á familia. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ella me diz nesta casinha que aluguei fóra da cidade, de proposito para nós.
Ouço-a embriagado. Não me enganei; é a mulher ardente e amorosa, qual me diziam os seus olhos, olhos de touro, como os de Juno, grandes e redondos. Vive de mim e para mim. Escrevemo-nos todos os dias; e, apezar d'isso, quando nos encontramos na casinha, é como se medeara um seculo. Creio até que o coração d'ella ensinou-me alguma cousa, embora noviço, ou por isso mesmo. N'esta materia desapprende-se com o uso e o ignorante é que é douto. Adriana não dissimula a alegria nem as lagrimas; escreve o que pensa, conta o que sente; mostra-me que não somos dois, mas um, tão sómente um ente universal, para quem Deus creou o sol e as flores, o papel e a tinta, o correio e as carruagens fechadas.
Emquanto ideava isto, creio que acabei de beber o café; lembra-me que o criado veiu á mesa e retirou a chicara e o assucareiro. Não sei se lhe pedi fogo, provavelmente viu-me com o charuto na mão e trouxe-me phosphoros.
Não juro, mas penso que accendi o charuto, porque d'ahi a um instante, atravez de um véu de fumaça, vi a cabeça meiga e energica da minha bella Adriana, encostada a um sophá. Eu estou de joelhos, ouvindo-lhe a narração da ultima rusga do marido. Que elle já desconfia; ella sahe muitas vezes, distrahe-se, absorve-se, apparece-lhe triste ou alegre, sem motivo, e o marido começa a ameaçal-a. Ameaçal-a de que? Digo-lhe que, antes de qualquer excesso, era melhor deixal-o, para viver commigo, publicamente, um para o outro. Adriana escuta-me pensativa, cheia de Eva, namorada do demonio, que lhe sussurra de fóra o que o coração lhe diz de dentro. Os dedos affagam-me os cabellos.
--Pois sim! pois sim!
Veiu no dia seguinte, consigo mesma, sem marido, sem sociedade, sem escrupulos, tão sómente comsigo, e fomos d'alli viver juntos. Nem ostentação, nem resguardo. Suppuzemo-nos estrangeiros, e realmente não eramos outra cousa; fallavamos uma lingua, que nunca ninguem antes fallara nem ouvira. Os outros amores eram, desde seculos, verdadeiras contrafacções; nós davamos a edição authentica. Pela primeira vez, imprimia-se o manuscripto divino, um grosso volume que nós dividiamos em tantos capitulos e paragraphos quantas eram as horas do dia ou os dias da semana. O estylo era tecido de sol e musica; a linguagem compunha-se da fina flôr dos outros vocabularios. Tudo o que n'elles existia, meigo ou vibrante, foi extrahido pelo autor para formar esse livro unico--livro sem indice, porque era infinito--sem margens, para que o fastio não viesse escrever n'ellas as suas notas,--sem fita, porque já não tinhamos precisão de interromper a leitura e marcar a pagina.
Uma voz chamou-me á realidade. Era um amigo que acordara tarde, e vinha almoçar. Nem o sonho me deixava esta outra prima de Sapucaia! Cinco minutos depois despedi-me e sahi; eram duas horas passadas.
Vexa-me dizer que ainda fui á rua da Misericordia, mas é preciso narrar tudo: fui e não achei nada. Voltei nos dias seguintes sem outro lucro, além do tempo perdido. Resignei-me a abrir mão da aventura, ou esperar a solução do acaso. As primas achavam-me aborrecido ou doente; não lhes disse que não. D'ahi a oito dias, foram-se embora, sem me deixar saudades; despedi-me d'ellas como de uma febre maligna.
A imagem da minha incognita não me deixou durante muitas semanas. Na rua, enganei-me varias vezes. Descobria ao longe uma figura, que era tal qual a outra; picava os calcanhares, até apanhal-a e desenganar-me. Comecei a achar-me ridiculo; mas lá vinha uma hora ou um minuto, uma sombra ao longe, e a preoccupação revivia. Afinal vieram outros cuidados, e não pensei mais n'isso.
No principio do anno seguinte, fui a Petropolis; fiz a viagem com um antigo companheiro de estudos, Oliveira, que foi promotor em Minas-Geraes, mas abandonara ultimamente a carreira por ter recebido uma herança. Estava alegre como nos tempos da academia; mas de quando em quando calava-se, olhando para fóra da barca ou da caleça, com a atonia de quem regala a alma de uma recordação, de uma esperança ou de um desejo. No alto da serra perguntei-lhe para que hotel ia; respondeu que ia para uma casa particular, mas não me disse aonde, e até desconversou. Cuidei que me visitaria no dia seguinte; mas nem me visitou, nem o vi em parte alguma. Outro collega nosso ouvira dizer que elle tinha uma casa para os lados da Rhenania.
Nenhuma d'estas circumstancias voltaria á memoria, se não fosse a noticia que me deram dias depois. Oliveira tirára uma mulher ao marido, e fôra refugiar-se com ella em Petropolis. Deram-me o nome do marido e o d'ella. O d'ella era Adriana. Confesso que, embora o nome da outra fosse pura invenção minha, estremeci ao ouvil-o; não seria a mesma mulher? Vi logo depois que era pedir muito ao acaso. Já faz bastante esse pobre official das cousas humanas, concertando alguns fios dispersos; exigir que os reate a todos, e com os mesmos titulos, é saltar da realidade na novella. Assim fallou o meu bom senso, e nunca disse tão gravemente uma tolice, pois as duas mulheres eram nada menos que a mesmissima.
Vi-a tres semanas depois, indo visitar o Oliveira, que viera doente da côrte. Subimos juntos na vespera; no meio da serra, começou elle a sentir-se incommodado; no alto estava febril. Acompanhei-o no carro até a casa, e não entrei, porque elle dispensou-me o incommodo. Mas no dia seguinte fui vel-o, um pouco por amizade, outro pouco por avidez de conhecer a incognita. Vi-a; era ella, era a minha, era a unica Adriana.
Oliveira sarou depressa, e, apezar do meu zelo em visital-o, não me offereceu a casa; limitou-se a vir ver-me no hotel. Respeitei-lhe os motivos; mas elles mesmos é que faziam reviver a antiga preoccupação. Considerei que, além das razões de decoro, havia da parte d'elle um sentimento de ciume, filho de um sentimento de amor, e que um e outro podiam ser a prova de um complexo de qualidades finas e grandes n'aquella mulher. Isto bastava a transtornar-me; mas a idéa de que a paixão d'ella não seria menor que a d'elle, o quadro d'esse casal que fazia uma só alma e pessoa, excitou em mim todos os nervos da inveja. Baldei esforços para ver se mettia o pé na casa; cheguei a fallar-lhe do boato que corria; elle sorria e tratava de outra cousa.
Acabou a estação de Petropolis, e elle ficou. Creio que desceu em julho ou agosto. No fim do anno encontrámo-nos casualmente; achei-o um pouco taciturno e preoccupado. Vi-o ainda outras vezes, e não me pareceu differente, a não ser que, além de taciturno, trazia na physionomia uma longa préga de desgosto. Imaginei que eram effeitos da aventura, e, como não estou aqui para empulhar ninguem, accrescento que tive uma sensação de prazer. Durou pouco; era o demonio que trago em mim, e costuma fazer d'esses esgares de saltimbanco. Mas castiguei-o depressa, e puz no logar d'elle o anjo, que tambem uso, e que se compadeceu do pobre rapaz, qualquer que fosse o motivo da tristeza.
Um visinho d'elle, amigo nosso, contou-me alguma cousa, que me confirmou a suspeita de desgostos domesticos; mas foi elle mesmo quem me disse tudo, um dia, perguntando-lhe eu, estouvadamente o que é que tinha que o mudára tanto.
--Que hei de ter? Imagina tu que comprei um bilhete de loteria, e nem tive, ao menos, o gosto de não tirar nada; tirei um escorpião.
E, como eu franzisse a testa interrogativamente:
--Ah! se soubesses metade só das cousas que me têm acontecido! Tens tempo? Vamos aqui ao Passeio Publico.
Entrámos no jardim, e mettemo-nos por uma das alamedas. Contou-me tudo. Gastou duas horas em desfiar um rosario infinito de miserias. Vi atravez da narração duas indoles incompativeis, unidas pelo amor ou pelo peccado, fartas uma da outra, mas condemnadas á convivencia e ao odio. Elle nem podia deixal-a nem supportal-a. Nenhuma estima, nenhum respeito, alegria rara e impura; uma vida gorada.
--Gorada, repetia elle, gesticulando affirmativamente com a cabeça. Não tem que ver; a minha vida gorou. Has de lembrar-te dos nossos planos da academia, quando nos propunhamos, tu a ministro do imperio, eu da justiça. Pódes guardar as duas pastas; não serei nada, nada. O ovo, que devia dar uma aguia, não chega a dar um frango. Gorou completamente. Ha anno e meio que ando n'isso, e não acho sahida nenhuma; perdia a energia...
Seis mezes depois, encontrei-o afflicto e desvairado. Adriana deixara-o para ir estudar geometria com um estudante da antiga Escola Central. Tanto melhor, disse-lhe eu. Oliveira olhou para o chão envergonhado; despediu-se, e correu em procura d'ella. Achou-a d'ahi a algumas semanas, disseram as ultimas um ao outro, e no fim reconciliaram-se. Comecei então a visital-os, com a idéa de os separar um do outro. Ella estava ainda bonita e fascinante; as maneiras eram finas e meigas, mas evidentemente de emprestimo, acompanhadas de umas attitudes e gestos, cujo intuito latente era attrahir-me e arrastar-me.
Tive medo e retrahi-me. Não se mortificou; deitou fóra a capa de renda, restituiu-se ao natural. Vi então que era ferrenha, manhosa, injusta, muita vez grosseira; em alguns lances notei-lhe uma nota de perversidade. Oliveira, nos primeiros tempos, para fazer-me crer que mentira ou exagerára, supportava tudo rindo; era a vergonha da propria fraqueza. Mas não pôde guardar a mascara; ella arrancou-lh'a um dia, sem piedade, denunciando as humilhações em que elle cahia, quando eu não estava presente. Tive nojo da mulher e pena do pobre diabo. Convidei-o abertamente a deixal-a, elle hesitou, mas prometteu que sim.
--Realmente, não posso mais...
Combinamos tudo; mas no momento da separação, não pôde. Ella embebeu-lhe novamente os seus grandes olhos de touro e de basilisco, e d'esta vez,--ó minhas queridas primas de Sapucaia!--d'esta vez para só deixal-o exhausto e morto.
PEDRAS PRECIOSAS
Humberto de Campos
Segurando o almirante pela manga da casaca impecável, a Baronesa forçou-o a sentar-se, de novo:
— Não, senhor, não pode ir; tem que contar-nos, agora, a virtude de todas as pedras preciosas exibidas pelas senhoras que aqui se acham.
— Eu? — obtemperou o ilustre marinheiro, levando a mão clara ao peitilho espelhante da camisa:
— Sim, senhor. É este o seu castigo.
E imperativa:
— Sente-se!
Generalizada, de novo, a palestra, a Viscondessa de São Germano indagou, com sincero interesse:
— É verdade, almirante é certo, mesmo, que a ágata é "porte-malheur"?
— É verdade, afirmam isso... — acrescentou Madame Sampaio Gomes.
O almirante contestou:
— É uma invenção recente, essa, D. Violeta. Os antigos, pelo menos, não dão notícia dessa propriedade. Plínio, que a ela se refere longamente, atribui-lhe a virtude de tornar os atletas invencíveis. Os egípcios indicavam-na como infalível contra mordedura das víboras, dizendo-se, mesmo, que as águias a colocavam no ninho para afugentar as serpentes, que lhes perseguiam os filhos.
— E o rubi? — indagou a Baronesa.
— O rubi é a pedra dos espíritos esclarecidos. Teofrasto aponta-o como um dos incentivos misteriosos da inteligência, circunstância que a levou, ao que parece, a ser adotada como pedra simbólica dos bacharéis. Outros acreditam que ele preservava contra a peste, contra os venenos, e contra outros perigos da vida. É, mais ou menos, como a esmeralda.
— Como a esmeralda?
— Sim. A esmeralda fortalece, também a inteligência, e cura, segundo Plutarco, as mordeduras de cobra. Alberto, o Grande, recomendava-a contra a epilepsia e Cornélio Agripa contra as hemorragias.
Foi por essa altura que a encantadora D. Ritinha, que até então se limitara a sorrir, fazendo companhia ao contentamento dos outros, aventurou, cândida:
— Mas, há pedras portadoras de desgraças; não há, senhor almirante?
— Dizem que a opala é desse número, minha senhora; mas eu não creio.
— Não crê?
E entre a atenção geral:
— Pois, olhe, há dois anos, meu marido ia sendo vítima de uma dessas pedras de mau agouro. Esteve muito mal!
— E que pedra foi essa? Pode-se saber?
A moça não lhe sabia o nome; a Baronesa correu, porém, pérfida, em seu auxílio:
— Era o carbúnculo; não era, Dona Ritinha?
A jovem senhora, desabituada àquele meio supercivilizado, bateu com a cabeça, confirmando, ingênua, a horrenda perversidade:
— É isso mesmo; era o carbúnculo. E compadecida:
— Quase ele morre, coitado!...
POBRE CARDEAL
Machado de Assis
Martins Netto costumava dizer que era o homem mais alegre do século, e toda a gente confirmava essa opinião. Ninguém lhe vira nunca nenhuma sombra de melancolia. Já maduro, era ainda o melhor acepipe dos jantares, um repositório de ditos picantes, anedotas joviais, repentes crespos e crus; mas, além disso, que é a despesa exterior da alegria, ele a tinha em si mesmo, no sangue e na vida. Pouco antes de morrer, em 1878, dizia ele a um amigo íntimo, que lhe invejava o temperamento:
— Sou alegre, muito alegre; mas se disser a você que a isto mesmo devo uma grande amargura...
Calou-se, deu duas voltas, e tornou ao amigo:
— Vou contar-lhe uma coisa secreta, como se me confessasse a um padre. Sabe que fui um dos julgadores do famoso processo de letras falsas João da Cruz, em 1851. Houve nessa sessão do júri muitas causas importantes, que eu julguei com a inflexibilidade do costume, e condenei muita gente, do que me não arrependo.
Na véspera de entrar o processo do João da Cruz, estive com um tal capitão José Leandro, que morava na Rua da Carioca; falamos do processo, das letras, de mil circunstâncias, que me esqueceram, e, finalmente, do próprio João da Cruz, que o capitão José Leandro dizia conhecer desde menino. O pai deste capitão foi um general português, que veio com o rei em 1808, e aqui casou pouco depois com uma senhora de Cantagalo. José Leandro era menino quando João da Cruz apareceu em casa dele, na Rua de Mata-cavalos; lembrava-se que ele os festejava e adulava muito; lembrava-se também que ali pelos fins de 1816 andava João da Cruz muito por baixo, beirando a miséria, roupa de ano, amarela de uso, mal remendada...
E então, para mostrar-me que o João da Cruz nascera com o gênio da fraude e da duplicidade, contou-me que um dia, em 1817, estando ele e a mãe em casa, apareceu ele ali angustiado, desvairado, bradando:
— Pobre cardeal! pobre cardeal! Ah! minha senhora D. Luísa, que grande desgraça! pobre cardeal!
— Não, acudiu João da Cruz, não é nada com o digno marido de V. Excia.; falo do cardeal! pobre cardeal!
— Mas que cardeal?
João da Cruz tinha-se sentado, suspirando grosso, esfregando os olhos com um trapo de lenço. A dona da casa respeitou-lhe a dor, que parecia tão profunda e deixou-se estar de pé, esperando. Mas não tardou que ouvissem no saguão da casa um rumor de espada; era o general que entrava. Daí a pouco estava ele à porta da saleta, e dizia à mulher que acabara de morrer o núncio, cardeal Caleppi; morrera de um ataque apoplético.
— V. Excia. já sabe então da triste notícia? Morreu um santo homem, santo e magnífico, sem desfazer nas pessoas que me ouvem; ah! um varão digno do céu!
— Entrou aqui, disse D. Luísa, há poucos instantes, fora de si com a morte do cardeal... Eu nem me lembrava que cardeal podia ser. Se ele tivesse dito que morreu o núncio...
— É verdade que entrei fora de mim; a tal ponto, que pratiquei a grosseria de sentar-me diante de V. Excia., estando V. Excia. de pé; mas a dor desvaira. Acabavam de dar-me a notícia, ali ao pé da Lagoa da Sentinela, e fiquei como não podem imaginar; fiquei tonto, entrei aqui tonto.
O general sentou-se espantado; disse ao João da Cruz que se sentasse também, e perguntou-lhe desde quando conhecia o cardeal, e se era assim tão amigo dele. João da Cruz não respondeu logo verbalmente; fez primeiro um gesto de afirmação e saudade; depois levou o trapo aos olhos. D. Luísa, sentada ao lado do marido, olhava compassivamente para o pobre homem. Este, afinal, confessou que era amigo do grande prelado, por benefícios que recebera dele em Lisboa. Aqui não o procurou senão duas vezes: logo que chegou, em 1814, e quando uma vez Sua Eminência estivera doente. Se nunca falou disso ao honrado general, foi porque as humilhações por que passou e lhe trouxeram o conhecimento e o trato do cardeal (que Deus tinha!) foram amargas e dolorosas.
— Bem, mas agora...
— Agora direi tudo, se V. Excia. assim o ordena.
E depois de limpar os olhos vermelhos:
— Foi em Lisboa, ali por 1806; tendo chegado de Gênova e passando por alto uma gramática italiana, lembrou-me ensinar esta língua. Confesso que pouco ou quase nada sabia dela; mas ensinando ia aprendendo. Nisto fui denunciado como espião dos franceses, e metido na cadeia. Imagine V. Excia. com que dor recebi semelhante afronta; felizmente, provado o engano da denúncia, fui solto daí a poucos dias. Contente da justiça que me fizeram, fiquei admirado da prontidão, e cá fora é que soube que esta fora devida ao cardeal. Corri a agradecer-lhe o favor; mas Sua Eminência negou-o uma e duas vezes, até que confessou a verdade. Desde que soube que a denúncia era falsa correu logo ao ministro, para obter a minha soltura, e obteve-a. Mas qual foi a causa de inspirar a Vossa Eminência tão singular beneficio? perguntei eu. Confessou-me que só porque soubera que eu ensinava italiano; só por isso, e sem que me conhecesse, estimava-me.
— Ah! bem compreendo, disse o general.
— Foi o que me ligou a ele; fez-me depois alguns obséquios, e quando eu lhe confessei que pouco italiano sabia, e que me dei a ensiná-lo com o fim de propagar o amor de tão divino idioma, então ele propôs-me dar algumas lições. Sobrevieram os acontecimentos de 1808. A corte transportou-se ao Brasil, e o cardeal, no ato de embarcar, instou comigo para que viesse também; recusei, dizendo-lhe que ia alistar-me no exército que devia expulsar o pérfido invasor...
— Bravo! disse o general.
— Sua Eminência, não podendo arrancar-me daquele propósito, despediu-se de mim com muitas lágrimas, e deu-me em lembrança um exemplar de um poema em italiano, anotado por suas sagradas mãos, livro que me foi roubado, tempos depois, por um soldado de Napoleão, um miserável... Para que o queria ele? Naturalmente ia vendê-lo. Que preço podia dar esse herege a um objeto de tanta valia?
João da Cruz disse aqui coisas duras ao soldado e a Napoleão, chamando-os literalmente ladrões de estrada. Concluída a descompostura, levou o trapo aos olhos; o general procurou consolá-lo.
— A morte é caminho de nós todos, disse ele, e demais o núncio já estava com os seus setenta e tantos anos. Em todo o caso aplaudo os seus sentimentos, são naturais de um bom coração.
— Muito obrigado, acudiu João da Cruz; pode V. Excia. estar certo de que se me dissesse o contrário, eu duvidaria da minha dor. E tanto prezo o seu conselho, que desejava saber se pareceria afetação que eu deitasse luto por tão grande homem.
— Não me parece que seja...
— Não? Pois vou pô-lo; não direi a ninguém o motivo, como digo aqui, pois é só para a alma dele, que me agradecerá... Pobre cardeal... Vou ver...
Como o general se levantasse e fosse para dentro, João da Cruz ficou um pouco vacilante, ao que parece; então a mãe de José Leandro disse-lhe que ficasse para jantar.
— Agradeço... agradeço... Vou ver se arranjo... se posso...
Disse isso, entre pausas e suspiros, olhando para a roupa; mas D. Luísa pegou no filho pela mão e retirou-se da sala. João da Cruz saiu; chegando ao saguão parou e não vendo o porteiro que estava no pátio, ao fundo, e que depois contou o caso à família, fez um gesto de desespero, dizendo:
— Esta gente ainda está mais defunta que o cardeal.
José Leandro cuidou logo de ver as exéquias, e pediu ao pai que o levasse; o pai noticiou à mulher que el-rei ordenara grandes honras ao finado; o cadáver, embalsamado, ficaria em casa três dias, celebrando-se diante dele missas e responsos. O enterro seria em Santo Antônio. Não se falava de outra coisa. Mas nessa noite aconteceu adoecer o general; sobre a madrugada foi sangrado; a moléstia agravou-se; era impossível levar o filho às exéquias. A mãe não havia de abandonar o marido. José Leandro, criado a mimos, teimava em querer ir, ainda que com um escravo; mas a mãe vendo que um escravo não poderia arranjar ao filho algum bom lugar na igreja, pediu a João da Cruz o obséquio de o levar a Santo Antônio.
— Obséquio? diga obrigação, minha senhora; mas V. Excia. sabe... que... que... eu... não poderei... sem...
O general concordou que era constrangê-lo a assistir ao enterro de um amigo que lhe deixara tantas saudades... E voltando-se para o pequeno, prometeu levá-lo à procissão de S. Sebastião, que era muito bonita, e que ele nunca vira. José Leandro reprimiu as lágrimas; ficava uma coisa pela outra; mas João da Cruz fez logo uma descrição vivíssima das exéquias, disse que seriam tão pomposas ou mais que as da rainha D. Maria I, no ano anterior; falou em cinco bispos, muitos frades, tochas e coches reais, tropa... uma coisa única. O menino agarrou-se-lhe que o levasse. João da Cruz não se negava a isso, uma vez que era vontade de pessoa tão distinta; nem o cadáver de um amigo eminente era espetáculo de fazer recuar a uma alma rija. Ao contrário, esse último encontro dava fortaleza ao coração...
— Bem, se não há dúvida... disse o general.
Lá isso, pedia licença para dizer que sim, que havia sempre uma dúvida, uma triste dúvida, uma coisa que o vexava; não lhe perguntasse o que era, não o podia dizer sem lágrimas... Mas se o general insistisse em saber, ele fecharia a boca, falariam por ele aquelas miseráveis calças de cor. Tinham sido pretas algum dia, mas o tempo... e tudo o mais, tudo, até os rasgões dos sapatos. Era luto aquilo? era luto apropriado a um príncipe da Igreja? etc., etc. Não, não; o menino que esperasse a procissão, que fosse a ela com seu ilustre pai; deixasse as exéquias, por mais que fossem de estrondo...
— De estrondo? interrompeu o pequeno.
E chorando, chorando, pediu outra vez que o levasse. O pai na cama agitava-se, sem saber o que fizesse; era avaro, diziam, e custava-lhe abrir mão de algumas patacas. Teimou com o filho, o filho com ele, até que, desesperado:
— João da Cruz, disse o pai, entenda-se com esta senhora, a respeito do luto; leve uma recomendação minha ao alfaiate e ao sapateiro. Também precisa de chapéu? Há de haver algum servido cá em casa... Ela que lho dê... Vão e deixem-me em paz!
Foi assim que ele arranjou a roupa nova, — embora de luto — luto que fosse, era nova. José Leandro lembrava-se ainda das exéquias, quando me contou este caso; tinha diante de si a figura pomposa de João da Cruz, vendo e ouvindo tudo com interesse de pessoa estranha. Ensinava-lhe o nome de tudo, cerimônias e alfaias, os dois bispos, que eram cinco ou seis, mas ele só se lembrava do de Angola, e do de Pernambuco, e os das ordens religiosas, e os de alguns cônegos. De quando em quando esticava o braço, e mirava-se. Com o andar das horas ficou até alegre. Cá fora, ladeira abaixo, vinha falando da “bonita festa” e recitando-lhe pedaços inteiros do sermão. No Largo da Carioca entraram na sege que os esperava; à porta de casa, é que João da Cruz pôs outra vez os óculos da melancolia, desceu trôpego e entrou.
Não imagina como achei esta anedota engraçada; José Leandro contava bem, é certo, mas toda essa história pareceu-me engraçadíssima. Ria-me a não poder mais, e repetia a exclamação que fez render a roupa ao outro. Pobre cardeal! Já entendeste que ele nunca trocou uma só palavra com o núncio, e se o viu algum dia, foi na igreja ou de coche; mas mentia com tanto aprumo, a invenção era tão graciosa e pronta, a peta tão bem concertada, aproveitados todos os incidentes, que era difícil não cair na esparrela. Mas, realmente, a coisa tinha graça; agora mesmo, após tantos anos, acho-lhe muito pico. Mas, vamos ao resto; eis aqui o que eu só confiaria a Deus ou a você.
No dia seguinte fui para o júri, com a anedota fresca de memória, até porque sonhara com ela, tanto que acordei rindo. Cheguei a tempo, e fui logo sorteado para o conselho de jurados. Quando vi o réu, não pude deixar de sorrir. Era aquilo mesmo, devia ter sido assim no dia do óbito do núncio; cabeça um pouco torta, olhos mortificados e baixos, tipo de astúcia. Não parecia velho, apesar dos anos longos e desvairados; devia contar uns sessenta e tantos, perto de setenta. Trazia raspado o lábio superior, e toda a mais barba, grisalha e fina, dava-lhe ao rosto muita gravidade. De quando em quando tomava rapé; reparei logo que a boceta era de ouro.
O interrogatório durou cerca de quarenta minutos. João da Cruz respondeu claro e firme, negou a autoria da falsificação, explicou algumas contradições que lhe assacaram. Confesso-lhe que ouvi as respostas dele com interesse e sem desprazer. De quando em quando a anedota do cardeal vinha dar uma nota graciosa à situação. Imaginava-o então em Mata-cavalos, no tal dia, em frente do general, referindo as petas de Lisboa, as desculpas, as lágrimas aparentes, até o desfecho. Lá, engenhoso era ele, e divertido. Não pude atender à leitura do processo; ouvi algumas páginas, depois disse a mim mesmo que os autos eram grossos, e a leitura fastienta...
Não era isto; era a narração dos feitos do réu que começava a constranger-me. Para distrair-me entrei a mirar a beca do advogado, a cara dos meus colegas do conselho, a cabeleira do escrivão, as suíças do juiz, e finalmente o retrato do imperador, que pendia da parede. Aqui foi maior a distração, porque cuidei de recordar as festas da coroação, tanto as públicas como as particulares, entre estas um banquete a que fui, e no qual ouvi recitar duas odes bem bonitas. Quis recompô-las e não pude; trabalhei de memória, e fui arrancando ora um verso, ora outro, alguns truncados, e quando dei por mim, acabara a leitura.
Ouvi depois a acusação, que me deixou em alternativas de acordo e desacordo; veio, porém, a defesa e equilibrou-me o espírito. Minha alma sentia grelar um grão de simpatia, ou outra coisa, que desafiava a causa do João da Cruz. Não podia olhar para ele sem sorrir; de uma vez, para não rir alto, sufoquei uma tosse com o lenço. A exposição do juiz durou pouco mais de quarto de hora. Os autos foram entregues ao conselho e nós saímos da sala.
Lá, na sala secreta, os debates foram longos e complicados, mas não tanto como na minha consciência; aqui é que era preciso decidir. A justiça dizia-me que condenasse, a simpatia pedia-me que absolvesse, e o diabo — não podia ser outra pessoa — o diabo clama do fundo do meu ser estas palavras: “Pobre Cardeal! Ah! minha senhora D. Luiza!” que grande desgraça! Pobre Cardeal! E a minha consciência ria, porque era amiga de rir. Já não negava o crime, mas punha na outra concha da balança a vergonha pública, e a prisão longa; depois, os velhos anos do pobre diabo...
Enfim, contados os votos, acharam-se divididos seis que sim, seis que não; ia decidir o voto de Minerva, e o réu foi absolvido. Saí contente de mim mesmo; se votasse contra, teria feito inclinar a balança, e era certa a condenação. Saí alegre; não contei nada do que se passara dentro de mim, senão a você agora; mas a anedota do cardeal lá foi correr mundo.
E foi ela que trouxe a absolvição de João da Cruz; foi essa empulhação de 1817, jovial e pífia, que deu ao réu de 1851 a minha simpatia e o meu voto, não por ser pífia, mas por ser jovial. Os anos, porém, foram passando, e agora ainda que sou o homem mais alegre do século, acho em mim este ponto negro de melancolia. Quem sabe? Pode ser que este erro me condene no outro mundo.
— Tudo são mistérios indecifráveis, respondeu o amigo íntimo do Martins Netto. Os fatos e os tempos ligam-se por fios invisíveis. Suponha que o João da Cruz não tem empulhado o general em 1817, não teria sido absolvido pelo seu voto em 1851, você não teria uma ponta de remorso, nem eu este conto.
— Pobre cardeal!
A CHUVA LUMINOSA
Humberto de Campos
— Maravilhoso colar este seu, senhora Viscondessa; é pena que dê, aos meus olhos, uma sensação de tragédia, embora de linda tragédia!
As senhoras voltaram-se, todas, para a Viscondessa de São Germano, e admiraram. Emergindo do vestido solferino, graciosamente decotado, o seu colo parecia mais alvo do que nunca; e o que realçava ainda mais essa alvura de leite era a graça de um colar de rubis que lhe volteava o pescoço de linhas puríssimas, dando a impressão de um crime sinistro, horrendo, brutal, que lhe fizesse florescer a garganta de neve com um vivo círculo de gotas de sangue.
— É lindo, mesmo! — confirmou o general Tasso Fragoso, assestando na jovem senhora o seu fortíssimo "pince-nez" de míope.
— É um deslumbramento! — asseguraram, ao mesmo tempo, o senador Azeredo e a Baronesa de Pereira Alves.
Percebendo, perspicaz, a tortura a que o seu galanteio estava submetendo a beleza honesta da Viscondessa, o almirante Ribas resolveu correr em seu auxílio, arrancando-a daquela deliciosa e, ao mesmo tempo, angustiosa situação. E tentou:
— As pedras preciosas, aliás, foram atiradas à terra para punição e glorificação das mulheres.
As senhoras olharam-no sorridentes, na certeza de mais um conto oriental do velho marinheiro, e ele; compreendendo o que aqueles olhos lhe pediam, começou, acariciando o rosto escanhoado e cor de rosa, coroado por uma fina cabeleira de prata:
— Antes do Dilúvio e do Pecado Original, os astros que ornavam o céu tinham, cada um, a sua cor peculiar. Sírios era verde, como as águas do oceano. Saturno era de um azul pálido, como os olhos da Sra. condessa de Souza Furtado. Marte era vermelho como o sangue. Júpiter, de um amarelo vivo. Netuno, roxo. Urano, azul, forte. O Sol, cor de púrpura. E a Lua e Vênus, alvas como a inocência.
— Devia ser lindo, o céu! — comentou, encantada, a Baronesa.
O general Tasso Fragoso aparteou, erudito, contando que, de Marte, segundo Flamarion, ainda se viam dessas paisagens celestes, e o almirante continuou:
— Resplendente de astros de todas as cores, o céu era, em verdade, um deslumbramento.
Endireitou-se na grande "maple" tauxiada de prata, e contou:
— Uma tarde, vinha o Onipotente por uma das alamedas do Paraíso, quando se lhe deparou um quadro revoltante: abraçados, trêmulos, conscientes do próprio crime, Adão e Eva escondiam-se, horrorizados de si mesmos, entre as árvores enormes daqueles primeiros dias da Criação. Compreendendo, na sua sabedoria, o que havia sucedido às duas fragilíssimas criaturas a que pretendera conceder a graça da imortalidade, trovejou o Senhor que eles abandonassem, de pronto, os limites do Éden. Súplices, os réprobos imploraram perdão, pedindo clemência. A resposta foi, porém, uma ordem severa, brutal, imperiosa, para que o anjo Gabriel manejasse a sua espada de chama. E, enquanto isto acontecia, deu-se, de súbito, o milagre deslumbrante: a um gesto do Senhor, os astros todos começaram a lançar sobre os perseguidos uma chuva de fogo, como aquela que destruiu, mais tarde, Gomorra e Sodoma, a qual, desfeita em gotas de todas as cores, em pingos luminosos de todas as cambiantes, fustigavam, numa apoteose terrível e magnífica, a sublime fraqueza dos dois pecadores!
As senhoras fitavam, mudas e encantadas, o delicioso narrador, e este continuou:
— Essas gotas de fogo, tombadas na terra poluída pelo pecado, coagularam-se, cristalizaram-se, consolidaram-se.
Firmou as mãos no apoio da "maple" e, fazendo menção de erguer-se, concluiu:
— E apareceram na terra, minhas senhoras, as ametistas, os diamantes, os topázios, as opalas, os berilos, as esmeraldas, as safiras, as turmalinas, os rubis, essas gotas de fogo, em suma, que são, pelo desejo que vos despertam e pelo realce que vos dão à beleza, a vossa glória e o vosso castigo!
E levantou-se, entre palmas.
O PAÍS DAS QUIMERAS
Machado de Assis
Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também por esta circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas, para justificar o provérbio que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma vela.
Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.
Tito não é nem alto nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e para os pés.
No moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua, e sobre a qual ia quase passando um carro. A galga, salva por Tito, afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.
Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que, sabendo da facilidade com que Tito rimava, apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:
— Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China…
— Pode falar, respondeu Tito.
— Ouvi dizer que você fazia versos… É verdade?
Tito conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É verdade.
— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar!”
O meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.
Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda ao pescoço.
A mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga.
À hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência, e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.
Mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legitima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama, e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.
Passado o período agudo da doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.
O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível boa fé, que, neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito.
Desenganado de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo! mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos loiros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito estava assombrado. Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se defronte dele e começou a brincar com a galga que dava mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma doçura de voz nunca ouvida:
— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta indagação era feita de um modo tão insinuante que Tito, sem inquirir o motivo da curiosidade, respondeu imediatamente:
— Penso na injustiça de Deus.
— É contraditória a expressão; Deus é a justiça.
— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse olhos de amor para ela.
— Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
— Coitado de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!
— De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?
— Preciso do que me falta… e falta-me tudo.
— Tudo? És exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?
— É verdade.
— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?
— Para onde?
— Que importa? Queres vir?
— Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
— Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar.
Tito levantou-se e recuou. A visão levantou-se também.
— Tens medo? perguntou ela.
— Medo, não, mas…
— Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.
— Vamos.
Não sei se Tito esperava um balão para a viagem aérea a que o convidava a inesperada visita; mas, o que é certo, é que os seus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viu abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.
— Vamos, disse a visão.
Tito repetiu maquinalmente:
— Vamos!
E ela tomou-o nos braços, subiu com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e a relva dos campos.
Os dois subiram.
Durou a ascensão algum tempo. Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos loiros da visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava.
Isto passou rápido pela mente do poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.
Em breve começou Tito a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e loira que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza. Tito teve um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subiam sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis desenfreados. Afinal penetraram em uma região inteiramente diversa das que haviam atravessado naquela assombrosa viagem. Tito sentiu expandir-se-lhe a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se a alma do poeta rompendo em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a fada depôs o poeta e começaram a fazer o trajeto a pé.
Caminhando, os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Tito pôde ver então que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha: o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética Nápoles. Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegaram à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do palácio.
Tito quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurou uma pergunta à sua companheira.
— Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.
— No país das Quimeras?
— Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência.
Tito contentou-se com a explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À entrada dos dois houve continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter aos andares superiores.
— Vamos falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.
Afinal penetraram na grande sala. O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.
Quando Tito entrou na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo, porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.
Depois da cerimônia da apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para dar-se-lhe cicerone correspondente.
— Eu, disse Tito, tenho, se tanto, uma triste Mercê.
— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa, tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.
A este tempo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado do poeta, voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso.
Tito quis perguntar à sua companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.
Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e loiras… oh! mas de um loiro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios da corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem eram aquelas raparigas? O meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da sala, não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas sem saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu te conheço!
Depois que saíram todas, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.
Os três, o poeta, a fada condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Tito não disfarçou a impressão que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a companheira de viagem e perguntou como se chamava aquela deusa.
— Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.
A estas palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é preciso que cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve apresentação com o cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psiquê, onde se mirava de momento em momento.
Impetraram os três licença para continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e salas do alcáçar. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito percorria essas diversas salas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma iguaria singular para o almoço do rei. Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:
— Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as classes: estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que, no seu planeta, vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos presente deste elemento constitutivo.
— É massa quimérica?
— Da melhor que se há visto até hoje.
— Pode ver-se?
O cicerone sorriu; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso; mas o chefe, batendo-lhe no ombro:
— Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos; e a nossa atmosfera não se esgota.
Este chefe tinha uma cara insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao dizer as últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.
Este caso atraiu os companheiros que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.
Os três continuaram caminho.
Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma calamidade pública.
Andou o meu poeta de sala em sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu, ali, um trabalho ou um jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.
Entretanto era a hora do almoço real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico e a encantadora fada que havia levado o meu poeta àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam aquelas assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe:
— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?
— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.
— Oh! sempre poeta!
— É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua própria casa.
— Oh!
— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas raparigas… somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Tito compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os seus belos e namorados olhos nos da Utopia, que tinha diante de si, disse:
— Ah! sois vós, é verdade! Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas de face e embaixo de forma palpável.
— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.
O poeta voltou a cabeça e viu a peregrina visão, sua companheira de viagem.
— Ah! é ela! disse o poeta.
— É verdade. É a loira Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.
A Fantasia e a Utopia entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer algumas perguntas, mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal saiu à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco Tito sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.
Nesta situação soltou um grito de dor. Fechou os olhos e deixou-se ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte.
Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até fazer-se do tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica; ele soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra! disse Tito consigo.
Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto.
A primeira impressão, quando se viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em que região do planeta se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se achava a dois passos de casa. Apressou-se o poeta a voltar aos seus pacíficos lares.
A vela estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer.
Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não façam provisão desta última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.
EFEITOS DO TANINO
Humberto de Campos
Preocupado com a mocidade da sua linda companheira e temendo, ao mesmo tempo, a decadência de tão maravilhosa formosura, principalmente daquele admirável colo de neve, que era o seu orgulho e que ela mostrava, contente, até aonde lhe era possível mostrar, o coronel Epifânio Fonteneles procurou, uma tarde, a proprietária de um famoso Instituto de Beleza, e expôs claramente o seu caso. A Circe francesa ouviu-lhe a narrativa, compreendeu-lhe os temores, percebeu-lhe as apreensões, e, com um sorriso nos lábios artificialmente vermelhos, tranquilizou-o:
— Pode ficar tranquilo, coronel. O preparado que possuímos para conservar a graça do busto, a mocidade da pele, enfim, a beleza do colo, é infalível. É uma loção adstringente, de efeito seguro e poderoso, que tem realizado verdadeiros milagres. Basta dizer que entram nela, em dose elevadíssima, a pedra-ume, a casca de romã, a folha de carvalho, a casca de manga, enfim, todas as substâncias taninosas, que fazem contrair e fortalecer a epiderme, conservando-lhe a juventude.
E retirando um vidro da prateleira:
— O senhor leva um vidro, e recomende a madame que o use todos os dias. Toma-se de um pouco de algodão delicado, molha-se no líquido, e umedece-se com ele a pele do colo, principalmente o seio, cuja rijeza é preciso conservar. Deixa-se secar o líquido na pele, põe-se uma ligeira camada de pó de arroz, e está feito o remédio, e, com ele, a "toilette" do dia.
Balançando a cabeça a cada informação, o coronel mostrou haver entendido bem, pediu dois vidros da loção, pagou-os, recebeu-os, e tocou-se para casa, onde os entregou à encantadora D. Ignezinha, a quem transmitiu, palavra por palavra, todas as explicações.
No dia seguinte, à tarde, usado o líquido de acordo com as instruções do marido, e enfiado o seu vestido de decote mais longo e mais frouxo, desceu a linda senhora, sem colete, a fim de patentear melhor a graça do busto deslumbrante, para a sala de visitas, onde já se havia feito anunciar, como um dos amigos mais frequentes da casa, o jovem engenheiro militar Dr. Epaminondas Rufino.
Pausado, meticuloso, disciplinado em tudo, o coronel demorou-se ainda nos seus aposentos, vestindo-se para jantar. Meia hora depois, ouviam-se os seus passos na escada, e, logo, em seguida, a sua entrada no salão, onde madame sorria, discreta, contando uma história qualquer ao capitão Epaminondas.
— Então, como vai essa bravura? bradou, jovial, o velho coronel, estendendo a grande mão gloriosa, para apertar a do amigo.
O engenheiro ia responder no mesmo tom, mas, de repente, contraiu o rosto, empalideceu, e continuou mudo.
— Que é isto? Está se sentindo mal? — tornou o coronel apreensivo.
O capitão fez um novo esforço, com os músculos de todo o rosto, procurando descerrar os lábios apertados, contraídos num espasmo da mucosa e, com uma dificuldade horrível, quase com a boca cerrada, respondeu, apenas, num sibilo, com a língua presa, dura, paralisada pelo tanino:
— Nun... tãnho... nada!
E ganhou a rua.
PAI CONTRA MÃE
Machado de Assis
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", - ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, – em família, Candinho, – é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.
– Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
– Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.
– Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
– Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.
Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
– Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
– Vocês verão a triste vida, suspirava ela.
– Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.
– Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco...
– Certa como?
– Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
– A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...
– Bem sei, mas somos três.
– Seremos quatro.
– Não é a mesma coisa.
– Que quer então que eu faça, além do que faço?
– Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.
– Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.
– É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.
– Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio.
– Titia não fala por mal, Candinho.
– Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, – crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
– Quem é? perguntou o marido.
– Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
– Não é preciso...
– Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
– Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.
– Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
– Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
– Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
– Siga! repetiu Cândido Neves.
– Me solte!
– Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes, – cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.
– Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
– Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
– É ela mesma.
– Meu senhor!
– Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.
MME. LONDON BANK
Humberto de Campos
Contam as crônicas do Império Romano que Mitridates, o famoso rei do Ponto, que enfrentou as hostes de Sila, de Pompeu e de Lúculo, apanhou, um dia, de surpresa, um general inimigo, e, para matar-lhe a fome de riquezas, fez-lhe derramar pela garganta uma panela de ouro derretido. Incompletos nas suas informações, os historiadores antigos não dizem, de modo claro, como ficou a boca da vítima; a impressão que eu tenho, em seguida a essas leituras, é, porém, que o general se tornou, com isso, o grande antepassado de certas senhoras e cavalheiros do nosso tempo, e que eu encontro diariamente na cidade, os quais transformaram a boca em Caixa de Conversão, depositando alí, em obturações dispendiosíssimas, grande parte da sua fortuna.
Felizmente, há, entre as senhoras, espíritos esclarecidos, que movem, contra esse abuso, uma campanha infatigável. Ainda ontem, uma destas beneméritas, D. Clara de Souza Castelo, que me fora apresentada pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto, me informava, preocupadíssima:
- Esta moda das dentaduras de ouro está se desenvolvendo, Sr. conselheiro, como o senhor não imagina.
E após uma dúzia de nomes próprios, aludindo a pessoas notabilizadas por esse mão gosto, assinalou, penalizada, uma ilustre dama atualmente em Petrópolis, cuja boca é considerada, ali, pela quantidade de ouro que encerra, uma verdadeira sucursal dos cofres do London Bank.
- E não é só a falta de gosto, senhor conselheiro - acentuava a minha curiosa conhecida da véspera. - O pior de tudo, é o perigo a que está exposta uma criatura nessas condições. O senhor não conhece o caso de D. Laurentina, mulher do Dr. Filomeno Miranda?
A minha resposta foi, como era natural, negativa, e ela contou:
- D. Laurentina tem, como o senhor sabe, uma grande fortuna, herdada do pai. Aos vinte e cinco anos, os seus dentes começaram a estragar-se, e ela, que possuía dinheiro, mandou obturá-los a ouro. E de tal maneira procedeu, que, hoje, possui a boca inteiramente dourada! Quando ela fala, e os lábios se lhe descerram, é um deslumbramento, um luxo de ouro, que se tem a impressão de que se abriu, de repente, a porta grande da igreja da Candelária!
Eu tossi, estranhando a imagem, e Dona Clara continuou:
- O pior, porém, era o que lhe ia sucedendo. Imagine o senhor que, uma destas noites, ao regressar de uma visita, o Dr. Filomeno percebeu que havia ladrão na casa. Corajoso, hábil, experiente, empunhou ele o revolver, chamou os criados, e começou a percorrer o palacete. No quarto de dormir, o jardineiro abaixou-se, e olhou para debaixo da cama. E deu um grito, de horror e de alarma. O ladrão estava lá, debaixo do leito, escondido!
Por essa altura, D. Clara tomou fôlego, e reatou:
- Arrancado, à força, do esconderijo, pelo pulso dos criados, o miserável não negou o crime premeditado. Estava ali para roubar a fortuna da dona da casa!
- E estava armado? - indaguei, aflito.
- Estava, Sr. conselheiro, estava! - acudiu a minha informante.
E, olhando para um lado e outro, soprou-me, perversa, ao ouvido:
- Levava... um boticão!...
E soltou uma gargalhada sonora, demorada, reboante, dessas que somente sabem dar, na terra, as mulheres de dentes bonitos.
CARTA A F.
Guerra Junqueiro
És tu quem me conduz, és tu quem me alumia,
Para mim não desponta a aurora, não é dia,
Se não vejo os dois sóis azuis do teu olhar.
Deixei-te há pouco mais dum mês, – mês secular
E nessa noite imensa, ah, digo-te a verdade,
Iluminou-me sempre o luar da saudade.
E nesses montes nus por onde eu tenho andado,
Trágicos vagalhões dum mar petrificado,
Sempre adiante de mim dentre a aridez selvagem,
Vi como um lírio branco erguer-se a tua imagem.
Nunca te abandonei! Nunca me abandonaste!
És o sol e eu a sombra. És a flor e eu a haste.
Na hora em que parti meu coração deixei-o
Na urna virginal desse divino seio,
E o teu sinto-o eu aqui a bater de mansinho
Dentro em meu peito, como uma rola em seu ninho!
ORAI POR ELE!
Machado de Assis
Orai por ele! * (fragmento de narrativa) - Não, isso não; os discursos eram dele mesmo. Nem era possível que não fossem. Como se há de levar de cor um discurso, para uma assembleia de acionistas, em que tantos falam e sem ordem? - Você está enganado. O comendador proferia discursos muito bem dispostos, não respondia aos apartes que, às vezes, destruíam um argumento, e não replicava nunca a outro orador. Quando era o primeiro que falava, podia disfarçar um pouco; mas quando era o segundo ou terceiro, é que se via bem. Por isso empenhava-se sempre em falar antes de todos. - Pois olhe, não me parecia... Ele era entendido em negócios. - Era, isso era, mas decorava os discursos. O carro chegou à praia de Botafogo, voltando do cemitério. Pedro e Paulo tinham ido enterrar o comendador, que falecera na véspera de um tifo. Vieram calados, a princípio, depois falaram das novas casas do bairro, afinal caiu a conversa no defunto, a propósito de uma casa que ele vendera três meses antes. Paulo dizia que a casa fora mal vendida. Pedro ponderou que os dinheiros mal ganhos não aproveitavam aos donos. Ao que Paulo redarguiu que não, que o comendador era homem honesto, posto que burro. - Burro não digo - replicou Pedro -; era finório e grande finório. - Um homem pode ser finório e besta - explicou Paulo. - Tinha faro e prática, mas era incapaz de distinguir uma ideia de outra. Olhe, nas assembleias de acionistas... Foi assim que falaram dos discursos do comendador, dizendo Paulo que eram decorados, e concluindo por afirmar que conhecia o autor deles; era o advogado do Banco Econômico. - Realmente, tinham muita citação de leis - concordou Pedro -; um deles chegou a trazer uma citação em latim, mas então foi caçoada do advogado. - Não; foi naturalmente pedido do próprio comendador, que era dado a latinórios. Mas eu mesmo aturei alguns discursos dele em casa, eu e a mulher, na véspera das assembleias. Começava dizendo que me queria consultar sobre a ordem das ideias. Mas ligava duas palavras, e fingindo que improvisava, proferia o discurso todo: era para ver o efeito. Da primeira vez, como os jornais deram o discurso, disse-me ele: "Foi bom que falássemos anteontem do negócio, assentei as ideias, e você viu que o discurso saiu quase igual". Quase igual! Riam ambos, a praia estava bonita, conversaram dela alguns minutos, mas tornaram logo ao finado, cuja vida foi longamente analisada. Pedro insistia em não admitir que ele fosse honesto; Paulo dizia que sim, que nesse particular não havia que dizer. Não seria homem de sacrificar-se, é verdade... - Nem beneficiar aos outros - acudiu Pedro. - Sabe o que me fez, não? Paulo respondeu que sim; nem por isso evitou que Pedro lhe contasse a grande mágoa que tinha do defunto. Quando ia a estabelecer-se pela primeira vez, há dez anos, pediu de empréstimo ao comendador quinze contos, para pagar em dois anos, com juro de oito por cento. Pois o comendador, que aliás acabava de assinar dez contos para as festas do Paraguai, negou-lhe o pedido. - Talvez não pudesse na ocasião... - Qual não pudesse! Era sovina. Ficamos brigados por algum tempo; depois, quando eu já estava estabelecido, foi ele mesmo que me procurou para uma companhia... Fizemos as pazes, mas eu sempre lhe disse umas duas palavras, que ele ficou amarelo. Paulo tirou a conversação desse terreno, falando nas manias do comendador que eram muitas; depois contaram anedotas, ditos ridículos, erros de prosódia, pacholices. Paulo referiu que o finado, depois de ler um romance de Dumas, passado na corte de França, começou a beijar a mão à mulher, quando entrava ou saía de casa. A mulher é que não esteve pelos autos, e o costume durou cinco dias. Pedro piscou o olho e sorriu. - Era um tolo - concordou. - Quando andava, você não reparou que ele, quando andava, tinha uns ares adamados? - continuou Paulo, e recordou que era vaidoso até das barbas; nunca estava ao pé da gente que não as puxasse muito, olhando para elas, como se procurasse um argueiro, mas era para que vissem que eram finas e luzidias. - E música? - acudiu Pedro. - Tinha a mania de entender de música, de julgar artistas. Na praça, em chegando companhia lírica, era o assunto predileto dele. Tomava assinatura no Teatro Lírico, para fazer crer que era doido por música, mas eu aposto que nem gostava. - Não, lá gostar, gostava. - Gostava, mas fingia gostar mais. - Isso sim. Vieram os sestros do comendador. Paulo não podia suportar o costume que o finado tinha de fazer uma cruz na boca, com o polegar, quando bocejava; nem o de palitar os dentes com a língua. Pedro não conhecia muitos, era menos assíduo na casa que Paulo. - Você, sim, ia lá todas as noites. Jogavam o voltarete sempre? - Algumas vezes; mas logo que chegava terceiro parceiro, eu deixava as cartas. Não gosto de cartas. - A mulher também jogava? - D. Josefina? Qual! - Jogava a bisca de dois com você, naturalmente. - A bisca? - repetiu Paulo enfiado. - Deixe-se de partes; toda a gente sabe disso.
MILITIA SEXUS
Humberto de Campos
Não obstante as teorias espalhadas pelos moralistas modernos, a virtude máxima da mulher será, sempre, o pudor. Afirmem embora que este não é um aliado permanente da inocência, argumentando, para isso, com as crianças e os selvagens; eu continuarei a considerá-lo a flor mais mimosa da castidade e a atribuir à sua ausência a maior parte dos venenos que dissolvem a sociedade e a família. Aos meus olhos, o pudor está para a honestidade como o fumo está para o fogo. Compreender honestidade sem pudor seria admitir fogo sem fumo.
Essa convicção não é, entretanto, privilegio meu; e não foi sem alegria que li há dias, em uma revista européia, a solidariedade de um eminente magistrado francês, patenteada em uma lição oportuna, e rigorosa, a algumas dúzias de senhoras parisienses.
Em um dos tribunais de Paris debatia-se, em uma das últimas sessões do ano último, um processo escandaloso, cujas peças documentais, que deviam ser lidas e mostradas, atentavam, de modo clamoroso, contra a pudicícia das damas que enchiam, naquele momento, a sala do tribunal. Constrangido ante aquele publico feminino, o velho magistrado que presidia a sessão fez tilintar o tímpano, pedindo atenção. Feito silêncio, o juiz avisou:
- É dever meu, como magistrado e chefe de família, comunicar às damas presentes neste recinto que vão ser exibidos, aqui, alguns documentos do processo capazes de ferir as susceptibilidades femininas. Nessas condições, eu peço, pois, às senhoras pundonorosas que se afastem da sala, de modo que os interessados possam discutir essas provas sem constrangimento.
A esse aviso, as sessenta ou setenta senhoras presentes no tribunal entreolharam-se, consultando-se tacitamente. De tantas, porém, duas, apenas, se levantaram, retirando-se, deixando-se ficar as demais nos seus respectivos lugares.
Ao fim de dois minutos, o juiz indagou, alto:
- Nenhuma das senhoras que se deixaram ficar sentadas se mostrarão escandalizadas com as peças repugnantes que vão ser exibidas?
Silêncio geral.
Ante essa resposta muda, o magistrado enrubesceu, revoltado com aquele espetáculo de despudor, e, virando-se para o comandante da força, ordenou:
- Chefe da guarda, mande pôr fora da sala o resto das senhoras!
E a guarda cumpriu a ordem.
O ORÁCULO
Machado de Assis
Conheci outrora um sujeito que era um exemplo de quanto pode a má fortuna quando se dispõe a perseguir um pobre mortal.
Leonardo (era o nome dele) começara por ser mestre de meninos, mas tão mal se houve que no fim de um ano perdera o pouco que possuía e achou-se reduzido a três alunos.
Tentou depois um emprego público, arranjou as cartas de empenho necessárias, chegou mesmo a dar um voto contra as suas convicções, mas quando tudo lhe sorria, o ministério, na forma do geral costume, achou contra si a maioria da véspera e pediu demissão. Subiu um ministério do seu partido, mas o infeliz tinha-se tornado suspeito ao partido por causa do voto e teve uma resposta negativa.
Auxiliado por um amigo da família, abriu uma casa de comércio; mas, tanto a sorte, como a velhacaria de alguns empregados, deram com a casa em terra, e o nosso negociante levantou as mãos para o céu quando os credores concordaram em receber uma certa quantia inferior ao débito, isto em tempo indeterminado.
Dotado de alguma inteligência e levado pela necessidade mais que pelo gosto, fundou uma gazeta literária; mas os assinantes, que eram da massa dos que preferem ler sem pagar a impressão, deram à gazeta de Leonardo uma morte prematura no fim de cinco meses.
Nesta sucessão de contratempos e azares, Leonardo não chegara a perder a confiança na Providência. Doam-lhe os golpes sucessivos, mas uma vez recebidos, ele preparava-se para tentar de novo a fortuna, fundado neste pensamento que havia lido, não me lembra aonde: “.
Preparava-se, pois, a tentar novo assalto, e para isso tinha arranjado uma viagem ao norte, quando viu pela primeira vez Cecília B…, filha do negociante Atanásio B…
Os dotes desta moça consistiam nisto: um rosto simpático e cem contos limpos, em moeda corrente. Era a menina dos olhos de Atanásio. Só constava que tivesse amado uma vez, e o objeto do seu amor era um oficial de marinha de nome Henrique Paes. O pai opôs-se ao casamento por antipatizar com o genro, mas parece que Cecília não amava muito Henrique, visto que apenas chorou um dia, acordando no dia seguinte tão fresca e alegre como se lhe não houvesse empalmado um noivo.
Dizer que Leonardo se apaixonou por Cecília é mentir à história, e eu prezo, antes de tudo, a verdade dos fatos e dos sentimentos; mas é por isso mesmo que eu devo dizer que Cecília não deixou de fazer alguma impressão em Leonardo.
O que causou profunda impressão no ânimo do nosso mal-aventurado e conquistou desde logo todos os seus afetos, foram os cem contos que a pequena trazia em dote. Leonardo não hesitou em abençoar o mau destino que tanto o perseguira para atirar-lhe aos braços uma fortuna daquela ordem.
Que impressão produziu Leonardo no pai de Cecília? Boa, excelente, maravilhosa. Quanto à menina, recebeu-o indiferente. Leonardo confiou em que venceria a indiferença da filha, visto que já possuía a simpatia do pai.
A simpatia de Atanásio foi ao ponto de fazer de Leonardo um comensal indispensável. À espera do mais, o mal-aventurado Leonardo foi aceitando aqueles adiantamentos.
Dentro de pouco tempo era ele um íntimo da casa.
Um dia Atanásio mandou chamar Leonardo ao gabinete e disse-lhe com ar paternal:
— Tem sabido corresponder à minha estima. Vejo que é um bom moço, e segundo me disse tem sido infeliz.
— É verdade, respondeu Leonardo, sem poder conter um sorriso de júbilo que lhe assomou aos lábios.
— Pois bem, depois de estudá-lo tenho resolvido fazê-lo aquilo que o céu não me concedeu: um filho.
— Ah!
— Espere. Já o é pela estima, quero que o seja pelo auxílio à nossa casa. Tem, desde já, um emprego no meu estabelecimento.
Leonardo ficou um pouco enfiado; esperava que o próprio velho fosse oferecer-lhe a filha, e apenas recebia dele um emprego. Mas depois refletiu; um emprego era aquilo que depois de tanto cuidado vinha encontrar; não era pouco; e daí podia ser que lhe resultasse mais tarde o casamento.
Assim, respondeu beijando as mãos do velho:
— Oh! obrigado!
— Aceita, não?
— Oh! sem dúvida!
O velho ia levantar-se quando Leonardo, tomando subitamente uma resolução, fê-lo conservar-se na cadeira.
— Mas escute…
— O que é?
— Não quero ocultar-lhe uma coisa. Devo-lhe tantas bondades que não posso deixar de ser inteiramente franco. Eu aceito o ato de generosidade com uma condição. Amo D. Cecília com todas as forças de minha alma. Vê-la é aumentar este amor já tão ardente e tão poderoso. Se o coração de V. S. leva a generosidade ao ponto de me admitir na sua família, como me admite na sua casa, aceito. De outro modo é sofrer de um modo que está acima das forças humanas.
Em honra da perspicácia de Leonardo devo dizer que, se ele ousou arriscar assim o emprego, foi por ter descoberto em Atanásio uma tendência para dar-lhe todas as felicidades.
Não se enganou. Ouvindo aquelas palavras, o velho abriu os braços a Leonardo e exclamou:
— Oh! se eu não desejo outra coisa!
— Meu pai! exclamou Leonardo abraçando o pai de Cecília.
O quadro tornou-se comovente.
— De há muito, disse Atanásio, que eu noto a impressão produzida por Cecília e pedia no meu íntimo que uma tão feliz união se pudesse efetuar. Creio que agora nada se oporá. Minha filha é uma menina sisuda, não deixará de corresponder ao seu afeto. Quer que lhe fale já ou esperemos?
— Como queira…
— Ou antes, seja franco; possui o amor de Cecília?
— Não posso dar uma resposta positiva. Creio que não lhe sou indiferente.
— Eu me incumbo de investigar o que há. Demais, a minha vontade há de entrar por muito neste negócio; ela é obediente…
— Oh! forçada, não!
— Qual forçada! É sisuda e há de ver que lhe convém um marido inteligente e laborioso…
— Obrigado!
Separaram-se os dois.
No dia seguinte devia Atanásio instalar o seu novo empregado.
Nessa mesma noite, porém, o velho tocou no assunto de casamento à filha. Começou por perguntar-lhe se acaso não tinha vontade de casar-se. Ela respondeu que não havia pensado nisso; mas disse-o com um sorriso tal que o pai não hesitou em declarar que tivera um pedido formal da parte de Leonardo.
Cecília recebeu o pedido sem dizer palavra; depois, com o mesmo sorriso, disse que ia consultar o oráculo.
O velho não deixou de admirar-se com esta consulta de oráculo e interrogou a filha sobre a significação das suas palavras.
— É muito simples, disse ela, vou consultar o oráculo. Nada faço sem consultar; não dou uma visita, não faço a menor coisa sem consultá-lo. Este ponto é importante; como vê, não posso deixar de consultá-lo. Farei o que ele mandar.
— É esquisito! mas que oráculo é esse?
— É segredo.
— Mas posso dar esperanças ao rapaz?
— Conforme; depende do oráculo.
— Ora, tu estás caçoando comigo…
— Não, meu pai, não.
Era necessário conformar-se à vontade de Cecília, não porque realmente fosse imperiosa, mas porque no modo e no sorriso com que a moça falou o pai descobriu que ela aceitava o noivo e apenas fazia aquilo por espírito de casquelhice.
Quando Leonardo soube da resposta de Cecília não deixou de ficar um tanto atrapalhado. Mas Atanásio tranqüilizou-o comunicando ao pretendente as suas impressões.
No dia seguinte é que Cecília devia dar a resposta do oráculo. A intenção do velho Atanásio estava decidida; no caso de ser contrária a resposta do misterioso oráculo, ele persistiria em obrigar a filha a casar com Leonardo. Em todo o caso far-se-ia o casamento.
Ora, no dia aprazado apresentaram-se em casa de Atanásio duas sobrinhas dele, casadas ambas, e de muito tempo retiradas da casa do tio pelo interesse que tinham tomado por Cecília quando esta quis casar-se com Henrique Paes. A menina reconciliou-se com o pai; mas as duas sobrinhas, não.
— A que lhes devo esta visita?
— Vimos pedir-lhe desculpa do nosso erro.
— Ah!
— Tinha razão, meu tio; e, demais, parece que há um novo pretendente.
— Como souberam?
Cecília mandou-nos dizer.
— Vêm então opor-se?
— Não; apoiar.
— Ora, graças a Deus!
— Nosso desejo é que Cecília se case, com este ou com aquele; é todo o segredo da nossa intervenção em favor do outro.
Feita assim a reconciliação, Atanásio participou às sobrinhas o que havia e qual a resposta de Cecília. Disse igualmente que era aquele o dia marcado pela moça para dar a resposta do oráculo. Riram-se todos da singularidade do oráculo, mas resolveram esperar a resposta dele.
— Se for contrária, apoiar-me-ão?
— Decerto, responderam as duas sobrinhas.
Os maridos destas chegaram pouco depois.
Enfim apareceu Leonardo de casaca preta e gravata branca, trajo muito diverso daquele com que os antigos iam buscar as respostas dos oráculos de Delfos e de Dodona. Mas cada tempo e cada terra com seu uso.
Durante todo o tempo em que as duas moças, os maridos e Leonardo estavam de conversa, Cecília demorava-se no seu quarto consultando, dizia ela, o oráculo.
A conversa versou a respeito do assunto que reunia a todos.
Enfim, seriam oito horas da noite quando Cecília apareceu na sala.
Todos foram a ela.
Depois de feitos os primeiros cumprimentos, Atanásio, meio sério, meio risonho, perguntou à filha:
— Então? que disse o oráculo?
— Ah! meu pai! o oráculo disse que não!
— Então o oráculo, continuou Atanásio, é contrário ao teu casamento com o sr. Leonardo?
— É verdade.
— Pois sinto dizer que sou de opinião contrária ao sr. oráculo, e como a minha pessoa é conhecida enquanto a do sr. oráculo é inteiramente misteriosa, há de fazer-se o que eu quiser, mesmo apesar do sr. oráculo.
— Ah! não!
— Como, não? Queria ver isso! Se eu aceitei essa idéia de consultar bruxarias foi para brincar. Nunca me passou pela cabeça ceder lá às decisões de oráculos misteriosos. Tuas primas são de minha opinião. E demais, eu quero desde já saber que bruxarias são essas… Meus senhores, vamos descobrir o tal oráculo.
A este tempo apareceu um vulto na porta e disse:
— Não precisa!
Todos voltaram-se para ele. O vulto deu alguns passos e parou no meio da sala. Tinha um papel na mão.
Era o oficial de marinha de que falei acima, trajando casaca e luva branca.
— Que faz aqui o senhor? perguntou o velho espumando de raiva.
— Que faço? Sou o oráculo.
— Não aturo caçoadas desta natureza. Com que direito se acha neste lugar?
Henrique Paes por única resposta deu a Atanásio o papel que trazia na mão.
— Que é isto?
— E a resposta à sua pergunta.
Atanásio chegou-se para a luz, tirou os óculos do bolso, pô-los no nariz e leu o papel.
Durante este tempo, Leonardo tinha a boca aberta sem compreender nada.
Quando o velho chegou ao meio do escrito que tinha na mão, voltou-se para Henrique e disse com o maior grau de assombro:
— O senhor é meu genro!
— Com todos os sacramentos da igreja. Não leu?
— E se isto for falso!
— Alto lá, acudiu um dos sobrinhos, nós fomos os padrinhos, e estas senhoras as madrinhas do casamento de nossa prima D. Cecília B… com o sr. Henrique Paes, o qual se efetuou há um mês no oratório de minha casa.
— Ah! disse o velho caindo numa cadeira.
— Mais esta! exclamou Leonardo procurando sair sem ser visto.
Epílogo
Se perdeu a noiva, e tão ridiculamente, nem por isso Leonardo perdeu o lugar. Declarou ao velho que faria um esforço, mas que ficava para corresponder à estima que o velho lhe tributava.
Mas estava escrito que a sorte tinha de perseguir o pobre rapaz.
Daí a quinze dias Atanásio foi acometido de uma congestão de que morreu.
O testamento, que fora feito um ano antes, nada deixava a Leonardo.
Quanto à casa, teve de liquidar-se. Leonardo recebeu a importância de quinze dias de trabalho.
O mal-aventurado deu o dinheiro a um mendigo e foi atirar-se ao mar, na praia de Icaraí.
Henrique e Cecília vivem como Deus com os anjos.
PELE CURTA
Humberto de Campos
Dize-me como dormes que eu te direi os pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência se revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um coração atormentado pela consciência. A consciência tranqüila dorme com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.
As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o dia.
Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.
A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue, já, ao primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos portais.
- Quem é? - gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.
- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.
Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.
- Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz, desconfiado.
- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.
- Que moléstia é essa?
- A minha? Eu sofro de pele curta.
- Pele curta? - estranhou o morador.
Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:
- Entre p'ra cá. A casa é sua.
E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.
Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o aposento.
- Camarada!... Camarada!... - chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você está morrendo?
- Hein?... Hein?... - acordou o caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...
- Você está roncando como um trovão. Que é isso?
- É "pele curta", homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.
O outro não compreendeu, e ele explicou:
- A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!
E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.
UMA EXCURSÃO MILAGROSA
Machado de Assis
Tenho uma viagem milagrosa para contar aos leitores, ou antes uma narração para transmitir, porque o próprio viajante é quem narra as suas aventuras e as suas impressões.
Se a chamo milagrosa é porque as circunstâncias em que foi feita são tão singulares, que a todos há de parecer que não podia ser senão um milagre. Todavia, apesar das estradas que o nosso viajante percorreu, dos condutores que teve e do espetáculo que viu, não se pode deixar de reconhecer que o fundo é o mais natural e possível deste mundo.
Suponho que os leitores terão lido todas as memórias de viagem, desde as viagens do Capitão Cook às regiões polares até as viagens de Gulliver, e todas as histórias extraordinárias desde as narrativas de Edgar Poe até os contos de Mil e Uma Noites. Pois tudo isso é nada à vista das excursões singulares do nosso herói, a quem só falta o estilo de Swift para ser levado à mais remota posteridade.
As histórias de viagem são as de minha predileção. Julgue-o quem não pode experimentá-lo, disse o épico português. Quem não há de ir ver as coisas com os próprios olhos da cara, diverte-se ao menos em vê-las com os da imaginação, muito mais vivos e penetrantes.
Viajar é multiplicar-se.
Mas, devo dizê-lo com toda a franqueza, quando ouço dizer a alguém que já atravessou por gosto doze, quinze vezes o Oceano, não sei que sinto em mim que me leva a adorar o referido alguém. Ver doze vezes o Oceano, roçar-lhe doze vezes a cerviz, doze vezes admirar as suas cóleras, doze vezes admirar os seus espetáculos, não é isto gozar na verdadeira extensão da palavra?
Se em vez do Oceano me falam nas florestas e contam-me mil episódios de uma viagem através do templo dos cedros e dos jequitibás, ouvindo o silêncio e a sombra, respirando os faustos daqueles palácios da natureza, gozando, vivendo, apesar dos tigres, das serpes, então o gozo pode mudar de aspecto, mas é o mesmo gozo elevado, puro, grandioso.
O mesmo se dá se a viagem for através dos cadáveres das cidades antigas, dos desertos da Arábia, dos gelos do Norte. Tudo chama o espírito, e o educa, e o eleva, e o transforma.
Das viagens sedentárias só conheço duas capazes de recrear. A Viagem à Roda do Meu Quarto, e a Viagem à Roda do Meu Jardim, de Maistre e Alphonse Karr.
Ora, com todo este gosto pelas viagens, ainda assim eu não desejaria fazer a viagem do herói desta narrativa. Viu muita coisa, é certo; e voltou de lá com a bagagem cheia dos meios de apreciar os fracos da humanidade. Mas por tantas coisas quantos trabalhos!
* * *
Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas para justificar o provérbio que diz: — debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo. Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma vela.
Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.
Tito não é nem alto, nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante, na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o reverso da cara e da cabeça. Parece que a natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e para os pés.
No moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua e sobre a qual ia quase quase passando um carro. A galga salva por Tito afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.
Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito de paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês, era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que sabendo da facilidade com que Tito rimava apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:
— Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China...
— Pode falar, respondeu Tito.
— Ouvi dizer que você fazia versos... É verdade?
Tito conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É verdade.
— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte. Compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se, e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar”.
O meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos polacos.
Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéias, tal era o seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.
Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda ao pescoço.
A mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo, herdara-o de uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga. À hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que nada ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.
Mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legítima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira que os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.
Passado o período agudo da doença, ficou-lhe esse resto de amor que, apesar da calma e da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.
O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real e deixar musas e amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes: recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível boa-fé, que neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito. Desenganado de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo, o outro limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios tinham seus inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar.
Aqui deixa de falar o autor para falar o protagonista. Não quero tirar o encanto natural que há de ter a narrativa do poeta reproduzindo as suas próprias impressões.
O poeta foi, como disse, abrir a porta.
Diz ele:
* * *
“... Mas, oh! pasmo! eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos louros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodita; eis que uma criatura assim invade o meu aposento, e estendendo a mão ordena-me que feche a porta e tome assento à mesa.
Eu estava assombrado. Maquinalmente voltei ao meu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se defronte de mim e começou a brincar com a galga, que dava mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a singular criatura, cravando os seus olhos nos meus, perguntou-me com uma doçura de voz nunca ouvida:
— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça alheia ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta indagação era feita de um modo tão insinuante que eu, sem inquirir o motivo da curiosidade, respondi imediatamente:
— Penso na injustiça de Deus.
— É contraditória a expressão: Deus é a justiça.
— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem quando o homem levantasse os olhos de amor para ela.
— Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as musas? Ainda não vieram a ti, como eternas consoladoras que são? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
— Coitado de mim, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração.
— De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?
— Preciso do que me falta... e falta-me tudo.
— Tudo? É exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens, e isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?
— É! verdade.
— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?
— Para onde?
— Que importa? Queres vir?
— Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
— Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje e pelo ar.
Levantei-me e recuei. A visão levantou-se também.
— Tens medo? perguntou ela.
— Medo, não, mas...
— Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.
Era de esperar um balão para a viagem aérea a que me convidava a inesperada visita; mas os meus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viram abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.
— Vamos, disse a visão.
E eu maquinalmente repeti:
— Vamos!
E ela tomou-me nos braços, subimos até o teto que se rasgou, e passamos ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado, estava o céu limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celestial, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e a relva dos campos.
Subimos.
Durou a ascensão algum tempo. Eu não podia pensar; ia atordoado e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos loiros da visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Eu, que me havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que naquele subir contínuo breve chegaríamos a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano meu! Subíamos sempre e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais subíamos, melhor respirávamos.
Isto passou rápido pela minha mente. Como disse, eu não pensava: ia subindo sem olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzir-me senão ao céu.
Em breve comecei a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e loura que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza. Lancei um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subíamos sempre. Os planetas passavam à minha ilharga como se foram corcéis desenfreados. Afinal penetramos em uma região inteiramente diversa das que havíamos atravessado naquela assombrosa viagem. Eu senti expandir-se-me a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? Não ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetrávamos nessa região ia-se a minha alma rompendo em júbilo; daí a algum tempo entrávamos em um planeta; começamos a fazer o trajeto a pé.
Caminhando, os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Pude ver então que me achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha; o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Stambul ou a poética Nápoles. Mais entrávamos, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegamos à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do palácio.
Eu quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurei uma pergunta à minha companheira.
— Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.
— No país das Quimeras?
— Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência.
Contentei-me com a explicação. Mas refleti sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era levado? Estava nisto, quando a fada me advertiu de que éramos chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grossos cachimbos de escumas do mar, e que se embriagavam, como outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À nossa entrada houve continência militar. Subimos pela grande escadaria, e fomos ter aos andares superiores.
— Vamos falar aos soberanos, disse a minha companheira.
Atravessamos muitas salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.
Afinal penetramos na grande sala. O Gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés, a uma espécie de solidéu, maior que o dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste mundo, e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a minuto armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.
Quando entrei na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que fui eu o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os gênios presentes fizeram o mesmo, porque segundo ouvi depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida. Depois da cerimônia da apresentação perguntou-me o soberano que tratamento tinha eu na terra para dar-me um cicerone correspondente.
— Eu tenho, se tanto, uma triste Mercê.
— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas quanto à Mercê, essa tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.
A este termo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado de mim, voltaram-me as costas, encolhendo os ombros e deitando-me um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso. Eu quis perguntar à minha companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão puxou-me pelo braço, e fez-me ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante. Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras... Oh! mas de um louro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios de corte, foram ao gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem eram aquelas raparigas? Eu estava de boca aberta. Indaguei da minha guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde havia passado a noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetições das anteriores, foram-se da sala, não sem abraçarem-me ou beliscarem-me, quando espantado eu olhava para elas sem saber por que me tornara objeto de tanta jovialidade. O meu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu te conheço!
Depois que saíram todos, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo. Os três, eu, a fada condutora e o cicerone passamos à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaza e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Não pude disfarçar a impressão que me causava um todo assim. Voltei-me para a companheira de viagem e perguntei como se chamava aquela deusa.
— Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? É a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.
A estas palavras eu lembrei-me do Hissope. Não duvidava já de que estava no País das Quimeras; mas, raciocinei, para que Dinis falasse de algumas destas coisas é preciso que cá tivesse vindo, e voltasse como está averiguado.
Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passei a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam arranjando para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve apresentação com o cerimonial do estilo. Estremeci quando pousei os lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psyché, onde se mirava de momento a momento.
Impetramos os três licença para continuar a visita do palácio e seguimos pelas galerias e salas. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Percorria essas salas diversas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a ucharia, dizia comigo; estão preparando alguma iguaria singular para o almoço do rei. Indaguei do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:
— Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as classes, estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que no seu planeta vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos presente deste elemento constitutivo.
— É massa quimérica?
— Da melhor que se há visto até hoje.
— Pode ver-se?
O cicerone sorriu-se; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco da massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou-me. Mal o tomei das mãos do chefe desfez-se a massa como se fora composta de fumo. Fiquei confuso; mas o chefe bateu-me no ombro:
— Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos e a nossa atmosfera não se enxota.
Este chefe tinha uma cara insinuante, mas como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo que não pude arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele ao dizer as últimas começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca. Este caso atraiu os companheiros, que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.
Os três continuamos o nosso caminho.
Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos à roda de mesas discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma calamidade pública. Continuei com o cicerone e fui ter a outra sala onde muitos Quiméricos, de boca aberta, escutavam as preleções de um filósofo do país.
O filósofo falava pausado e parecia embebido na música das próprias palavras. Tinha um gesto estudado, cheio de si, como de Vadius falando a Trissotin. Detive-me aí.
Dizia o filósofo:
— Meus caros filhos, o universo é um composto de maldade e invejas. Não há talento, por mais prodigioso, que não seja ferido pela seta da calúnia e do desdém dos egoístas. Como fugir a esta triste situação? De um modo único. Que cada um começando a viver deve logo compenetrar-se de que nada há acima de si, e desta convicção própria nascerá a convicção alheia. Quem há de contestar o talento a um homem que começa por senti-lo em si e diz que o tem?
Os ouvintes alçaram a voz e num coro exclamaram:
— Muito bem.
O filósofo continuou:
— Dirão que isso é vaidade; mas se bem compreendeis a nossa natureza e a natureza dos outros deveis saber que isso que lá embaixo se chama vaidade não é entre nós outra coisa mais do que a verdadeira tensão do espírito, a consciência da nossa elevação moral.
A preleção acabou com estas palavras. O filósofo desceu do espaldar em que estava e todas as Quimeras fizeram alas para deixá-lo passar.
Continuei a minha viagem.
Andei de sala em sala, de galeria em galeria, aqui visitando um museu, ali um trabalho ou um jogo; tive tempo de ver tudo, de tudo examinar com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, vi que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um Quimérico que havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.
Entretanto era a hora do almoço real.
À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico, e a encantadora fada que me havia levado àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir-me ao almoço; a resposta foi afirmativa; tomei assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; fui assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigaram-se fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Aproveitei a ocasião para saber como é que me conheciam aquelas assanhadas raparigas. Encostei-me a uma cadeira e indaguei da Utopia que se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se a uma das salas comigo, e aí perguntou-me:
— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?
— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.
— Oh! sempre poeta!
— É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua própria casa.
— Oh!
— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Compreendi afinal uma coisa que se me estava a dizer há tanto tempo. Sorri-me, e cravando os meus olhos nos da Utopia que tinha diante de mim, disse:
— Ah! sois vós, é verdade. Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem. Conforta-me ver-vos a todas de face e debaixo de forma palpável.
— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para a tua companhia? Olha, vê.
Voltei-me e vi a peregrina visão, minha companheira de viagem.
— Ah! é ela, respondi.
— É verdade. É a loura Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.
A Fantasia e a Utopia entrelaçaram as mãos e olhavam para mim. Eu, como que enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; quis fazer algumas perguntas, mas quando ia falar reparei que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulei alguma coisa; porém vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-se-lhes já pouco as feições, soltei estas palavras:
— Então, que é isto? por que se desfazem assim? — mais e mais as sombras desapareciam, corri à sala do jogo; espetáculo idêntico me esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, percorri algumas galerias e afinal saí à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco eu senti que me faltava o apoio aos pés e vi que estava solto no espaço.
Nesta situação soltei um grito de dor. Fechei os olhos e deixei-me ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte. Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, abri os olhos e vi que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que me parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu e cresceu até fazer-se do tamanho de uma grande esfera. A minha queda tinha alguma coisa de diabólica; soltava de vez em quando um gemido; o ar batendo-me nos olhos obrigava-me a fechá-los de instante a instante.
Afinal o ponto negro que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer-me com o aspecto da Terra. É Terra! disse comigo.
Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu a minha alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria; pensava, e pensava bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais se levantar. Tive um calafrio: vi a morte diante de mim e encomendei a minha alma a Deus. Assim fui, fui, ou antes vim, vim, até que — milagre dos milagres! — caí sobre a praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto. A primeira impressão, quando me vi em terra, foi de satisfação; depois tratei de ver em que região do planeta me achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verifiquei que me achava a dois passos de casa. Apressei-me a voltar aos meus pacíficos lares.
A vela estava gasta; a galga, estendida sobre a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Entrei e atirei-me sobre a cama, onde adormeci, refletindo no que acabava de acontecer-me.
* * *
Tal é a narrativa de Tito.
Esta pasmosa viagem serviu-lhe de muito.
Desde então adquiriu um olhar de lince capaz de descobrir, à primeira vista, se um homem tem na cabeça miolos ou massa quimérica.
Não há vaidade que possa com ele. Mal a vê lembra-se logo do que presenciou no reino das Bagatelas, e desfia sem preâmbulo a história da viagem.
Daqui vem que se era pobre e infeliz, mais infeliz e mais pobre ficou depois disto.
É a sorte de todos quantos entendem dever dizer o que sabem; nem se compra por outro preço a liberdade de desmascarar a humanidade.
Declarar guerra à humanidade é declará-la a toda a gente, atendendo-se a que ninguém há que mais ou menos deixe de ter no fundo do coração esse áspide venenoso.
Isto pode servir de exemplo aos futuros viajantes e poetas, a quem acontecer a viagem milagrosa que aconteceu ao meu poeta.
Aprendam os outros no espelho deste. Vejam o que lhes aparecer à mão, mas procurem dizer o menos que possam as suas descobertas e as suas opiniões.
AS GARRAFAS
Humberto de Campos
D. Eleonora havia mandado chamar o seu primo, o Dr. Alfredo Bonifácio, para uma consulta íntima, sobre diversos remédios que lhe haviam recomendado, quando abriram inesperadamente o portão da casa.
- É o Augusto! - exclamou, horrorizada, a pobre senhora, apanhando com o pente os lindos cabelos em desordem.
E torcendo as mãos, aflita, a andar de um lado para outro da sala de jantar:
- Minha Nossa Senhora! que horror! que eu hei de fazer, meu Deus!...
E ia, já, nos extremos da aflição, da angustia, do desespero, quando, abrindo a porta que comunicava aquele compartimento com a cozinha, teve uma ideia providencial:
- Esconde-te ali, Alfredo! Depressa! anda! anda!
E empurrou o primo, com o chapéu na mão, para dentro da despensa completamente às escuras.
O velho magistrado não era, felizmente, homem de grande perspicácia, desses que adivinham a passagem de estranhos por obra e graça do indício mais simples. Casado em segundas núpcias, confiava na mulher como confiava no Código. E enganando-se, tanto com o Código como com a mulher, foi com a alma tranquila, calma, satisfeita, que penetrou em casa, naquela noite, após uma palestra sisuda na residência do presidente do Tribunal.
Aberta a porta, o ilustre chefe de família entrou, e, pendurando a cartola na chapeleira, sentou-se, grave, à mesa do chá, ao lado da esposa carinhosa. E ia contar-lhe a sua conversa com o outro sacerdote da Justiça, quando ouviu um barulho de garrafas na dispensa
– Que é isso? Ouviste, Eleonora? - exclamou, assustado.
A mulher empalideceu, e ia, talvez, comprometer-se com uma denúncia, quando o velho, ouvindo de novo o barulho, se levantou de repente, encaminhando-se, firme, para a porta da despensa.
- Quem está aí? - gritou o magistrado, com o terror na garganta..
Na despensa escura, semeada de garrafas de cerveja e águas minerais, a situação do Dr. Bonifácio era delicadíssima. De pé, no meio do compartimento, não podia, sequer, mexer-se. Cada passo que aventurava, era um desastre, uma calamidade, que ia despertar, fora, com um rumor de vidros partidos, a atenção do dono da casa. Ao terceiro barulho, o velho tornou, severo, com o revólver em punho:
- Quem está aí?
E estava, já, resolvido a conformar-se com o silêncio das vezes anteriores, quando uma voz surda, cava, soturna, respondeu, de dentro:
- São as garrafas...
Satisfeito com a descoberta, o magistrado embolsou o revolver, e voltou, sereno, a tomar o seu chá.
EX CATHEDRA
Machado de Assis
(Grafia original)
— Padrinho, vosmecê assim fica cégo.
— O que?
— Vosmecê fica cégo; lê que é um desespero. Não, senhor, dê cá o livro.
Caetaninha tirou-lhe o livro das mãos. O padrinho deu uma volta, e foi metter-se no gabinete, onde lhe não faltavam livros; fechou-se por dentro e continuou a ler. Era o seu mal; lia com excesso, lia de manhã, de tarde e de noute, ao almoço e ao jantar, antes de dormir, depois do banho, lia andando, lia parado, lia em casa e na chacara, lia antes de ler e depois de ler, lia toda a casta de livros, mas especialmente direito (em que era graduado), mathematicas e philosophia; ultimamente dava-se tambem ás sciencias naturaes.
Peior que cégo, ficou aluado. Foi pelos fins de 1873, na Tijuca, que elle começou a dar signaes de transtorno cerebral; mas, como eram leves e poucos, só em Março ou Abril de 1874 é que a afilhada lhe percebeu a alteração. Um dia, almoçando, interrompeu elle a leitura para lhe perguntar:
— Como é que eu me chamo?
— Como é que padrinho se chama? repetiu ella espantada. Chama-se Fulgencio.
— De hoje em diante, chamar-me-has Fulgencius.
E, enterrando a cara no livro, proseguiu na leitura. Caetaninha referiu o caso ás mucamas, que lhe declararam desconfiar desde algum tempo, que elle não andava bom. Imagine-se o medo da moça; mas o medo passou depressa para só deixar a piedade que lhe augmentou a affeição. Tambem a mania era restricta e mansa; não passava dos livros. Fulgencio vivia do escripto, do impresso, do doutrinal, do abstracto, dos principios e das formulas. Com o tempo chegou, não já á superstição, mas á allucinação da theoria. Uma de suas maximas era, que a liberdade não morre onde restar uma folha de papel para decretal-a; e um dia, acordando com a idea de melhorar a condição dos turcos, redigiu uma constituição, que mandou de presente ao ministro inglez, em Petrópolis. De outra occasião, metteu-se a estudar nos livros a anatomia dos olhos, para verificar se realmente elles podiam vêr, e concluiu que sim.
Digam-me, se, em taes condições, a vida de Caetaninha podia ser alegre. Não lhe faltava nada, é verdade, porque o padrinho era rico. Foi elle mesmo que a educou, desde os sete annos, quando perdeu a mulher; ensinou-lhe a ler e escrever, francez, um pouco de historia e geographia, para não dizer quasi nada, e incumbiu uma das mucamas de lhe ensinar crivo, renda e costura. Tudo isso é verdade. Mas Caetaninha fizera quatorze annos; e, se nos primeiros tempos bastavam os brinquedos e as escravas para divertil-a, era chegada a idade em que os brinquedos perdem de moda e as escravas de interesse, em que não ha leituras nem escripturas que façam de uma casa solitaria na Tijuca um paraiso. Descia algumas vezes, raras, e de corrida; não ia a theatros nem bailes; não fazia nem recebia visitas. Quando via passar na estrada uma cavalgada de homens e senhoras, punha a alma na garupa dos animaes, e deixava-a ir com elles, ficando-lhe o corpo, ao pé do padrinho, que continuava a ler.
Um dia, estando na chacara, viu parar ao portão um rapaz, montado n'uma bestinha, e ouviu que lhe perguntava se era alli a casa do doutor Fulgencio.
— Sim, senhor, é aqui mesmo.
— Podia fallar-lhe?
Caetaninha respondeu que ia ver; entrou em casa, e foi ao gabinete, onde achou o padrinho remoendo, com a mais voluptuaria e beata das expressões, um capitulo de Hegel. Mocinho? Que mocinho? Caetaninha disse-lhe que era um mocinho vestido de luto. De luto? repetiu o velho doutor fechando precipitadamente o livro; ha de ser elle. Esquecia-me dizer (mas ha tempo para tudo) que, tres mezes antes, fallecera um irmão de Fulgencio, no norte, deixando um filho natural. Como o irmão, dias antes de morrer, lhe escrevera recommendando o orphão que ia deixar, Fulgencio mandou que este viesse para o Rio de Janeiro. Ouvindo que estava alli um mocinho de luto, concluiu que era o sobrinho, e não concluiu mal. Era elle mesmo.
Parece que até aqui nada ha que destoe de uma historia ingenuamente romanesca: temos um velho lunatico, uma mocinha solitaria e suspirosa, e vemos despontar inopinadamente um sobrinho. Para não descer da região poetica em que nos achamos, deixo de dizer que a mula em que o Raymundo veiu montado, foi reconduzida por um preto ao alugador; passo tambem por alto as circumstancias da accommodação do rapaz, limitando-me a dizer que, como o tio, á força de viver lendo, esquecera inteiramente que o mandára buscar, nada havia em casa preparado para recebel-o. Mas a casa era grande e abastada; uma hora depois, estava o rapaz aposentado n'um lindo quarto, d'onde podia ver a chacara, a cisterna antiga, o lavadouro, basta folha verde e vasto céu azul.
Creio que ainda não disse a idade do hospede; tem quinze annos e um ameaço de buço; é quasi uma criança. Logo, se a nossa Caetaninha ficou alvoroçada, e as mucamas andam de um lado para outro espiando e fallando do «sobrinho de sinhô velho que chegou de fóra», é porque a vida alli não tem outros episodios, não porque elle seja homem feito. Essa foi tambem a impressão do dono da casa; mas, aqui vae a differença. A afilhada não advertia que o officio do buço é virar bigode, ou, se pensou n'isso, fel-o tão vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. Não assim o velho Fulgencio. Comprehendeu este que havia alli a massa de um marido, e resolveu casal-os; mas viu tambem que, a menos de lhes pegar nas mãos e mandar que se amassem, o acaso podia guiar as cousas por modo differente.
Uma idéia traz outra. A idéia de os casar pegou por um lado com uma de suas opiniões recentes. Era esta que as calamidades ou os simples dissabores nas relações do coração provinham de que o amor era praticado de um modo empyrico; faltava-lhe a base scientifica. Um homem e uma mulher, desde que conhecessem as razões physicas e metaphysicas d'esse sentimento, estariam mais aptos a recebel-o e nutril-o com efficacia, do que outro homem e outra mulher que nada soubessem do phenomeno.
— Os meus pequenos estão verdes, dizia elle comsigo: tenho tres a quatro annos diante da mim, e posso começar desde já a preparal-os. Vamos com logica; primeiro os alicerces, depois as paredes, depois o tecto..., em vez de começar pelo tecto... Dia virá em que se aprenda a amar como se aprende a ler... Nesse dia...
Estava atordoado, deslumbrado, delirante. Foi ás estantes, desceu alguns tomos, astronomia, geologia, physiologia, anatomia, jurisprudencia, politica, linguistica, abriu-os, folheou-os, comparou-os, extractou d'aqui e d'ali, até formular um programma de ensino. Compunha-se este de vinte capitulos, nos quaes entravam as noções geraes do universo, uma definição da vida, demonstração da existencia do homem e da mulher, organisação das sociedades, definição e analyse das paixões, definição e analyse do amor, suas causas, necessidades e effeitos. Em verdade, as materias eram crespas; elle entendeu tornal-as doceis, tratando-as em phrase corriqueira e chã, dando-lhes um tom puramente familiar, como a astronomia de Fontenelle. E dizia com emphasis que o essencial da fructa era o miolo, não a casca.
Tudo isso era engenhoso; mas aqui vai o mais engenhoso. Não os convidou a aprender. Uma noite, olhando para o céo, disse que as estrellas estavam brilhando muito; e o que eram as estrellas? acaso sabiam elles o que eram as estrellas?
— Não senhor.
D'aqui a iniciar uma descripção do universo era um passo. Fulgencio deu o passo, com tal presteza e naturalidade, que os deixou encantados e elles pediram a viagem toda.
— Não, disse o velho; não esgotemos tudo hoje, nem isto se entende bem se não de vagar; amanhã ou depois...
Foi assim, sorrateiramente, que elle começou a executar o plano. Os dois alumnos, assombrados com o mundo astronomico, pediam-lhe todos os dias que continuasse, e, posto que no fim dessa primeira parte Caetaninha ficasse um tanto confusa, ainda assim quiz ouvir as outras cousas que o padrinho lhe prometteu.
Não digo nada da familiaridade entre os dois alumnos, por ser cousa obvia. Entre quatorze e quinze annos a differença é tão pequena, que os portadores das duas edades, não tinha mais que dar a mão um ao outro. Foi o que aconteceu.
No fim de tres semanas pareciam ter sido criados juntos. Só isto bastava a mudar a vida de Caetaninha; mas Raymundo trouxe-lhe mais. Não ha dez minutos, vimol-a olhar com saudade as cavalgadas de homens e damas que passavam na estrada. Raymundo matou-lhe a saudade, ensinando-lhe a montaria, apezar da relutancia do velho, que temia algum desastre; mas este cedeu e alugou dois cavallos. Caetaninha mandou fazer uma linda amazona, Raymundo veiu á cidade comprar-lhe as luvas e um chicotinho, com o dinheiro do tio— já se sabe— que tambem lhe deu as botas e o demais apparelho masculino. D'ahi a pouco era um gosto vel-os ambos, galhardos e intrepidos, abaixo e acima da montanha.
Em casa, brincavam á larga, jogavam damas e cartas, cuidavam de aves e plantas. Brigavam muita vez; mas, segundo as mucamas, eram brigas de mentira, só para fazerem as pazes depois. Era o pico do arrufo. Raymundo vinha ás vezes á cidade, a mandado do tio. Caetaninha ia esperal-o ao portão, espiando anciosa. Quando elle chegava, brigavam, porque ella queria tirar-lhe os maiores embrulhos, a pretexto de que elle vinha cançado, e elle queria dar-lhe os mais leves, allegando que ella era fraquinha.
No fim de quatro mezes, a vida era totalmente outra. Póde-se até dizer que só então é que Caetaninha começou a usar rosas no cabello. Antes d'isso vinha muita vez despenteada para a mesa do almoço. Agora, não só se penteava logo cedo, mas até, como digo, trazia rosas, uma ou duas; estas eram, ou colhidas na vespera, por ella mesma, e guardadas em agua, ou na propria manhã, por elle, que ia levar-lh'as á janella. A janella era alta, mas Raymundo, pondo-se na ponta dos pés, e levantando o braço, conseguia dar-lhe as rosas em mão. Foi por esse tempo que elle adquiriu o séstro de mortificar o buço, puchando-o muito de um e outro lado. Caetaninha chegava a bater-lhe nos dedos, para lhe tirar tão máo costume.
Entretanto, as licções continuavam regularmente. Já tinham uma idéa geral do universo, e uma definição da vida, que nenhum d'elles entendeu. Assim chegaram ao quinto mez. No sexto, começou a demonstração da existencia do homem. Caetaninha não pôde suster o riso, quando o padrinho, expondo a materia, perguntou-lhes se elles sabiam que existiam e porque; mas ficou logo séria, e respondeu que não.
— Nem você?
— Nem eu, não, senhor, concordou o sobrinho,
Fulgencio iniciou uma demonstração em regra, profundamente cartesiana. A seguinte licção foi na chacara. Chovera muito nos dias anteriores; mas o sol agora alagava tudo de luz, e a chacara parecia uma linda viuva, que troca o véo do luto pelo do noivado. Raymundo, como se quizesse copiar o sol, (copiam-se naturalmente os grandes) despedia das pupillas um olhar vasto e longo, que Caetaninha recebia, palpitando, como a chacara. Fusão, transfusão, diffusão, confusão e profusão de seres e de cousas.
Emquanto o velho fallava, recto, logico, vagaroso, curtido de formulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dous alumnos faziam trinta mil esforços para escutal-o, mas vinham trinta mil incidentes distrahil-os. Foi a principio um casal de borboletas que brincavam no ar. Façam-me o favor de dizer o que é que póde haver extraordinario n'um casal de borboletas? Concordo que eram amarellas, mas esta circumstancia não basta a explicar a distracção. O facto de voarem uma atraz da outra, ora á direita, ora á esquerda, ora abaixo, ora acima, tambem não dá a razão do desvio, visto que nunca as borboletas voaram, em linha recta, como simples militares.
— O entendimento, dizia o velho, o entendimento, segundo eu já expliquei...
Raymundo olhou para Caetaninha, e achou-a olhando para elle. Um e outro pareciam confusos e acanhados. Ella foi a primeira que baixou os olhos ao regaço. Depois, levantou-os, afim de os levar a outra parte, mais remota, o muro da chacara; na passagem como os de Raymundo ali estivessem, ella encarou-os o mais rapidamente que pôde. Felizmente, o muro apresentava um expectaculo que a encheu de admiração: um casal de andorinhas (era o dia dos casaes) saltitava n'elle, com a graça peculiar ás pessoas aladas. Saltitavam piando, dizendo cousas uma á outra, o que quer que fosse, talvez isto— que era bem bom não haver philosophia nos muros das chacaras. Se não quando, uma d'ellas voou, provavelmente a dama, e a outra, naturalmente o garção, não se deixou ficar atraz: esticou as azas e seguiu o mesmo caminho. Caetaninha desceu os olhos á gramma do chão.
Quando a licção acabou, d'ahi a alguns minutos, ella pediu ao padrinho que continuasse, e, recusando este, tomou-lhe o braço e convidou-o a dar um giro na chacara.
— Está muito sol, contestou o velho.
— Vamos pela sombra.
— Faz muito calor.
Caetaninha propoz irem continuar na varanda; mas o padrinho disse-lhe mysteriosamente que Roma não se fez n'um dia, e acabou declarando que só dois dias depois continuaria a licção. Caetaninha recolheu-se ao quarto, esteve ali tres quartos de hora fechada, sentada, á janella, de um lado para outro, procurando as cousas que tinha na mão, e chegando ao cumulo de ver-se a si mesma, cavalgando, estrada acima, ao lado de Raymundo. De uma vez aconteceu-lhe ver o rapaz no muro da chacara; mas attentou bem, reconheceu que era um par de bezouros que zumbiam no ar. E dizia um d'elles ao outro:
— Tu és a flor da nossa raça, a flor do ar, a flor das flôres, o sol e a lua da minha vida.
Ao que respondia o outro:
— Ninguem te vence na belleza e na graça; o teu zumbir é um éco das fallas divinas; mas, deixa-me... deixa-me...
— Porque deixar-te, alma d'estes bosques?
— Já te disse, rei dos ares puros, deixa-me.
— Não me falles assim, feitiço e gala das mattas. Tudo por cima e em volta de nós está dizendo que me deves fallar de outra maneira. Conheces a cantiga dos mysterios azues?
— Vamos ouvil-a nas folhas verdes da larangeira.
— As da mangueira são mais bonitas.
— Tu és mais linda que umas e outras.
— E tu, sol da minha vida?
— Lua do meu ser, eu sou o que tu quizeres...
Era assim que os dous bezouros fallavam. Ella ouviu-os scismando. Como elles desapparecessem, ella entrou, viu as horas e saiu do quarto. Raymundo estava fóra; ella foi esperal-o ao portão, dez, vinte, trinta, quarenta, cincoenta minutos. Na volta disseram pouco; uniram-se e separaram-se duas ou tres vezes. Da ultima vez foi ella que o trouxe á varanda, para mostrar-lhe um enfeite que julgava perdido e acabava de achar. Façam-lhe a justiça de crer que era pura mentira. Entretanto, Fulgencio antecipou a licção; deu-a no dia seguinte, entre o almoço e o jantar. Nunca a palavra lhe saiu tão limpida e singella. E assim devia ser; tratava-se da existencia do homem, capitulo profundamente methaphysico, em que era preciso considerar tudo e por todos os lados.
— Estão entendendo? perguntava elle.
— Perfeitamente.
E a licção seguia até o fim. No fim, deu-se a mesma cousa da vespera; Caetaninha, como se tivesse medo de ficar só, pediu-lhe para continuar ou passear; elle recusou uma e outra cousa, bateu-lhe paternalmente na cara, e foi encerrar-se no gabinete.
— Para a semana, pensava o velho doutor, dando volta á chave, para a semana entro na organisação das sociedades; todo o mez que vem e o outro é para a definição e classificação das paixões; em maio, passaremos ao amor... já será tempo...
Emquanto elle dizia isto, e fechava a porta, alguma cousa resoava do lado da varanda— um trovão de beijos, segundo disseram as lagartas da chacara; mas, para as lagartas qualquer pequeno rumor vale um trovão. Quanto aos auctores do ruido nada positivo se sabe. Parece que um maribondo, vendo Caetaninha e Raymundo unidos n'essa occasião, concluiu da coincidencia para a consequencia, e entendeu que eram elles; mas um velho gafanhoto demonstrou a inanidade do fundamento, allegando que ouvira muitos beijos, outr'ora, em logares onde nem Raymundo nem Caetaninha puzera os pés. Convenhamos que este outro argumento não prestava para nada; mas, tal é o prestigio de um bom caracter, que o gafanhoto foi acclamado como tendo ainda uma vez defendido a verdade e a razão. E d'ahi pode ser que fosse assim mesmo. Mas um trovão de beijos? Supponhamos dous; supponhamos tres ou quatro.
MILITARISMO
Humberto de Campos
O militar, por menos apegado que seja as coisas da sua profissão, acaba necessariamente se habituando com elas, identificando-se com o quartel. A influência das armas é tamanha, naqueles que a elas se votam, que se reconhece na rua, ao menor golpe de vista, mesmo quando vestido à paisana, o tenente, o capitão, o major, o coronel. Ao ver, na via pública, um oficial do Exército envergando um jaquetão ou um fraque, a impressão que se tem é de que falta alguma coisa à sua elegância. Por mais correto que ele esteja nas suas roupas apuradas, lembra-nos, sempre, um tigre metido na pele de um urso, ou um leão enfiado, por modéstia, no couro de um elefante.
E essa tirania da farda não se mostra de modo menos acentuado na fisionomia moral das suas vítimas. Absorvido pelo seu pensamento de glória, o soldado revela-se em toda a parte e em todas as circunstâncias: no calor das palestras, na energia da vontade, na severidade da vida, na intransigência das atitudes, na disciplina do porte, e, até, às vezes, no emprego do vocabulário, a que procura dar, aqui fora, as mesmas aplicações. O caso do tenente Panfílio Godofredo de Medeiros é uma demonstração pública e policial dessa verdade.
Militar garboso, bravo, decidido, o tenente Panfílio utilizava os dias de serenidade da pátria passeando elegantemente na Avenida, quando viu, uma tarde, em certa casa de chá, uma criatura que lhe fez acordar, tocando alvorada, todos os clarins do coração. Ousado e robusto, pôs-se, logo, em atividade, e de tal modo que, no dia seguinte, sabia já o suficiente para um vigoroso ataque aos muros da fortaleza: a dama era casada, morava à rua Voluntários da Pátria, em uma casa de portão de ferro, o qual só se abria com ordem especial do marido.
Informado de tudo isso, o tenente apareceu, no dia seguinte, diante do palacete, e espremeu, comovido, o tumor sonoro da campainha. O silêncio era absoluto na casa, e ninguém atendeu. Duas, três, quatro vezes repetiu ele o sinal, mas inutilmente. E batia, já, em retirada, quando ouviu um chocalhar de corrente no portão. Voltou-se, e viu: era o jardineiro que abria a grade para dar passagem ao dono da casa, passando, de novo, a corrente de cadeado.
Atordoado pelo seu pensamento de ventura, e, não menos, pela consciência da sua superioridade de militar, o oficial não teve dúvidas: parou, deu meia volta, e marchou, firme, no rumo do cavalheiro que saíra da casa. Estacaram, pálidos, um diante do outro.
— Que deseja o senhor? — bradou, com a alma nos olhos, o marido da moça.
Mão no revólver, disfarçando a tempestade do coração, o tenente rugiu, apenas, seco:
— A senha.
E atracaram-se.
EVOLUÇÃO
Machado de Assis
Chamo-me Inácio; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas é alguma coisa, e está com a filosofia de Julieta: “Que valem nomes? perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro.” Vamos ao cheiro do Benedito.
E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eram usava um processo químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos dos outros — salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do… lá me ia escapando o nome do joalheiro; — fiquemos na Rua do Ouvidor.
Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom, — ou para melhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter idéias de toda parte e de toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.
Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber quem éramos.
Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens.
— Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele.
— Não, decerto. O senhor tem filhos?
— Nenhum.
— Nem eu. Não será ainda em cinqüenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.
— Bonita idéia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos.
— Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa.
— Bonita e justa, redargüiu ele com amabilidade. Sim, senhor, tem razão: — o Brasil está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.
Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem — arejando o espírito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o café e o cognac, disse-me ele, apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:
— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela idéia do Brasil engatinhando.
— Ah!
— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade.
E referiu muita coisa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.
— Não irei adiante, disse eu sorrindo também.
— Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a beleza que era. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza.
Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-múndi, dois mapas do Brasil. A secretária era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de cristal, — “cristal de rocha”, disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras coisas. Na sala contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões.
Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele pegou da idéia, e apresentou-se. Um dia, atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o Benedito.
— Que é isto? exclamei.
— Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa.
Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a idéia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano.
— Quero vê-lo ministro, disse-lhe.
Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa.
— Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão-somente ministro industrial. Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos. Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro…
— Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as coisas arranjadas em Londres.
— Sim?
— Perfeitamente.
Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também coligir algumas coisas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns. Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens.
Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo; achei-o preparando o discurso de estréia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatórios, livros de economia política, alguns com páginas marcadas, por meio de tiras de papel rubricadas assim: — Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era sincero, minucioso e cálido. Falava-me daquelas coisas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia.
— Dentro de dois anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada.
— E os capitalistas ingleses?
— Que tem?
— Estão contentes, esperançados?
— Muito; não imagina.
Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, — ou porque a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio do discurso que devia proferir dali a dias.
— Está ainda em borrão, explicou-me; mas as idéias capitais ficam. E começou:
No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro…
Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação), achei ali mais um efeito da lei da evolução, tal como a definiu Spencer, — Spencer ou Benedito, um deles.
LÂMPADAS E VENTILADORES
Humberto de Campos
— A resistência física da mulher, senhor conselheiro, — dizia-me, uma destas tardes, saboreando voluptuosamente o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o conselheiro Abelardo de Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno que merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos psicólogos. O poder da vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário, formidável. Senão, observe. Há um baile na sua casa, ao qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que lhes empresta a alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente, continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou, como hoje acontece, "rag time" sobre "rag time", "fox-trot" sobre "fox-trot", tango sobre tango, maxixe sobre maxixe.
— Perdão! — interrompi. Em minha casa não se dançaria isso!
— Eu sei! eu sei! — tornou o antigo magistrado, batucando a colherinha no fundo da taça, para dissolver o sorvete. — Eu sei disso. É uma simples comparação!
E continuou:
— Na festa, enquanto se dança ninguém se fatiga. As moças rodopiam, correm, pulam, divertem-se com alarido, sem atentarem para as horas, que se passam. Às três da manhã estão ainda tão lépidas, tão dispostas, como no momento em que entraram. E assim continuam, pela festa adiante. De repente, dá-se o baile por terminado. A música retira-se, começam as despedidas, aproximam-se, buzinando, os "landaulets" dos convidados. E é uma calamidade: as moças, que, dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal podem, agora, dar um passo! Estão todas cansadas, fatigadas, com os pés rebentados, de modo a ser necessário levá-las, uma a uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...
A tarde estava quente, abafada, ameaçando tempestade. Na sala da sorveteria onde tomávamos chá, os ventiladores ronronavam, como gatos, refrescando o ambiente. Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto da Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou, rolando pelo céu. Nesse momento, as lâmpadas do salão, abertas àquela hora, apagaram-se todas, ao mesmo tempo que, dependendo da mesma corrente elétrica, os ventiladores foram, pouco a pouco, diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves que acabam de chegar de um grande voo. Estranhando aquela interrupção, ao mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a cabeça venerável, e sentenciou, apontando o teto:
— As moças, meu velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que rodopiaram sem descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores, cansadas, exaustas, quase mortas!
Lá fora, no ar pesado, um novo trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como grãos de milho, tamborilando descompassadamente no chão.
ETERNO!
Machado de Assis
- Não me expliques nada, disse eu, entrando no quarto; é o negócio da baronesa.
Norberto enxugou os olhos e sentou-se na cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma cadeira, pousei a barba no dorso, e proferi este breve discurso:
- Mas, meu pateta, quantas vezes queres que te diga que acabes com essa paixão ridícula e humilhante? Sim, senhor, humilhante e ridícula, porque ela não faz caso de ti; e demais, é arriscado. Não? Verás se o é, quando o barão desconfiar que lhe arrastas a asa à mulher. Olha que ele tem cara de maus bofes.
Norberto meteu as unhas na cabeça, desesperado. Tinha-me escrito cedo, pedindo que fosse confortá-lo e dar-lhe algum conselho; esperara-me na rua, até perto de uma hora da noite, defronte da casa de pensão em que eu morava; contava-me na carta que não dormira, que recebera um golpe terrível, falava em atirar-se ao mar. Eu, apesar de outro golpe que também recebera, acudi ao meu pobre Norberto. Éramos da mesma idade, estudávamos medicina, com a diferença que eu repetia o terceiro ano, que perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; não em cabendo igual fortuna, por havê-los perdido, vivia de uma mesada que me dava um tio da Bahia, e das dívidas que o bom velho pagava semestralmente. Pagava-as, e escrevia-me logo uma porção de coisas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse estudando até ser doutor. Doutor, para quê? dizia comigo. Pois se nem o sol, nem a lua, nem as moças, nem os bons charutos Vilegas eram doutores, que necessidade tinha eu de o ser? E tocava a rir, a folgar, a deixar correr semanas e credores.
Falei de um golpe recebido. Era uma carta do tio, vinda com a do Norberto, naquela mesma manhã. Abri-a antes da outra, e li-a com pasmo Já me não tuteava; dizia cerimoniosamente: "Sr. Simeão Antônio de Barros, estou farto de gastar à toa o meu dinheiro com o senhor. Se quiser concluir os estudos, venha matricular-se aqui, e morar comigo. Se não, procure por si mesmo recursos; não lhe dou mais nada." Amarrotei o papel, finquei os olhos numa litografia muito ruim do Visconde de Sepetiba, que já achei pendente de um prego, no meu quarto de pensão, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco para baixo. Bradei que podia guardar o seu dinheiro, que eu tinha vinte anos, - o primeiro dos direitos do homem, anterior aos tios e outras convenções sociais.
A imaginação, madre amiga, apontou-me logo uma infinidade de recursos, que bastavam a dispensar os magros cobres de um velho avarento, mas, passada essa primeira impressão, e relida a carta, entrei a ver que a solução era mais árdua do que parecia. Os recursos podiam ser bons e até certos; mas eu estava tão afeito a ir a Rua da Quitanda receber a pensão mensal e a gastá-la em dobro, que mal podia adotar outro sistema.
Foi neste ponto que abri a carta do amigo Norberto e corri à casa dele. Já sabem o que lhe disse; viram que ele meteu as unhas na cabeça, desesperado. Saibam agora que, depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de mim outros conselhos.
- Quais?
Não me respondeu.
- Que compres uma pistola ou uma gazua? algum narcótico?
- Para que estás caçoando comigo?
- Para fazer-te homem.
Norberto deu de ombros, com um laivozinho de escárnio ao canto da boca. Que homem? Que era ser homem senão amar a mais divina criatura do mundo e morrer por ela?
A Baronesa de Magalhães, causa daquela demência, viera pouco antes da Bahia, com o marido, que antes do baronato, adquirido para satisfazer a noiva, era Antônio José Soares de Magalhães. Vinham casados de fresco; a baronesa tinha menos trinta anos que o barão; ia em vinte e quatro. Realmente era bela. Chamavam-lhe, em família, Iaiá Lindinha. Como o barão era velho amigo do pai de Norberto, as duas famílias uniram-se desde logo.
- Morrer por ela? disse eu.
Jurou-me que sim; era capaz de matar-se. Mulher misteriosa! A voz dela entrava-lhe pelos ossos... E, dizendo isto, rolava na cama, batia com a cabeça, mordia os travesseiros. Às vezes, parava, arquejando; logo depois tornava às mesmas convulsões, abafando os soluços e os gritos, para que os não ouvissem do primeiro andar.
Já acostumado às lágrimas do meu amigo, desde a vinda da baronesa, esperei que elas acabassem, mas não acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a ele, bradei-lhe que era uma criançada, e despedi-me; Norberto pegou-me na mão, para que ficasse, não me tinha dito ainda o principal.
- É verdade; que é?
- Vão-se embora. Estivemos lá ontem, e ouvi que embarcam sábado.
- Para a Bahia?
- Sim.
- Então, vão comigo.
Contei-lhe o caso da carta, e as ordens de meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao pé dele. Norberto escutou-me alvoroçado. Na Bahia? Iríamos juntos; éramos íntimos, os pais não recusariam este favor à nossa jovem amizade. Confesso que o plano pareceu-me excelente, e demo-nos a ele com afinco. A mãe, apesar de muita lágrima que teria de verter ao despegar-se do filho, cedeu mais prontamente do que supúnhamos. O pai é que não cedeu nada. Não houve rogos nem empenhos; o próprio barão, que eu tive a arte de trazer ao nosso propósito, não alcançou do velho amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o aposentar em casa e velar por ele. O pai foi inflexível.
Podem imaginar o desespero do meu amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa dela, com a família, até onze horas; mas, com o pretexto de passar comigo a última noite da minha estada aqui, veio realmente chorar tantas e tais lágrimas, como nunca as vi chorar jamais, nem antes nem depois. Não podia descrer da paixão, nem presumir consolá-la; era a primeira. Até então, ambos nós só conhecíamos os trocos miúdos do amor; e, por desgraça dele a primeira moeda grande que achara, não era ouro nem prata, senão ferro, duro ferro, como a do velho Licurgo, forjada como mesmo amargo vinagre.
Não dormimos. Norberto chorava, arrepelava-se, pedia a morte, construía planos absurdos ou terríveis. Eu, arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma coisa que o consolasse; era pior, era como se falasse de dança a uma perna dolorida. Consegui que fumasse um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os às dúzias, sem acabar nenhum. Às três horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro, - não logo, mas daí a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa idéia da cabeça unicamente no interesse dele próprio.
- Ainda se fosse útil, vá, disse-lhe eu; mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na porta, porque a mulher, se não gosta de ti, e te vê lá, é capaz de perceber logo o motivo da tua viagem, e não te recebe.
- Que sabes tu?
- Pode receber-te, mas não há certeza, acho eu. Crês que ela goste de ti?
- Não digo que sim, nem que não.
Contou-me episódios, gestos, ditos, coisas ambíguas ou insignificantes; depois vinha uma reticência de lágrimas, murros no peito, clamor de angústia, a dor ia-se-me comunicando; padecia com ele, a razão cedia à compaixão, as nossas naturezas fundiam-se em uma só lástima. Daí esta promessa que lhe fiz.
- Tenho uma idéia. Vou com eles, já nos conhecemos, é provável que freqüente a casa; eu então farei uma coisa: sondo-a a teu respeito. Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te francamente que penses em outra coisa; mas se achar alguma inclinação, pouca que seja, aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca.
Norberto aceitou alvoroçado a proposta; era uma esperança. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que a observaria bem, sem temor, e, pela sua parte, jurou-me que não hesitaria um instante. E teimava comigo que não perdesse nada; que, às vezes, um indício pequeno valia muito, uma palavrinha era um livro; que, se pudesse, aludisse ao desespero em que o deixava. Para peitar a minha sagacidade, afirmou que o desengano matá-lo-ia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na morte e na eternidade. Não achei boca para replicar-lhe que isto era o mesmo que obrigar-me a só mandar boas notícias. Naquela ocasião, apenas sabia chorar com ele.
A aurora registrou o nosso pacto imoral. Não consenti que ele fosse a bordo despedir-se. Parti. Não falemos da viagem... Ó mares de Homero, flagelados por Euros, Bóreas e o violento Zéfiro, mares épicos, podeis sacudir Ulisses, mas não lhe dais as aflições do enjôo. Isso é bom para os mares de agora, e particularmente para aqueles que me levaram daqui à Bahia. Só depois de chegar ante a cidade, ousei aparecer à nossa dona magnífica, tão senhora de si, como se acabasse de dar um passeio apenas longo.
- Não tem saudades do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de intróito.
- Certamente.
O barão veio indicar-me os lugares que a gente via do paquete, - ou a direção de outros. Ofereceu-me a casa dele, no Bonfim. Meu tio veio a bordo, e, por mais que quisesse fazer-se tétrico, senti-lhe o coração amigo. Via-me, único filho da irmã finada, - e via-me obediente. Não podia haver para mim melhores impressões de entrada. Divina juventude! as coisas novas pagavam-me em dobro as coisas velhas.
Dei os primeiros dias ao conhecimento da cidade; mas não tardou que uma carta do meu amigo Norberto me chamasse a atenção para ele. Fui ao Bonfim. A baronesa - ou Iaiá Lindinha, que era ainda o nome dado por toda a gente, - recebeu-me com tanta graça, e o marido era tão hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular comissão que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu amigo, e a necessidade de consolá-lo ou desenganá-lo era superior a qualquer outra consideração. Confesso até uma singularidade; agora que estavam separados entrou-me na alma a esperança de que ela não desgostasse dele, - justamente o que eu negava antes. Talvez fosse o desejo de o ver feliz; podia ser uma instigação da vaidade que me acenasse com a vitória em favor do desgraçado.
Naturalmente, conversamos do Rio de Janeiro. Eu dizia-lhe as minhas saudades, falava das coisas que estava acostumado a ver, das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras de todos os dias das casas, das afeições... Oh! as afeições eram os laços mais apertados. Tinha amigos: os pais de Norberto...
- Dois santos, interrompeu a moça; meu marido, que conhece o velho desde muitos anos, conta dele coisas curiosas. Sabe que casou por uma paixão fortíssima?
- Adivinha-se. O filho é o fruto expressivo do amor dos dois. Conheceu bem o meu pobre Norberto?
- Conheci; ia lá à casa muitas vezes.
- Não conheceu.
Iaiá Lindinha franziu levemente a testa.
- Perdoe-me se a desminto, continuei com vivacidade. Não conheceu a melhor alma, a mais pura e a mais ardente que Deus criou. Talvez que ache parcial por ser amigo. A verdade é que ninguém me prende mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Norberto! Não imagina que homem talhado para dois ofícios ao mesmo tempo, arcanjo e herói, - para dizer à terra as delícias do céu, e para escalar o céu, se for preciso ir lá levar as lamentações humanas...
Só no fim desta fala compreendi que era ridícula. Iaiá Lindinha, ou não a entendeu assim, ou disfarçou a opinião; disse-me somente que a minha amizade era entusiasta, mas que o meu amigo parecia boa pessoa. Não era alegre, ou tinha crises melancólicas. Disseram-lhe que ele estudava muito...
- Muito.
Não insisti para não atropelar os acontecimentos... Que o leitor me não condene sem remissão nem agravo. Sei que o papel que eu fazia não era bonito; mas já lá vão vinte e sete anos. Confio do Tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes; quando menos, em cascalho. Assim é que, se um homem de Estado escrever e publicar as suas memórias, tão sem escrúpulo, que lhes não falte nada, nem confidências pessoais, nem segredos do governo, nem até amores, amores particularíssimos e inconfessáveis, verá que escândalo levanta o livro. Dirão e dirão bem, que o autor é um cínico, indigno dos homens que confiaram nele e das mulheres que o amaram. Clamor sincero e legítimo, porque o caráter público impõe muitos resguardos; os bons costumes e o próprio respeito às mulheres amadas constrangem ao silêncio...
... Mas deixai pingar os anos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico, psicológico, anedótico. Hão de lê-lo a frio; estudar-se-á nele a vida íntima do nosso tempo a maneira de amar, a de compor os ministérios e deitá-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam eleições e galanteios, se eram usados xales ou capas, que veículos tínhamos, se os relógios eram trazidos à direita ou à esquerda, e multidão de coisas interessantes para a nossa história pública e íntima. Daí a esperança que me fica, de não ser condenado absolutamente pela consciência dos que me lêem. Já lá vão vinte e sete anos!
Gastei mais de meio em bater à porta daquele coração, a ver se lá achava o Norberto; mas ninguém me respondia de dentro, nem o próprio marido. Não obstante, as cartas que mandava ao meu pobre amigo, se não levavam esperanças, também não levavam desenganos. Houve-as até mais esperançosas que desenganadas. A afeição que lhe tinha e o meu amor-próprio conjugavam as forças todas para espertar nela a curiosidade e a sedução de um mistério remoto e possível.
Já então as nossas relações eram familiares. Visitava-os a miúdo. Quando lá não ia três noites seguidas, vivia aflito e inquieto; corria a vê-los na quarta noite, e era ela que me esperava ao portão da chácara, para dizer-me nomes feios, ingrato, preguiçoso, esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa não deixava de estar ali à espera, com a mão prestes a apertar a minha, - às vezes, trêmula, - ou seria a minha que tremia; não sei.
- Amanhã não posso vir, dizia-lhe algumas noites, à despedida, baixo, no vão de uma janela.
- Por quê?
Explicava-lhe a causa, estudo ou alguma obrigação de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de promessa, mas ficava desconsolada. Comecei a escrever menos ao Norberto e a falar pouco de Iaiá Lindinha, como quem não ia à casa dela. Tinha fórmulas diferentes: "Ontem encontrei o barão no largo do Palácio; disse-me que a mulher está boa". Ou então: "Sabes quem vi há três dias no teatro? A baronesa". Não relia as cartas, para não encarar a minha hipocrisia. Ele, pela sua parte, também ia escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moça não aparecia mais o nome de Norberto; convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um triste defunto sem galas mortuárias
Beirávamos o abismo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula celeste, - incongruência para os que não andam namorados. A morte resolveu o problema, levando consigo o barão, por meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e três de março de 1861, às seis horas da tarde. Era um excelente homem, a quem a viúva pagou em preces o que lhe não dera em amor.
Quando eu lhe pedi, três meses depois, que, acabado o luto, casasse comigo, Iaiá Lindinha não estranhou nem me despediu. Ao contrário, respondeu que sim, mas não tão cedo; punha uma condição: que concluísse primeiro os estudos, que me formasse. E disse isto com os mesmos lábios, que pareciam ser o único livro do mundo, o livro universal, a melhor das academias, a escola das escolas. Apelei dela para ela; escutou-me inflexível. A razão que me deu foi que meu tio podia recear que, uma vez casado, interromperia a carreira.
- E com razão, concluiu. Ouça-me: só me caso com um doutor.
Cumprimos ambos a promessa. Durante algum tempo andou ela pela Europa, com uma cunhada e o marido desta; e as saudades foram então as minhas disciplinas mais duras. Estudei pacientemente; despeguei-me de todas as vadiações antigas. Recebi o capelo na véspera da bênção matrimonial; e posso dizer, sem hipocrisia, que achei o latim do padre muito superior ao discurso acadêmico.
Semanas depois, pediu-me Iaiá Lindinha que viéssemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido, confesso que um pouco atordoado. Cá viria achar o meu amigo Norberto, se é que ele ainda residia aqui. Ia em mais de três anos que nos não escrevíamos; já antes disso as nossas cartas eram breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento? Dos precedentes? Viemos; não contei nada a minha mulher.
Para quê? Era dar-lhe notícia de uma aleivosia oculta, dizia comigo. Ao chegar, pus esta questão a mim mesmo, se esperaria a visita dele, se iria visitá-lo antes; escolhi o segundo alvitre, para avisá-lo das coisas. Engenhei umas circunstâncias especiais, curiosas, acarretadas pela Providência, cujos fios ficam sempre ocultos aos homens. Não me ria, note-se bem; minha imaginação compunha tudo isso com seriedade.
No fim de quatro dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio Comprido, estava casado. Tanto melhor. Corri a casa dele. Vi no jardim uma preta amamentando uma criança, outra criança de ano e meio, que recolhia umas pedrinhas do chão, acocorada.
- Nhô Bertinho, vai dizer a mamãe que está aqui um moço procurando papai.
O menino obedeceu; mas, antes que voltasse, chegava de fora o meu velho amigo Norberto. Conheci-o logo, apesar das grandes suíças que usava; lançamo-nos nos braços um do outro.
- Tu aqui? Quando chegaste?
- Ontem:
- Estás mais gordo, meu velho! Gordo e bonito. Entremos. Que é? continuou ele inclinando-se para Nhô Bertinho, que lhe abraçava uma das pernas.
Pegou dele, alçou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco menos depois, tendo-o num braço, apontou para mim.
- Conheces este moço?
Nhô Bertinho olhava espantado, com o dedo na boca. O pai contou-lhe então que eu era um amigo de papai, muito amigo, desde o tempo em que vovô e vovó eram vivos...
- Teus pais morreram?
Norberto fez-me sinal que sim, e acudiu ao filho, que com as mãozinhas espalmadas pegava da cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois, foi à criança que mamava, não a tirou do regaço da ama, mas disse-lhe muitas coisas ternas, chamou-me para vê-la, era uma menina. Revia-se nela, encantado. Tinha cinco meses por ora; mas se eu voltasse ali quinze anos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que dedos gordos! Não podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a.
- Entra, anda ver minha mulher. Jantas conosco.
- Não posso.
- Mamãe, está espiando, disse Nhô Bertinho.
Olhei, vi uma moça à porta da sala, que dava para o jardim; a porta estava aberta, ela esperava-nos. Subimos os cinco degraus; entramos na sala. Norberto pegou-lhe nas mãos, e deu-lhes dois beijos. A moça quis recuar, não pôde, ficou muito corada.
- Não te vexes, Carmela, disse ele. Sabes quem é este sujeito? É aquele Barros de quem te falei muitas vezes, um Simeão, estudante de medicina... A propósito, por que é que não me respondeste à participação do casamento?
- Não recebi nada, respondi.
- Pois afirmo que foi pelo correio.
Carmela ouvia o marido com admiração; ele tanto fez, que foi sentar-se ao pé dela, para lhe reter a mão, às escondidas. Eu fingia não ver nada, falava dos tempos acadêmicos, de alguns amigos, da política, da guerra, tudo para evitar que ele me perguntasse se estava ou não casado. Já me arrependia de ter ido ali; que lhe diria, se ele tocasse ao ponto e indagasse da pessoa? Não me falou em nada; talvez soubesse tudo.
A conversação prolongou-se; mas eu teimei em sair, e levantei-me, Carmela despediu-se de mim com muita afabilidade. Era bela; os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de santa. Certo é que o marido tinha-lhe adoração.
- Viste-a bem? perguntou-me ele à porta do jardim. Não te digo o sentimento que nos prende, estas coisas sentem-se, não se exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente criança. Creio que sim; criança eterna, como é eterno o meu amor.
Entrei no tílburi, prometendo ir lá jantar um daqueles dias.
- Eterno! disse comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher.
E, voltando-me para o cocheiro, perguntei-lhe:
- O que é eterno?
- Com perdão de V.S.a, acudiu ele, mas eu acho que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que, se não lhe quebro a cara um destes dias, a minha alma se não salve. Pois o maroto parece eterno no lugar; tem aí não sei que compadres... Outros dizem que... Não me meto nisso... Lá quebrar-lhe a cara...
Não ouvi o resto: fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava na Rua da Glória. O demônio continuava a falar; paguei, e desci até à Praia da Glória, meti-me pela do Russell e fui sair à do Flamengo. O mar batia com força. Moderei o passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e morrer. Cá dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao cocheiro: O que é eterno? As ondas, mais discretas que ele, não me contaram os seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam.
Cheguei ao Hotel de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu, ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe:
- O que é eterno, Iaiá Lindinha?
Ela, suspirando:
- Ingrato! é o amor que te tenho.
Jantei sem remorsos; ao contrário, tranqüilo e jovial. Coisas do Tempo! Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes...
O LEILÃO
Humberto de Campos
- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!
Foi ao som desse pregão intempestivo que o Dr. Alfredo Camilo despertou, alta madrugada, na sua cama de casal, na alcova suavemente iluminada por uma pequenina lâmpada de cabeceira. Espantado, o ilustre médico voltou-se no leito, e percebeu que era a sua jovem esposa, a formosíssima D. Belita, que insistia, no meio de um sono agitado:
- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!
Sentando-se na cama, o Dr. Alfredo bateu no ombro nu da esposa, sacudindo-a, com força:
- Belitinha! Belitinha! Que é isso? Que é que tens? Acorda!
- Hein? Hein? Que é? Que é que tem? - exclamou a moça, despertando, espantada, esfregando os olhos com as mãos.
- Estás com pesadelo? - indagou o marido.
- Não! Era um sonho... Por que?
- Estavas para aí fazendo leilão...
- Ahn! - exclamou a linda senhora, espreguiçando-se. - Uma extravagância... uma tolice...
- Conta! Quero saber o que era! - pediu o esposo; enciumado.
- Não vale a pena, Alfredo!
- Conta! - exigiu o Otelo.
D. Belita agasalhou a cabecita de ouro no peito do marido, e começou a narrar, de olhos fechados:
- Eu sonhei que me achava em um mercado, não sei em que cidade, nem em que país onde estavam fazendo um leilão de homens, para maridos, os quais eram disputados por centenas de mulheres. De repente, depois de várias arrematações, levaram um rapagão alto, forte, formoso, uma verdadeira beleza, que encantou, logo, todas as pretendentes. Ao vê-lo, a Luisinha, mulher do Alonso, que também estava presente, lançou duzentos mil réis. Eu lancei trezentos. A Abigail ofereceu quinhentos. Eu cobri o lance com oitocentos, e estava oferecendo um conto e duzentos quando tu me despertaste.
Com os olhos presos na cabeça da esposa, o Dr. Alfredo ouvia, em silêncio, essa história, quando, chegada a narração ao fim, protestou, revoltado:
- Sim, senhora! Uma senhora honesta, e casada, a ter sonhos destes!...
Não convindo, porém, brigar, àquela hora, por um simples sonho, um mero fenômeno de imaginação, procurou consolar-se, indagando:
- E eu, não estava lá, não?
- Você? Não vi.
- Mas, se eu estivesse lá, as mulheres dariam uma fortuna... Não?
D. Belita sorriu, e, esfregando os olhos:
- Você?
E com desprezo, rindo:
- Como você havia lá às dúzias, a cinquenta mil réis, e ninguém queria!
E virou-se para o outro lado, roncando...
UM ESQUELETO
Machado de Assis
CAPÍTULO PRIMEIRO
Eram dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e política. Alguma anedota vinha de quando em quando temperar a seriedade da conversa. Deus me perdoe! parece que até se fizeram alguns trocadilhos.
O mar batia perto na praia solitária... estilo de meditação em prosa. Mas nenhum dos doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e ameaçava chuva. É provável que se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos, os méritos de um artista ou de um escritor, ou simplesmente em rir de uma pilhéria intercalada a tempo.
Aconteceu no meio da noite que um dos convivas falou na beleza da língua alemã. Outro conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a aprendera com o Dr. Belém.
— Não conheceram o Dr. Belém? perguntou ele.
— Não, responderam todos.
— Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava duma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um chapéu-de-chile de abas extremamente largas.
— Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?
— Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um planeta...
— Mas esse homem?
— Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.
Um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era muita desgraça junta. A atitude porém do narrador tirou-lhe o gosto do riso. Alberto (era o nome do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou depois de algum tempo de muda e vaga contemplação, e continuou:
— Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha vida.
Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse:
— Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do esqueleto.
A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann.
Alberto começou a narração.
CAPÍTULO II
O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto.
Representava ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinqüenta. O estudo o abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a esse respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara, cuja pele era fria como o mármore e branca como a de um morto.
Um dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O doutor sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de lha ter feito.
— Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra vez: sou casado.
— Vai casar?
— Vou.
— Com quem?
— Com a D. Marcelina.
Não me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal coisa.
— Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei os olhos da memória a todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais possível do que essa. Daqui a três meses assistirá ao nosso casamento. Promete?
— Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.
— Não será uma formosura.
— Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.
— Simpática, educada e viúva. Minha idéia é que todos os homens deviam casar com senhoras viúvas.
— Quem casaria então com as donzelas?
— Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor e a maioria do gênero humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas...
O doutor estacou, como se receasse entrar em maiores confidências, e tornou a falar da viúva Marcelina cujas boas qualidades louvou com entusiasmo.
— Não é tão bonita como a minha primeira esposa, disse ele. Ah! essa... Nunca a viu?
— Nunca.
— É impossível.
— É a verdade. Já o conheci viúvo, creio eu.
— Bem; mas eu nunca lha mostrei. Ande vê-la...
Levantou-se; levantei-me também. Estávamos assentados à porta; ele levou-me a um gabinete interior. Confesso que ia ao mesmo tempo curioso e aterrado. Conquanto eu fosse amigo dele e tivesse provas de que ele era meu amigo, tanto medo inspirava ele ao povo, e era efetivamente tão singular, que eu não podia esquivar-me a um tal ou qual sentimento de medo.
No fundo do gabinete havia um móvel coberto com um pano verde; o doutor tirou o pano e eu dei um grito.
Era um armário de vidro, tendo dentro um esqueleto. Ainda hoje, apesar dos anos que lá vão, e da mudança que fez o meu espírito, não posso lembrar-me daquela cena sem terror.
— É minha mulher, disse o Dr. Belém sorrindo. É bonita, não lhe parece? Está na espinha, como vê. De tanta beleza, de tanta graça, de tanta maravilha que me encantaram outrora, que a tantos mais encantaram, que lhe resta hoje? Veja, meu jovem amigo; tal é última expressão do gênero humano.
Dizendo isto, o Dr. Belém cobriu o armário com o pano e saímos do gabinete. Eu não sabia o que havia de dizer, tão impressionado me deixara aquele espetáculo.
Viemos outra vez para as nossas cadeiras ao pé da porta, e algum tempo estivemos sem dizer palavra um ao outro. O doutor olhava para o chão; eu olhava para ele. Tremiam-lhe os lábios, e a face de quando em quando se lhe contraía. Um escravo veio falar-lhe; o doutor saiu daquela espécie de letargo.
Quando ficamos sós parecia outro; falou-me risonho e jovial, com uma volubilidade que não estava nos seus usos.
— Ora bem, se eu for feliz no casamento, disse ele, ao senhor o deverei. Foi o senhor quem me deu esta idéia! E fez bem, porque até já me sinto mais rapaz. Que lhe parece este noivo?
Dizendo isto, o Dr. Belém levantou-se e fez uma pirueta, segurando nas abas da casaca, que nunca deixava, salvo quando se recolhia de noite.
— Parece-lhe capaz o noivo? disse ele.
— Sem dúvida, respondi.
— Também ela há de pensar assim. Verá, meu amigo, que eu meterei tudo num chinelo, e mais de um invejará a minha sorte. É pouco; mais de uma invejará a sorte dela. Pudera não? Não há muitos noivos como eu.
Eu não dizia nada, e o doutor continuou a falar assim durante vinte minutos. A tarde caíra de todo; e a idéia da noite e do esqueleto que ali estava a poucos passos de nós, e mais ainda as maneiras singulares que nesse dia, mais do que nos outros, mostrava o meu bom mestre, tudo isso me levou a despedir-me dele e a retirar-me para casa.
O doutor sorriu-se com o sorriso sinistro que às vezes tinha, mas não insistiu para que ficasse. Fui para casa aturdido e triste; aturdido com o que vira; triste com a responsabilidade que o doutor atirava sobre mim relativamente ao seu casamento.
Entretanto, refleti que a palavra do doutor podia não ter pronta nem remota realização. Talvez não se case nunca, nem até pense nisso. Que certeza teria ele de desposar a viúva Marcelina daí a três meses? Quem sabe até, pensei eu, se não disse aquilo para zombar comigo?
Esta idéia enterrou-se-me no espírito. No dia seguinte levantei-me convencido de que efetivamente o doutor quisera matar o tempo e juntamente aproveitar a ocasião de me mostrar o esqueleto da mulher.
Naturalmente, disse eu comigo, amou-a muito, e por esse motivo ainda a conserva. É claro que não se casará com outra; nem achará quem case com ele, tão aceita anda a superstição popular que o tem por lobisomem ou quando menos amigo íntimo do diabo... ele! o meu bom e compassivo mestre!
Com estas idéias fui logo de manhã à casa do Dr. Belém. Achei-o a almoçar sozinho, como sempre, servido por um escravo da mesma idade.
— Entre, Alberto, disse o doutor apenas me viu à porta. Quer almoçar?
— Aceito.
— João, um prato.
Almoçamos alegremente; o doutor estava como me parecia na maior parte das vezes, conversando de coisas sérias ou frívolas, misturando uma reflexão filosófica com uma pilhéria, uma anedota de rapaz com uma citação de Virgílio.
No fim do almoço tornou a falar do seu casamento.
— Mas então pensa nisso deveras?... perguntei eu.
— Por que não? Não depende senão dela; mas eu estou quase certo de que ela não recusa. Apresenta-me lá?
— Às suas ordens.
No dia seguinte era apresentado o Dr. Belém em casa da viúva Marcelina e recebido com muita afabilidade.
“Casar-se-á deveras com ela?” dizia eu a mim mesmo espantado do que via, porque, além da diferença da idade entre ele e ela, e das maneiras excêntricas dele, havia um pretendente à mão da bela viúva, o Tenente Soares.
Nem a viúva nem o tenente imaginavam as intenções do Dr. Belém; daqui podem já imaginar o pasmo de D. Marcelina quando ao cabo de oito dias, perguntou-lhe o meu mestre, se ela queria casar com ele.
— Nem com o senhor nem com outro, disse a viúva; fiz voto de não casar mais.
— Por quê? perguntou friamente o doutor.
— Porque amava muito a meu marido.
— Não tolhe isso que ame o segundo, observou o candidato sorrindo.
E depois de algum tempo de silêncio:
— Não insisto, disse ele, nem faço aqui uma cena dramática. Eu amo-a deveras, mas é um amor de filósofo, um amor como eu entendo que deviam ser todos. Entretanto deixe-me ter esperança; pedir-lhe-ei mais duas vezes a sua mão. Se da última nada alcançar consinta-me que fique sendo seu amigo.
CAPÍTULO III
O Dr. Belém foi fiel a este programa. Dali a mês pediu outra vez a mão da viúva, e teve a mesma recusa, mas talvez menos peremptória do que a primeira. Deixou passar seis semanas, e repetiu o pedido.
— Aceitou? disse eu apenas o vi vir da casa de D. Marcelina.
— Por que havia de recusar? Eu não lhe disse que me casava dentro de três meses?
— Mas então o senhor é um adivinho, um mágico?...
O doutor deu uma gargalhada, das que ele guardava para quando queria motejar de alguém ou de alguma coisa. Naquela ocasião o motejado era eu. Parece que não fiz boa cara porque o douto imediatamente ficou sério e abraçou-me dizendo:
— Oh! meu amigo, não desconfie! Conhece-me de hoje?
A ternura com que ele me disse estas palavras tornava-o outro homem. Já não tinha os tons sinistros do olhar nem a fala saccadée (vá o termo francês, não me ocorre agora o nosso) que era a sua fala característica. Abracei-o também, e falamos do casamento e da noiva.
O doutor estava alegre; apertava-me muitas vezes as mãos agradecendo-me a idéia que lhe dera; fazia seus planos de futuro. Tinha idéias de vir à corte, logo depois do casamento; aventurou a idéia de seguir para a Europa; mas apenas parecia assentado nisto, já pensava em não sair de Minas, e morrer ali, dizia ele, entre as suas montanhas.
— Já vejo que está perfeitamente noivo, disse eu; tem todos os traços característicos de um homem nas vésperas de casar.
— Parece-lhe?
— E é.
— De fato, gosto da noiva, disse ele com ar sério; é possível que eu morra antes dela; mas o mais provável é que ela morra primeiro. Nesse caso, juro desde já que irá o seu esqueleto fazer companhia ao outro.
A idéia do esqueleto fez-me estremecer. O doutor, ao dizer estas palavras, cravara os olhos no chão, profundamente absorto. Daí em diante a conversa foi menos alegre do que a princípio. Saí de lá desagradavelmente impressionado.
O casamento dentro de pouco tempo foi realidade. Ninguém queria acreditar nos seus olhos. Todos admiraram a coragem (era a palavra que diziam) da viúva Marcelina, que não recuava àquele grande sacrifício.
Sacrifício não era. A moça parecia contente e feliz. Os parabéns que lhe davam eram irônicos, mas ela os recebia com muito gosto e seriedade. O Tenente Soares não lhe deu os parabéns; estava furioso; escreveu-lhe um bilhete em que lhe dizia todas as coisas que em tais circunstâncias se podem dizer.
O casamento foi celebrado pouco depois do prazo que o Dr. Belém marcara na conversa que tivera comigo e que eu já referi. Foi um verdadeiro acontecimento na capital de Minas. Durante oito dias não se falava senão no caso impossível; afinal, passou a novidade, como todas as coisas deste mundo, e ninguém mais tratou dos noivos.
Fui jantar com eles no fim de uma semana; D. Marcelina parecia mais que nunca feliz; o Dr. Belém não o estava menos. Até parecia outro. A mulher começava a influir nele, sendo já uma das primeiras conseqüências a supressão da singular casaca. O doutor consentiu em vestir-se menos excentricamente.
— Veste-me como quiseres, dizia ele à mulher; o que não poderás fazer nunca é mudar-me a alma. Isso nunca.
— Nem quero.
— Nem podes.
Parecia que os dois estavam destinados a gozar uma eterna felicidade. No fim de um mês fui lá, e achei-a triste.
“Oh! disse eu comigo, cedo começam os arrufos.”
O doutor estava como sempre. Líamos então e comentávamos à nossa maneira o Fausto. Nesse dia pareceu-me o Dr. Belém mais perspicaz e engenhoso que nunca. Notei, entretanto, uma singular pretensão: um desejo de se parecer com Mefistófeles.
Aqui confesso que não pude deixar de rir.
— Doutor, disse eu, creio que o senhor abusa da amizade que lhe tenho para zombar comigo.
— Sim?
— Aproveita-se da opinião de excêntrico para me fazer crer que é o diabo...
Ouvindo esta última palavra, o doutor persignou-se todo, e foi a melhor afirmativa que me poderia fazer de que não ambicionava confundir-se com o personagem aludido. Sorriu-se depois benevolamente, tomou uma pitada e disse:
— Ilude-se meu amigo, quando me atribui semelhante idéia, do mesmo modo que se engana quando supõe que Mefistófeles é isso que diz.
— Essa agora!...
— Noutra ocasião lhe direi as minhas razões. Por agora vamos jantar.
— Obrigado. Devo ir jantar com meu cunhado. Mas, se me permite ficarei ainda algum tempo aqui lendo o seu Fausto.
O doutor não pôs objeção; eu era íntimo da casa. Saiu dali para a sala do jantar. Li ainda durante vinte minutos, findos os quais fechei o livro e fui despedir-me do Dr. Belém e sua senhora.
Caminhei por um corredor fora que ia ter à sala do jantar. Ouvia mover os pratos, mas nenhuma palavra soltavam os dois casados.
“O arrufo continua”, pensei eu.
Fui andando... Mas qual não foi a minha surpresa ao chegar à porta? O doutor estava de costas, não me podia ver. A mulher tinha os olhos no prato. Entre ele e ela, sentado numa cadeira vi o esqueleto. Estaquei aterrado e trêmulo. Que queria dizer aquilo? Perdia-me em conjeturas; cheguei a dar um passo para falar ao doutor, mas não me atrevi; voltei pelo mesmo caminho, peguei no chapéu, e deitei a correr pela rua fora.
Em casa de meu cunhado todos notaram os sinais de temor que eu ainda levava no rosto. Perguntaram-me se havia visto alguma alma do outro mundo. Respondi sorrindo que sim; mas nada contei do que acabava de presenciar.
Durante três dias não fui à casa do doutor. Era medo, não do esqueleto, mas do dono da casa, que se me afigurava ser um homem mau ou um homem doido. Todavia, ardia por saber a razão da presença do esqueleto na mesa do jantar. D. Marcelina podia dizer-me tudo; mas como indagaria isso dela, se o doutor estava quase sempre em casa?
No terceiro dia apareceu-me em casa o Doutor Belém.
— Três dias! disse ele, há já três dias que eu não tenho a fortuna de o ver. Onde anda? Está mal conosco?
— Tenho andado doente, respondi eu, sem saber o que dizia.
— E não me mandou dizer nada, ingrato! Já não é meu amigo.
A doçura destas palavras dissipou os meus escrúpulos. Era singular como aquele homem, que por certos hábitos, maneiras e idéias, e até pela expressão física, assustava a muita gente e dava azo às fantasias da superstição popular, era singular, repito, como me falava às vezes com uma meiguice incomparável e um tom patriarcalmente benévolo.
Conversamos um pouco e fui obrigado a acompanhá-lo à casa. A mulher ainda me pareceu triste, mas um pouco menos que da outra vez. Ele tratava-a com muita ternura e consideração, e ela se não respondia alegre, ao menos falava com igual meiguice.
CAPÍTULO IV
No meio da conversa vieram dizer que o jantar estava na mesa.
— Agora há de jantar conosco, disse ele.
— Não posso, balbuciei eu, devo ir...
— Não deve ir a nenhuma parte, atalhou o doutor; parece-me que quer fugir de mim. Marcelina, pede ao Dr. Alberto que jante conosco.
— Deixe-me ao menos dar o braço a sua senhora, disse eu.
— Pois não.
Dei o braço a D. Marcelina que estremeceu. O doutor passou adiante. Eu inclinei a boca ao ouvido da pobre senhora e disse baixinho:
— Que mistério há?
Chegamos à sala de jantar.
Apesar de já ter presenciado a cena do outro dia não pude resistir à impressão que me causou a vista do esqueleto que lá estava na cadeira em que o vira com os braços sobre a mesa.
Era horrível.
— Já lhe apresentei minha primeira mulher, disse o doutor para mim; são conhecidos antigos.
Sentamo-nos à mesa; o esqueleto ficou entre ele e D. Marcelina; eu fiquei ao lado desta. Até então não pude dizer palavra; era porém natural que exprimisse o meu espanto.
— Doutor, disse eu, respeito os seus hábitos; mas não me dará a explicação deste?
— Este qual? disse ele.
Com um gesto indiquei-lhe o esqueleto.
— Ah!... respondeu o doutor; um hábito natural; janto com minhas duas mulheres.
— Confesse ao menos que é um uso original.
— Queria que eu copiasse os outros?
— Não, mas a piedade com os mortos...
Atrevi-me a falar assim porque, além de me parecer aquilo uma profanação, a melancolia da mulher parecia pedir que alguém falasse duramente ao marido e procurasse trazê-lo a melhor caminho.
O doutor deu uma das suas singulares gargalhadas, e estendendo-me o prato de sopa, replicou:
— O senhor fala de uma piedade de convenção; eu sou pio à minha maneira. Não é respeitar uma criatura que amamos em vida, o trazê-la assim conosco, depois de morta?
Não respondi coisa nenhuma a estas palavras do doutor. Comi silenciosamente a sopa, e o mesmo fez a mulher, enquanto ele continuou a desenvolver as suas idéias a respeito dos mortos.
— O medo dos mortos, disse ele, não é só uma fraqueza, é um insulto, uma perversidade do coração. Pela minha parte dou-me melhor com os defuntos do que com os vivos.
E depois de um silêncio:
— Confesse, confesse que está com medo.
Fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça.
— É medo, é, como esta senhora que está ali transida de susto, porque ambos são dois maricas. Que há entretanto neste esqueleto, que possa meter medo? Não lhes digo que seja bonito; não é bonito segundo a vida, mas é formosíssimo segundo a morte. Lembrem-se que isto somos nós também; nós temos de mais um pouco de carne.
— Só? perguntei eu intencionalmente.
O doutor sorriu-se e respondeu:
— Só.
Parece que fiz um gesto de aborrecimento, porque ele continuou logo:
— Não tome ao pé da letra o que lhe disse. Eu também creio na alma; não creio só, demonstro-a, o que não é para todos. Mas a alma foi-se embora; não podemos retê-la; guardemos isto ao menos, que é uma parte da pessoa amada.
Ao terminar estas palavras, o doutor beijou respeitosamente a mão do esqueleto. Estremeci e olhei para D. Marcelina. Esta fechara os olhos. Eu estava ansioso por terminar aquela cena que realmente me repugnava presenciar. O doutor não parecia reparar em nada. Continuou a falar no mesmo assunto, e por mais esforços que eu fizesse para o desviar dele era impossível.
Estávamos à sobremesa quando o doutor, interrompendo um silêncio que durava já havia dez minutos perguntou:
— E segundo me parece, ainda lhe não contei a história deste esqueleto, quero dizer a história de minha mulher?
— Não me lembra, murmurei.
— E a ti? disse ele voltando-se para a mulher.
— Já.
— Foi um crime, continuou ele.
— Um crime?
— Cometido por mim.
— Pelo senhor?
— É verdade.
O doutor concluiu um pedaço de queijo, bebeu o resto do vinho que tinha no copo, e repetiu:
— É verdade, um crime de que fui autor. Minha mulher era muito amada de seu marido; não admira, eu sou todo coração. Um dia porém, suspeitei que me houvesse traído; vieram dizer-me que um moço da vizinhança era seu amante. Algumas aparências me enganaram. Um dia declarei-lhe que sabia tudo, e que ia puni-la do que me havia feito. Luísa caiu-me aos pés banhada em lágrimas protestando pela sua inocência. Eu estava cego; matei-a.
Imagina-se, não se descreve a impressão de horror que estas palavras me causaram. Os cabelos ficaram-me em pé. Olhei para aquele homem, para o esqueleto, para a senhora, e passava a mão pela testa, para ver se efetivamente estava acordado, ou se aquilo era apenas um sonho.
O doutor tinha os olhos fitos no esqueleto e uma lágrima lhe caía lentamente pela face. Estivemos todos calados durante cerca de dez minutos.
O doutor rompeu o silêncio.
— Tempos depois, quando o crime estava de há muito cometido, sem que a justiça o soubesse, descobri que Luísa era inocente. A dor que então sofri foi indescritível; eu tinha sido o algoz de um anjo.
Estas palavras foram ditas com tal amargura que me comoveram profundamente. Era claro que ainda então, após longos anos do terrível acontecimento, o doutor sentia o remorso do que praticara e a mágoa de ter perdido a esposa.
A própria Marcelina parecia comovida. Mas a comoção dela era também medo; segundo vim a saber depois, ela receava que no marido não estivessem íntegras as faculdades mentais.
Era um engano.
O doutor era, sim, um homem singular e excêntrico; doido lhe chamavam os que, por se pretenderem mais espertos que o vulgo, repeliam os contos da superstição.
Estivemos calados algum tempo e dessa vez foi ainda ele que interrompeu o silêncio.
— Não lhes direi como obtive o esqueleto de minha mulher. Aqui o tenho e o conservarei até à minha morte. Agora naturalmente deseja saber por que motivo o trago para a mesa depois que me casei.
Não respondi com os lábios, mas os meus olhos disseram-lhe que efetivamente desejava saber a explicação daquele mistério.
— É simples, continuou ele; é para que minha segunda mulher esteja sempre ao pé da minha vítima, a fim de que se não esqueça nunca dos seus deveres, porque, então como sempre, é mui provável que eu não procure apurar a verdade; farei justiça por minhas mãos.
Esta última revelação do doutor pôs termo à minha paciência. Não sei o que lhe disse, mas lembra-me que ele ouviu-me com o sorriso benévolo que tinha às vezes, e respondeu-me com esta simples palavra:
— Criança!
Saí pouco depois do jantar, resolvido a lá não voltar nunca.
CAPÍTULO V
A promessa não foi cumprida.
Mais de uma vez o Doutor Belém mandou à casa chamar-me; não fui. Veio duas ou três vezes instar comigo que lá fosse jantar com ele.
— Ou, pelo menos, conversar, concluiu.
Pretextei alguma coisa e não fui.
Um dia porém, recebi um bilhete da mulher. Dizia-me que era eu a única pessoa estranha que lá ia; pedia-me que não a abandonasse.
Fui.
Eram então passados quinze dias depois do célebre jantar em que o doutor me referiu a história do esqueleto. A situação entre os dois era a mesma; aparente afabilidade da parte dela, mas na realidade medo. O doutor mostrava-se afável e terno, como sempre o vira com ela.
Justamente nesse dia, anunciou-me ele que pretendia ir a uma jornada dali a algumas léguas.
— Mas vou só, disse ele, e desejo que o senhor me faça companhia a minha mulher vindo aqui algumas vezes.
Recusei.
— Por quê?
— Doutor, por que razão, sem urgente necessidade, daremos pasto às más línguas? Que se dirá...
— Tem razão, atalhou ele; ao menos, faça-me uma coisa.
— O quê?
— Faça com que em casa de sua irmã possa Marcelina ir passar as poucas semanas de minha ausência.
— Isso com muito gosto.
Minha irmã concordou em receber a mulher do Dr. Belém, que daí a pouco saía da capital para o interior. Sua despedida foi terna e amigável para com ambos nós, a mulher e eu; fomos os dois, e mais minha irmã e meu cunhado acompanhá-lo até certa distância, e voltamos para casa.
Pude então conversar com D. Marcelina, que me comunicou os seus receios a respeito da razão do marido. Dissuadi-a disso; já disse qual era a minha opinião a respeito do Dr. Belém.
Ela referiu-me então que a narração da morte da mulher já ele lha havia feito, prometendo-lhe igual sorte no caso de faltar aos seus deveres.
— Nem as aparências te salvarão, acrescentou ele.
Disse-me mais que era seu costume beijar repetidas vezes o esqueleto da primeira mulher e dirigir-lhe muitas palavras de ternura e amor. Uma noite, estando a sonhar com ela, levantou-se da cama e foi abraçar o esqueleto pedindo-lhe perdão.
Em nossa casa todos eram de opinião que D. Marcelina não voltasse mais para a companhia do Dr. Belém. Eu era de opinião oposta.
— Ele é bom, dizia eu, apesar de tudo; tem extravagâncias, mas é um bom coração.
No fim de um mês recebemos uma carta do doutor, em que dizia à mulher fosse ter ao lugar onde ele se achava, e que eu fizesse o favor de a acompanhar.
Recusei ir só com ela.
Minha irmã e meu cunhado ofereceram-se porém para acompanhá-la.
Fomos todos.
Havia entretanto uma recomendação na carta do doutor, recomendação essencial; ordenava ele à mulher que levasse consigo o esqueleto.
— Que esquisitice nova é essa? disse meu cunhado.
— Há de ver, suspirou melancolicamente D. Marcelina, que o único motivo desta minha viagem, são as saudades que ele tem do esqueleto.
Eu nada disse, mas pensei que assim fosse.
Saímos todos em demanda do lugar onde nos esperava o doutor.
Íamos já perto, quando ele nos apareceu e veio alegremente cumprimentar-nos. Notei que não tinha a ternura de costume com a mulher, antes me pareceu frio. Mas isso foi obra de pouco tempo; daí a uma hora voltara a ser o que sempre fora.
Passamos dois dias na pequena vila em que o doutor estava, dizia ele, para examinar umas plantas, porque também era botânico. Ao fim de dois dias dispúnhamos a voltar para a capital; ele porém pediu que nos demorássemos ainda vinte e quatro horas e voltaríamos todos juntos.
Acedemos.
No dia seguinte de manhã convidou a mulher a ir ver umas lindas parasitas no mato que ficava perto. A mulher estremeceu, mas não ousou recusar.
— Vem também? disse ele.
— Vou, respondi.
A mulher cobrou alma nova e deitou-me um olhar de agradecimento. O doutor sorriu à socapa. Não compreendi logo o motivo do riso; mas daí a pouco tempo tinha a explicação.
Fomos ver as parasitas, ele adiante com a mulher, eu atrás de ambos, e todos três silenciosos.
Não tardou que um riacho aparecesse aos nossos olhos; mas eu mal pude ver o riacho; o que eu vi, o que me fez recuar um passo, foi um esqueleto.
Dei um grito.
— Um esqueleto! exclamou D. Marcelina.
— Descansem, disse o doutor, é o de minha primeira mulher.
— Mas...
— Trouxe-o esta madrugada para aqui.
Nenhum de nós compreendia nada.
O doutor sentou-se numa pedra.
— Alberto, disse ele, e tu, Marcelina. Outro crime devia ser cometido nesta ocasião; mas tanto te amo, Alberto, tanto te amei, Marcelina, que eu prefiro deixar de cumprir a minha promessa...
Ia interrompê-lo; mas ele não me deu ocasião.
— Vocês amam-se, disse ele.
Marcelina deu um grito; eu ia protestar.
— Amam-se que eu sei, continuou friamente o doutor; não importa! É natural. Quem amaria um velho estúrdio como eu? Paciência. Amem-se; eu só fui amado uma vez; foi por esta.
Dizendo isto abraçou-se ao esqueleto.
— Doutor, pense no que está dizendo...
— Já pensei...
— Mas esta senhora é inocente. Não vê aquelas lágrimas?
— Conheço essas lágrimas; lágrimas não são argumentos. Amam-se, que eu sei; desejo que sejam felizes, porque eu fui e sou teu amigo, Alberto. Não merecia certamente isso...
— Oh! meu amigo, interrompi eu, veja bem o que está dizendo; já uma vez foi levado a cometer um crime por suspeitas que depois soube serem infundadas. Ainda hoje padece o remorso do que então fez. Reflita, veja bem se eu posso tolerar semelhante calúnia.
Ele encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares.
— Isto é indigno! clamei.
— Talvez, murmurou ele.
E depois de um silêncio:
— Em todo o caso, minha resolução está assentada, disse o doutor. Quero fazê-los felizes, e só tenho um meio: é deixá-los. Vou com a mulher que sempre me amou. Adeus!
O doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei; tudo foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara desmaiada no chão.
Vim socorrê-la; chamei gente. Daí a uma hora, a pobre moça, viúva sem o ser, lavava-se em lágrimas de aflição.
CAPÍTULO VI
Alberto acabara a história.
— Mas é um doido esse teu Dr. Belém! exclamou um dos convivas rompendo o silêncio de terror em que ficara o auditório.
— Ele doido? disse Alberto. Um doido seria efetivamente se porventura esse homem tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.
É inútil dizer o efeito desta declaração.
O MILAGRE DE SÃO BENEDITO
Humberto de Campos
O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite encostada à parede, agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a pretinha recolhida, então, por misericórdia, como um cão sem préstimo que se apanhasse piedosamente na rua.
Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os pés descalços no pedrouço do calçamento, e recebendo na carapinha descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a negrinha, medrosa:
— Onde está minha mãe?
As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz, que a chamava:
— Carlotinha?
A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma cor, a mesma aureola e o mesmo burel, a imagem do senhor São Benedito, que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de papelão!
— Meu São Benedito!... — gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do manto escuro.
E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal:
— Carlotinha, junta estas pedras.
A pretinha arrepanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus, a mandado do santo, sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que sua pobre mãe dormia para sempre.
De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:
— Carlota?
E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.
Diante da pretinha, que orava, de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!
O ESPELHO
Machado de Assis
Esboço de uma nova teoria da alma humana
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a
demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:
– Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dous ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião – uma conjetura, ao menos.
– Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
– Duas?
– Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
– Não?
– Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, – na verdade, gentilíssima, – que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
– Perdão; essa senhora quem é?
– Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas.
Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:
– Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...
– Espelho grande?
– Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas cousas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?
– Não.
– O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?
– Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
– Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! Adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah! Pérfidos! Mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.
– Matá-lo?
– Antes assim fosse.
– Coisa pior?
– Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo, ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? Era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não
desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! – For ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: – Never, for ever! – For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?
– Sim, parece que tinha um pouco de medo.
– Oh! Fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra cousa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: – o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único – porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien (re) venir? Nada, cousa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma cousa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Cousa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.
– Mas não comia?
– Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. Às vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de
cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
– Na verdade, era de enlouquecer.
– Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dous, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dous. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. – Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...
– Diga.
– Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.
– Mas, diga, diga.
– Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... Não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.
A CORNUCÓPIA
Humberto de Campos
O Gabrielzinho havia regressado da rua intrigadíssimo com aquela novidade. Por que motivo, realmente, a prosperidade havia de ser simbolizada sempre por um chifre repleto de moedas, que uma mulher despejava de cima, com o sorriso nos lábios? Que significaria aquele anúncio berrante da casa de loterias, no qual se via a Fortuna a derramar o ouro da sua cornucópia sobre a cabeça irrequieta dos homens? Ingênuo, puro, infantil, o seu primeiro cuidado, ao chegar em casa, foi perguntar ao velho Gabriel:
— Papai, por que é que a Fortuna é representada, sempre, com um chifre na mão?
O honrado comerciante coçou a calva, atrapalhado, mas D. Lavínia o tirou da dificuldade, insistindo:
— Responde, Gabriel! Você não tem lá dentro um livrinho que trata dessas coisas? Essa figura, como ele diz, representa, mesmo, a Fortuna. Se você duvida, veja o livro.
— É verdade! — exclamou o velho. — Aquele livro deve dar.
E, indo buscar um volume, pequeno, miúdo, edição popular, do "Dicionário da Fábula", de Chompré, tradução portuguesa, leu, alto, à pag. 165:
— "FORTUNA —, deusa que preside ao bem e ao mal."
— Não é aqui, — acrescentou.
Folheou para trás, e tornou a ler, à pag. 4:
— "ABUNDÂNCIA — divindade alegórica que se representa na figura de uma donzela no meio de todo o gênero de bens, grossa de carnes, com vivas cores, e tendo na mão um corno cheio de flores e frutos. Dizem ser filha de Acheres ou da cabra Amaltea."
Folheou para a frente, e continuou, à página 31:
— "AMALTEA — É o nome da cabra que deu leite a Júpiter. Em reconhecimento deste bom serviço, ele a colocou, com dois cabritos, seus filhos, no céu, e deu um dos seus cornos às ninfas que cuidaram dele desde a sua infância, com a virtude de produzir quanto elas apetecessem. Chamava-se-lhe o "Corno da Abundância".
Terminada a leitura, D. Lavínia observou, teimosa:
— Então, é ou não é?
— O quê? — indagaram, ao mesmo tempo, o pai e o filho.
— O chifre, nas mãos de uma mulher, é, ou não é, o símbolo da Fartura?
Os dois calaram-se, e D. Lavínia continuou, ingênua, na sua honestidade:
— Eu, que digo, é porque sei.
E, simples, boa, cândida na sua virtude, recomeçando o seu "crochet":
— Eu estou cansada de dizer a teu pai...
O ESCRIVÃO COIMBRA
Machado de Assis
Aparentemente há poucos espetáculos tão melancólicos como um ancião comprando um bilhete de loteria. Bem considerado, é alegre; essa persistência em crer, quando tudo se ajusta ao descrer, mostra que a pessoa é ainda forte e moça. Que os dias passem e com eles os bilhetes brancos, pouco importa; o ancião estende os dedos para escolher o número que há de dar a sorte grande amanhã — ou depois — um dia enfim, porque todas as coisas podem falhar neste mundo, menos a sorte grande a quem compra um bilhete com fé.
Não era a fé que faltava ao escrivão Coimbra. Também não era a esperança. Uma coisa não vai sem outra. Não confundas a fé na Fortuna com a fé religiosa. Também tivera esta em anos verdes e maduros, chegando a fundar uma irmandade, a irmandade de S. Bernardo, que era o santo de seu nome; mas aos cinqüenta, por efeito do tempo ou de leituras, achou-se incrédulo. Não deixou logo a irmandade; a esposa pôde contê-lo no exercício do cargo de mesário e levava-o às festas do santo; ela, porém, morreu, e o viúvo rompeu de vez com o santo e o culto. Resignou o cargo da mesa e fez-se irmão remido para não tornar lá. Não buscou arrastar outros nem obstruir o caminho da oração; ele é que já não rezava por si nem por ninguém. Com amigos, se eram do mesmo estado de alma, confessava o mal que sentia da religião. Com familiares, gostava de dizer pilhérias sobre devotas e padres.
Aos sessenta anos já não cria em nada, fosse do céu ou da terra, exceto a loteria. A loteria, sim, tinha toda a sua fé e esperança. Poucos bilhetes comprava a princípio, mas a idade, e depois a solidão, vieram apurando aquele costume e o levaram a não deixar passar loteria sem bilhete.
Nos primeiros tempos, não vindo a sorte grande, prometia não comprar mais bilhetes, e durante algumas loterias cumpria a promessa. Mas lá aparecia alguém que o convidava a ficar com um bonito número, comprava o número e esperava. Assim veio andando pelo tempo fora até chegar aquele em que loterias rimaram com dias, e passou a comprar seis bilhetes por semana; repousava aos domingos. O escrevente juramentado, um Amaral que ainda vive, foi o demônio tentador nos seus desfalecimentos. Tão depressa descobriu a devoção do escrivão, começou a animá-lo nela, contando-lhe lances de pessoas que tinham enriquecido de um momento para outro.
— Fulano foi assim, Sicrano assim, dizia-lhe Amaral expondo a aventura de cada um.
Coimbra ouvia e cria. Já agora cedia às mil maneiras de convidar a sorte, a que a superstição pode emprestar certeza, número de uns autos, soma de umas custas, um arranjo casual de algarismos, tudo era combinação para encomendar bilhetes, comprá-los e esperar. Na primeira loteria de cada ano comprava o número do ano; empregou este método desde 1884. Na última loteria de 1892 inventou outro, trocou os algarismos da direita para a esquerda e comprou o número 2981. Já então não cansava por duas razões fundamentais e uma acidental. Sabeis das primeiras, a necessidade e o costume, a última é que a Fortuna negaceava com gentileza. Nem todos os bilhetes saíam brancos. Às vezes (parecia de propósito) Coimbra dizia de um bilhete que era o último e não compraria outro se lhe saísse branco; corria a roda, tirava cinqüenta mil-réis, ou cem, ou vinte, ou ainda o mesmo dinheiro. Quer dizer que também podia tirar a sorte grande; em todo caso, aquele dinheiro dava para comprar de graça alguns bilhetes. “Comprar de graça” era a sua própria expressão. Uma vez a sorte grande saiu dois números adiante do dele, 7377; o dele era 7375. O escrivão criou alma nova.
Assim viveu os últimos anos do império e os primeiros da república, sem já crer em nenhum dos dois regimes. Não cria em nada. A própria justiça em que era oficial, não tinha a sua fé; parecia-lhe uma instituição feita para conciliar ou perpetuar os desacordos humanos, mas por diversos e contrários caminhos, ora à direita, ora à esquerda. Não conhecendo as Ordenações do Reino, salvo de nome, nem as leis imperiais e republicanas, acreditava piamente que tanto valiam na boca de autores como de réus, isto é, que formavam um repositório de disposições avessas e cabidas a todas as situações e pretensões. Não lhe atribuas nenhum ceticismo elegante; não era dessa casta de espíritos que temperam a descrença nos homens e nas coisas com um sorriso fino e amigo. Não, a descrença era nele como uma capa esfarrapada.
Uma só vez saiu do Rio de Janeiro; foi para ir ao Espírito Santo à cata de uns diamantes que não achou. Houve quem dissesse que essa aventura é que lhe pegou o gosto e a fé na loteria; também não faltou quem sugerisse o contrário, que a fé na loteria é que lhe dera a vista antecipada dos diamantes. Uma e outra explicação é possível. Também é possível terceira explicação, alguma causa comum a diamantes e prêmios. A alma humana é tão sutil e complicada que traz confusão à vista nas suas operações exteriores. Fosse como fosse, só daquela vez saiu do Rio de Janeiro. O mais do tempo viveu nesta cidade, onde envelheceu e morreu. A irmandade de S. Bernardo tomou a si dar-lhe cova e túmulo, não que lhe faltassem a ele meios disso, como se vai ver, mas por uma espécie de obrigação moral com o seu fundador.
Morreu no começo da presidência Campos Sales, em 1899, fins de abril. Vinha de assistir ao casamento do escrevente Amaral, na qualidade de testemunha, quando foi acometido de uma congestão, e antes da meia-noite era defunto. Os conselhos que se lhe acharam no testamento podem todos resumir-se nesta palavra: persistir. Amaral requereu traslado daquele documento para uso e guia do filho, que vai em cinco anos, e entrou para o colégio. Fê-lo com sinceridade, e não sem tristeza, porque a morte de Coimbra sempre lhe pareceu efeito de seu caiporismo; não dera tempo a nenhuma lembrança afetuosa do velho amigo, testemunha do casamento e provável compadre.
Antes do golpe que o levou, Coimbra não padecia nada, não tinha a menor lesão, apenas algum cansaço. Todos os seus órgãos funcionavam bem, e o mesmo cérebro, se nunca foi grande coisa, não era agora menos que dantes. Talvez a memória acusasse alguma debilidade, mas ele consolava-se do mal dizendo que “com a memória lhe saíram muitas coisas ruins da cabeça”. No foro era benquisto e no cartório respeitado. Em 1897, pelo S. João, o escrevente Amaral insinuou-lhe a conveniência de descansar e propôs-se a ficar à testa do cartório para seguir “o exemplo fortificante do amigo”. Coimbra recusou, agradecendo. Entretanto, não deixava de temer que viesse a fraquear e cair de todo, sem mais corpo nem alma que dar ao ofício. Já não saía do cartório, às tardes, sem um olhar de saudades prévias.
Chegou o Natal de 1898. Desde a primeira semana de dezembro foram postos à venda os bilhetes da grande loteria de quinhentos contos, chamada por alguns cambistas, nos anúncios, loteria-monstro. Coimbra comprou um. Parece que dessa vez não cedeu a nenhuma combinação de algarismos; escolheu o bilhete dentre os que lhe apresentaram no balcão. Em casa, guardou-o na gaveta da mesa e esperou.
— Desta vez, sim, disse ele no dia seguinte ao escrevente Amaral, desta vez cesso de tentar fortuna; se não tirar nada, deixo de jogar na loteria.
Amaral ia aprovar a resolução, mas uma idéia contrária suspendeu a palavra antes que ela lhe caísse da boca, e ele trocou a afirmação por uma consulta. Por que deixar para sempre? Loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.
— Já não estou em idade de esperar, retrucou o escrivão.
— Esperança não tem idade, sentenciou Amaral, recordando uns versos que fizera outrora, e concluiu com este velho adágio: Quem espera sempre alcança.
— Pois eu não esperarei e não alcançarei, teimou o escrivão; este bilhete é o último.
Tendo afirmado a mesma coisa tantas vezes, era provável que ainda agora desmentisse a afirmação, e, malogrado no dia de Natal, voltaria à sorte no dia de Reis. Foi o que Amaral pensou e não insistiu em convencê-lo de um vício que estava no sangue. A verdade, porém, é que Coimbra era sincero. Tinha aquela tentação por última. Não pensou no caso de ser favorecido, como de outras vezes, com alguns cinqüenta ou cem mil-réis, quantia mínima para os efeitos da ambição, mas bastante para convidá-lo a reincidir. Pôs a alma nos dois extremos: nada ou quinhentos contos. Se fosse nada, era o fim. Faria como fez com a irmandade e a religião; deitaria o hábito às urtigas, remia-se de freguês e iria ouvir a missa do Diabo.
Os dias começaram a passar, como eles costumam, com as suas vinte e quatro horas iguais umas às outras, na mesma ordem, com a mesma sucessão de luz e trevas, trabalho e repouso. A alma do escrivão aguardava o dia 24, véspera do Natal, quando devia correr a roda, e continuou os traslados, juntadas e conclusões dos seus autos. Convém dizer, em louvor deste homem, que nenhuma preocupação estranha lhe tirara o gosto à escrivania, por mais que preferisse a riqueza ao trabalho.
Só quando o dia 20 alvoreceu e pôs a menor distância à data fatídica é que a imagem dos quinhentos contos veio interpor-se de vez aos papéis do foro. Mas não foi só a maior proximidade que trouxe este efeito, foram as conversas na rua e no mesmo cartório acerca de sortes grandes, e, mais que conversas, a própria figura de um homem beneficiado com uma delas, cinco anos antes. Coimbra recebera um tal Guimarães, testamenteiro de um importador de sapatos, que ali foi assinar um termo. Enquanto se lavrava o termo, alguém que ia com ele perguntou-lhe se estava “habilitado para a loteria do Natal”.
— Não, disse Guimarães.
— Também nem sempre há de ser feliz.
Coimbra não teve tempo de perguntar nada; o amigo do testamenteiro deu-lhe notícia de que este, em 1893, tirara duzentos contos. Coimbra fitou o testamenteiro cheio de espanto. Era ele, era o próprio, era alguém que, mediante uma pequena quantia e um bilhete numerado, entrara na posse de duzentos contos de réis. Coimbra olhou bem para o homem. Era um homem, um feliz.
— Duzentos contos? disse ele para ouvir a confirmação do próprio.
— Duzentos contos, repetiu Guimarães. Não foi por meu esforço nem desejo, explicou; não costumava comprar, e daquela vez quase quebro a cabeça ao pequeno que me queria vender o bilhete; era um italiano. Guardate, signore, implorava ele metendo-me o bilhete à cara. Cansado de ralhar, entrei num corredor e comprei o bilhete. Três dias depois tinha o dinheiro na mão. Duzentos contos.
O escrivão não errou o termo porque nele já os dedos é que eram escrivães; realmente, não pensou em nada mais que decorar esse homem, reproduzi-lo na memória, escrutá-lo, bradar-lhe que também tinha bilhete para os quinhentos contos do dia 24 e exigir-lhe o segredo de os tirar. Guimarães assinou o termo e saiu; Coimbra teve ímpeto de ir atrás dele, apalpá-lo, ver se era mesmo gente, se era carne, se era sangue... Então era verdade? Havia prêmios? Tiravam-se prêmios grandes? E a paz com que aquele sujeito contava o lance da compra! Também ele seria assim, se lhe saíssem os duzentos contos, quanto mais os quinhentos!
Essas frases cortadas que aí ficam dizem vagamente a confusão das idéias do escrivão. Até agora trazia em si a fé, mas já reduzida a costume só, um costume longo e forte, sem assombros nem sobressaltos. Agora via um homem que passara de nada a duzentos contos com um simples gesto de fastio. Que ele nem sequer tinha o gosto e a comichão da loteria; ao contrário, quis quebrar a cabeça da Fortuna; ela, porém, com olhos de namorada, fê-lo trocar a impaciência em condescendência, pagar-lhe cinco ou dez mil-réis, e três dias depois... Coimbra fez todo o mais trabalho do dia automaticamente.
De tarde, caminhando para casa, foi-se-lhe metendo na alma a persuasão dos quinhentos contos. Era mais que os duzentos do outro, mas também ele merecia mais, teimando como vinha de anos estirados, desertos e brancos, mal borrifados de algumas centenas, raras, de mil-réis. Tinha maior direito que o outro, talvez maior que ninguém. Jantou, foi à casa pegada, onde nada contou pelo receio de não tirar coisa nenhuma e rirem-se dele. Dormiu e sonhou com o bilhete e o prêmio; foi o próprio cambista que lhe deu a nova da felicidade. Não se lembrava bem, de manhã, se o cambista o procurou ou se ele procurou o cambista; lembrava-se bem das notas, eram parece que verdes, grandes e frescas. Ainda apalpou as mãos ao acordar; pura ilusão!
Ilusão embora, deixara-lhe nas palmas a maciez do sonho, o fresco, o verde, o avultado dos contos. Ao passar pelo Banco da República pensou que poderia levar ali o dinheiro, antes de o empregar em casas, títulos e outros bens. Esse dia 21 foi pior, em ânsia, que o dia 20. Coimbra estava tão nervoso que achou o trabalho demasiado, quando de ordinário ficava alegre com a concorrência de papéis. Melhorou um pouco, à tarde; mas, ao sair, entrou a ouvir meninos que vendiam bilhetes de loteria, e esta linguagem, gritada da grande banca pública, novamente lhe fez agitar a alma.
Ao passar pela igreja onde era venerada a imagem de S. Bernardo, cuja irmandade ele fundou, Coimbra deitou olhos saudosos ao passado. Tempos em que ele cria! Outrora faria uma promessa ao santo; agora...
— Infelizmente, não! suspirou consigo.
Sacudiu a cabeça e guiou para casa. Não jantou sem que a imagem do santo viesse espreitá-lo duas ou três vezes, com o olhar seráfico e o gesto de imortal bem-aventurança. Ao pobre escrivão vinha agora mais esta mágoa, este outro deserto árido e maior. Não cria; faltava-lhe a doce fé religiosa, dizia consigo. Saiu a passeio, à noite e, para encurtar caminho, enfiou por um beco. Deixando o beco, pareceu-lhe que alguém chamava por ele, voltou a cabeça e viu a pessoa do santo, agora mais celeste; já não era a imagem de madeira, era a pessoa, como digo, a pessoa viva do grande doutor cristão. A ilusão foi tão completa que lhe pareceu ver o santo estender-lhe as mãos, e nelas as notas do sonho, aquelas notas largas e frescas.
Imagina essa noite de 21 e a manhã de 22. Não chegou ao cartório sem passar pela igreja da irmandade e entrar outra vez nela. A razão que deu a si mesmo foi saber se a gente local trataria a sua instituição com o zelo do princípio. Achou lá o sacristão, um velho zeloso que veio para ele com a alma nos olhos, exclamando:
— Vossa senhoria por aqui!
— Eu mesmo, é verdade. Passei, lembrou-me saber como é aqui tratado o meu hóspede.
— Que hóspede? perguntou o sacristão sem entender a linguagem figurada.
— O meu velho S. Bernardo.
— Ah! S. Bernardo! Como há de ser tratado um santo milagroso como ele é? Vossa Senhoria veio à festa deste ano?
— Não pude.
— Pois esteve muito bonita. Houve muitas esmolas e grande concorrência. A mesa foi reeleita, sabe?
Coimbra não sabia, mas disse que sim, e sinceramente achou que devia sabê-lo; chamou-se descuidado, relaxado, e voltou para a imagem olhos que supôs contritos e pode ser que o fossem. Ao sacristão pareceram devotos. Também este elevou os seus à imagem e fez a reverência habitual, inclinando meio corpo e dobrando a perna. Coimbra não foi tão extenso, mas imitou o gesto.
— A escola vai bem, sabe? disse o sacristão.
— A escola? Ah! sim. Ainda existe?
— Se existe? Tem setenta e nove alunos.
Tratava-se de uma escola que ainda em tempo da esposa do escrivão, a irmandade fundara com o nome do santo, a escola de S. Bernardo. O desapego religioso do escrivão chegara ao ponto de não acompanhar a prosperidade do estabelecimento, quase esquecê-lo de todo. Ouvindo a notícia, ficou pasmado. No tempo dele não houve mais de uma dúzia de alunos, agora eram setenta e nove. Por algumas perguntas sobre a administração, soube que a irmandade pagava a um diretor e três professores. No fim do ano ia haver a distribuição dos prêmios, grande festa a que esperavam trazer o arcebispo.
Quando saiu da igreja, trazia Coimbra não sei que ressurreições vagas e cinzentas. Propriamente não tinham cor, mas esta expressão serve a indicar uma feição nem viva, como dantes, nem totalmente morta. O coração não é só berço e túmulo, é também hospital. Guarda algum doente, que um dia, sem saber como, convalesce do mal, sacode a paralisia e dá um salto em pé. No coração de Coimbra o enfermo não deu salto, entrou a mover os dedos e os lábios, com tais sinais de vida que pareciam chamar o escrivão e dizer-lhe coisas de outro tempo.
— O último! Quinhentos contos! bradavam os meninos, quando ele ia a entrar no cartório. Quinhentos contos! O último!
Estas vozes entraram com ele e repetiram-se várias vezes durante o dia, ou da boca de outros vendedores ou dos ouvidos dele mesmo. Quando voltou para casa, passou novamente pela igreja mas não entrou; um diabo ou o que quer que era desviou o gesto que ele começou a fazer.
Não foi menos inquieto o dia 23. Coimbra lembrou-se de passar pela escola de S. Bernardo; já não era na casa antiga; estava em outra, uma boa casa assobradada, de sete janelas, portão de ferro ao lado e jardim. Como é que ele fora um dos primeiros autores de obra tão conspícua? Passou duas vezes por ela, chegou a querer entrar, mas não saberia que dissesse ao diretor e temeu o riso dos meninos. Foi para o cartório e, de caminho, mil recordações lhe restituíam o tempo em que aprendia a ler. Que ele também andou na escola, e evitou muita palmatoada com promessas de orações a santos. Um dia, em casa, ameaçado de apanhar por haver tirado ao pai um doce, aliás indigesto, prometeu uma vela de cera a Nossa Senhora. A mãe pediu por ele, e alcançou perdoá-lo; ele pediu à mãe o preço da vela e cumpriu a promessa. Reminiscências velhas e amigas que vinham temperar o árido preparo dos papéis. Ao mesmo S. Bernardo fizera mais de uma promessa, quando era irmão efetivo e mesário, e cumpriu-as todas. Onde iam tais tempos?
Enfim, surdiu a manhã de 24 de dezembro. A roda tinha de correr ao meio-dia. Coimbra acordou mais cedo que de costume, mal começava a clarear. Conquanto trouxesse de cor o número do bilhete, lembrou-se de o escrever na folha da carteira para havê-lo bem fixo, e no caso de tirar a sorte grande... Esta idéia fê-lo estremecer. Uma derradeira esperança (que o homem de fé nunca perde) lhe perguntou sem palavras: que é que lhe impedia tirar os quinhentos contos? Quinhentos contos! Tais coisas viu neste algarismo que fechou os olhos deslumbrados. O ar, como um eco, repetiu: Quinhentos contos! E as mãos apalparam a mesma quantia.
De caminho, foi à igreja, que achou aberta e deserta. Não, não estava deserta. Uma preta velha, ajoelhada diante do altar de S. Bernardo, com um rosário na mão, parecia pedir-lhe alguma causa, se não é que lhe pagava em orações o beneficio já recebido. Coimbra viu a postura e o gesto. Advertiu que ele era o autor daquela consolação da devota e olhou também para a imagem. Era a mesma do seu tempo. A preta acabou beijando a cruz do rosário, persignou-se, levantou-se e saiu.
Ia a sair também, quando duas figuras lhe passaram pelo cérebro: a sorte grande, naturalmente, e a escola. Atrás delas veio uma sugestão, depois um cálculo. Este cálculo, por mais que digam do escrivão que ele amava o dinheiro (e amava), foi desinteressado; era dar de si muita coisa, contribuir para elevar mais e mais a escola, que era também obra sua. Prometeu dar cem contos de réis para o ensino, para a escola, Escola de S. Bernardo, se tirasse a sorte grande. Não fez a promessa nominalmente, mas por estas palavras sem sobrescrito, e todavia sinceras: “Prometo dar cem contos de réis à Escola de S. Bernardo, se tirar a sorte grande”. Já na rua, considerou bem que não perdia nada se não tirasse a sorte, e ganharia quatrocentos contos, se a tirasse. Picou o passo e ainda uma vez penetrou no cartório, onde buscou enterrar-se no trabalho.
Não se contam as agonias daquele dia 24 de dezembro de 1898. Imagine-as quem já esperou quinhentos contos de réis. Nem por isso deixou de receber e contar as quantias que lhe eram devidas por atos judiciais. Parece que entre onze horas e meio-dia, depois de uma autuação e antes de uma conclusão, repetiu a promessa de cem contos à Escola: “Prometo dar, etc.” Bateu meio-dia e o coração do Coimbra não bateu menos, com a diferença que as doze pancadas do relógio de S. Francisco de Paula foram o que elas são desde que se inventaram relógios, uma ação certa, pausada e acabada, e as do coração daquele homem foram precipitadas, convulsas, desiguais, sem acabar nunca. Quando ele ouviu a última de S. Francisco, não se pôde ter que não pensasse mais vivo na roda ou o que quer que era que faria sair os números e os prêmios da loteria. Era agora... Teve idéia de ir dali saber notícias, mas recuou. Mal se concebe tanta impaciência em jogador tão velho. Parece que estava adivinhando o que lhe ia acontecer.
Desconfias o que lhe aconteceu? Às quatro horas e meia, acabado o trabalho, saiu com a alma nas pernas e correu à primeira casa de loterias. Lá estavam, escritos a giz em tábua preta, o número do bilhete dele e os quinhentos contos. A alma, se ele a tinha nas pernas, era de chumbo, porque elas não andaram mais, nem a luz lhe tornou aos olhos senão alguns minutos depois. Restituído a si, consultou a carteira, era o número exato. Ainda assim, podia ter-se enganado, ao copiá-lo. Voou num tílburi a casa; não se enganara, era o número dele.
Tudo se cumpriu com lealdade. Cinco dias depois, a mesa da irmandade recebia os cem contos de réis para a Escola de S. Bernardo e expedia um oficio de agradecimento ao fundador das duas instituições, entregue a este por todos os membros da mesa em comissão.
No fim de abril, casara o escrevente Amaral, servindo-lhe Coimbra de testemunha, e morrendo na volta, como ficou dito atrás. O enterro que a irmandade lhe fez e o túmulo que lhe mandou levantar no cemitério de S. Francisco Xavier corresponderam aos benefícios que lhe devia. A escola tem hoje mais de cem alunos e os cem contos dados pelo escrivão receberam a denominação de patrimônio Coimbra.
BARBA DE BODE
Humberto de Campos
Foi recolhida, segunda-feira última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva erroneamente receitada por um herbanário dos subúrbios, a encantadora senhorita Carmélia Passos, filha única e inteligentíssima da viúva Carlota Passos, proprietária nesta capital.
Eu desconhecia ainda este caso, e já aplaudia com todo o meu coração a atitude da Saúde Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da lei a praga dos curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um episódio doloroso, que me fora narrado, semanas antes, pelo meu prestimoso amigo o Sr. senador Elói de Souza.
O coronel Raimundo de Araújo, comerciante em Natal, capital do Rio Grande do Norte, havia entrado na casa dos sessenta anos quando, após quatorze de viuvez, entendeu de contrair novas núpcias com uma sólida moçoila de São Gonçalo. Pedida, porém, a rapariga, começaram as complicações, as dificuldades, os obstáculos e, com eles, o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada, sujeito, portanto, ao efeito das emoções violentas, o coronel, assim que ficou noivo, começou a declinar de forças, de coragem, de saúde, e de tal forma que, após um mês de noivado, parecia haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado, combalido, o abastado comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os médicos da cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu compadre, o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem participara a sua infelicidade, lhe perguntou, interessado:
— O compadre já usou chá de barba de bode?
— Barba de bode? — indagou o outro, espantado.
— Sim. Pega-se todo o dia um punhado de barba de bode, faz-se um chá bem forte, e toma-se três vezes por dia.
E acentuou, sincero:
— É um santo remédio, compadre!
Animado com a nova esperança; o coronel Araújo mandou chamar à sua casa de negócio um caboclo de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de caprinos naquela parte do sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda, pediu que lhe mandasse na primeira oportunidade, e a qualquer preço, um saco com barbas de bode.
— Que quantidade, coronéo? — indagou o sertanejo.
— Uns dez quilos.
Duas semanas depois recebia o coronel Araújo a sua encomenda, entrando, de pronto, no uso da medicina receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia efeitos exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de chorar, de berrar, de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível de fugir às mulheres. No fim de um mês, a situação do enfermo era, mesmo, desesperadora: magro, nervoso, espumando pelo canto da boca, passava as noites na rua, encostando-se às paredes, às árvores, às pedras das estradas, nas proximidades do porto, do mercado e do quartel, e em estado tal de desmoralização que os amigos, penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então governador do Estado, em uma casa de saúde de Pernambuco!
Esse desfecho de uma vida honrada e laboriosa impressionou, como era natural, o meio em que vivia o conhecido negociante. Quem, entretanto, mais pensava naquele infortúnio era o seu compadre Ferreira, autor da receita. Preocupado com o caso, e sem encontrar para ele uma explicação aceitável, ia o velho tabelião um dia pela praça do mercado quando sentiu, de repente, uma pancada no ombro. Era o Antônio Severo, de Currais Novos, que havia chegado naquele dia com uma partida de couros. A figura do sertanejo avivou-lhe, naquele momento, uma lembrança; e como esta fosse teimosa, forte, renitente, o velho Ferreira não se conteve, e indagou:
— Diga-me uma coisa, Severo: o coronel Araújo não lhe fez, quando você esteve aqui da última vez, uma encomenda de barba de bode?
— Fez, sim, senhor; e eu mandei, logo que cheguei lá.
— E você tem certeza de que era, mesmo, barba de bode?
Ante essa insistência, o matuto sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e, com a sua vozinha de ingênuo e de esperto, confessou:
— Home, "seu" capitão, garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou, é verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode p'ra tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de cabra!
UM ERRADIO
Machado de Assis
A porta abriu-se... Deixa-me contar a história à laia de novela, disse Tosta à mulher, um mês depois de casados, quando ela lhe perguntou quem era o homem representado numa velha fotografia, achada na secretária do marido. A porta abriu-se, e apareceu este homem, alto e sério, moreno, metido numa infinita sobrecasaca cor de rapé, que os rapazes chamavam opa.
- Aí vem a opa do Elisiário.
- Entre a opa só.
- Não, a opa não pode; entre só o Elisiário, mas, primeiro há de glosar um mote. Quem dá o mote?
Ninguém dava o mote. A casa era uma simples sala, sublocada por um alfaiate, que morava nos fundos com a família; Rua do Lavradio, 1866. Era a segunda vez que ia ali, a convite de um dos rapazes. Não podes ter idéia da sala e da vida. Imagina um município do país da Boêmia, tudo desordenado e confuso; além dos poucos móveis pobres, que eram do alfaiate, havia duas redes, uma canastra, um cabide, um baú de folha-de-flandres, livros, chapéus, sapatos. Moravam cinco rapazes, mas apareciam outros, e todos eram tudo, estudantes, tradutores, revisores, namoradores, e ainda lhes sobrava tempo para redigir uma folha política e literária, publicada aos sábados. Que longas palestras que tínhamos! Solapávamos as bases da sociedade, descobríamos mundos novos, constelações novas, liberdades novas. Tudo era o novíssimo.
- Lá vai mote, disse afinal um dos rapazes, e recitou:
Podia embrulhar o mundo
A opa do Elisiário.
Parado à porta, o homem cerrou os olhos por alguns instantes, abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em forma de bolo, e recitou uma glosa de improviso. Rimo-nos muito; eu, que não tinha idéia do que era improviso, cuidei a princípio que a composição era velha e a cena um logro para mim. Elisiário despiu a sobrecasaca, levantou-a na ponta da bengala, deu duas voltas pela sala, com ar triunfal, e foi pendurá-la a um prego, porque o cabide estava cheio. Em seguida, atirou o chapéu ao teto, apanhou-o entre as mãos, e foi pô-lo em cima do aparador.
- Lugar para um! disse finalmente.
Dei-me pressa em ceder-lhe o sofá; ele deitou-se, fincou os joelhos no ar, e perguntou que novidades havia.
- Que o jantar é duvidoso, respondeu o redator principal do Cenáculo; o Chico foi ver se cobrava alguma assinatura. Se arranjar dinheiro, traz logo o jantar da casa de pasto. Você já jantou?
- Já e bem, respondeu Elisiário, jantei numa casa de comércio. Mas vocês por que é que não vendem o Chico? é um bonito crioulo. É livre, não há dúvida, mas por isso mesmo compreenderá que, deixando-se vender como escravo, terão vocês com que pagar-lhe os ordenados... Dois mil-réis chegam? Romeu, vê ali no bolso da sobrecasaca. Há de haver uns dois mil-réis.
Havia só mil e quinhentos, mas não foram precisos. Cinco minutos depois voltava o Chico, trazendo um tabuleiro com o jantar e o resto da assinatura de um semestre.
- Não é possível! bradou Elisiário. Uma assinatura! Vem cá Chico. Quem foi que pagou? Que figura tinha o homem? Baixo? Não é possível que fosse baixo; a ação é tão sublime que nenhum homem baixo podia praticá-la. Confessa que era alto. Confessa ao menos que era de meia altura. Confessas? Ainda bem! Como se chama? Guimarães? Rapazes, vamos perpetuar este nome em uma placa de bronze. Acredito que não lhe deste recibo, Chico.
- Dei, sim, senhor.
- Recibo! Mas a um assinante que paga não se dá recibo, para que ele pague outra vez, não se matam esperanças, Chico.
Tudo isto, dito por ele, tinha muito mais graça que contado. Não te posso pintar os gestos, os olhos e um riso que não ria, um riso único, sem alterar a face, nem mostrar os dentes. Essa feição era a menos simpática; mas tudo o mais, a fala, as idéias, e principalmente a imaginação fecunda e moça, que se desfazia em ditos, anedotas, epigramas, versos, descrições, ora sério, quase sublime, ora familiar, quase rasteiro, mas sempre original, tudo atraía e prendia. Trazia a barba por fazer, o cabelo à escovinha, a testa, que era alta, tinha grossas rugas verticais. Calado, parecia estar pensando. Voltava-se a miúdo no sofá, erguia-se, sentava-se, tornava a deitar-se. Lá o deixei, quando saí, às nove horas da noite.
Comecei a freqüentar a casa da Rua do Lavradio, mas durante os primeiros dias não apareceu o Elisiário. Disseram-me que era muito incerto. Tinha temporadas. Às vezes, ia todos os dias; repentinamente, falhava uma, duas, três semanas seguidas, e mais. Era professor de latim e explicador de matemáticas. Não era formado em coisa nenhuma, posto estudasse engenharia, medicina e direito deixando em todas as faculdades fama de grande talento sem aplicação. Seria bom prosador, se fosse capaz de escrever vinte minutos seguidos; era poeta de improviso, não escrevia os versos, os outros é que os ouviam e transladavam ao papel, dando-lhe cópias, muitas das quais perdia. Não tinha família; tinha um protetor, o Dr. Lousada, operador de algum nome, que devera obséquios ao pai de Elisiário, e quis pagá-los ao filho. Era atrevido por causa de uma sombrinha de amor-próprio, que não tolerava a menor picada. Naquela casa era bonachão. Trinta e cinco anos; o mais velho dos rapazes contava apenas vinte e um. A familiaridade entre ele e os outros era como a de um tio com sobrinhos, um pouco menos de autoridade, um pouco mais de liberdade.
No fim de uma semana, apareceu Elisiário na Rua do Lavradio. Vinha com a idéia de escrever um drama, e queria ditá-lo. Escolheram-me a mim, por escrever depressa. Esta colaboração mental e manual durou duas noites e meia. Escreveu-se um ato e as primeiras cenas de outro; Elisiário não quis absolutamente acabar a peça. A princípio disse que depois, mais tarde, estava indisposto, e falava de outras coisas; afinal, declarou-nos que a peça não prestava para nada. Espanto geral, porque a obra parecia-nos excelente, e ainda agora creio que o era. Mas o autor pegou da palavra e demonstrou que nem o escrito prestava, nem o resto do plano valia coisa nenhuma. Falou como se tratasse de outrem. Nós contestávamos; eu principalmente achava um crime, e repetia esta palavra com alma, com fogo - achava um crime não acabar o drama, que era de primeira ordem.
- Não vale nada, dizia ele sorrindo para mim com simpatia. Menino, você quantos anos tem?
- Dezoito.
- Tudo é sublime aos dezoito anos. Cresça e apareça. O drama não presta; mas, deixe estar que havemos de escrever outro daqui a dias. Ando com uma idéia.
- Sim?
- Uma boa idéia, continuou ele com os olhos vagos; essa, sim, creio que dará um drama. Cinco atos; talvez faça em verso. O assunto presta-se...
Nunca mais falou em tal idéia; mas o drama começado fez com que nos ligássemos um pouco mais intimamente. Ou simpatia, ou amor-próprio satisfeito, por ver que o mais consternado com a interrupção e condenação do trabalho fui eu, - ou qualquer outra causa que não achei nem vale a pena buscar, Elisiário entrou a distinguir-me entre os outros. Quis saber quem eram meus pais e o que fazia. Disse-lhe que não tinha mãe, meu pai era lavrador em Baturité, eu estudava preparatórios, intercalando-os com versos, e andava com idéias de compor um poema, um drama e um romance. Tinha já uma lista de subscritores para os versos. Parece que, de envolta com as notícias literárias, alguma coisa lhe disse ou ele percebeu acerca dos meus sentimentos de moço. Propôs-se a ajudar-me nos estudos com o seu próprio ensino, latim, francês, inglês, história... Cheio de orgulho, não menos que de sensibilidade, proferi algumas palavras que ele gostou de ouvir, e a que respondeu gravemente:
- Quero fazer de você um homem.
Estávamos sós; eu nada contei aos outros, para os não molestar, nem sei se eles perceberam daí em diante alguma diferença no trato do Elisiário, em relação a mim. É certo, porém, que a diferença não era grande, nem o plano de "fazer-me um homem" foi além da simpatia e da benevolência. Ensinava-me algumas matérias, quando eu lhe pedia lições, e eu raramente as pedia. Queria só ouvi-lo, ouvi-lo, ouvi-lo até não acabar. Não imaginas a eloqüência desse homem, cálida e forte, mansa e doce, as imagens que lhe brotavam no discurso, as idéias arrojadas, as formas novas e graciosas. Muita vez ficávamos os dois sós na Rua do Lavradio, ele falando, eu ouvindo. Onde morava? Disseram-me vagamente que para os lados da Gamboa, mas nunca me convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente onde era.
Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, e, se falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroço quase sem prazer, ouvia-me atento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte, era comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, S. Cristóvão, Andaraí. Quando lhe dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.
- Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto.
Um dia encontrei-o na Rua de S. José. Disse-lhe que ia ao Castelo ver a igreja dos Jesuítas, que nunca vira.
- Pois vamos, disse ele.
Subimos a ladeira, achamos a igreja aberta e entramos. Enquanto eu mirava os altares, ele ia falando, mas em poucos minutos o espetáculo era ele só, um espetáculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi os primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida monástica e leiga, os nomes principais e os fatos culminantes. Quando saímos, e fomos até à muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisiário fez-me viver dois séculos atrás. Vi a expedição dos franceses, como se a houvesse comandado ou combatido. Respirei o ar da colônia, contemplei as figuras velhas e mortas. A imaginação evocativa era a grande prenda desse homem, que sabia dar vida às coisas extintas e realidade às inventadas.
Mas não era só do passado local que ele sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquela estatuazinha que ali tenho na parede? Sabes que é uma redução da Vênus de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposição das belas-artes, fui visitá-la; achei lá o meu Elisiário, passeando grave, com a sua imensa sobrecasaca. Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura, dei com os olhos na cópia desta Vênus. Era a primeira vez que a via. Soube que era ela pela falta dos braços.
- Oh! admirável! exclamei.
Elisiário entrou a comentar a bela obra anônima, com tal abundância e agudeza que me deixou ainda mais pasmado. Que de coisas me disse a propósito da Vênus de Milo, e da Vênus em si mesma! Falou da posição dos braços, que gesto fariam, que atitude dariam à figura, formulando uma porção de hipóteses graciosas e naturais. Falou da estética, dos grandes artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma grega. Era um grego, um puro grego, que ali me aparecia e transportava de uma rua estreita para diante do Partenon. A opa do Elisiário transformou-se em clâmide, a língua devia ser a da Hélade, conquanto eu nada soubesse a tal respeito, nem então, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem.
Saímos; fomos até o Campo da Aclamação, que ainda não possuía o parque de hoje, nem tinha outra polícia além da natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiário, ao lado dele, que levava a cabeça baixa e os olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho:
- Adeus, Ioiô!
Era uma quitandeira de doces, uma crioula baiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e da camisa. Vinha da Cidade Nova e atravessava o campo. Elisiário respondeu à saudação:
- Adeus, Zeferina.
Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns segundos:
- Não se espante, menino. Há muitas espécies de Vênus. O que ninguém dirá é que a esta lhe faltem braços, continuou olhando para os braços da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta e alva da camisa.
Eu, de vexado, não achei resposta.
Não contei esse episódio na Rua do Lavradio; podiam meter à bulha o Elisiário, e não queria parecer indiscreto. Tinha-lhe não sei que veneração particular, que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos a jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe custava no teatro era estar muito tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atrás de si. Nas noites de enchente, em que eram precisas travessas na platéia, ficava aflito com a idéia de não poder sair no meio de um ato, se quisesse. Naquela, acabado o terceiro ato (a peça tinha cinco), disse-me que não podia mais e que ia embora.
Fomos tomar chá ao botequim próximo, e deixei-me estar, esquecido do espetáculo. Ficamos até o fechar das portas. Tínhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do sertão cearense, ele ouviu e projetou mil jornadas ao sertão do Brasil inteiro, por serras, campos e rios, de mula e de canoa. Colheria tudo, plantas, lendas, cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de Enéias, citou Virgílio e Camões, com grande espanto dos criados, que paravam boquiabertos.
- Você era capaz de ir daqui a pé, até S. Cristóvão, agora? perguntou-me na rua.
- Pode ser.
- Não, você está cansado.
- Não estou, vamos.
- Está cansado, adeus; até depois, concluiu.
Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se ele iria sozinho, àquela hora, e deu-me vontade de acompanhá-lo de longe, até certo ponto. Ainda o apanhei na Rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação, enfiou pela Rua de S. Pedro e meteu-se pelo Aterrado acima. Eu, no Campo, quis voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se esse erradio não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei desta reflexão, e quis punir-me desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor às pernas. Fui andando atrás do Elisiário. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristóvão. Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o Saco do Alferes. Maré frouxa, apenas o ressonar manso da água. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo à cidade. Não sei quanto ofereceu; vi que, depois de alguma relutância, aceitaram a proposta.
Elisiário entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a água, e lá se perdeu na noite e no mar o meu professor de latim e explicador de matemáticas. Também eu me achei perdido, longe da cidade e exausto. Valeu-me um tílburi, que atravessava o Campo de S. Cristóvão, tão cansado como eu, mas piedoso e necessitado.
- Você não quis ir comigo anteontem a São Cristóvão? Não sabe o que perdeu; a noite estava linda, o passeio foi muito agradável. Chegando ao cais da Igrejinha meti-me num bote e vim desembarcar no Saco do Alferes. Era um bom pedaço até a casa; fiquei numa hospedaria do Campo de Santana. Fui atacado por um cachorro, no caminho do Saco, e por dois na Rua de S. Diogo, mas não senti as pulgas da hospedaria, porque dormi como um justo. E você que fez?
- Eu?
Não querendo mentir, se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi sumariamente:
- Eu? Eu também dormi como um justo.
- Justus, justa, justum.
Estávamos na casa da Rua do Lavradio. Elisiário trazia no peito da camisa um botão de coral, objeto de grande espanto e aclamação da parte dos rapazes, que nunca jamais o viram com jóias. Maior, porém, foi o meu espanto, depois que os rapazes saíram. Tendo ouvido que me faltava dinheiro para comprar sapatos, Elisiário sacou o botão de coral e disse que me fosse calçar com ele. Recusei energicamente, mas tive de aceitá-lo à força. Não o vendi nem empenhei; no dia seguinte pedi algum dinheiro adiantado ao correspondente de meu pai, calcei-me de novo, e esperei que chegasse o paquete do Norte, para restituir o botão ao Elisiário. Se visses a cara de desconsolo com que o recebeu!
- Mas o senhor não disse outro dia que lhe tinham dado este botão de presente? repliquei à proposta que me fez de ficar com a jóia.
- Sim, disse e é verdade; mas para que me servem jóias? Acho que ficam melhor nos outros. Bem pensado, como é presente, posso guardar o botão. Deveras, não o quer para si?
- Não, senhor; um presente...
- Presente de anos, continuou mirando a pedra com o olhar vago. Fiz trinta e cinco. Estou velho, meu menino; não tardo em pedir reforma e ir morrer em algum buraco.
Tinha acabado de repor o botão na camisa.
- Fez anos, e não me disse.
- Para quê? Para visitar-me? Não recebo nesse dia; de costume janto com o meu velho amigo Dr. Lousada, que também faz o seu versinho, às vezes, e outro dia brindou-me com um soneto impresso em papel azul... Lá o tenho em casa; não é mau.
- Foi ele que lhe deu o botão...
- Não, foi a filha... O soneto tem um verso muito parecido, com outro de Camões; o meu velho Lousada possui as suas letras clássicas, além de ser excelente médico... Mas o melhor dele é a alma...
Quiseram fazê-lo deputado. Ouvi que dois amigos dele, homens políticos, entenderam que o Elisiário daria um bom orador parlamentar. Não se opôs, pediu apenas aos inventores do projeto que lhe emprestassem algumas idéias políticas; riram-se, e o projeto não foi adiante.
Quero crer que lhe não faltassem idéias, talvez as tivesse de sobra, mas tão contrárias umas às outras que não chegariam a formar uma opinião. Pensava segundo a disposição do dia, liberal exaltado ou conservador corcunda. O principal motivo da recusa era a impossibilidade de obedecer a um partido, a um chefe, a um regimento de câmara. Se houvesse liberdade de alterar as horas da sessão, uma de manhã, outra de noite, outra de madrugada, ao acaso da freqüência, sem ordem do dia, com direito de discutir o anel de Saturno ou os sonetos de Petrarca, o meu erradio Elisiário aceitaria o cargo, contanto que não fosse obrigado a estar calado, nem a falar, quando lhe chegasse a vez.
Aí tens o que era esse homem fotografado em 1862. Em suma, boa criatura, muito talento, excelente conversador, alma inquieta e doce, desconfiada e irritadiça, sem futuro nem passado, sem saudades nem ambições, um erradio. Senão quando... Mas é muito falar sem fumar um charuto... Consentes? Enquanto acendo o charuto, olha para esse retrato, descontando-lhe os olhos, que não saíram bem; parecem olhos de gato e inquisidor, espetados na gente, como querendo furar a consciência. Não eram isso; olhavam mais para dentro que para fora, e quando olhavam para fora derramavam-se por toda a parte.
Senão quando, uma tarde, já escuro, por volta das sete horas apareceu-me na casa de pensão o meu amigo Elisiário. Havia três semanas que o não via, e, como tratava de fazer exames, e passava mais tempo metido em casa, não me admirei da ausência nem cuidei dela. Demais, já me acostumara aos seus eclipses. O quarto estava escuro, eu ia sair e acabava de apagar a vela, quando a figura alta e magra do Elisiário apareceu à porta. Entrou, foi direito a uma cadeira, sentei-me ao pé dele, perguntei-lhe por onde andara. Elisiário abraçou-me chorando. Fiquei tão assombrado que não pude dizer nada; abracei-o também, ele enxugou os olhos com o lenço, que de costume trazia fechado na mão, e suspirou largo. Creio que ainda chorou silenciosamente, porque enxugava os olhos de quando em quando. Eu, cada vez mais assombrado, esperava que ele me dissesse o que tinha; afinal murmurei:
- Que é? que foi?
- Tosta, casei-me sábado.
Cada vez mais espantado, não tive tempo de lhe pedir outra explicação, porque o Elisiário continuou logo, dizendo que era um casamento de gratidão, não de amor, uma desgraça. Não sabia que respondesse à confidência, não acabava de crer na notícia, e principalmente, não entendia o abatimento nem a dor do homem. A figura do Elisiário, qual a recompus depois, não me aparecia por esse tempo com a significação verdadeira. Cheguei a supor alguma coisa mais que o simples casamento; talvez a mulher fosse idiota ou tísica; mas quem o obrigaria a desposar uma doente?
"Uma desgraça! repetia baixinho, falando para si, uma desgraça!"
Como eu me levantasse dizendo que ia acender uma vela, Elisiário reteve-me pela aba do fraque.
- Não acenda, não me vexe, o escuro é melhor, para lhe expor esta minha desgraça. Ouça-me. Uma desgraça. Casado! Não é que ela me não ame; ao contrário, morria por mim há sete anos. Tem vinte e cinco... Boa criatura! Uma desgraça!
A palavra desgraça era a que mais vezes lhe tornava ao discurso. Eu, para saber o resto, quase não respirava; mas não ouvi grande coisa, pois o homem, depois de algumas palavras descosidas, suspendeu a conferência. Fiquei sabendo só que a mulher era filha do Dr. Lousada, seu protetor e amigo, a mesma que lhe dera o botão de coral. Elisiário calou-se de repente, e depois de alguns instantes como arrependido ou vexado, pediu-me que não referisse a pessoa alguma aquela cena dele comigo.
- O senhor deve conhecer-me...
- Conheço, e porque o conheço é que vim aqui. Não sei que outra pessoa me merecesse agora igual confiança. Adeus, não lhe digo mais nada, não vale a pena. Você é moço, Tosta; se não tiver vocação para o casamento, não se case nunca, nem por gratidão, nem por interesse. Há de ser um suplício. Adeus. Não lhe digo onde moro, moro com meu sogro, mas não me procure.
Abraçou-me e saiu. Fiquei à porta do quarto. Quando me lembrei de acompanhá-lo até escada, era tarde; ia descendo os últimos degraus. O lampião de azeite alumiava mal a escada, e a figura descia vagarosa, apoiada ao corrimão, cabeça baixa e a vasta sobrecasaca alegre, agora triste.
Só dez meses depois tornei a ver o Elisiário. A primeira ausência foi minha; tinha ido ao Ceará, ver meu pai, durante as férias. Quando voltei, soube que ele fora ao Rio Grande do Sul. Um dia, almoçando, li nos jornais que chegara na véspera, e corri a buscá-lo. Achei-o em Santa Teresa, uma casinha pequena, com um jardim, pouco maior que ela. Elisiário abraçou-me com alvoroço; falamos de coisas passadas; perguntei-lhe pelos versos.
- Publiquei um volume em Porto Alegre. Não foi por minha vontade, mas minha mulher teimou tanto que afinal cedi; ela mesma os copiou. Tem alguns erros, hei de fazer aqui uma segunda edição.
Elisiário deu-me um exemplar do livro, mas não consentiu que lesse ali nada. Queria só falar dos tempos idos. Perdera o sogro, que lhe deixara alguma coisa, e ia continuar a lecionar, para ver se achava as impressões de outrora. Onde estavam os rapazes da Rua do Lavradio? Recordava cenas antigas, noitadas, algazarra, grandes risotas, que me iam lembrando coisas análogas, e assim gastamos duas boas horas compridas. Quando me despedi, pegou-me para jantar.
- Você ainda não viu minha mulher, disse ele. E indo à porta que dava para dentro: - Cintinha!
- Lá vou! respondeu uma voz doce.
D. Jacinta chegou logo depois, com os seus vinte e seis anos, mais baixa que alta, mais feia que bonita, expressão boa e séria, grande quietação de maneiras. Quando ele lhe disse o meu nome, olhou para mim espantada.
- Não é um bonito rapaz?
Ela confirmou a opinião inclinando modestamente a cabeça. Elisiário disse-lhe que eu jantava com eles, a moça retirou-se da sala.
- Boa criatura, disse-me ele; dedicada, serviçal. Parece que me adora. Já me não faltam botões nos paletós que trago... Pena! melhor que eles eram os botões que faltavam. A sobrecasaca de outrora, lembra-se?
Podia embrulhar o mundo
A opa do Elisiário.
- Lembra-me.
- Creio que me durou cinco anos. Onde vai ela! Hei de fazer-lhe um epicédio, com uma epígrafe de Horácio...
Jantamos alegremente. D. Jacinta falou pouco; deixou que eu e o marido gastássemos o tempo em relembrar o passado. Naturalmente, o marido tinha surtos de eloqüência, como outrora; a mulher era pouca para ouvi-lo. Elisiário esquecia-se de nós, ela de si, e eu achava a mesma nota antiga, tão viva e tão forte. Era costume dele concluir um discurso desses e ficar algum tempo calado. Resumia dentro de si o que acabava de dizer? Continuava a mesma ordem de idéias? Deixava-se ir ainda pela música da palavra? Não sei; achei-lhe o velho costume de ficar calado sem dar pelos outros. Nessas ocasiões a mulher calava-se também, a olhar para ele, não cheia de pensamento, mas de admiração. Sucedeu isso duas vezes. Em ambas chegou a ser bonita.
Elisiário disse-me, ao café, que viria comigo abaixo.
- Você deixa, Cintinha?
D. Jacinta sorriu para mim, como se dissesse que o pedido era desnecessário. Também ela falou no livro de versos do marido.
- Elisiário é preguiçoso; o senhor há de ajudar-me a fazer com que ele trabalhe.
Meia hora depois descíamos a ladeira. Elisiário confessou-me que, desde que casara, não tivera ocasião de relembrar a vida de solteiro, e ao chegarmos abaixo declarou-me que iríamos ao teatro.
- Mas você não avisou em casa...
- Que tem? Aviso depois. Cintinha é boa, não se zanga por isso. Que teatro há de ser?
Não foi nenhum; falamos de outras coisas, e às nove horas, tornou para casa. Voltei a Santa Teresa poucos dias depois, não o achei, mas a mulher disse-me que o esperasse, não tardaria.
- Foi a uma visita aqui mesmo no morro, disse ela; há de gostar muito de o ver.
Enquanto falava, ia fechando dissimuladamente um livro, e foi pô-lo em uma mesa, a um canto. Tratamos do marido; ela pediu-me que lhe dissesse o que pensava dele, se era um grande espírito, um grande poeta, um grande orador, um grande homem, em suma. As palavras não seriam propriamente essas, mas vinham a dar nelas. Eu, que o admirava, confirmei-lhe o sentimento, e o gosto com que me ouviu foi paga bastante ao tal ou qual esforço que empreguei para dar à minha opinião a mesma ênfase.
- Faz bem em ser amigo dele, concluiu; ele sempre me falou bem do senhor, dizia que era um menino muito sério.
O gabinete tinha flores frescas e uma gaiola com passarinho. Tudo em ordem, cada coisa em seu lugar, obra visível da mulher. Daí a pouco entrou Elisiário, com a gravata no pescoço, o laço na frente, a barba rapada, correto e em flor. Só então notei a diferença entre este Elisiário e o outro. A incoerência dos gestos era já menor, ou estava prestes a acabar inteiramente. A inquietação desaparecera. Logo que ele entrou, a mulher deixou-nos para ir mandar fazer café, e voltou pouco depois, com um trabalho de agulha.
- Não, senhora, vamos primeiro ao latim, bradou o marido.
D. Jacinta corou extraordinariamente, mas obedeceu ao marido e foi buscar o livro, que estava lendo quando eu cheguei.
- Tosta é de confiança, continuou Elisiário, não vai dizer nada a ninguém.
E voltando-se para mim:
- Não pense que sou eu que lhe imponho isto; ela mesma é que quis aprender.
Não crendo o que ele me dizia, quis poupar à moça a lição de latim, mas foi ela própria que me dispensou o auxílio, indo buscar alegremente a gramática do Padre Pereira. Vencida a vergonha, deu a lição, como um simples aluno. Ouvia com atenção, articulava com prazer, e mostrava aprender com vontade. Acabado o latim, o marido quis passar à lição de história; mas foi ela, dessa vez, que recusou obedecer, para me não roubá-lo a mim. Eu, pasmado, desfiz-me em louvores; realmente achava tão fora de propósito aquela escola de latim conjugal, que não alcançava explicação, nem ousava pedi-la.
Amiudei as visitas. Jantava com eles algumas vezes. Ao domingo ia só almoçar. D. Jacinta era um primor. Não imaginas a graça que tinha em falar e andar, tudo sem perder a compostura dos modos nem a gravidade dos pensamentos. Sabia muitos trabalhos de mãos, apesar do latim e da história que o marido lhe ensinava. Vestia com simplicidade, usava os cabelos lisos e não trazia jóia alguma, podia ser afetação, mas tal era a sinceridade que punha em tudo, que parecia natural nisso como no resto.
Ao domingo, o almoço era no jardim. Já achava o Elisiário à minha espera, à porta, ansioso que eu chegasse. A mulher estava acabando de arranjar as flores e folhagens que tinham de adornar a mesa. Além disso e do mais, adornava cartões contendo a lista dos pratos, com emblemas poéticos e nomes de musas para as comidas. Nem todas as musas podiam entrar, eles não eram ricos, nem nós tão comilões, entravam as que podiam. Era ao almoço que Elisiário, nos primeiros tempos, mais geralmente improvisava alguma coisa. Improvisava décimas, - ele preferia essa estrofe a qualquer outra; mais tarde, foi diminuindo o número delas, e para diante não passava de duas ou de uma. D. Jacinta pedia-lhe então sonetos; sempre eram quatorze versos. Ela e eu copiávamos logo, a lápis, com retificações que ele fazia, rindo: - "Para que querem vocês isso?" Afinal perdeu o costume, com grande mágoa da mulher, e minha também. Os versos eram bons, a inspiração fácil; faltava-lhes só o calor antigo.
Um dia perguntei a Elisiário por que não reimprimia o livro de versos, que ele dizia ter saído com incorreções; eu ajudaria a ler as provas. D. Jacinta apoiou com entusiasmo a proposta.
- Pois, sim, disse ele, um dia destes; começaremos domingo.
No domingo, D. Jacinta, estando a sós comigo, um instante, pediu-me que não esquecesse a revisão do livro.
- Não, senhora, deixe estar.
- Não enfraqueça, se ele quiser adiar o trabalho, continuou a moça; é provável que ele fale em guardar para outra vez, mas teime sempre, diga que não, que se zanga, que não volta cá..
Apertou-me a mão com tanta força, que me deixou abalado. Os dedos tremiam-lhe; parecia um aperto de namorada. Cumpri o que disse, ela ajudou-me, e ainda assim gastamos meia hora antes que ele se dispusesse ao trabalho. Afinal pediu-nos que esperássemos, ia buscar o livro.
- Desta vez, vencemos, disse eu.
D. Jacinta fez com a boca um gesto de desconfiança, e passou da alegria ao abatimento.
- Elisiário está preguiçoso. Há de ver que não acabamos nada. Pois não vê que não faz versos senão à força de muito pedido, e poucos? Podia escrever também, quando mais não fosse alguns daqueles discursos que costuma improvisar, mas os próprios discursos são raros e curtos. Tenho-me oferecido tantas vezes para escrever o que ele mandar. .. Chego a preparar o papel, pego na pena e espero; ele ri, disfarça, diz um gracejo, e responde que não está disposto.
- Nem sempre estará.
- Pois sim, mas então declaro que estou pronta para quando vier a inspiração, e peço-lhe que me chame. Não chama nunca. Uma ou outra vez tem planos; eu vou animando, mas os planos ficam no mesmo. Entretanto, o livro que ele imprimiu em Porto Alegre foi bem recebido, podia animá-lo.
- Animá-lo? Mas ele não precisa de animações; basta-lhe o grande talento que tem.
- Não é verdade? disse ela chegando-se a mim, com os olhos cheios de fogo. Mas é pena! tanto talento perdido!
- Nós o acharemos, hei de tratá-lo como se ele fosse mais moço que eu. O mau foi deixá-lo cair na ociosidade...
Elisiário tornou com um exemplar do livro. Não trazia tinta nem pena; ela foi buscá-las. Começamos o trabalho da revisão; o plano era emendar, não só os erros de imprensa, mas o próprio texto. A novidade do caso interessou grandemente o nosso poeta, durante perto de duas horas. Verdade é que a maior parte do tempo era interrompido com a história das poesias, a notícia das pessoas, se as havia, e havia muitas; uma boa porção das composições era dedicada a amigos ou homens públicos. Naturalmente fizemos pouco: não passamos de vinte páginas. Elisiário confessou que estava com sono, adiamos o trabalho, e nunca mais pegamos nele.
D. Jacinta chegou a pedir ao marido que nos deixasse a nós a tarefa de emendar o livro, ele veria depois o texto emendado e pronto. Elisiário respondeu que não, que ele mesmo faria tudo, que esperássemos, não havia pressa. Mas, como disse, nunca mais pegamos no livro. Já raro improvisava, e, como não tinha paciência para compor escrevendo, os versos iam escasseando mais. Já lhe saíam frouxos; o poeta repetia-se. Quisemos ainda assim propor-lhe outro livro, recolhendo o que havia, e antes de o propor, tratamos de compilá-lo. O todo precisava de revisão; Elisiário consentiu em fazê-la, mas a tentativa teve o mesmo resultado que a outra. Os próprios discursos iam acabando. O gosto da palavra morria. Falava como todos nós falamos; não era já nem sombra daquela catadupa de idéias, de imagens, de frases, que mostravam no orador um poeta. Para o fim, nem falava; já me recebia sem entusiasmo, ainda que cordialmente. Afinal vivia aborrecido.
Com poucos anos de casada, D. Jacinta tinha no marido um homem de ordem, de sossego, mas sem inspiração nem calor. Ela própria foi mudando também. Não instava já pela composição de versos novos, nem pela correção dos velhos. Ficou tão desinteressada como ele. Os jantares e os almoços eram como os de qualquer pessoa que não cuide de letras. D. Jacinta buscava não tocar em tal assunto que era penoso ao marido e a ela; eu imitava-os. Quando me formei, Elisiário compôs um soneto em honra minha, mas já lhe custou muito, e, a falar verdade, não era do mesmo homem de outro tempo.
D. Jacinta vivia então, não direi triste, mas desencantada. A razão não se compreenderá bem, senão sabendo as origens da afeição que a levara ao casamento.
Pelo que pude colher e observar, nunca essa moça amou verdadeiramente o homem com quem casou. Elisiário acreditou que sim, e o disse, porque o pai dela pensava que era deveras um amor como os outros. A verdade porém, é que o sentimento de D. Jacinta era pura admiração. Tinha uma paixão intelectual por esse homem, nada mais, e nos primeiros anos não pensou em casar com ele. Quando Elisiário ia à casa do Dr. Lousada, D. Jacinta vivia as melhores horas da vida, escutando-lhe os versos, novos ou velhos, - os que trazia de cor e os que improvisava ali mesmo. Possuía boa cópia deles. Mas, ainda que não fossem versos, contentava-se em ouvi-lo para admirá-lo. Elisiário, que a conhecia desde pequena, falava-lhe como a uma irmã mais moça. Depois viu que era inteligente, mais do que o comum das mulheres, e que havia nela um sentimento de poesia e de arte que a faziam superior. O apreço em que a tinha era grande, mas não passava disso.
Assim se passaram anos. D. Jacinta começou a pensar em um ato de pura dedicação. Conhecia a vida de Elisiário, os dias perdidos, as noitadas, a incoerência e o desarranjo de uma existência que ameaçava acabar na inutilidade. Nenhum estímulo, nenhuma ambição de futuro. D. Jacinta acreditava no gênio de Elisiário. Muitos eram os admiradores, nenhum tinha a fé viva a devoção calada e profunda daquela moça. O projeto era desposá-lo. Uma vez casados, ela lhe daria a ambição que não tinha, o estímulo, o hábito do trabalho regular, metódico, e naturalmente abundante. Em vez de perder o tempo e a inspiração em coisas fúteis ou conversas ociosas, comporia obras de fôlego, nas boas horas e para ele quase todas as horas eram excelentes. O grande poeta afirmar-se-ia perante o mundo. Assim disposta, não lhe foi difícil obter a colaboração do pai, sem todavia confessar-lhe o motivo secreto da ação; seria dizer que se casava sem amor. O que ela disse foi que o amava deveras.
Que haja nisso uma nota romanesca, é verdade; mas o romanesco era aqui obra de piedade, vinha de um sentimento de admiração, e podia ser um sacrifício. Talvez mais de um tentasse casar com ela. D. Jacinta não pensou em ninguém, até que lhe surdiu a idéia generosa de seduzir o poeta. Já sabes que este casou por obediência.
O resultado foi inteiramente oposto às esperanças da moça. O poeta, em vez dos louros, enfiou uma carapuça na cabeça, e mandou bugiar a poesia. Acabou em nada. Para o fim dos tempos nem lia já obras de arte. D. Jacinta padeceu grandemente; viu esvair-se-lhe o sonho, e, se não perdeu, antes ganhou o latim, perdeu aquela língua sublime em que cuidou falar às ambições de um grande espírito. A conclusão a que chegou foi ainda um desconsolo para si. Concluiu que o casamento esterilizara uma inspiração que só tinha ambiente na liberdade do celibato. Sentiu remorsos. Assim, além de não achar as doçuras do casamento na união com Elisiário, perdeu a única vantagem a que se propusera no sacrifício.
Errava naturalmente. Para mim Elisiário era o mesmo erradio, ainda que parecesse agora pousado; mas era também um talento de pouca dura; tinha de acabar, ainda que não casasse. Não foi a ordem que lhe tirou a inspiração. Certamente, a desordem ia mais com ele que tanto tinha de agitado, como de solitário; mas a quietação e o método não dariam cabo do poeta, se a poesia nele não fosse uma grande febre da mocidade... Em mim é que não passou de ligeira constipação da adolescência. Pede-me tu amor, que o terás; não me peças versos, que desaprendi há muito, concluiu Tosta, beijando a mulher.
O PRESTÍGIO DO ROUGE
Humberto de Campos
Quando a gripe devorava, no Rio de janeiro, diariamente, centenas de vidas, a porta do Céu fazia, recordar, lá em cima, as portas de cinema, em dia de programa sensacional. Homens, mulheres, crianças, pessoas cuja morte estava iminente ou marcada para uma época muito distante, amontoavam-se diante da grande fachada refulgente de estrelas, reclamando, com o bilhete de entrada, o prêmio das suas boas obras ou do seu martírio.
— Antônio Esmeraldino Gomes de Albuquerque! — chamava, em voz alta, o santo do dia, lendo uma lista de nomes.
— Presente! — respondia o invocado, encaminhando-se para a porta.
São Pedro conferia os sinais da pessoa e dava-lhe, então, entrada, entre o coro festivo dos anjos.
Uma tarde, porém, chegou à fachada do Paraíso, entre milhares de vítimas da epidemia, uma senhora de uns quarenta e tantos anos, vitimada naquele dia. Pálida, com os lábios alvos como a cera dos círios que deixara na terra, a sua fisionomia denunciava cansaço, tristeza, sofrimento. De repente, chamaram um nome:
— D. Luíza Gonçalves Pedreira.
— Presente! — confirmou a nobre defunta, pondo, já um dos pés no batente sagrado.
Uma grande mão desceu, porém, sobre o seu ombro, detendo-a.
— É a senhora? — indagou, severo, o chaveiro.
— Sou eu mesma, meu santo!
— Mas a outra, a que vivia na terra, tinha, segundo os sinais que me fornecem, as faces muito coradas.
A dama não respondeu.
— E os lábios muito vermelhos.
Novo silêncio.
— E os cabelos muito negros.
Silêncio ainda.
— E umas olheiras muito pronunciadas.
Nesse ponto, antes que a enumeração tomasse um caráter comprometedor, D. Luisinha teve uma ideia: mergulhou as mãozinhas pálidas no forro da mortalha, arrancou de lá um lápis de "rouge", um pedaço de bistre, um canudo de cosmético, penteou-se, empoou-se, endireitou-se, e, levantando a cabeça, encarou o apóstolo.
— Pronto! — exclamou a dama.
São Pedro mirou-a, sorrindo. E, escancarando a porta, convidou:
— Ahn! É a senhora mesmo... Entre!
E ela entrou.
ENTRE SANTOS
Machado de Assis
Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho), aconteceu-me uma aventura extraordinária.
Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.
O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.
Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranqüilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma idéia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante idéia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma coisa extraordinária.
Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos.
Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.
Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.
Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma coisa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as coisas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.
Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.
- Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.
- Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha - ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.
- Eu?
- Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.
- Que pessoa?
- Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel...
- Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.
- Melhor é o meu caso.
- Melhor que isto? perguntou S. José curioso.
- Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.
Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que vêem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar.
- Tem cinqüenta anos o meu homem, disse ele, a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura.
- Bem podia ser que sim, ponderou S. João.
- Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...
E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros.
- O cadáver?
- Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma coisa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito.
- Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel.
- Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das coisas. O mundo não vê que, além de caseira eminente educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas, entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim, que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra coisa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.
Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substância.
- Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma idéia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher - intuição de avaro; - despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar.
- Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.
- Alguma tem, mas vaga, e econômica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.
- Bem, ajoelhou-se e rezou.
- Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...
No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre.
Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas coisas soltas, - Deus, - os anjos do Senhor, - as bentas chagas, - palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem.
O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse...
Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, - não menos, - trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000 - 1.000 - 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranqüilo, beato e católico.
Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.
LADRÃO!...
Humberto de Campos
A sala do júri da cidade provinciana enchera-se, desde o amanhecer, da melhor gente, não só do lugar, do perímetro urbano, como de todo o município e, ainda, dos municípios vizinhos. O processo que naquele dia se ia julgar, era, talvez, o mais sensacional formado na comarca. Tratava-se, na opinião geral, de um desses casos de degradação pela miséria ou pelo vício, da queda inesperada de um rapaz ainda novo, e dos mais considerados na sociedade local, da revelação, em suma, de um caráter baixo e depravado, que se disfarçara, até então, sob a roupagem do brio, da honra e das boas maneiras.
Amplo e simples, o salão do tribunal era uma grande peça com doze janelas, na ala direita do andar térreo e único da Câmara Municipal. Sobre um estrado, a mesa pesada e tradicional, para o juiz e os auxiliares. Em frente ao magistrado, o tosco banco dos réus. Ao lado, separado por uma grade convencional, os membros do conselho de sentença. Do lado oposto, a tribuna, pequeno púlpito de roça. E atrás, como no recinto de um cinema, os bancos para os espectadores, nos quais a multidão se comprimia, abanando-se com os leques, com os lenços, com os chapéus. Pintadas recentemente, as paredes eram brancas, de cal. Nestas, uma nódoa única, e essa mesma, sagrada: a imagem do Crucificado, a cabeça pendente, os braços abertos e flácidos ao peso do corpo, como num conforto triste aos que fossem, como ele, vitimas da justiça dos homens.
Embrulhado na sua toga, o juiz apareceu, cercado pelo silêncio geral. Era um homem alto, seco, de tez tostada, bigode curto e grisalho. Houve um movimento de cadeiras. A campainha soou, como nos atos litúrgicos. E a uma ordem do magistrado, entrou o réu, entre dois soldados.
Abelardo Padilha Porto era acadêmico de medicina no Rio quando, com a morte do pai, teve de interromper os estudos e regressar precipitadamente à sua cidade natal. Os negócios do velho agricultor não tinham corrido bem, nos últimos tempos. Endividado, os credores, logo após a morte do devedor, haviam-se apossado da fazenda, da casa, do gado, das plantações. E se ele, e a velha mãe, ainda viviam na propriedade, era apenas enquanto esta não era vendida, para rateio judiciário do produto. Era esta a sua situação de pobreza, e de vergonha iminente, quando se deu o crime, que espantara a cidade.
Entre os estabelecimentos mais movimentados da rua do Sal, estava o do português Antônio Rocha, constituído por uma casa de secos e molhados, cujo comércio diário subia a várias centenas de mil réis. A casa de negócio do gordo comerciante era, como em geral sucede no interior, o desdobramento, apenas, da sua casa de moradia. Com quatro portas de frente, três pertenciam ao armazém, e uma, apenas, à família, instalada nos fundos do prédio. A entrada para a casa de residência era, assim, independente; e feita por um corredor, comunicando-se, embora, a sala de jantar com o armazém, para o trânsito dos moradores.
Era aí, segregada do mundo, sem uma janela por onde olhasse a rua, que vivia, há dois anos, uma das moças mais bonitas da modesta cidade provinciana. Casada por necessidade, escondera no seu coração, ao entregar-se para sempre ao homem que era o seu marido, uma afeição que lhe nascera na infância, e que sabia correspondida. Por vários anos relutara, na esperança de uma longínqua felicidade. E quando não pudera mais, quando a velha mãe, já tuberculosa, lhe anunciou que não duraria muito na terra, foi que resolveu aceder ao pedido de casamento do vendeiro português, entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua alma.
A chegada de Abelardo Padilha ao município, para liquidar os negócios paternos, havia abalado, fundo, o coração de Santinha Rocha. Amava-o como nos tempos de menina, e, se a sua virtude, a sua condição de mulher honesta, lhe não permitiam mais a realização de um sonho que alimentara desde criança, restava-lhe, pelo menos, o consolo de dar-lhe, na situação que atravessava, uma demonstração concreta, e pura, da sua amizade de irmã. Possuía economias, feitas pouco a pouco, possuía jóias, que o marido lhe havia dado; e tudo aquilo seria dele, do homem a quem amara sempre, daquele que fora, na vida, a única esperança do seu destino irremediável. E se ela possuía meios, recursos sem aplicação, por que não o socorria, evitando-lhe uma vergonha, e, com a vergonha, a miséria, a fome, e, quem sabe? o suicídio aos olhos da pobre mãe entrevada? Urgia, pois, chamá-lo, falar com ele, socorrê-lo. Procurá-lo, não ser ia possível, pois que o marido não a deixava sair desacompanhada. O remédio, era, portanto, fazê-lo vir à sua casa, sem testemunhas, na noite em que Antônio estivesse ausente.
O processo era perigoso, mas era o único. Ademais, onde a estrada escura e coberta de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores? E foi instado, solicitado, insistido, por dois, cinco, dez bilhetes de coração, que o Abelardo aquiescera em penetrar, naquela noite triste, na casa do comerciante.
Antônio da Rocha havia saído, já há meia hora, em visita a um amigo, quando o vulto do antigo estudante surgiu à esquina, à claridade medrosa do pequeno lampião solitário. Parou, olhou em torno, examinando a rua. Não havia ninguém. Cauteloso, mergulhou de novo na sombra, e caminhava cosido com a parede, quando, em frente, exatamente, à porta do Antônio da Rocha, ouviu o seu nome, num sussurro, que o fizera estremecer:
- Abelardo... Entra!...
E logo duas mãos esguias, geladas, que apertavam as suas no escuro, e que, posta a porta no trinco, pois que o marido havia levado a chave, o conduziam, amigas, para a sala de jantar.
Pondo o coração nas palavras, a moça contou-lhe, nervosa, os olhos cheios dágua, o motivo daquela temeridade. Que ele não fizesse mau juízo da sua virtude, da sua seriedade de mulher. Amava-o, sem dúvida; mas amava-o com saudade, não com esperança. Quem o havia chamado ali, não era a noiva, era a irmã, a companheira dos outros tempos. Queria-o de todo o coração. E não consentiria que ele, e principalmente sua mãe, tão idosa e tão santa, passassem pela vergonha de serem postos na rua, sem um abrigo ou um pedaço de pão.
- Não é uma esmola que te dou, Abelardo; é um empréstimo que te faço! - disse, estendendo-lhe um maço de cédulas, que o rapaz, com a vergonha no rosto, recusava aceitar.
Nesse momento, porém, a porta estalou na fechadura.
- Meu Deus!... O Antônio!... - gemeu a moça, com olhos de terror.
E como alucinada, empurrando o rapaz pela porta que dava para o armazém:
- Foge!... Foge!... Pelo amor de Deus!...
E enfiando-lhe o dinheiro no bolso do casaco, às pressas:
- Toma!... Foge!...
Pesado e mole, com a atenção emaranhada nas cifras, o vendeiro levou, ainda, alguns minutos para limpar os pés no capacho, trancar a porta, experimentar os ferrolhos; e minutos tão longos que, quando chegou à sala de jantar, a mulher já estava no quarto de dormir, simulando o primeiro sono.
Antônio da Rocha fora criado, porém, com espírito de prudência e sentido de previsão. Três vezes por semana, antes de deitar-se, tomava de uma vela e percorria, examinando meticulosamente os menores recantos, os dois compartimentos do armazém. E naquela noite, mandava-lhe a consciência, mecanicamente, que cumprisse aquela obrigação.
A vela na mão esquerda, a direita no bolso da calça, o comerciante caminhava, despreocupado, entre pilhas de charque e sacos de arroz, quando ouviu, de súbito, um rumor de papéis remexidos. Estacou desconfiado e, depois de prestar melhor ouvido ao barulho, regressou ao quarto de dormir, apanhando o revólver e dizendo, para a mulher:
- Temos ladrão em casa... Vem cá!
- Antônio!... - exclamou a moça, sentando-se repentinamente na cama, as mãos na cabeça.
Tomando aquela exclamação como um grito de medo, Antônio da Rocha marchou, resoluto, para o armazém. E, à porta do compartimento das vendas, gritou:
- Quem está aí?
E outra vez:
- Se não responder, eu atiro!
E esse tempo, o comerciante, que apagara a vela, havia já alcançado o comutador da eletricidade. E quando uma onda de claridade se espalhou pela casa, iluminando tudo, Antônio da Rocha estacou, estarrecido: diante dele, encostado a uma das prateleiras, estava o "doutor" Abelardo Padilha, corretamente vestido, a fisionomia serena, tendo nas mãos, amontoadas em pilhas, várias mercadorias apanhadas apressadamente no escuro: latas de leite condensado, vidros de conserva, maços de fósforos, um queijo, um pequeno embrulho de café.
- O senhor... um ladrão!... - exclamou o vendeiro, a boca torcida, em uma ironia que era, ao mesmo tempo, de raiva e prazer.
A essas palavras, Abelardo Padilha estremeceu. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto, cegando-o. Teve ímpetos de atirar tudo aquilo para o lado, e estrangular o miserável que assim o insultava. Lembrou-se, porém, de Santinha, da sua reputação, do seu destino, do dever, que lhe cabia, de salvá-la, dando a sua honra de homem pela sua honra de mulher. E, baixando a cabeça, deixou cair, tudo aquilo, com estrondo, no chão.
E ali estava, agora, diante da cidade toda, para ser julgado.
- O acusado - indagou o juiz, a voz pausada e serena, - o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas... Que motivo o levou ali?
- O roubo, sr. juiz! - declarou Padilha, a voz trêmula.
E mergulhando a cabeça entre os braços desatou a chorar...
ENTRE DUAS DATAS
Machado de Assis
Que duas pessoas se amem e se separem é, na verdade, coisa triste, desde que não há entre elas nenhum impedimento moral ou social. Mas o destino ou o acaso, ou o complexo das circunstâncias da vida determina muita vez o contrário. Uma viagem de negócio ou de recreio, uma convalescença, qualquer coisa basta (consultem La Palise) para cavar um abismo entre duas pessoas.
Era isto, resumidamente, o que pensava uma noite o bacharel Duarte, à mesa de um café, tendo vindo do Teatro Ginásio. Tinha visto no teatro uma moça muito parecida com outra que ele outrora namorara. Há quanto tempo ia isso! Há sete anos, foi em 1855. Ao ver a moça no camarote, chegou a pensar que era ela, mas advertiu que não podia ser; a outra tinha dezoito anos, devia estar com vinte e cinco, e esta não representava mais de dezoito, quando muito, dezenove.
Não era ela; mas tão parecida, que trouxe à memória do bacharel todo o passado, com as suas reminiscências vivas no espírito, e Deus sabe se no coração. Enquanto lhe preparavam o chá, Duarte divertiu-se em recompor a vida, se acaso tivesse casado com a primeira namorada, — a primeira! Tinha então vinte e três anos. Vira-a na casa de um amigo, no Engenho Velho, e ficaram gostando um do outro. Ela era meiga e acanhada, linda a mais não ser, às vezes com ares de criança, que lhe davam ainda maior relevo. Era filha de um coronel.
Nada impedia que os dois se casassem, uma vez que se amavam e se mereciam. Mas aqui entrou justamente o destino ou o acaso, o que ele chamava há pouco “complexo das circunstâncias da vida”, definição realmente comprida e enfadonha. O coronel teve ordem de seguir para o Sul; ia demorar-se dois a três anos. Ainda assim podia a filha casar com o bacharel; mas não era este o sonho do pai da moça, que percebera o namoro e estimava poder matá-lo. O sonho do coronel era um general; em falta dele, um comendador rico. Pode ser que o bacharel viesse a ser um dia rico, comendador e até general — como no tempo da guerra do Paraguai. Pode ser, mas não era nada, por ora, e o pai de Malvina não queria arriscar todo o dinheiro que tinha nesse bilhete que podia sair-lhe branco.
Duarte não a deixou ir sem tentar alguma coisa. Meteu empenhos. Uma prima dele, casada com um militar, pediu ao marido que interviesse, e este fez tudo o que podia para ver se o coronel consentia no casamento da filha. Não alcançou nada. Afinal, o bacharel estava disposto a ir ter com eles no Sul; mas o pai de Malvina dissuadiu-o de um tal projeto, dizendo-lhe primeiro que ela era ainda muito criança, e depois que, se ele lá aparecesse, então é que nunca lha daria.
Tudo isso foi pelos fins de 1855. Malvina seguiu com o pai, chorosa, jurando ao namorado que se atiraria ao mar, logo que saísse a barra do Rio de Janeiro. Jurou com sinceridade; mas a vida tem uma parte inferior que destrói, ou pelo menos, altera e atenua as resoluções morais. Malvina enjoou. Nesse estado, que toda a gente afirma ser intolerável, a moça não teve a necessária resolução para um ato de desespero. Chegou viva e sã ao Rio Grande.
Que houve depois? Duarte teve algumas notícias, a princípio, por parte da prima, a quem Malvina escrevia, todos os meses, cartas cheias de protestos e saudades. No fim de oito meses, Malvina adoeceu, depois escassearam as cartas. Afinal, indo ele à Europa, cessaram elas de todo. Quando ele voltou, soube que a antiga namorada tinha casado em Jaguarão; e (vede a ironia do destino) não casou com general nem comendador rico, mas justamente com um bacharel sem dinheiro.
Está claro que ele não deu um tiro na cabeça nem murros na parede; ouviu a notícia e conformou-se com ela. Tinham então passado cinco anos; era em 1860. A paixão estava acabada; havia somente um fiozinho de lembrança teimosa. Foi cuidar da vida, à espera de casar também.
E é agora, em 1862, estando ele tranqüilamente no Ginásio, que uma moça lhe apareceu com a cara, os modos e a figura de Malvina em 1855. Já não ouviu bem o resto do espetáculo; viu mal, muito mal, e, no café, encostado a uma mesa do canto, ao fundo, rememorava tudo, e perguntava a si mesmo qual não teria sido a sua vida, se tivessem realizado o casamento.
Poupo às pessoas que me lêem a narração do que ele construiu, antes, durante e depois do chá. De quando em quando, queria sacudir a imagem do espírito; ela, porém, tornava e perseguia-o, assemelhando-se (perdoem-me as moças amadas) a uma mosca importuna. Não vou buscar à mosca senão a tenacidade de presença, que é uma virtude nas recordações amorosas; fica a parte odiosa da comparação para os conversadores enfadonhos. Demais, ele próprio, o próprio Duarte é que empregou a comparação, no dia seguinte, contando o caso ao colega de escritório. Contou-lhe então todo o passado.
— Nunca mais a viste?
— Nunca.
— Sabes se ela está aqui ou no Rio Grande?
— Não sei nada. Logo depois do casamento, disse-me a prima que ela vinha para cá; mas soube depois que não, e afinal não ouvi dizer mais nada. E que tem que esteja? Isto é negócio acabado. Ou supões que seria ela mesma que vi? Afirmo-te que não.
— Não, não suponho nada; fiz a pergunta à toa.
— À toa? repetiu Duarte rindo.
— Ou de propósito, se queres. Na verdade, eu creio que tu... Digo? Creio que ainda estás embeiçado...
— Por quê?
— A turvação de ontem...
— Que turvação?
— Tu mesmo o disseste; ouviste mal o resto do espetáculo, pensaste nela depois, e agora mesmo contas-me tudo com um tal ardor...
— Deixa-te disso. Contei o que senti, e o que senti foram saudades do passado. Presentemente...
Daí a dias, estando com a prima, — a intermediária antiga das notícias, — contou-lhe o caso do Ginásio.
— Você ainda se lembra disso? disse ela.
— Não me lembro, mas naquela ocasião deu-me um choque... Não imagina como era parecida. Até aquele jeitinho que Malvina dava à boca, quando ficava aborrecida, até isso...
— Em todo caso, não é a mesma.
— Por quê? Está muito diferente?
— Não sei; mas sei que Malvina ainda está no Rio Grande.
— Em Jaguarão?
— Não; depois da morte do marido...
— Enviuvou?
— Pois então? há um ano. Depois da morte do marido, mudou-se para a capital.
Duarte não pensou mais nisto. Parece mesmo que alguns dias depois encetou um namoro, que durou muitos meses. Casaria, talvez, se a moça, que já era doente, não viesse a morrer, e deixá-lo como dantes. Segunda noiva perdida.
Acabava o ano de 1863. No princípio de 1864, indo ele jantar com a prima, antes de seguir para Cantagalo, onde tinha de defender um processo, anunciou-lhe ela que um ou dois meses depois chegaria Malvina do Rio Grande. Trocaram alguns gracejos, alusões ao passado e ao futuro; e, tanto quanto se pode dizer, parece que ele saiu de lá pensando na recente viúva. Tudo por causa do encontro no Ginásio em 1862. Entretanto, seguiu para Cantagalo.
Não dois meses, nem um, mas vinte dias depois, Malvina chegou do Rio Grande. Não a conhecemos antes, mas pelo que diz a amiga ao marido, voltando de visitá-la, parece que está bonita, embora mudada. Realmente, são passados nove anos. A beleza está mais acentuada, tomou outra expressão, deixou de ser o alfenim de 1855, para ser mulher verdadeira. Os olhos é que perderam a candura de outro tempo, e um certo aveludado, que acariciava as pessoas que os recebiam. Ao mesmo tempo, havia nela, outrora, um acanhamento próprio da idade, que o tempo levou: é o que acontece a todas as pessoas. Malvina é expansiva, ri muito, mofa um pouco, e ocupa-se de que a vejam e admirem. Também outras senhoras fazem a mesma coisa em tal idade, e até depois, não sei se muito depois; não a criminemos por um pecado tão comum.
Passados alguns dias, a prima do bacharel falou deste à amiga, contou-lhe a conversa que tiveram juntos, o encontro do Ginásio, e tudo isso pareceu interessar grandemente à outra. Não foram adiante; mas a viúva tornou a falar do assunto, não uma, nem duas, mas muitas vezes.
— Querem ver que você está querendo recordar-se...
Malvina fez um gesto de ombros para fingir indiferença; mas fingiu mal. Contou-lhe depois a história do casamento. Afirmou que não tivera paixão pelo marido, mas que o estimara bastante. Confessou que muita vez se lembrara do Duarte. E como estava ele? tinha ainda o mesmo bigode? ria como dantes? dizia as mesmas graças?
— As mesmas.
— Não mudou nada?
— Tem o mesmo bigode, e ri como antigamente; tem mais alguma coisa: um par de suíças.
— Usa suíças?
— Usa, e por sinal que bonitas, grandes, castanhas...
Malvina recompôs na cabeça a figura de 1855, pondo-lhe as suíças, e achou que deviam ir-lhe bem, conquanto o bigode somente fosse mais adequado ao tipo anterior. Até aqui era brincar; mas a viúva começou a pensar nele com insistência; interrogava muito a outra, perguntava-lhe quando é que ele vinha.
— Creio que Malvina e Duarte acabam casando, disse a outra ao marido.
Duarte veio finalmente de Cantagalo. Um e outro souberam que iam aproximar-se; e a prima, que jurara aos seus deuses casá-los, tornou o encontro de ambos ainda mais apetecível. Falou muito dele à amiga; depois quando ele chegou, falou-lhe muito dela, entusiasmada. Em seguida arranjou-lhes um encontro, em terreno neutro. Convidou-os para um jantar.
Podem crer que o jantar foi esperado com ânsia por ambas as partes. Duarte, ao aproximar-se da casa da prima, sentiu mesmo uns palpites de outro tempo; mas dominou-se e subiu. Os palpites aumentaram; e o primeiro encontro de ambos foi de alvoroço e perturbação. Não disseram nada; não podiam dizer coisa nenhuma. Parece até que o bacharel tinha planeado um certo ar de desgosto e repreensão. Realmente, nenhum deles fora fiel ao outro, mas as aparências eram a favor dele, que não casara, e contra ela, que casara e enterrara o marido. Daí a frieza calculada da parte do bacharel, uma impassibilidade de fingido desdém. Malvina não afetara nem podia afetar a mesma atitude; mas estava naturalmente acanhada — ou digamos a palavra toda, que é mais curta, vexada. Vexada é o que era.
A amiga dos dois tomou a si desacanhá-los, reuni-los, preencher o enorme claro que havia entre as duas datas, e, com o marido, tratou de fazer um jantar alegre. Não foi tão alegre como devia ser; ambos espiavam-se, observavam-se, tratavam de reconhecer o passado, de compará-lo ao presente, de ajuntar a realidade às reminiscências. Eis algumas palavras trocadas à mesa entre eles:
— O Rio Grande é bonito?
— Muito: gosto muito de Porto Alegre.
— Parece que há muito frio?
— Muito.
E depois, ela:
— Tem tido bons cantores por cá?
— Temos tido.
— Há muito tempo não ouço uma ópera.
Óperas, frio, ruas, coisas de nada, indiferentes, e isso mesmo a largos intervalos. Dir-se-ia que cada um deles só possuía a sua língua, e exprimia-se numa terceira, de que mal sabiam quatro palavras. Em suma, um primeiro encontro cheio de esperanças. A dona da casa achou-os excessivamente acanhados, mas o marido corrigiu-lhe a impressão, ponderando que isso mesmo era prova de lembrança viva a despeito dos tempos.
Os encontros naturalmente amiudaram-se. A amiga de ambos entrou a favorecê-los. Eram convites para jantares, para espetáculos, passeios, saraus — eram até convites para missas. Custa dizer, mas é certo que ela até recorreu à igreja para ver se os prendia de uma vez.
Não menos certo é que não lhes falou de mais nada. A mais vulgar discrição pedia o silêncio, ou pelo menos, a alusão galhofeira e sem calor; ela preferiu não dizer nada. Em compensação observava-os, e vivia numas alternativas de esperança e desalento. Com efeito, eles pareciam andar pouco.
Durante os primeiros dias, nada mais houve entre ambos, além de observação e cautela. Duas pessoas que se vêem pela primeira vez, ou que se tornam a ver naquelas circunstâncias, naturalmente dissimulam. É o que lhes acontecia. Nem um nem outro deixava correr a natureza, pareciam andar às apalpadelas, cheios de circunspecção e atentos ao menor escorregão. Do passado, coisa nenhuma. Viviam como se tivessem nascido uma semana antes, e devessem morrer na seguinte; nem passado nem futuro. Malvina sofreou a expansão que os anos lhe trouxeram, Duarte o tom de homem solteiro e alegre, com preocupações políticas, e uma ponta de ceticismo e de gastronomia. Cada um punha a máscara, desde que tinham de encontrar-se.
Mas isto mesmo não podia durar muito; no fim de cinco ou seis semanas, as máscaras foram caindo. Uma noite, achando-se no teatro, Duarte viu-a no camarote, e, não pôde esquivar-se de a comparar com a que vira antes, e tanto se parecia com a Malvina de 1855. Era outra coisa, assim de longe, e às luzes, sobressaindo no fundo escuro do camarote. Além disso, pareceu-lhe que ela voltava a cabeça para todos os lados com muita preocupação do efeito que estivesse causando.
“Quem sabe se deu em namoradeira?” pensou ele.
E, para sacudir este pensamento, olhou para outro lado; pegou do binóculo e percorreu alguns camarotes. Um deles tinha uma dama, assaz galante, que ele namorara um ano antes, pessoa que era livre, e a quem ele proclamara a mais bela das cariocas. Não deixou de a ver, sem algum prazer; o binóculo demorou-se ali, e tornou ali, uma, duas, três, muitas vezes. Ela, pela sua parte, viu a insistência e não se zangou. Malvina, que notou isso de longe, não se sentiu despeitada; achou natural que ele, perdidas as esperanças, tivesse outros amores.
Um e outro eram sinceros aproximando-se. Um e outro reconstruíam o sonho anterior para repeti-lo. E por mais que as reminiscências posteriores viessem salteá-lo, ele pensava nela; e por mais que a imagem do marido surgisse do passado e do túmulo, ela pensava no outro. Eram como duas pessoas que se olham, separadas por um abismo, e estendem os braços para se apertarem.
O melhor e mais pronto era que ele a visitasse; foi o que começou a fazer — dali a pouco. Malvina reunia todas as semanas as pessoas de amizade. Duarte foi dos primeiros convidados, e não faltou nunca. As noites eram agradáveis, animadas, posto que ela devesse repartir-se com os outros. Duarte notava-lhe o que já ficou dito: gostava de ser admirada; mas desculpou-a dizendo que era um desejo natural às mulheres bonitas. Verdade é que, na terceira noite, pareceu-lhe que o desejo era excessivo, e chegava ao ponto de a distrair totalmente. Malvina falava para ter o pretexto de olhar, voltava a cabeça, quando ouvia alguém, para circular os olhos pelos rapazes e homens feitos, que aqui e ali a namoravam. Esta impressão foi confirmada na quarta noite e na quinta, desconsolou-o bastante.
— Que tolice! disse-lhe a prima, quando ele lhe falou nisso, afetando indiferença. Malvina olha para mostrar que não desdenha os seus convidados.
— Vejo que fiz mal em falar a você, redargüiu ele rindo.
— Por quê?
— Todos os diabos, naturalmente, defendem-se, continuou Duarte; todas vocês gostam de ser olhadas; — e, quando não gostam, defendem-se sempre.
— Então, se é um querer geral, não há onde escolher, e nesse caso...
Duarte achou a resposta feliz, e falou de outra coisa. Mas, na outra noite, não achou somente que a viúva tinha esse vício em grande escala; achou mais. A alegria e expansão das maneiras trazia uma gota amarga de maledicência. Malvina mordia, pelo gosto de morder, sem ódio nem interesse. Começando a freqüentá-la, nos outros dias, achou-lhe um riso mal composto, e, principalmente, uma grande dose de ceticismo. A zombaria nos lábios dela orçava pela troça elegante.
“Nem parece a mesma” disse ele consigo.
Outra coisa que ele lhe notou, — e não lhe notaria se não fossem as descobertas anteriores — foi o tom cansado dos olhos, o que acentuava mais o tom velhaco do olhar. Não a queria inocente, como em 1855; mas parecia-lhe que era mais que sabida, e essa nova descoberta trouxe ao espírito dele uma feição de aventura, não de obra conjugal. Daí em diante, tudo era achar defeitos; tudo era reparo, lacuna, excesso, mudança.
E, contudo, é certo que ela trabalhava em reatar sinceramente o vínculo partido. Tinha-o confiado à amiga, perguntando-lhe esta por que não casava outra vez.
— Para mim há muitos noivos possíveis, respondeu Malvina; mas só chegarei a aceitar um.
— É meu conhecido? perguntou a outra sorrindo.
Malvina levantou os ombros, como dizendo que não sabia; mas os olhos não acompanhavam os ombros, e a outra leu neles o que já desconfiava.
— Seja quem for, disse-lhe, o que é que lhe impede de casar?
— Nada.
— Então...
Malvina esteve calada alguns instantes; depois confessou que a pessoa lhe parecia mudada ou esquecida.
— Esquecida, não, acudiu vivamente a outra.
— Pois só mudada; mas está mudada.
— Mudada...
Na verdade, também ela achava transformação no antigo namorado. Não era o mesmo, nem fisicamente nem moralmente. A tez era agora mais áspera; e o bigode da primeira hora estava trocado por umas barbas sem graça; é o que ela dizia, e não era exato. Não é porque Malvina tivesse na alma uma corda poética ou romântica; ao contrário, as cordas eram comuns. Mas tratava-se de um tipo que lhe ficara na cabeça, e na vida dos primeiros anos. Desde que não respondia às feições exatas do primeiro, era outro homem. Moralmente, achava-o frio, sem arrojo, nem entusiasmo, muito amigo da política, desdenhoso e um pouco aborrecido. Não disse nada disto à amiga; mas era a verdade das suas impressões. Tinham-lhe trocado o primeiro amor.
Ainda assim, não desistiu de ir para ele, nem ele para ela; um buscava no outro o esqueleto, ao menos, do primeiro tipo. Não acharam nada. Nem ele era ele, nem ela era ela. Separados, criavam forças, porque recordavam o quadro anterior, e recompunham a figura esvaída; mas tão depressa tornavam a unir-se como reconheciam que o original não se parecia com o retrato — tinham-lhes mudado as pessoas.
E assim foram passando as semanas e os meses. A mesma frieza do desencanto tendia a acentuar as lacunas que um apontava ao outro, e pouco a pouco, cheios de melhor vontade, foram-se separando. Não durou este segundo namoro, ou como melhor nome tenha, mais de dez meses. No fim deles, estavam ambos despersuadidos de reatar o que fora roto. Não se refazem os homens — e, nesta palavra, estão compreendidas as mulheres; nem eles nem elas se devolvem ao que foram... Dir-se-á que a terra volta a ser o que era, quando torna a estação melhor; a terra, sim, mas as plantas, não. Cada uma delas é um Duarte ou uma Malvina.
Ao cabo daquele tempo esfriaram; seis ou oito meses depois, casaram-se — ela, com um homem que não era mais bonito, nem mais entusiasta, que o Duarte — ele com outra viúva, que tinha as mesmas características da primeira. Parece que não ganharam nada; mas ganharam não casar uma desilusão com outra: eis tudo, e não é pouco.
O ELEFANTE
Humberto de Campos
Abu-Beker, o mercador opulento que espantava Bagdá com os esplendores do seu luxo, encontrou, um dia, entre as suas quatrocentas mulheres, uma, de beleza excepcional, que lhe enchera do vinho do desejo a bilha de ouro do coração. Chamava-se Kiusa, e sua língua era doce como uma tâmara. Adorando-a até o desespero, uma dúvida o atormentava, dia e noite, na suntuosidade do seu palácio: a dúvida de que aquele corpo era seu, apenas, e de que ninguém lhe violava, subornando os eunucos, a honestidade do gineceu. E foi atormentado que, um dia, se dirigiu à mesquita, e pediu, com o rosto em terra, soluçando versículos do Alcorão:
— Alá, tu, que abranges o universo com teu poder, consente que seja minha, unicamente, a esposa do meu amor. Eu tenho pensado, nas minhas vigílias aflitas, no meio de conservá-la virgem de beijos alheios; e encontrei um remédio: arrebatá-la para as montanhas, para os desertos, para as florestas que marcam os limites do mar, onde não haja outros seres senão eu e ela. Transforma-me, pois, na tua misericórdia, em um elefante soberbo e poderoso, para que eu atravesse, puxando o seu carro, as regiões desertas da Arábia!
Instantes depois, graças a um sortilégio comum nas terras do Crescente, saía as portas de Bagdá um carro suntuoso, tauxiado de ouro e forrado de púrpura, puxado pesadamente por um elefante. E foi de coração sossegado que Abu-Beker penetrou, transformado no monstruoso plantígrado, as florestas da Índia, arrastando pacientemente o carro do seu amor.
Certo dia, após uma viagem penosa e longa, o elefante parou de repente, desatrelou-se com o auxílio da tromba, e, abandonando os varais, deu volta em torno do carro, cuja entrada era por trás. E soltou um rugido de dor e de espanto: dentro, nos coxins que a sua opulência amontoara, deitavam-se enlaçados, Kiusa, maravilhosa de formosura, e bêbada de desejo, e, ao seu lado, beijando-lhe os olhos, Ebn-Ali, mercador de Alexandria! Ele tinha vindo, desde Bagdá, a puxar o carro dos dois amantes, que, dentro, se enlaçavam amorosos, enquanto ele, confiado e sereno, feria as patas pelo caminho!
Um barrido de desespero marcou o fim daquele encantamento humilhante. E era tornado homem, com o seu manto de mercador despedaçado pelos espinhos da viagem, que Abu-Beker gemia, com o rosto no solo.
— Alá, bendito sejas tu, na tua gloriosa sabedoria! Debalde tentarão os homens, mesmo com o teu auxílio, forçar as mulheres à honestidade, quando dias querem traí-los!
E debulhava-se em lágrimas, quando ouviu, de súbito, uma voz poderosa, que lhe disse:
— Mortal, aprende, tu mesmo, à tua custa, esta grande verdade; nenhum homem poderá, jamais, subtrair a mulher à traição, quando ela o queira enganar. O insensato que, como tu, trouxer, por prevenção, o leito às costas, terá, ao fim da viagem, uma surpresa dolorosa: verá que arrastou pelos caminhos, sem o saber, a mulher e o amante!
Abu-Beker levantou-se, enxugou os olhos, e, para esquecer, começou a ler o Alcorão.
O ENFERMEIRO
Machado de Assis
Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras coisas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu- me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol. nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em l860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo. - quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava. delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao Coronel Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou- me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dois deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.
Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dois olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumino-lhe as feições. que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dois eram até gatunos!
- Você é gatuno?
- Não, senhor.
Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias.
No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.
Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dois ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.
- Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo. Procópio?
- Qual o quê!
- E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu vivamente, arregalando os olhos.
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d'asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário. ia ficando.
Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.
Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram- me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.
Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio; o prato foi cair na parede, onde se fez em pedaços.
- Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d'Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.
Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava uma vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!
Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa, na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. - "Maldita a hora em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.
Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a urna recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro, espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.
Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.
A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma coisa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:
- Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da meia-escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...
- Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia.
E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E, elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n'alma!" E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...
Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma coisa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.
- Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.
- Não sei, mas era rico.
- Realmente, provou que era teu amigo.
- Era... Era...
Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma coisa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas.
Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime...
Crime ou luta? Realmente, foi uma luta em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéia. E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra coisa. Fixei-me também nessa idéia...
Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei- me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.
- Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.
Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí advogado; as coisas correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me coisas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero...
- Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.
E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu, sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando.
As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o plano primitivo; distribuí alguma coisa aos pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dois contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai.
Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados."
PAVORES DE ENFERMO
Humberto de Campos
Não obstante a sua aparência de homem grave, circunspecto, ponderado, que lhe assegurara aquele emprego de confiança, o coronel Bonifácio Coutinho, diretor do Asilo de Senhoras Arrependidas, era, intimamente, um dos temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades daquelas funções. Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade, defrontavam-se, nele, o desejo e o interesse. E não era sem custo, sem violência, que este se superpunha à brutalidade dos seus nervos, tornando-lhe possível a manutenção daquela sinecura amável, que lhe amenizava as infinitas asperezas da vida. Assim constituído, o coronel resolveu, um dia, quebrar a sua couraça e, chamando em particular o médico do estabelecimento, pediu-lhe um conselho:
— Diga-me cá, doutor, diga-me, com reserva: o senhor acha que me fica mal conquistar uma ou outra das nossas asiladas?
— Absolutamente, não! — acudiu o facultativo. — Desde que elas queiram, não há, mal nenhum. Eu próprio tenho me prevalecido dessa faculdade, procurando, apenas, não investir contra aquelas que, de antemão, parecem rigidamente sérias.
— E que faz o doutor para diferençar umas das outras? — objetou o velho. — Como que o senhor as distingue?
O galeno tomou-o pelo braço, arrastou-o para o silêncio de uma janela deitando sobre jardim, e revelou-lhe o seu segredo:
— Olhe: o senhor, quando se quiser aventurar a uma destas conquistas, faça o seguinte: chegue perto da asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se ela lhe disser uma idade visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua declaração, que será, por força, bem sucedido.
E apertando-lhe a mão
— Experimente.
Um mês depois foi o médico chamado para ver o diretor do Asilo, cujas condições de saúde preocupavam seriamente os seus subordinados. O estado de depressão era visível. O pulso, irregular, incerto, descompassado, denunciava um profundo abalo orgânico, que os seus cinquenta e cinco anos haviam tornado perigoso. À vista do enfermo, o médico compreendeu a sua missão, e, pedindo que os enfermeiros se retirassem, começou:
— Meu caro coronel, é preciso que o senhor mude de vida.
— Eu?
— Sim, senhor. O senhor abusou do meu conselho, e deve lembrar-se que não é mais uma criança, um moço, um rapaz no vigor dos anos.
E interrompendo-se:
— Que idade o senhor tem?
— Como? — atalhou o doente, alarmado.
— Eu estou perguntando que idade tem o senhor.
A essa confirmação da consulta, passou pelo cérebro do enfermo um pensamento sinistro. Com que ideia lhe fazia o médico aquela pergunta? E foi com o pavor nos olhos que se sentou, de repente, no leito, bradando, horrorizado, com os olhos fora das órbitas:
— Cento e cinquenta anos doutor! Duzentos! Duzentos e cinquenta anos, doutor!
E disparou, escada abaixo.
O EMPRÉSTIMO
Machado de Assis
Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?
Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.
Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.
– Quem é? perguntou ele de repente olhando para a porta da rua.
Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.
– Não me lembro…
– Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca… Não se lembra? Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde… Veja se se lembra do Custódio.
– Ah!
Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um exército. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n’en vois pas la nécessité, redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.
Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.
Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou para cima dos óculos e esperou.
– Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo…
– Se estiver nas minhas mãos…
– O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, – ou a três, com juro módico…
– Cinco contos?
– Sim, senhor.
– Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?
– Ora, se o senhor quisesse…
A alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regime do eventual, o do Custódio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.
– Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo. . .
– Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida; mas…
Estendeu a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma razoável, quinhentos mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele ia ver surdir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.
– Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos… Quanto?
– Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.
– Quinhentos mil-réis?
– Não; não posso.
– Nem quinhentos mil-réis?
– Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares… Diga-me, não está empregado?
– Não, senhor.
– Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da justiça, tenho relações com ele, e…
Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, – “tapar um buraco”. E então relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos…
– Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora…
– Não imagina os apuros em que estou!
– Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria… Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as penas-d’água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água…
– Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.
– Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores… Creia o senhor que também eu tenho credores.
– Nem cem mil-réis!
– Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é verdade. Nem cem mil-réis. Que horas são?
Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil-réis. Quem é que não tem cem mil-réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro… Este incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; – não de desdém, não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinqüenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.
Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira… Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos; invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não levasse ali vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem. . .
– Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.
Era o fatal instante. Nenhuma palavra do tabelião, um convite ao menos, para jantar; nada; findara tudo. Mas os momentos supremos pedem energias supremas. Custódio sentiu toda a força deste lugar-comum, e, súbito, como um tiro, perguntou ao tabelião se não lhe podia dar ao menos dez mil-réis.
– Quer ver?
E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil-réis.
– Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?
Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, – um até breve cheio de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.
OS HORRORES DA GUERRA
Humberto de Campos
O caso policial contado há dias pelos jornais, é, ao que parece, mera reprodução de uma infinidade de outros, ocorridos no Rio, e, em geral, no mundo inteiro. A guerra, principalmente, com os seus horrores, com as suas violências, com as suas brutalidades inomináveis, tem fornecido exemplares curiosíssimos de certas vergonhas, que constituem, como se sabe, a nódoa de lama da túnica das sociedades.
A prova mais amarga, e mais típica, desse gênero de verdades dolorosas, é, entretanto, a que Banville apresenta em um quadro melancólico, desenhado com a delicadeza inimitável do seu estilo. As cores da tela são tão leves, tão doces, tão brandas, que eu me permito a mim próprio, a audácia de retocá-la, na blasfêmia de uma ligeira adaptação.
Em um salão triste e antigo, ressumando saudades, meditam, com a alva cabeça pendida sobre o peito, três velhinhas setuagenárias, cujos olhos se perdem, quase sem brilho, nas brumas longínquas do passado. Procedem, as três, do tumulto do mundo, de que são ali, meros despojos de um naufrágio, atirados à praia, como tantos outros, pelas eternas tempestades da vida. Cabeça baixa, olhos baixos, a mais velha das três solta, de repente, um suspiro tão fundo, que lhe traz aos olhos uma lágrima. As outras olham-na, compadecidas, e, para matar as horas, que, por sua vez, as vão matando, resolvem contar os seus amores, as suas aventuras, resumindo nestas o braço mau, ou leviano, que as atirou à desgraça.
— Eu, — contou a mais velha — fui vítima do meu noivo, o tenente Balduino, do antigo batalhão de lanceiros. Confiando nele, nas suas juras, nas suas promessas apaixonadas e ardentes, deixei-me arrastar, um dia, pela sua palavra e pelo seu braço, até à sua casa, e, quando despertei no dia seguinte, foi para chorar, como até hoje, a minha infelicidade...
— A minha história, — principiou a segunda, — não é muito diferente. Passeava uma tarde com o meu primo, o Barão Reinaldo, pelas alamedas do jardim de meu pai, quando, embriagada pela amavio dos seus juramentos de amor, me deixei cingir pelos seus braços. O beijo pecador que pôs, como uma brasa, na minha boca virgem, fez-me desmaiar. Meses depois o Barão partia para o Oriente, enquanto meu pai me atirava à rua, com o meu filho e a minha vergonha!
A terceira velhinha mantinha-se em silêncio, meditativa, quando as outras a interrogaram:
— E a senhora, mãe Georgete?
— Eu? Eu vivia na Alsácia, em 1870, com meu pai e minha mãe. Era jovem e linda. Um dia, ouvimos troar a artilharia nas vizinhanças da aldeia. Era o inimigo!
E calou-se. Mas as outras exigiram:.
— E o resto?
— Que resto?
As duas se entreolharam, e insistiram, falando claro:
— Quem foi?
E a velhinha, limpando os olhos:
— Foram os alemães...
ELOGIO DA VAIDADE
Machado de Assis
I
Logo que a Modéstia acabou de falar, com os olhos no chão, a Vaidade empertigou-se e disse:
Damas e cavalheiros, acabais de ouvir a mais chocha de todas as virtudes, a mais peca, a mais estéril de quantas podem reger o coração dos homens; e ides ouvir a mais sublime delas, a mais fecunda, a mais sensível, a que pode dar maior cópia de venturas sem contraste.
Que eu sou a Vaidade, classificada entre os vícios por alguns retóricos de profissão; mas na realidade, a primeira das virtudes. Não olheis para este gorro de guizos, nem para estes punhos carregados de braceletes, nem para estas cores variegadas com que me adorno. Não olheis, digo eu, se tendes o preconceito da Modéstia; mas se o não tendes, reparai bem que estes guizos e tudo mais, longe de ser uma casca ilusória e vã, são a mesma polpa do fruto da sabedoria; e reparai mais que vos chamo a todos, sem os biocos e meneios daquela senhora, minha mana e minha rival.
Digo a todos, porque a todos cobiço, ou sejais formosos como Páris, ou feios como Tersites, gordos como Pança, magros como Quixote, varões e mulheres, grandes e pequenos, verdes e maduros, todos os que compondes este mundo, e haveis de compor o outro; a todos falo, como a galinha fala aos seus pintinhos, quando os convoca à refeição, a saber, com interesse, com graça, com amor. Porque nenhum, ou raro, poderá afirmar que eu o não tenha alçado ou consolado.
II
Onde é que eu não entro? Onde é que eu não mando alguma coisa? Vou do salão do rico ao albergue do pobre, do palácio ao cortiço, da seda fina e roçagante ao algodão escasso e grosseiro. Faço exceções, é certo (infelizmente!); mas, em geral, tu que possuis, busca-me no encosto da tua otomana, entre as porcelanas da tua baixela, na portinhola da tua carruagem; que digo? busca-me em ti mesmo, nas tuas botas, na tua casaca, no teu bigode; busca-me no teu próprio coração. Tu, que não possuis nada, perscruta bem as dobras da tua estamenha, os recessos da tua velha arca; lá me acharás entre dois vermes famintos; ou ali, ou no fundo dos teus sapatos sem graxa, ou entre os fios da tua grenha sem óleo.
Valeria a pena ter, se eu não realçasse os teres? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que mandaste vir de tão longe esse vaso opulento? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que encomendaste à melhor fábrica o tecido que te veste, a safira que te arreia, a carruagem que te leva? Foi para escondê-lo ou mostrá-lo, que ordenaste esse festim babilônico, e pediste ao pomar os melhores vinhos? E tu, que nada tens, por que aplicas o salário de uma semana ao jantar de uma hora, senão porque eu te possuo e te digo que alguma coisa deves parecer melhor do que és na realidade? Por que levas ao teu casamento um coche, tão rico e tão caro, como o do teu opulento vizinho, quando podias ir à igreja com teus pés? Por que compras essa jóia e esse chapéu? Por que talhas o teu vestido pelo padrão mais rebuscado, e por que te remiras ao espelho com amor, senão porque eu te consolo da tua miséria e do teu nada, dando-te a troco de um sacrifício grande benefício ainda maior?
III
Quem é esse que aí vem, com os olhos no eterno azul? É um poeta; vem compondo alguma coisa; segue o vôo caprichoso da estrofe. — Deus te salve, Píndaro! Estremeceu; moveu a fronte, desabrochou em riso. Que é da inspiração? Fugiu-lhe; a estrofe perdeu-se entre as moitas; a rima esvaiu-se-lhe por entre os dedos da memória. Não importa; fiquei eu com ele, — eu, a musa décima, e, portanto, o conjunto de todas as musas, pela regra dos doutores de Sganarello. Que ar beatífico! Que satisfação sem mescla! Quem dirá a esse homem que uma guerra ameaça levar um milhão de outros homens? Quem dirá que a seca devora uma porção do país? Nesta ocasião ele nada sabe, nada ouve. Ouve-me, ouve-se; eis tudo.
Um homem caluniou-o há tempos; mas agora, ao voltar à esquina, dizem-lhe que o caluniador o elogiou.
— Não me fales nesse maroto.
— Elogiou-te; disse que és um poeta enorme.
— Outros o têm dito, mas são homens de bem, e sinceros. Será ele sincero?
— Confessa que não conhece poeta maior.
— Peralta! Naturalmente arrependeu-se da injustiça que me fez. Poeta enorme, disse ele?
— O maior de todos.
— Não creio. O maior?
— O maior.
— Não contestarei nunca os seus méritos; não sou como ele que me caluniou; isto é, não sei, disseram-mo. Diz-se tanta mentira! Tem gosto o maroto; é um pouco estouvado às vezes, mas tem gosto. Não contestarei nunca os seus méritos. Haverá pior coisa do que mesclar o ódio às opiniões? Que eu não lhe tenho ódio. Oh! nenhum ódio. É estouvado, mas imparcial.
Uma semana depois, vê-lo-eis de braço com o outro, à mesa do café, à mesa do jogo, alegres, íntimos, perdoados. E quem embotou esse ódio velho, senão eu? Quem verteu o bálsamo do esquecimento nesses dois corações irreconciliáveis? Eu, a caluniada amiga do gênero humano.
Dizem que o meu abraço dói. Calúnia, amados ouvintes! Não escureço a verdade; às vezes há no mel uma pontazinha de fel; mas como eu dissolvo tudo! Chamai aquele mesmo poeta, não Píndaro, mas Trissotin. Vê-lo-eis derrubar o carão, estremecer, rugir, morder-se, como os zoilos de Bocage. Desgosto, convenho, mas desgosto curto. Ele irá dali remirar-se nos próprios livros. A justiça que um atrevido lhe negou, não lha negarão as páginas dele. Oh! a mãe que gerou o filho, que o amamenta e acalenta, que põe nessa frágil criaturinha o mais puro de todos os amores, essa mãe é Medéia, se a compararmos àquele engenho, que se consola da injúria, relendo-se; porque se o amor de mãe é a mais elevada forma do altruísmo, o dele é a mais profunda forma de egoísmo, e só há uma coisa mais forte que o amor materno, é o amor de si próprio.
IV
Vede estoutro que palestra com um homem público. Palestra, disse eu? Não; é o outro que fala; ele nem fala, nem ouve. Os olhos entornam-se-lhe em roda, aos que passam, a espreitar se o vêem, se o admiram, se o invejam. Não corteja as palavras do outro; não lhes abre sequer as portas da atenção respeitosa. Ao contrário, parece ouvi-las com familiaridade, com indiferença, quase com enfado. Tu, que passas, dizes contigo:
— São íntimos; o homem público é familiar deste cidadão; talvez parente. Quem lhe faz obter esse teu juízo, senão eu? Como eu vivo da opinião e para a opinião, dou àquele meu aluno as vantagens que resultam de uma boa opinião, isto é, dou-lhe tudo.
Agora, contemplai aquele que tão apressadamente oferece o braço a uma senhora. Ela aceita-lho; quer seguir até a carruagem, e há muita gente na rua. Se a Modéstia animara o braço do cavalheiro, ele cumprira o seu dever de cortesania, com uma parcimônia de palavras, uma moderação de maneiras, assaz miseráveis. Mas quem lho anima sou eu, e é por isso que ele cuida menos de guiar à dama, do que de ser visto dos outros olhos. Por que não? Ela é bonita, graciosa, elegante; a firmeza com que assenta o pé é verdadeiramente senhoril. Vede como ele se inclina e bamboleia! Riu-se? Não vos iludais com aquele riso familiar, amplo, doméstico; ela disse apenas que o calor é grande. Mas é tão bom rir para os outros! é tão bom fazer supor uma intimidade elegante!
Não deveríeis crer que me é vedada a sacristia? Decerto; e contudo, acho meio de lá penetrar, uma ou outra vez, às escondidas, até às meias roxas daquela grave dignidade, a ponto de lhe fazer esquecer as glórias do céu, pelas vanglórias da terra. Verto-lhe o meu óleo no coração, e ela sente-se melhor, mais excelsa, mais sublime do que esse outro ministro subalterno do altar, que ali vai queimar o puro incenso da fé. Por que não há de ser assim, se agora mesmo penetrou no santuário esta garrida matrona, ataviada das melhores fitas, para vir falar ao seu Criador? Que farfalhar! que voltear de cabeças! A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe as rendas, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste, colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.
V
Mas eu perderia o tempo, se me detivesse a mostrar um por um todos os meus súditos; perderia o tempo e o latim. Omnia vanitas. Para que citá-los, arrolá-los, se quase toda a terra me pertence? E digo quase, porque não há negar que há tristezas na terra e onde há tristezas aí governa a minha irmã bastarda, aquela que ali vedes com os olhos no chão. Mas a alegria sobrepuja o enfado e a alegria sou eu. Deus dá um anjo guardador a cada homem; a natureza dá-lhe outro, e esse outro é nem mais nem menos esta vossa criada, que recebe o homem no berço, para deixá-lo somente na cova. Que digo? Na eternidade; porque o arranco final da modéstia, que aí lês nesse testamento, essa recomendação de ser levado ao chão por quatro mendigos, essa cláusula sou eu que a inspiro e dito; última e genuína vitória do meu poder, que é imitar os meneios da outra.
Oh! a outra! Que tem ela feito no mundo que valha a pena de ser citado? Foram as suas mãos que carregaram as pedras das Pirâmides? Foi a sua arte que entreteceu os louros de Temístocles? Que vale a charrua do seu Cincinato, ao pé do capelo do meu cardeal de Retz? Virtudes de cenóbios, são virtudes? Engenhos de gabinete, são engenhos? Traga-me ela uma lista de seus feitos, de seus heróis, de suas obras duradouras; traga-ma, e eu a suplantarei, mostrando-lhe que a vida, que a história, que os séculos nada são sem mim.
Não vos deixeis cair na tentação da Modéstia: é a virtude dos pecos. Achareis decerto, algum filósofo, que vos louve, e pode ser que algum poeta, que vos cante. Mas, louvaminhas e cantarolas têm a existência e o efeito da flor que a Modéstia elegeu para emblema; cheiram bem, mas morrem depressa. Escasso é o prazer que dão, e ao cabo definhareis na soledade. Comigo é outra coisa: achareis, é verdade, algum filósofo que vos talhe na pele; algum frade que vos dirá que eu sou inimiga da boa consciência. Petas! Não sou inimiga da consciência, boa ou má; limito-me a substituí-la, quando a vejo em frangalhos; se é ainda nova, ponho-lhe diante de um espelho de cristal, vidro de aumento. Se vos parece preferível o narcótico da Modéstia, dizei-o; mas ficai certos de que excluireis do mundo o fervor, a alegria, a fraternidade.
Ora, pois, cuido haver mostrado o que sou e o que ela é; e nisso mesmo revelei a minha sinceridade, porque disse tudo, sem vexame, nem reserva; fiz o meu próprio elogio, que é vitupério, segundo um antigo rifão; mas eu não faço caso de rifões. Vistes que sou a mãe da vida e do contentamento, o vínculo da sociabilidade, o conforto, o vigor, a ventura dos homens; alço a uns, realço a outros, e a todos amo; e quem é isto é tudo, e não se deixa vencer de quem não é nada.
E reparai que nenhum grande vício se encobriu ainda comigo; ao contrário, quando Tartufo entra em casa de Orgon, dá um lenço a Dorina para que cubra os seios. A modéstia serve de conduta a seus intentos. E por que não seria assim, se ela ali está de olhos baixos, rosto caído, boca taciturna? Poderíeis afirmar que é Virgínia e não Locusta? Pode ser uma ou outra, porque ninguém lhe vê o coração. Mas comigo? Quem se pode enganar com este riso franco, irradiação do meu próprio ser; com esta face jovial, este rosto satisfeito, que um quase nada obumbra, que outro quase nada ilumina; estes olhos, que não se escondem, que se não esgueiram por entre as pálpebras, mas fitam serenamente o sol e as estrelas?
VI
O quê? Credes que não é assim? Querem ver que perdi toda a minha retórica, e que ao cabo da pregação, deixo um auditório de relapsos? Céus! Dar-se-á caso que a minha rival vos arrebatasse outra vez? Todos o dirão ao ver a cara com que me escuta este cavalheiro; ao ver o desdém do leque daquela matrona. Uma levanta os ombros; outro ri de escárnio. Vejo ali um rapaz a fazer-me figas: outro abana tristemente a cabeça; e todas, todas as pálpebras parecem baixar, movidas por um sentimento único. Percebo, percebo! Tendes a volúpia suprema da vaidade, que é a vaidade da modéstia.
O PÉ E O SAPATO
Humberto de Campos
Uma das novidades elegantes que mais têm merecido o meu aplauso, é a condenação das danças, dos bailes retumbantes e demorados, nas festas de casamento. A ligação de dois destinos constitui um ato tão solene, um acontecimento tão grave na vida das criaturas, que se lhes deve dar, a elas, todo o sossego, toda a calma, e o tempo necessário para que sintam, sem obstáculos nem constrangimentos, todas as suaves emoções desse dia.
E esse meu modo de pensar não data de hoje. Vem de longe, de onze anos atrás, do casamento do Dr. Otaviano Peixoto Ferreira, antigo juiz substituto em Barra Mansa, com a minha afilhada Odete Costa, do qual fui testemunha, por insistência imperdoável das duas ilustres famílias fluminenses.
O casamento, que se efetuou a 11 de Maio de 1090, na fazenda Água Funda, no município de Cantagalo, foi o mais suntuoso, talvez, e o mais bulhento, que já se realizou no Estado do Rio. Os convidados, vindos das fazendas e cidades vizinhas, subiram a centenas. E as danças prolongaram-se por dias e dias, que encheram, se bem me lembro, o vasto espaço de uma semana.
No dia seguinte ao do casamento, porém, sucedeu o desastre que dá motivo à minha prevenção contra os bailes em tais ocasiões: devido ao excesso das danças, das polcas, valsas, mazurcas e quadrilhas, dançados com o noivo, a moça amanheceu coxeando, doente do pé, de modo a locomover-se com enorme dificuldade. Penalizado, perguntei-lhe o que era:
— Então, afilhada, que é isso? Como foi? Quem lhe pisou o pé?
A pequena sorriu, pálida, cobrindo com as violetas das olheiras, os formosos miosótis dos olhos, e tranquilizou-me, triste:
— Não é nada, padrinho; não se aflija!
E explicou:
— É uma unha encravada...
Não obstante a festa haver continuado, a noiva, nesse dia, não dançou, nem no segundo dia, nem, mesmo, no terceiro. No quarto dia, porém, amanheceu inteiramente boa, voltando a valsar, alegre e jovial, contentíssima como se nada tivesse acontecido. Encontrando-a a deslizar, feliz, no calor de uma valsa, detive-a pelo braço, e indaguei, carinhoso:
— Então, está melhor do pé?
— Estou boa, já! respondeu-me, risonha.
— A unha desencravou?
— Não! — retrucou-me, vermelha, com o rosto em fogo.
E ao meu ouvido, rindo:
— O pé acostumou no sapato...
E, arrancando-se das minhas, mãos, desapareceu, num rodopio, no tumulto dos outros pares.
DUAS JUÍZAS
Machado de Assis
“Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.
Tudo corria de modo costumeiro naquela igreja. Que igreja?
Bem, este é o ponto falho do conto, porém, que importa? “Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa”.
Nessa igreja desconhecida, ou supostamente desconhecida, os sentimentos religiosos eram fervorosos. As irmandades ali estabelecidas, ainda que compartilhando de diferentes devoções, buscavam nessa aparente rivalidade motivos para tornar ainda mais fervorosas essas mesmas devoções.
As coisas permaneceram assim durante muitos anos. A amizade entre as duas devoções materializavam-se mediante a troca de obséquios, empréstimos de utensílios religiosos, e, como demonstração de alicerçada comunhão, as irmandades revezavam-se nas festas que se realizavam na comunidade.
Vencido o prazo dessas duas associações, realizou-se como de costume, uma nova eleição, cujo objetivo era o mesmo de antes, ou seja, “dar mais alguma vida ao culto”. Foram eleitas duas distintas senhoras que, como “irmãs” na fé, nutriam entre si uma bela e sincera amizade.
A primeira, D. Matilde, viúva bonita, abastada e “fresca”. A segunda, D. Romualda, também bonita, e, por ser esposa de um comendador, há de se supor que era não menos abastada. Embora tais “virtudes” não determinaram o resultado da eleição, ao menos “agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro das belas formas”.
Inicialmente nada mudou. Nenhuma medida drástica foi tomada, nada que pudesse caracterizar as novas devoções. “Roma não se fez num dia”, consolavam-se. Entretanto, algo novo aconteceu em entre as devoções, consequência, ao que parece, de um súbito estímulo religioso ou da vontade ardorosa de renovar o culto. A iniciativa foi da viúva que, tomada de certo ímpeto “espiritual”, decidiu levantar a associação: “Vamos trabalhar. A deste ano deve ser esplêndida... A orquestra deve ser de primeira qualidade; podemos ter uma cantora italiana”. Quinze dias depois, D. Romualda, numa sessão solene, exprimia iguais sentimentos.
A partir dali as devoções ganharam vida. As duas juízas empenharam-se por levar a cabo seus planos. Parece que tanto Nossa Senhora da Conceição quanto Nossa Senhora das Dores estavam “gloriosamente” satisfeitas com tamanho fervor.
Supunha-se que as duas juízas haveriam de continuar as mesmas cortesias. Se a finalidade era puramente espiritual, haveria, como era de se esperar de duas respeitadas e sinceras religiosas, o interesse em manter a troca de serviços e mesmo a amizade. Haveria? “- Não; antes vendamos a última joia”, bradou D. Matilde. “- Vender a última joia? Talvez ela já tenha as suas empenhadas!”, respondia a esposa do Comendador Nóbrega. A briga, ao que parece, fruto do estímulo religioso, aumentava: “Creio, creio... Creio que trabalhe mais do que eu, mas há de ser com a língua”, respondia a viúva.
Após muitas acusações e muitas discussões entre as duas devoções, realizou-se para contentamentos dos paroquianos, a festa das Dores. Foi uma festa realmente bonita: muita gente, boa música, excelente sermão. Não fez por menos D. Romualda: a orquestra foi a melhor da cidade, dirigiu o sermão um monge beneditino.
A batalha durou uns dois anos. Com a morte da D. Romualda, cessou o estímulo da D. Matilde. E já a primeira festa esteve muito aquém das anteriores.
Cessou o estímulo? Mas, que estímulo?
Bem. Com o decorrer dos dias, descobriu-se que toda aquela intriga foi apenas o resultado de uma insignificante questão acerca de um simples vestido.
Um acontecimento banal, digno apenas de uma ligeira conversa de botequim, transformou-se num caso realmente interessante, digno apenas de um escritor como Machado de Assis.
O conto Duas Juízas é uma pequena mostra da ironia machadiana. Com seu humor mordaz, ele faz aparecer tudo que acontece debaixo dos “lençóis” da elite brasileira: vaidade, intrigas e exageros. E mais: a própria igreja, não a instituição em si, mas aqueles que dela fazem parte, também ficam na mira da corrosiva ironia do “Bruxo do Cosme Velho”.
Sintetizando, o conto apresenta as seguintes características machadianas:
1 - Inspiração nas pessoas comuns, com suas ações quotidianas; a busca do mínimo e do escondido, onde ninguém mete o nariz: “Um dia a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a Conceição punha à frente a esposa do Comendador Nóbrega, D. Romualda”.
2 - A penetração na consciência da personagem, revelando de maneira aguda e impiedosa, a vaidade, a hipocrisia, a futilidade: “Um paroquiano curioso tratou de indagar, se além das causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que as duas damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão por causa de um corte de vestido”.
3 - O humor crítico, a ironia: “Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.
4 - Como é comum em seus contos, o mais importante não é ação que ocorre entre os personagens, mas os processos mentais, a psique humana que os envolve: “Qual Igreja? Este é justamente o ponto falho do meu conto; não posso lembrar-me em qual das nossas igrejas era. Mas, pensando bem, que necessidade há de saber-lhe o nome? Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa”.
5 - Extraordinária capacidade em caracterizar as personagens: “Um dia, a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca...”.
É isso!
O BRAVO DOS BRAVOS
Humberto de Campos
Quando o tenente Felisberto regressou do "front", precedia-o a mais invejável das famas. Notícias dos jornais, telegramas do governo e cartas dos camaradas, haviam espalhado, realmente, pelo Brasil, os ecos da sua bravura. Em Verdun, no forte de Vaux, fora ele o herói por excelência, defendendo, uma a uma, as pedras daquele reduto. Na Champagne, comandando um pelotão de "poilus", operara prodígios, resistências assombrosas, a ponto de ser preciso arrancá-lo, às vezes, do seu entrincheiramento, rilhando os dentes, coberto de lama e de sangue. O seu heroísmo tornou-se, em suma, tão acentuado, tão famoso, tão evidente, que o seu nome se constituíra, em toda a extensão do setor, uma espécie de grito de guerra. A Morte passava por ele, medrosa, de asas fechadas, como se temesse cair ferida, ela própria, atingida pela sua espada.
Ao chegar ao Rio, eram conhecidos, já, de toda a cidade, os seus feitos, as suas investidas corajosas, o ímpeto das suas cargas de baioneta, a que correspondia, sempre, uma nova trincheira arrancada ao inimigo. E foi por isso mesmo que o seu desembarque teve o caráter de uma verdadeira apoteose, que envolvia na mesma auréola o glorioso exército nacional.
Festejado e querido, foi, aqui, o tenente Felisberto rodeado pelos amigos e, principalmente, pelos colegas de classe, que se disputavam, gentis, a sua companhia. E tanto o cercaram, tanto o arrastaram pelos lugares festivos da cidade, que ele foi acabar, uma noite, no Assírio, onde se realizava um ruidoso baile de Carnaval.
Desconfiado no meio daquele tumulto, que lhe entontecia mais os sentidos do que o perturbavam, na França, as tempestades de fogo e de fumo da formidável artilharia alemã, o tenente observava aquelas danças, aquela orgia, aquela alegria desordenada, quando um dos camaradas lhe pediu, insistente, à mesa da ceia:
— Conta as tuas aventuras de guerra, Felisberto! Que diabo! tudo que nós sabemos de ti, é por intermédio dos outros. Ainda não nos contaste nada!
— Conta! — pediu outro, pondo-se de pé.
— Conta! Conta! — reclamaram todos.
O tenente sorriu modesto, mas, reclamado pelos colegas, começou a narrar singelamente os seus feitos.
— O que eu fiz — começou, — qualquer de vocês o faria, estando no meu lugar. Fui eu, efetivamente, quem defendeu o forte de Vaux, durante três dias, com pouco mais de duzentos homens. O rompimento da linha de Hindemburgo foi, também, obra minha, que obteve, como é sabido, os resultados mais felizes. Tomei, a arma branca, dezessete trincheiras; subjuguei algumas dezenas de soldados, corpo a corpo; conquistei, a sabre, oito canhões; destruí, em suma, todo o poder ofensivo do inimigo, no setor a meu cargo.
Nesse momento, alarmando a sala, ouve-se, a alguns metros de distância, um tiro de revólver, e, em seguida, o barulho da multidão elegante, a precipitar-se no rumo da detonação. Ao segundo tiro, porém, o capitão, que se calara com o primeiro, empalidece, e, sem dissimular o seu pavor, põe-se a tremer, a ponto de se não poder sustentar nas pernas. Espantados com aquela modificação, os amigos entreolham-se, duvidando, já, da bravura do herói, quando um deles, indignado, pergunta:
— Está com medo?
— Estou! — confessou o bravo dos bravos.
E explicou:
— Imaginem que isto degenera em rolo, em barulho, em conflito...
E concluindo, aterrorizado, batendo o queixo:
— E minha mulher sabe... que eu vim aqui!...
UM DÍSTICO
Machado de Assis
Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por inteiro.
Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na Rua de S. José, entre onze horas e meio-dia. Vi a alguma distância parado um homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata, pedinte de alguma irmandade, que era das Almas ou do Santíssimo Sacramento. Tal encontro era muito comum naqueles anos, tão comum que não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.
A primeira é que o pedinte falava com um pequeno, ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos passos, cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho — o pedinte era um velho, — mostrou então em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.
Não direi o assombro que me causou a vista do homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar, era a mesma fisionomia obsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever, sentada à porta da platéia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada, sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de lances, durante anos eternos.
Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:
Le matin catholique et le soir idolâtre,
Il dîne de l’église et soupe du théâtre.
Ri-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o jeito dos ombros do pai e do filho. O pequeno teria oito ou nove anos. Até os olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.
É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, le matin catholique, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço; mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai ele para a porta do deus Momo: et le soir idolâtre.
Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que merecesse ser posta em letra de impressão.
Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes. Não esqueçamos que era de manhã; le matin catholique. Fisicamente tirava duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me duas; o que não posso dizer é se eram de um ou dois mil-réis; podia ser até que cada uma tivesse o seu valor, e fossem três mil-réis, ao todo: ou seis, se uma fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos questões problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.
Fui andando e sorrindo de pena, porque estava adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui andando, mas duas vezes, voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava; da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua, depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: Para a missa...
Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do Sacramento, por não ter ouvido o resto, e não me lembrar também se a opa era encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais que textualmente esta parte do dístico: il dîne de l’église et soupe du théâtre.
De noite fui ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco, sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes, na mão, grave, calado, e sem remorsos.
A PÉROLA
Humberto de Campos
(APÓLOGO PERSA)
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Em que se demonstra que a fraqueza humilde é mais proveitosa do que a grandeza arrogante.
Rugiam, lá em cima, os ventos tempestuosos do inverno, quando a gota d'água, trêmula e pura, se sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por um sopro mais forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina, voava a mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de súbito, precipitando-se na mesma direção, mugindo, rolando, redemoinhando, uma enorme tromba marinha, que abalava o céu com a fúria da sua carreira. Ao perceber a límpida gota assustada, a tromba monstruosa, — equóreo traço de união colocado entre o mar e as nuvens, — parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou, irônica:
— Aonde vais tu, miserável poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos perigosos do espaço, arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos ventos?
Trêmula, encolhida, assaltada por diferentes ondas de ventania, a gota límpida não pôde, sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:
— Já pensaste, acaso, no destino que te espera? O vento que nos conduz a ambas, arrasta-nos, furioso, para o oceano largo, que reboa, lá embaixo, clamando por nós. Ouves?
A gota d'água prestou atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria a terra, embaixo, reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como um bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas de encontro às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos braços da tempestade, chorava, gemia, guaiava, num tumulto de vozes desesperadas.
Percebendo o susto da gota humilde, a tromba insistiu:
— Lá embaixo, estão o meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um destino que é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu constituirei uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus vagalhões, as minhas espumas. Serão necessários dias talvez uma semana, para que as minhas águas sejam absorvidas pelo mar. E tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço de vaga, em um simples floco de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre, sem que fique, na terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!
— Meu Deus!... gemeu a gota d'água, apavorada, pálida, trêmula, no horror daquele extermínio próximo.
Nesse instante, um trovão contínuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do oceano. Rajadas formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a, abalando-a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido contrário, tomaram com o seu hálito a gota humilde, a mísera poeira de chuva, e, horas depois, serenada a tempestade, aparecia, de novo, ao sol, a face tranquila do mar.
Dias passaram-se, porém. E uma tarde, quando da tromba marinha já não existia, sequer, na memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na praia, dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota d'água do céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara das águas...
O DICIONÁRIO
Machado de Assis
Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.
- Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; - nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.
Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súbditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que reveleu igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súbditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, - comparação que o lisonjeou muito, - o segundo ministro, Omega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém resistia à sedução.
Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.
Concorreram ao certame, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.
Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.
Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:
- Nós, Alfa e Omega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.
Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado, as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.
- Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.
Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como assou? - Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:
O raro Apeles,
Rubens e Rafael, inimitáveis
Não se fizeram pela cor das tintas;
A mistura elegante os fez eternos.
A VIRGEM
Humberto de Campos
Após aquela noite de festa, em que dançara desesperadamente com todos os rapazes que lhe pediam essa honra, amanheceu mademoiselle Beatriz com febre alta, e uma tosse forte, com grandes dores no peito. Chamados os Drs. Miguel Couto, Austregésilo e Aluísio de Castro, foi debalde que eles recorreram, em conjunto, às possibilidades da ciência: ao segundo dia a encantadora brasileirinha falecia, fazendo desfilar pela rua D. Mariana o mais suntuoso enterro de virgem que já se viu no bairro de Botafogo.
Quebrados, assim, os grilhões que a prendiam a este mundo de "fox-trots" e "maxixes", foi mlle. Beatriz tão alva como a de Dante, bater, sorrindo, à luminosa porta do céu. E foi um alvoroço, como dificilmente se imagina. Tratando-se de um acontecimento raro, e que se torna cada vez menos frequente, a recepção das virgens se reveste, no céu, de uma suntuosidade excepcional. Para ver, e saudar, de perto, a heroína, juntam-se no vestíbulo dos empíreo, agitando palmas de rosas, todos os bem-aventurados. E mal a recém-chegada põe o pé no batente florido, rompe por todo o Paraíso o coro dos anjos, cujas vozes se misturam, doces, meigas, comoventes, às das onze mil companheiras de Santa Úrsula.
Era essa a recepção que aguardava mlle. Beatriz, quando ia ficando tudo inutilizado por um incidente imprevisto. Anunciada pelos serafins, de longe, do carro de ouro das nuvens, a aproximação da venturosa, ordenou São Pedro que Santa Cecília e Santa Matilde o ajudassem no reconhecimento da nova eleita de Deus, estabelecendo a sua identidade. Para isso era preciso, entretanto, despojá-la da sua grinalda, dos seus enfeites, das suas complexas roupas terrenas, deixando patente, com a pureza do seu corpo, a inocência do seu coração.
Assim, porém, que principiou este serviço delicado, as santas recuaram, escandalizadas. E, entreolhando-se, chamaram São Pedro.
— A moça não é esta, meu santo!
O chaveiro correu, aflito, e fixando os olhos puros no corpo virginíssimo de Beatriz, indagou, espantado:
— De que foi que você morreu, minha filha?
— De pneumonia, meu santo!
O apostolo encarou-a, incrédulo, e insistiu:
— Você não está enganada, não?
— Não, senhor.
— Você não morreu em algum desastre de estrada de ferro, de alguma queda de aeroplano, de algum encontro de automóveis?
— Não, senhor! — teimou a moça, firme, sacudindo a cabeça.
— Que significam, então, — tornou o santo, — essas equimoses no seu colo, no seu estômago, no seu ventre, nas suas pernas como quem foi arrastada de bruços pelo calçamento?
Beatriz baixou os olhos negros pelo seu claro corpo maravilhoso, e, sorrindo:
— Ahn! Não é nada, não!
E explicou, com graça:
— É que eu morri, dois dias depois de um grande baile, em que dancei o tango com os rapazes mais elegantes do Rio de janeiro!
E, desatando a rir, entrou, entre os anjos, no céu...
O DESTINADO
Machado de Assis
Ao entrar no carro, cerca das quatro horas da manhã, Delfina trazia consigo uma preocupação grave, que eram ao mesmo tempo duas. Isto pede alguma explicação. Voltemos à primeira valsa.
A primeira valsa que Delfina executou no salão do coronel foi um puro ato de complacência. O irmão dela apresentou-lhe um amigo, o bacharel Soares, seu companheiro de casa no último ano da academia, uma pérola, um talento, etc. Só não acrescentou que era dono de um rico par de bigodes, e aliás podia dizê-lo sem mentir nem exagerar nada. Curvo, gracioso, com os bigodes espetados no ar, o bacharel Soares pediu à moça uma roda de valsa; e esta, depois de três segundos de hesitação, respondeu que sim. Por que hesitação? Por que complacência? Voltemos à primeira quadrilha.
Na primeira quadrilha o par de Delfina fora outro bacharel, o bacharel Antunes, tão elegante como o valsista, embora não tivesse o rico par de bigodes, que ele substituía por um par de olhos mansos. Delfina gostou dos olhos mansos; e, como se eles não bastassem a dominar o espírito da moça, o bacharel Antunes juntava a esse mérito o de uma linguagem doce, canora, todas as seduções da conversação. Em poucas palavras, acabada a quadrilha, Delfina achou no bacharel Antunes os característicos de um namorado.
— Agora vou sentar-me um pouco, disse-lhe ela depois de passear alguns minutos.
O Antunes acudiu com uma frase tão piegas, que não a ponho aqui para não desconcertar o estilo; mas, realmente, foi coisa que deu à moça uma idéia avantajada do rapaz. Verdade é que Delfina não tinha o espírito muito exigente; era um bom coração, excelente índole, educada a primor, amiga de bailar, mas sem largos horizontes intelectuais: — quando muito, um pedaço de azul visto da janela de um sótão.
Contentou-se, portanto, com a frase do bacharel Antunes, e sentou-se pensativa. Quanto ao bacharel, ao longe, defronte, conversando aqui e ali, não tirava os olhos da bela Delfina. Gostava dos olhos dela, dos seus modos, elegância, graça...
— É a flor do baile, dizia ele a um parente da família.
— A rainha, emendou este.
— Não, a flor, teimou o primeiro; e, com um tom adocicado: — Rainha dá idéia de domínio e imposição, ao passo que a flor traz a sensação de uma celeste embriaguez de aromas.
Delfina, logo que teve notícia desta frase, declarou de si para si que o bacharel Antunes era um moço de grande merecimento, e um digníssimo marido. Note-se que ela partilhava a mesma opinião acerca da distinção entre rainha e flor; e, posto aceitasse qualquer das duas definições, todavia achou que a escolha da flor e a sua explicação eram obra acertada e profundamente sutil.
Ora, em tais circunstâncias, é que o bacharel Soares pediu-lhe uma valsa. A primeira valsa era sua intenção dá-la ao bacharel Antunes; mas ele não apareceu então, ou porque estivesse no buffet, ou porque realmente não gostasse de valsar. Que remédio senão dá-la ao outro? Levantou-se, aceitou o braço do par, ele cingiu-lhe delicadamente a cintura, e ei-los no turbilhão. Pararam daí a pouco; o bacharel Soares teve a delicada audácia de lhe chamar sílfide.
— Na verdade, acrescentou ele, é valsista de primeira ordem.
Delfina sorriu, com os olhos baixos, não espantada do cumprimento, mas satisfeita de o ouvir. Deram outra volta, e o bacharel Soares, com muita delicadeza, repetiu o elogio. Não é preciso dizer que ele a conchegava ao corpo com certa pressão respeitosa e amorosa ao mesmo tempo. Valsaram mais, valsaram muito, ele dizendo-lhe coisas amáveis ao ouvido, ela escutando-o corada e delirante...
Aí está explicada a preocupação de Delfina, aliás duas, porque tanto os bigodes de um como os olhos mansos do outro iam com ela dentro do carro, às quatro horas da manhã. A mãe achou que ela estava com sono; e Delfina explorou o erro, deixando cair a cabeça para trás, cerrando os olhos e pensando nos dois namorados. Sim, dois namorados. A moça tentava sinceramente escolher um deles, mas o preterido sorria-lhe com tanta graça que era pena deixá-lo; elegia então esse, mas o outro dizia-lhe coisas tão doces, que não mereciam tal desprezo. O melhor seria fundi-los ambos, unir os bigodes de um aos olhos de outro, e meter esse conjunto divino no coração; mas como? Um era um, outro era outro. Ou um, ou outro.
Assim entrou ela em casa; assim recolheu-se aos aposentos. Antes de se despir, deixou-se cair em uma cadeira, com os olhos no ar; tinha a alma longe, dividida em duas partes, uma parte nas mãos de Antunes, outra nas de Soares. Cinco horas! era tempo de repousar. Delfina começou a despir-se e despentear-se, lentamente, ouvindo as palavras do Antunes, sentindo a pressão do Soares, encantada, cheia de uma sensação extraordinária. No espelho, pareceu-lhe ver os dois rapazes, e involuntariamente voltou a cabeça; era ilusão! Enfim, rezou, deitou-se, e dormiu.
Que a primeira idéia da donzela, ao acordar, fosse para os dois pares da véspera, nada há que admirar, desde que na noite anterior, ou velando ou sonhando, não pensou em outra coisa. Assim ao vestir, assim ao almoçar.
— Fifina ontem conversou muito com um moço de bigodes grandes, disse uma das irmãzinhas.
— Boas! foi com aquele que dançou a primeira quadrilha, emendou a outra irmã.
Delfina zangou-se; mas vê-se que as pequenas acertaram. Os dois cavalheiros tinham tomado conta dela, do seu espírito, do seu coração; a tal ponto que as pequenas deram por isso. O que se pergunta é se o fato de um amor assim duplo é possível; talvez que sim, desde que não haja saído da fase preparatória, inicial; e esse era o caso de Delfina. Mas enfim, cumpria escolher um deles.
Devine, si tu peux, et choisis, si tu l'oses.
Delfina achou que a eleição não era urgente, e fez um cálculo que prova da parte dela certa sagacidade e observação; disse consigo que o próprio tempo excluiria o condenado, em proveito do destinado. “Quando eu menos pensar, disse ela, estou amando deveras ao escolhido.”
Escusado é acrescentar que não disse nada ao irmão, em primeiro lugar porque não são coisas que se digam aos irmãos, e em segundo lugar porque ele conhecia um dos concorrentes. Demais, o irmão, que era advogado novo, e trabalhava muito, estava nessa manhã tão ocupado no gabinete, que nem veio almoçar.
— Está com gente de fora, disse-lhe uma das pequenas.
— Quem é?
— Um moço.
Delfina sentiu bater-lhe o coração. Se fosse o Antunes! Era cedo, é verdade, nove horas apenas; mas podia ser ele que viesse buscar o outro para almoçar. Imaginou logo um acordo feito na véspera, entre duas quadrilhas, e atribuiu ao Antunes o plano luminoso de ter assim entrada na família...
E foi, foi, devagarinho, até à porta do gabinete do irmão. Não podia ver de fora; as cortinas ficavam naturalmente por dentro. Não ouvia falar, mas um ou outro rumor de pés ou de cadeiras. Que diabo! Teve uma idéia audaciosa: empurrar devagarinho a porta e espiar pela fresta. Fê-lo; e que desilusão! viu ao lado do irmão um rapaz seco, murcho, acanhado, sem bigodes nem olhos mansos, com o chapéu nos joelhos, e um ar modesto, quase pedinte. Era um cliente do jovem advogado. Delfina recuou lentamente, comparando a figura do pobre-diabo com a dos dois concorrentes da véspera, e rindo da ilusão. Por que rir? Coisas de moça. A verdade é que ela casou daí a um ano justamente com o pobre-diabo. Leiam os jornais do tempo; lá está a notícia do consórcio, da igreja, dos padrinhos, etc. Não digo o ano, porque eles querem guardar o incógnito, mas procurem que hão de achar.
VIOLETA
Raul Pompéia
Romance original brasileiro
... Étre maitre du bien et du mal, régler la vie, régler la societé, resoudre à la longue tous los problèmes du socialisme, apporter surtout des bases solides à la justice, en résolvant par l'expérience les questions de criminalité, n'est ce pas là étre les ouvriers les plus utiles et les pias moraux du travail humain?
E. ZOLA (Le Roman Experimental)
I
Um dia, sumiu-se a pequena Eva.
O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.
Tempo perdido, esforço baldado.
Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.
Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:
- Sabe da Vevinha?...
- Já ia perguntar isso mesmo...
E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.
Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma cousa que... devia contar ao sobrinho.
Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.
O marceneiro não se apercebia disso.
O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.
Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre. Estava abatido.
Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.
Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.
A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.
- Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!
Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido.
A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.
Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muchocho, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.
Entretanto a dor de Eduardo era maior.
O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.
A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro.
Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.
A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:
- De que ri-se?...
Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.
A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.
Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida.
Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.
Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia.
Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:
- Como sabe, minha tia?...
- O meu moleque viu...
- Será possível?...
- ... Viu...
Ah! se isto é verdade!
- ... O moleque viu...
O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dous parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:
- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...
- Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.
- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...
- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua...
O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...
O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.
Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.
- Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...
E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.
Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:
- ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...
- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...
- Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..
- Como?... perguntou-lhe esta.
- Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...
- O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...
- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...
- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...
- Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginásticos furtando uma criança, fraca, imprestável!...
Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.
- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...
- Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos.
O que está dizendo é um insulto.
- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor?
Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...
- Então, cale a boca... Se o seu moleque...
- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...
- Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!...
Não me demoro nem uma hora!...
Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja.
O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.
- São minhas! murmurou.
Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...
E fez um gesto com o punho cerrado.
II
No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma cousa curiosa. Depois da filha, o pai...
O que teria sucedido?
Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...
Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses.
Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.
Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia inda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.
- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.
Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.
Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.
Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha.
Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio.
Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.
Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.
Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.
- O Eduardo partiu...
Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito.
Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.
Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regímen) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.
Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro?
O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se cousa inútil.
Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:
"Querida Juliana."
"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.
Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...
Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos.
Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...
Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.
Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...
A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!
Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.
Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me tr9uxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.
Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha."
O LIMO
Humberto de Campos
Madame Costa Mafra particulariza-se na sociedade carioca pela originalidade das suas perguntas, que lhe colocam o marido, de vez em quando, nas piores situações. Roda em que ela se encontre, dissolve-se invariavelmente com uma das suas consultas inesperadas, a mais simples das quais poria em dificuldades, talvez, o mais hábil dos sofistas. Como, porém, todo veneno possui um antídoto, Dona Arabela tem, para neutralizar as suas perguntas indiscretas, as respostas irretorquíveis do conselheiro Brasilino do Amaral.
Desse duelo entre a inocência e a esperteza, ou, melhor, entre a ingenuidade e a experiência, fui eu próprio testemunha, há dias, no salão de chá do Jockey— Club, quando, a propósito do Sr. deputado José Bonifácio, que havíamos encontrado à porta, Madame Costa Mafra perguntou:
— Mas, é verdade, conselheiro: por que é que os homens têm o rosto ponteado de barba, de pelos irritantes e incomodatícios, quando as mulheres possuem, em geral, o delas macio, liso, limpo, sem um fio de cabelo?
O conselheiro olhou o Dr. Mafra, que o fitava suplicante, passou a mão pelas barbas veneráveis, e começou a explicar, com os olhos na toalha:
— Como a senhora sabe, o homem foi feito de barro, e a mulher foi tirada da sua costela.
— Isto eu sei.
— Pois, bem. Feito em primeiro lugar, com alguns punhados de barro umedecido, o homem foi posto a secar ao sol, como todas as obras de cerâmica. A senhora sabe, porém, que, todo barro molhado, quando não apanha sol convenientemente, cria limo; e foi o que aconteceu ao homem, cujo rosto, na ocasião de ser o corpo submetido ao fogo solar, ficou sombreado por um ramo de árvore, na oficina do Paraíso.
— E a mulher?
— A mulher, não. Tirada da costela do homem, e posta com o rosto para o sol, ficou naturalmente, com o cabelo apenas na cabeça, posta à sombra, mas, em compensação, sem o limo na face.
— E em toda a parte aonde o sol não chegou, criou limo?
O conselheiro ia responder, mas, ao abrir a boca, fechou-a, de novo. É que, defronte dele, com a xícara suspensa e os olhos fuzilantes, o Dr. Mafra intimava, com significativos tremores na voz:
— Conselheiro, tome o seu chá...
O CONTRATO
Machado de Assis
Quem quiser celebrar um consórcio, examine primeiro as condições, depois as forças próprias, e, finalmente, faça um cálculo de probabilidades. Foi o que não cumpriram estas duas meninas de colégio, cuja história vou contar em três folhas de almaço. Eram amigas, e não se conheciam antes. Conheceram-se ali, simpatizaram uma com a outra, e travaram uma dessas amizades que resistem aos anos, e são muita vez a melhor recordação do passado. Josefa tinha mais um ano que Laura; era a diferença. No mais as mesmas. Igual estatura, igual índole, iguais olhos e igual nascimento. Eram filhas de funcionários públicos, ambas dispondo de um certo legado, que lhes deixara o padrinho. Para que a semelhança seja completa, o padrinho era o mesmo, um certo Comendador Brás, capitalista.
Com tal ajuste de condições e circunstâncias, não precisavam mais nada para serem amigas. O colégio ligou-as desde tenros anos. No fim de poucos meses de freqüência, eram as mais unidas criaturas de todo ele, a ponto de causar inveja às outras, e até desconfiança, porque como cochichavam muita vez sozinhas, as outras imaginavam que diziam mal das companheiras. Naturalmente, as relações continuaram cá fora, durante o colégio, e as famílias vieram a ligar-se, graças às meninas. Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu prometi escrever isto em três folhas de almaço; basta saber que tinham ainda pai e mãe. Um dia, no colégio, contavam elas onze e doze anos, lembrou-se Laura de propor à outra, adivinhem o quê? Vamos ver se são capazes de adivinhar o que foi. Falavam do casamento de uma prima de Josefa, e que há de lembrar a outra?
— Vamos fazer um contrato?
— Que é?
— Mas diga se você quer...
— Mas se eu não sei o que é?
— Vamos fazer um contrato: — casar no mesmo dia, na mesma igreja...
— Valeu! nem você casa primeiro nem eu; mas há de ser no mesmo dia.
— Justamente.
Bem pouco valor teria este convênio, celebrado aos onze anos, no jardim do colégio, se ficasse naquilo; mas não ficou. Elas foram crescendo e aludindo a ele. Antes dos treze anos já o tinham ratificado sete ou oito vezes. Aos quinze, aos dezesseis, aos dezessete tornavam às cláusulas, com uma certa insistência que era tanto da amizade que as unia como do próprio objeto da conversação, que deleita naturalmente os corações de dezessete anos. Daí um efeito certo. Não só a conversação as ia obrigando uma para a outra como consigo mesmas. Aos dezoito anos, cada uma delas tinha aquele acordo infantil como um preceito religioso.
Não digo se elas andavam ansiosas de cumpri-lo, porque uma tal disposição de ânimo pertence ao número das coisas prováveis e quase certas; de maneira que, no espírito do leitor, podemos crer que é uma questão vencida. Restava só que aparecessem os noivos, e eles não apareciam; mas, aos dezenove anos é fácil esperar, e elas esperavam. No entanto, andavam sempre juntas, iam juntas ao teatro, aos bailes, aos passeios; Josefa ia passar com Laura oito dias, quinze dias; Laura ia depois passá-los com Josefa. Dormiam juntas. Tinham confidências íntimas; uma referia à outra a impressão que lhe causara um certo bigode, e ouvia a narração que a outra lhe fazia do mundo de coisas que achara em tais ou tais olhos masculinos. Deste modo punham em comum as impressões e partiam entre si o fruto da experiência.
Um dia, um dos tais bigodes deteve-se alguns instantes, espetou as guias no coração de Josefa, que desfaleceu, e não era para menos; quero dizer, deixou-se apaixonar. Pela comoção dela ao contar o caso, pareceu a Laura que era uma impressão mais profunda e duradoura do que as do costume. Com efeito, o bigode voltou com as guias ainda mais agudas, e deu outro golpe ainda maior que o primeiro. Laura recebeu a amiga, beijou-lhe as feridas, talvez com a idéia de sorver o mal com o sangue, e animou-a muito a pedir ao céu muitos mais golpes como aquele.
— Eu cá, acrescentou ela; quero ver se me acontece a mesma coisa...
— Com o Caetano?
— Qual Caetano!
— Outro?
— Outro, sim, senhora.
— Ingrata! Mas você não me disse nada?
— Como, se é fresquinho de ontem?
— Quem é?
Laura contou à outra o encontro de uns certos olhos pretos, muito bonitos, mas um tanto distraídos, pertencentes a um corpo muito elegante, e tudo junto fazendo um bacharel. Estava encantada; não sonhava outra coisa. Josefa (falemos a verdade) não ouviu nada do que a amiga lhe dissera; pôs os olhos no bigode assassino e deixou-a falar. No fim disse distintamente:
— Muito bem.
— De maneira que pode ser que em breve estejamos cumprindo o nosso contrato. No mesmo dia, na mesma igreja...
— Justamente, murmurou Josefa.
A outra dentro de poucos dias perdeu a confiança nos olhos negros. Ou eles não tinham pensado nela, ou eram distraídos, ou volúveis. A verdade é que Laura tirou-os do pensamento, e espreitou outros. Não os achou logo; mas os primeiros que achou, prendeu-os bem, e cuidou que eram para toda a eternidade; a prova de que era ilusão é que, tendo eles de ir à Europa, em comissão do governo, não choraram uma lágrima de saudade; Laura entendeu trocá-los por outros, e raros, dois olhos azuis muito bonitos. Estes, sim, eram dóceis, fiéis, amigos e prometiam ir até o fim, se a doença os não colhe, — uma tuberculose galopante que os levou aos Campos do Jordão, e dali ao cemitério.
Em tudo isso, gastou a moça uns seis meses. Durante o mesmo prazo, a amiga não mudou de bigode, trocou muitas cartas com ele, ele relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia um laço íntimo. O bigode perguntou-lhe muita vez se lhe dava autorização de a pedir, ao que Josefa respondia que não, que esperasse um pouco.
— Mas esperar, o quê? inquiria ele, sem entender nada.
— Uma coisa.
Sabemos o que era a coisa; era o convênio colegial. Josefa ia contar à amiga as impaciências do namorado, e dizia-lhe rindo:
— Você apresse-se...
Laura apressava-se. Olhava para a direita, para a esquerda, mas não via nada, e o tempo ia passando seis, sete, oito meses. No fim de oito meses, Josefa estava impaciente; tinha gasto cinqüenta dias a dizer ao namorado que esperasse, e a outra não adiantou coisa nenhuma. Erro de Josefa; a outra adiantou alguma coisa. No meio daquele tempo apareceu uma gravata no horizonte com todos os visos conjugais. Laura confiou a notícia à amiga, que exultou muito ou mais que ela; mostrou-lhe a gravata, e Josefa aprovou-a, tanto pela cor, como pelo laço, que era uma perfeição.
— Havemos de ser dois casais...
— Acaba: dois casais lindos.
— Eu ia dizer lindíssimos.
E riam ambas. Uma tratava de conter as impaciências do bigode, outra de animar o acanhamento da gravata, uma das mais tímidas gravatas que tem andado por este mundo. Não se atrevia a nada, ou atrevia-se pouco. Josefa esperou, esperou, cansou de esperar; parecia-lhe brincadeira de criança; mandou a outra ao diabo, arrependeu-se do convênio, achou-o estúpido, tolo, coisa de criança; esfriou com a amiga, brigou com ela por causa de uma fita ou de um chapéu; um mês depois estava casada.
ÚLTIMO CASTELO
Raum Pompéia
Álvaro, o grande Álvaro devia realmente sucumbir, esmagado sob as ruínas d'alguma das soberbas construções levantadas à força de imaginação, em meio da noute dos seus sonhos.
Passava através da vida, absorto em concepções estranhas, olhar vago, observando sempre uma aparição espantosa, que ninguém via e que, para o sonhador, brotava do chão, viva, colorida, vibrante; e voava-lhe em torno, às vezes como um bando de pombas risonhas e festivas, às vezes como tristes pterodátilos infernais de pesado vôo e vastas asas negras! Com a variedade das aparições, variava igualmente a expressão do semblante do poeta, ora doce sorriso inexplicável de louco satisfeito, ora profundo pavor de visionário em êxtase de contemplações horrendas...
Pobre Álvaro!
A rua do Ouvidor conhecia bem os esgares extravagantes, os bracejamentos exagerados, espécie de caricatura violenta e inimitável de alta tragédia, que o saudoso Álvaro desempenhava febricitante em qualquer esquina, ao correr da palestra, como um desalmado, tomando os assuntos pelos cabelos, apunhalando-os no ar, com a fúria de uma eloqüência sanguinária, funambulesca, apoplética e atirando-os afinal, remoídos exangues, aos pés dos ouvintes, horrorizados e deslumbrados.
Álvaro dispunha verdadeiramente de um gênero de elocução como nunca se conheceu.
Criticava os dias e os fatos, evocando brutalmente as concepções poéticas do passado e os heroísmos arcaicos adormecidos nos museus da história. Verberava um ministro, atroando-lhe os ouvidos com o fragor épico das armaduras de Homero, ou pegava-lhe nas abas douradas do fardão e o lançava por cima de uma boa distância de séculos, coberto de motejos, ao riso escancarado dos crocodilos de Ganges.
E não somente nessa eloqüência tempestuosa irrompiam os vulcões do seu espírito. Ele era um poeta trovejante e indomável, que sabia talhar estrofes imortais em blocos de lava ainda quente, transpirando ainda a vitalidade renitente da ignição das crateras!
Liam-se aqueles versos, como se o livro escaldasse, como se as linhas do poema exalassem incêndio; e o leitor ofegava, sentindo na fronte a cálida irradiação da estranha obra, simultaneamente maravilhado e exausto.
Um cérebro construído desta sorte não pode necessariamente fraternizar com a parvoice poderosa e grosseira das misérias da vida. Há de viver em esfera superior, à parte, ou sucumbir, afogado em vulgaridade, nessa vulgaridade uniforme, imensa, que enche o quadro social e que é rasa como um pântano, estéril como um deserto...
O grande Álvaro, devia acabar, esmagado pelos escombros rodianos d'algum dos castelos da sua imaginação...
Álvaro sonhara muito, mesmo porque sonhará sempre. E vira muitos dos seus sonhos, sem mais a tinta azul e os nevoeiros da simples idealidade, palpara muitas das suas visões, acorrentando com uma força de vontade exaustiva e rara as dificuldades brutas do mundo hipogrifo possante da imaginação que possuía...
Uma vez, saciado da boêmia, sonhou ardentemente as alegrias do lar, as doçuras da família, os poemas vivos do amor conjugal, a paternidade e todos os enlevos que advêm...
Foi este castelo o mais rico que lhe agitou o espírito em toda a sua vida... Ter uma filha, que lhe dissesse a cada instante: papai! papai!, saltando-lhe aos joelhos, vestidinha de branco, com uma fita ao cabelo, ruidosa como as aves e meiga como os anjos!... Ter uma esposa adorável e adorada, que lhe prometesse, através de uma crepitação de beijos, outras filhinhas, uma ninhada de criaturas como a primeira... E toda aquela multidão de louros pequenos, cercando-o com o seu amor e com as suas risadas cândidas, bulhentas!
Álvaro entrou em campanha, para concretizar este sonho. Foi uma campanha memorável de ardor e entusiasmo.
E triunfou!
Uma bela manhã, as folhas noticiaram o casamento do poeta, desejando todas, uníssonas que, diante dos passos dos felizes noivos, houvesse sempre, interminável e franca, uma estrada de rosas e prosperidades.
Veio realmente a estrada; houve muitas rosas, muitas prosperidades...
Álvaro gozou a suprema doçura de ter um filho, um lindo filho corado e forte. Não se descrevem as explosões do poeta, os delírios, as febres que lhe acendeu n'alma aquele acontecimento. Já tinha um filho!...
Cada vez que narrava o caso a um amigo, uma ode faiscante fugia-lhe dos lábios, espantando os transeuntes, como o escândalo dum meteoro.
Infelizmente passaram as rosas, deixando apenas a coroa de espinhos dos entrelaçados galhos; e das prosperidades, apenas a saudosa recordação...
Álvaro descobriu que a esposa adorada o traía...
Pela primeira vez em sua acidentada existência o expansivo e estrepitoso rapaz conteve natural tendência do temperamento. Encarcerou heroicamente, no fundo do espírito, a tempestade rábida do desespero. Todas as erupções foram refreadas e passou-se no íntimo do poeta a convulsão incalculável que se daria, se um vulcão engolisse para as entranhas da terra os vômitos de fogo que lhe ferviam na boca.
Foi uma espécie de calcinação pelo abrasamento concentrado. O poeta sucumbiu.
A loquacidade vertiginosa do pobre Álvaro extinguiu-se de súbito. Sobre a mobilidade dramática do seu rosto, passou uma refrega de vento glacial, que lhe fixou na fisionomia um rictos congelado de espanto inalterável, profundo, e uma palidez fantástica de morto.
Ninguém houve que penetrasse o mistério daquela transformação. Álvaro sepultara em sua alma a desventura, como o cadáver duma ilusão trucidada. E os vermes deste cadáver roíam a vida ao poeta, e o poeta ocultava as dores no silêncio absoluto, como sob a discrição duma lápide de mármore.
Macerava-lhe, sobretudo, o espírito a fatalidade que resultava da catástrofe.
Sonhara viagens extraordinárias ao Egito, à Palestina, às Índias; e as tinha realizado; visitara as areias amarelas, cálidas e sem termo da planície africana, por onde trota o camelo, fustigado pelo sol, aspirando sôfrego as emanações do oásis distante; fora às florestas da Ásia, que o elefante percorre, dominado pelo cornaca, levando adiante a tromba poderosa, como uma serpente colossal cativa; vira o teatro das grandes cousas do passado, nas ruínas venerandas do oriente!... Sonhara deleitosas amantes, que soubessem abraçar como os polvos e como as deusas, amando e devorando, sequiosas e insaciáveis; sonhara o luxo europeu, abundante e caprichoso, o convívio dos grandes espíritos, a supremacia literária; e tudo tivera à mão, concreto e tangível...
Só aquele doce ideal da família, das venturas tranqüilas da paternidade, o mais santo enlevo do seu espírito sonhador e altaneiro é que havia de degenerar miseravelmente, numa vergonha atroz; só este ideal lhe havia de cair aos pés como um anjo prostituído!
Álvaro, desalentado, pediu socorro ao vício. Era mister aturdir-se. O jogo, a crápula, o vinho, qualquer cousa que atordoasse e aniquilasse! Contanto que lhe não fosse dado assistir em si mesmo ao desmoronamento que lhe destroçava as boas ilusões antigas.
Abandonou a casa. Vinha só de tempos a tempos, abraçar o filho.
Mais desembaraçada, então, dos tropeços que sempre aduz a presença do cônjuge, a esposa dava largas aos seus instintos alegres de borboleta.
Raciocinava, em satisfação à consciência, que era bien triste o marido. E tinha melancolias. Alguns amigos do tirano, compadecidos até à lágrima, dispensavam à vítima a mais terna e desinteressada proteção...
Extenuado de excesso e sofrimentos, o infeliz Álvaro enfermou gravemente. Foi bater a um hospital.
— Tem família? perguntaram-lhe.
— Não tenho família!
Numa triste enfermaria, povoada de gemidos e emanações infectas, esteve o doente algum tempo. Tinha delírios, de quando em quando, durante os quais relampeava por momentos um ou outro clarão do seu espírito, mortiço reflexo,. apenas, de sol posto.
E lá morreu.
Antes de morrer, ergueu-se; quis abandonar o leito. Contiveram-no. Estava mais branco que os lençóis, crescido os cabelos, a barba abundante. Barba e cabelo cercavam-lhe o rosto d'uma moldura negra, contrastando fortemente com o alvor da cútis e acentuando mais aquela palidez espantosa.
Olhou em roda do leito, movendo a cabeça, mas com os olhos parados.
Os enfermeiros em grupo observavam com assombro a atitude do extraordinário doente.
Álvaro sem articular um som, fez grande gesto com a mão, imperioso e solene, mandando embora os enfermeiros.
Os empregados do hospital afastaram-se dous passos e continuaram a ver.
O enfermo levantou a fronte, baixou-a depois lentamente, cravando um olhar, de través, terrível, num ponto do espaço; encolheu os ombros, contraiu os braços, crispando medonhamente os dedos. E descarregou toda essa violenta retração muscular num gesto único e supremo...
...............................................................
Ficou assim longamente, o braço direito, estendido para a frente, hirto, rijo e inexorável, apontando com o indicador nodoso e descarnado aquele objeto invisível que o seu olhar magnetizava e fulminava!...
FORTUNATO
Humbertode Campos
Em luta permanente com a adversidade, Fortunato segurou uma noite, entre as mãos, a cabeça da mulher e confessou o seu propósito:
- A fome, como tu vês, bate-nos à porta. Sem pão e sem amigos, a vida neste povoado é a mim de todo impossível. É preciso, pois, que eu me prive do teu carinho, e parta sozinho pelo mundo em busca de terra menos ingrata. Tudo que possuímos dar-te-á com certeza para uns vinte ou trinta meses. Com o teu trabalho honesto, poderás dilatar a utilidade desses recursos, fazendo-os durar cinco anos. Se dentro desse prazo, eu não tornar aos teus braços e ao teu amor, considera-te viúva, porque decerto eu morri.
Na manhã seguinte, após um esforço inaudito para libertar-se das cadeias de cristal e mármore que eram as lágrimas e os braços da esposa jovem, Fortunato punha às costas, preso ao seu cajado de caminhante uma trouxa com a roupa indispensável e desaparecia, limpando os olhos úmidos na manga da camisa grosseira na curva da estrada por onde passara há um ano, trazendo a noiva pela mão.
Errando de terra em terra, de fazenda em fazenda, eram-lhe companheiros por toda a parte o infortúnio impiedoso, a má sorte inclemente, os contratempos inevitáveis. Debalde se esforçava, infatigável, para juntar um pecúlio, amontoando algumas moedas com que levasse ao lar um pouco de felicidade e fartura. As suas tentativas mais tímidas, mais simples, mais modestas, eram sempre como uma árvore infeliz, cujas folhas fossem dispersadas ainda tenras por um sopro de tempestade.
Ao fim de quatro anos, porém, como por um milagre, tudo mudou. As moedas multiplicaram-se em seu bolso, acumulando-se, amontoando-se, como se a fortuna arrependida de tanta avareza se tivesse predisposto a compensar a usura anterior com um gesto de espantosa prodigalidade.
Meses depois, nas vésperas, quase, do prazo concedido à mulher, Fortunato encheu de moedas o seu grande surrão de couro, prendeu-o à cintura e, velho, barbado, desfigurado pelos sofrimentos inomináveis tomou a pé o caminho da terra natal. Ao cabo de quatro semanas, com os pés sangrando viu enfim, da curva da estrada por onde se fora cinco anos antes, a sua aldeia e o seu lar. Trôpego, magro, faminto, mas disposto mesmo assim a dar uma sensação de alegria à companheira querida, encaminhou-se de manso para a porta e bateu. Uma criança de quatro anos, linda e forte, em quem se repetiam os traços inolvidáveis da esposa, surgiu na sala pequenina e chamou para dentro:
- Papai!
- Heim? - respondeu do compartimento contíguo uma voz masculina.
- Aqui está um homem - informou alto a pequenita.
Fortunato cambaleou numa síncope, encostando-se ao portal para não cair. Antes que o dono da casa aparecesse, entregou o saco de ouro à criança, retomou o seu bordão de peregrino e partiu...
A CAUSA SECRETA
Machado de Assis
(Grafia original)
Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.
Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensangüentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.
- Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
- Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
- Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
- Não, nunca o vi. Quem é?
- É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.
- Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.
- Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
- Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
- Sabe que estou casado?
- Não sabia.
- Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
- Domingo?
- Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
- Não, respondeu a moça.
- Vai ouvir uma ação bonita.
- Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
- A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
" Singular homem!" pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
- Valeu? perguntou Fortunato.
- Valeu o quê?
- Vamos fundar uma casa de saúde?
- Não valeu nada; estou brincando.
- Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.
- Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.
- Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
- Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
- Deixe ver o pulso.
- Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.
- Que é? perguntou-lhe.
- O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
- Mate-o logo! disse-lhe.
- Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
- Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
- Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.
- Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
TILBURI DE PRAÇA
Raul Pompéia
Não encontraram por aí minha mulher?... É original. Desde que me casei... Eu por uma porta, ela por outra. Só nos encontramos uma vez frente a frente com vontade. Eu entrava por um lado, ela entrava por outro...
A nossa vida de casados é uma verdadeira questão aberta. Entrar e sair é tudo a mesma cousa. Acontece, porém, que ela está sempre fora e eu nunca estou dentro.
Já me disseram: Cuidado, João, tua mulher tem amantes... Eu estou de olho... Não há perigo. Olhem, aqui em casa eles não me passam a perna...
Na rua eu a espio... Onde ela entra entro eu atrás.
Casei, todos sabem, não foi por dinheiro: tenho os meus prédios. Casei por paixão, ou antes, por compaixão. Vi-a no seu véu tristezinho de viúva, com uns olhos pretos por baixo, que não tinham nada de luto, valha a verdade. Olhou para mim docemente. Eu tenho os meus prédios... Lembrei-me deles com orgulho, diante daquela formosíssima soledade. Comecei a gostar dela. Um homem depois de cinqüenta não namora; os dedos estão perros para o bandolim das serenatas, o luar dos balcões tem reumatismos. Desde que há meia dúzia de prédios, é logo casamento...
Foi o diabo... Logo na igreja, dei com a viuvinha olhando um convidado... Eu, viúvo de uma mulher como eu tive, boa, gorda, pacata, amiga do rapé e dos seus cômodos, casar com aquela figurinha saltitante, de olhos pretos, que logo ali, começava a pular-me fora do matrimônio... Estive quase a desmanchar tudo, na hora do recebo a vás... Não faz mal, pensei porém, gosto dela... que diabo! se casar com outra, não poderá suceder a mesma cousa? Vá! é um gosto ao menos. E atirei-me de cabeça no abismo... Matrimônio é assim. A primeira cousa que um marido deve comprometer é a cabeça... Para ficar logo atordoado. Senão, não casa...
Eu cravei um olhar na minha noiva.
Ia divina, num simples vestido roxo, que a vestia como se a despisse. Sorriu-me. Pareceu-me sentir, ao redor de mim, um turbilhão de abelhas douradas, brilhando e zumbindo. Casei-me...
Pois bem, daí para cá, é isto... eu por uma porta, ela por outra, em cabra-cega.
Às vezes, passamos um pelo outro. Ela a caminhar na sua vida, eu, na minha, espiando.
Ela sorri-me; eu disfarço, coro e vou seguindo para adiante.
Ora, meus senhores, não me dirão como hei de pegar minha mulher? ~ isto: Tempo-será-de-min-c-o-có!... Toda a vida.
Quanto a amantes, ela não tem. Isto eu lhes juro...
Vem cá em casa o tipo da igreja, o tal convidado do olhar... Mas eu estou de olho... Ele é bonitote, correto, conversa, graceja, tem uma maneirazinha faceira de não fazer caso de cousa nenhuma, como um filósofo.
Fuma um charuto de primeira qualidade, de linda fumaça azul, que faz letras no ar... Às vezes mesmo, em minha casa, ele recosta-se no terraço e fica a ler com uma expressão faceira, meio adormecido, as letras de fumo na atmosfera calma da tarde.
Até eu fico seduzido e aceito um charuto dos dele, e fico a fumar, ouvindo os bambus, as cigarras... Minha mulher, calada, ao nosso lado, ouve, como eu, as cigarras, e os bambus, conjugalmente. Mas eu conheço que ela gosta mais, extraconjugalmente, de ver as letras azuis do meu amigo. Assim ficamos, os três, recostados nas chaises-longues, bebendo crepúsculo.
Ela é a primeira que se levanta.
- Que insipidez! exclama. Ora a gente aqui calada, a ver fumaça de charuto!
E, então, agita-se como uma pata que sai da água, como um belo cisne, devia eu dizer, que acabasse de sair daquele imenso lago de morbidez em que nos perdíamos.
- Vamos passear! Vamos passear!
E, então, com uma graça que não sei com que comparar, põe-se a desfazer com o leque as letras azuis dos charutos.
Ah! a diabinha adorável! e não haver meio de eu encontrá-la!... Ora, será porque eu não lhe agrado? Mas há agrado que eu, mesmo de longe, não lhe faço... Será porque eu não sou bastante?... Mas, que diabo! ela daquele tamaninho...
Mas, reatando, o tal amigo, das letras azuis, namora-a, namora-a, não há dúvida: mas é só namoro garanto-lhes... Depois, depois...
Depois eu estou de olho...
Não tenho repartição que me prenda... não tenho obrigação de hora certa... tenho os meus prédios... Posso espiá-la dia e noite... Não! amante ela não tem, posso afirmar... Pois se nem a mim mesmo ela quer!... É o seu mal... Quanto ao mais, é só passear, passear. O que a perde é o passeio.
Mas por que não nos encontramos nós no matrimônio? Por que diabo ela quebra esquina, quando me vê em frente e deixa-me com cara de burro em plena rua-da-amargura, em plena rua-do-sacramento, devera eu dizer?!...
Já visitei uma sonâmbula:
Por que não há meio de encontrar minha mulher?
- Espie, disse-me ela.
- Tenho espiado... Ainda, outro dia, entrou ali numa modista, onde vai muito... Perguntei por ela. Acabava de sair pelo outro lado. A casa tem duas frentes. Examinei... O lugar mais sério deste mundo!... Daí a pouco, um amigo, (o mesmo das fumaças, por sinal) disse-me que tinha estado ali com ela, que a vira ensaiando um chapéu...
Contei à cartomante a nossa vida, mais ou menos, a minha vigilância...
A tal pitonisa era uma esperta gorducha, de bochechas vermelhas e grande pasta de cosmético na testa como uma aba de boné... Sorriu-se. Retirou-se a deitar cartas, num gabinete obscuro. De volta, falou-me simbolicamente, com alguma pimenta de malícia na voz.
- Meu senhor, o coração da mulher é uma cousa complicada. Não se pode estudar e definir de uma só maneira, mas no ponto da sua consulta, eu creio que não erro, com esta exposição da minha experiência: Há corações fechados que são como portas de que se perde a chave. Ninguém lhes entra, sem que um milagre da sorte ensine como. Então, é a imensa ventura. Há corações de uma só porta, como as casas seguras, onde a gente entra, sem custo instala-se, faz família dentro, e aí chega a netos tranqüilamente. Há corações de duas portas, que dão entrada a um afeto pela frente, diante da sociedade; a outro afeto pelos fundos, diante da indiscrição da Candinha e seus filhos. O segredo destes amores de acordo é possível; mas, às vezes, mesmo sem segredo eles são felizes. Há corações hotéis, onde todo o mundo entra, escandalosamente, quase simultaneamente, pagando à parte o seu cômodo, sem grande intriga, nem ciúmes. Há corações bodegas, que é um horror...
Mas, há uma espécie curiosa de corações, um produto das sociedades desenvolvidas, para a qual chamo a sua atenção: é o coração volante, e o coração rodante, que aceita amor, mas que não fixa, daqui para ali, a tanto por hora, a tanto por mês, o coração tílburi de praça, que aceita o passageiro em qualquer canto, que dobra a esquina, que corre, que pára, que vem, que desaparece, que passa pela gente às vezes, juntinho, sem que se possa ver quem vai dentro...
Eu compreendi vagamente. A cartomante queria chamar minha mulher de tílburi. Ora minha mulher um tílburi!...
Pedi que esclarecesse.
- Nada mais lhe digo. Saiba entender...
Ora bolas!... E, fiquei na mesma, com a metáfora da consulta e com a minha querida mulher que eu não tenho, que é entrar eu por uma porta ela sair por outra, como um fim de história de meninos.
A BARONESA
Humberto de Campos
Um médico ilustre, de incontestável influência no seio da família carioca, está utilizando, ultimamente, o seu prestigio pessoal para que as senhoras eliminem, de uma vez, o hábito de pintar os cabelos. Acha ele que uma cabeça alva, ou, pelo menos, polvilhada de prata, é um sinal de insubstituível respeitabilidade, que se não pode, de modo nenhum, esconder ou disfarçar. E tamanho tem sido o resultado dessa campanha metódica, persistente, silenciosa, contra a vaidade feminina, que sobem a dezenas, já, as senhoras que se reconciliaram com o destino, conformando-se com as consequências inevitáveis da idade.
Esse costume de mudar a cor dos cabelos não é, entretanto, um vício dos nossos tempos. As atenienses conheceram-no, conheceram-no as mulheres de Veneza, criadoras do "louro veneziano", e não houve corte européia posterior à Renascença em que não se procurasse um processo de ocultar à curiosidade do mundo, sempre impiedoso, a neve que nos avisa, alvejando-nos a cabeça, que é chegado, enfim, o triste inverno da vida... Há trinta anos, ainda, era isso em voga no Rio de janeiro. E era sobre isso mesmo que eu meditava, uma destas tardes, ao despedir-me da minha veneranda amiga a Sra. Baronesa de Caçapava, cujos oitenta e seis anos constituem, em nossos dias, uma das relíquias mais preciosas da mais alta sociedade do Império.
Estendida na sua "chaise-longue", com os pés, pequeninos e engelhados como duas flores murchas, abrigados sob uma delicada toalha de seda, a boníssima titular sorria, carinhosa, com a sua boca muito pequena, escondida em um dos vales do rosto recortado de rugas, quando eu lhe falei nos inícios do nosso conhecimento.
— O senhor andava pelos trinta anos; não era, conselheiro?
Eu fiz as contas, mentalmente, embaraçando-me nos algarismos.
— Não estou certo, Sra. Baronesa; não estou certo — respondi. — Recordo-me, porém, que, certa vez, ao vê-la, fiquei impressionadíssimo com a sua figura. A Sra. Baronesa, nesse tempo, lembro-me bem, tinha o rosto ainda moço, mas apresentava na cabeça, já, acentuando a sua beleza, numerosos fios de prata.
— Foi em 1871, — confirmou a velha fidalga, sorrindo benevolamente com a sua boquita de criança, encolhida e funda, privada de todos os dentes. — Foi em 1871; eu tinha, então, trinta e sete anos.
— De outra vez que a vi, — tornei, — o que mais me impressionou foi, ainda, a beleza do seu cabelo. A sua cabeleira, sempre farta, abundante, maravilhosa, era, ainda, inteiramente negra.
A Baronesa olhou-me novamente, com um sorriso de saudade, que era um doce perdão para nós ambos, e acentuou, bondosa:
— Foi em 1880; eu tinha quarenta e seis...
E, olhando-me significativamente, pediu-me, com a vergonha brilhando, como uma brasa, na cinza fria dos olhos:
— Cubra-me os pés, conselheiro; sim?
O CASO DO ROMUALDO
Machado de Assis
Um dia, de manhã, D. Maria Soares, que estava em casa, descansando de um baile para ir a outro, foi procurada por D. Carlota, companheira antiga de colégio, e sócia agora da vida elegante. Considerou isso um benefício do acaso, ou antes um favor do céu, com o fim único de lhe matar as horas aborrecidas. E merecia esse favor, pois de madrugada, ao voltar do baile, não deixou de cumprir as rezas do costume, e, logo à noite, antes de ir para o outro, não deixará de persignar-se.
— Você chegou muito a propósito, disse a viúva a Carlota; vamos falar de ontem... Mas que é isso? que cara é essa?
Na verdade, a cara de Carlota trazia impressa uma tempestade interior; os olhos faiscavam, e as narinas moviam-se deixando passar uma respiração violenta e colérica. A viúva insistiu na pergunta, mas a outra não lhe disse nada; atirou-se a um sofá, e só no fim de uns dez segundos, proferiu algumas palavras que explicaram a agitação. Tratava-se de um arrufo, não briga com o marido, por causa de um homem. Ciúmes? Não, não, nada de ciúmes. Era um homem, com que ela antipatizava profundamente, e que ele queria fazer amigo da casa. Nada menos, nada mais, e antes assim. Mas por que é que ele queria relacioná-lo com a mulher?
Custa dizê-lo: ambição política. Vieira quer ser deputado por um distrito do Ceará, e Romualdo tem ali influência, e trata de fazer vingar a candidatura do amigo. Então este, não só quer metê-lo em casa — e já ali o levou duas vezes — como tem o plano de lhe dar um jantar solene, em despedida, porque o Romualdo embarca para o Norte dentro de uma semana. Aí está todo o motivo do dissentimento.
— Mas, Carlota, dizia ele à mulher, repara que é a minha carreira. Romualdo é trunfo no distrito. E depois não sei que embirração é essa, não entendo...
Carlota não dizia nada; torcia a ponta de uma franja.
— O que é que achas nele?
— Acho-o antipático, aborrecido...
— Nunca trocaram mais de oito palavras, se tanto, e já o achas aborrecido!
— Tanto pior. Se ele é aborrecido calado, imagina o que será falando. E depois...
— Bem, mas não podes sacrificar-me alguma coisa? Que diabo é uma ou duas horas de constrangimento, em benefício meu? E mesmo teu, porque, eu na Câmara, tu ficas sendo mulher de deputado, e pode ser... quem sabe? Pode ser até que de ministro, um dia. Desta massa é que eles se fazem.
Vieira gastou uns dez minutos em sacudir diante da mulher as pompas de um grande cargo, uma pasta, ordenanças, fardão ministerial, correios do paço, e as audiências, e os pretendentes, e as cerimônias... Carlota não se abalava. Afinal, exasperada, fez ao marido uma revelação.
— Ouviu bem? O tal seu amigo persegue-me com os olhos de mosca morta, e das oito palavras que me disse, três, pelo menos, foram atrevidas.
Vieira ficou alguns instantes sem dizer nada; depois começou a mexer com a corrente do relógio, afinal acendeu um charuto. Estes três gestos correspondiam a três momentos do espírito. O primeiro foi de pasmo e raiva. Vieira amava a mulher, e, por outro lado, cria que os intuitos do Romualdo eram puramente políticos. A descoberta de que a proteção da candidatura tinha uma paga, e paga adiantada, foi para ele um assombro. Veio depois o segundo momento, que foi o da ambição, a cadeira na Câmara, a reputação parlamentar, a influência, um ministério... Tudo isso atenuou a primeira impressão. Então ele perguntou a si mesmo, se, estando certo da mulher, não era já uma grande habilidade política explorar o favor do amigo, e deixá-lo ir-se de cabeça baixa. Em rigor, a pretensão do Romualdo não seria única; Carlota teria outros namorados in petto. Não se havia de brigar com o mundo inteiro. Aqui entrou o terceiro momento, o da resolução. Vieira determinou-se a aproveitar o favor político do outro, e assim o declarou à mulher, mas começou por dissuadi-la.
— Pode ser que você se engane. As moças bonitas estão expostas a serem olhadas muita vez por admiração, e se cuidarem que já isso é amor, então nem podem mais aparecer.
Carlota sorriu com desdém.
— As palavras? disse o marido. Não podiam ser palavras de cumprimento? Podiam, decerto...
E, depois de um instante, como lhe visse persistir o ar desdenhoso:
— Juro que se tivesse a certeza do que me dizes, castigava-o... Mas, por outro lado, é justamente a vingança melhor; faço-o trabalhar, e... justamente! Querem saber uma coisa? A vida é uma combinação de interesses... O que eu quero é fazer-te ministra de Estado, e...
Carlota deixou-o falar, à toa. Como ele insistisse, ela prorrompeu e disse-lhe coisas duras. Estava sinceramente irritada. Gostava muito do marido, não era loureira, e nada podia agravá-la mais do que o acordo que o marido procurava entre a conveniência política e os sentimentos dela. Ele, afinal, saiu zangado; ela vestiu-se e foi para a casa da amiga.
Hão de perguntar-me como se explica que, tendo mediado algumas horas, entre a briga e a chegada à casa da amiga, Carlota ainda estava no grau agudo da exasperação. Respondo que em alguma coisa há de uma moça ser faceira, e pode ser que a nossa Carlota gostasse de ostentar os seus sentimentos de amor ao marido e de honra conjugal, como outras mostram de preferência os olhos e o método de mexer com eles. Digo que pode ser; não afianço nada.
Ouvida a história, D. Maria Soares concordou em parte com a amiga, em parte com o marido, posto que, realmente, só concordasse consigo mesma, e acreditasse piamente que o maior desastre que podia suceder a uma criatura humana, depois de uma noite de baile, era entrar-lhe em casa uma questão daquelas.
Carlota tratou de provar que tinha razão em tudo, e não parcialmente; e a viúva diante da ameaça de maior desastre, foi admitindo que sim, que afinal quem tinha toda a razão era ela, mas que o melhor de tudo era deixar andar o marido.
— É o melhor, Carlota; você não está certa de si? Pois então deixe-o andar... Vamos nós à Rua do Ouvidor? ou vamos mais perto, um passeiozinho...
Era um meio de acabar com o assunto; Carlota aceitou, D. Maria foi vestir-se, e daí a pouco saíram ambas. Vieram à Rua do Ouvidor, onde não foi difícil esquecer o assunto, e tudo acabou ou ficou adiado. Contribuiu para isso o baile da véspera; a viúva alcançou finalmente que falassem das impressões trazidas, falaram por muito tempo, esquecidas do resto, e para não voltar logo para a casa, foram comprar alguma coisa a uma loja. Que coisa? Nunca se soube claramente o que foi; há razões para crer que foi um metro de fita, outros dizem que dois, alguns opinam por uma dúzia de lenços. O único ponto liquidado é que estiveram na loja até quatro horas.
Ao voltar para casa, perto da Rua Gonçalves Dias, Carlota disse precipitadamente à amiga:
— Lá está ele!
— Quem?
— O Romualdo.
— Onde está?
— É aquele de barbas grandes, que está coçando o queixo com a bengala, explicou a moça olhando para outra parte.
— Exagerei? perguntou ela à viúva no bond.
— Qual exageraste! O sujeito é insuportável, acudiu a viúva; mas, Carlota, não te acho razão na zanga. Pareces criança! Um sujeito assim não faz zangar ninguém. A gente ouve o que ele diz, não lhe responde nada, ou fala do sol e da lua, e está acabado; é até um divertimento. Já tive muitos do mesmo gênero...
— Sim, mas não tens um marido que...
— Não tenho, mas tive; o Alberto era do mesmo gênero; eu é que não brigava, nem lhe revelava nada; ria-me. Faze a mesma coisa; vai rindo... Realmente, o sujeito tem um olhar espantado, e quando sorri fica mesmo com uma cara de poucos amigos; parece que sério é menos carrancudo.
— E é...
— Bem vi que era. Ora zangar-se a gente por tão pouca coisa! Demais, ele não vai embora esta semana? Que te custa suportá-lo?
A verdade é que Carlota voltou para casa tranqüila, e disposta ao banquete. Vieira, que esperava a continuação da luta, não pôde encobrir o contentamento de a ver mudada. Confessou que ela tinha razão em mortificar-se, e que ele, se não estivessem as coisas em andamento, abriria mão da candidatura; já o não podia fazer sem escândalo.
Chegou o dia do jantar, que foi esplêndido, assistindo a ele vários personagens políticos e outros. De senhoras, apenas duas, Carlota e D. Maria Soares. Um dos brindes de Romualdo foi feito a ela; — um longo discurso, arrastado, cantado, assoprado, cheio de anjos, de um ou dois sacrários, de caras esposas, acabando tudo por um cumprimento ao nosso venturoso amigo. Vieira interiormente mandou-o ao diabo; mas, levantou o copo e agradeceu sorrindo.
Dias depois, seguia Romualdo para o Norte. A noite da véspera foi passada em casa do Vieira, que se desfez em demonstrações de aparente consideração. De manhã, levantou-se este cedo para ir a bordo, acompanhá-lo; recebeu muitos cumprimentos para a mulher, à despedida, e prometeu que daí a pouco iria ter com ele. O aperto de mão foi significativo; um tremia de esperanças, outro de saudades, ambos pareciam pôr naquele arranco final todo o coração, e punham tão-somente o interesse, — ou de amor ou de política, — mas o velho interesse, tão amigo da gente e tão caluniado.
Pouco tempo depois, seguiu o Vieira para o Norte, a cuidar da eleição. As despedidas foram naturalmente chorosas, e por pouco, esteve Carlota disposta a seguir também com ele; mas a viagem não duraria muito tempo, e depois, ele teria de percorrer o distrito, cuidar de coisas que tornavam difícil a condução da família.
Ficando só, Carlota cuidou de matar o tempo, para torná-lo mais curto. Não foi a teatros nem bailes; mas visitas e passeios eram com ela. D. Maria Soares continuava a ser a melhor das companheiras, rindo muito, reparando em tudo, e mordendo sem piedade. Naturalmente, o Romualdo foi esquecido; Carlota chegou mesmo a arrepender-se de ter ido confiar à amiga uma coisa, que agora lhe parecia mínima. Demais, a idéia de ver o marido deputado, e provavelmente ministro, começava a dominá-la, e a quem o deveria, senão ao Romualdo? Tanto bastava para não torná-lo odioso nem ridículo. A segunda carta do marido confirmou-a nesse sentimento de indulgência; dizia que a candidatura tinha esbarrado num grande obstáculo, que o Romualdo destruíra, graças a um imenso esforço, em que até perdeu um amigo de vinte anos.
Tudo caminhou assim, enquanto Carlota, aqui na corte, ia matando o tempo, segundo ficou dito. Já disse também que D. Maria Soares ajudava-a nessa empresa. Resta dizer, que não sempre, mas às vezes, tinham ambas um parceiro, que era o Dr. Andrade, companheiro de escritório do Vieira, e encarregado de todos os seus negócios, durante a ausência. Este era um advogado recente, vinte e cinco anos, não deselegante, nem feio. Tinha talento, era ativo, instruído, e não pouco sagaz, em negócios do foro; para o resto das coisas, conservava a ingenuidade primitiva.
Corria que ele gostava de Carlota, e mal se compreende um tal boato, pois a ninguém confiou nada, nem mesmo a ela, por palavras ou obras. Pouco ia lá; e quando ia procedia de modo que não desse azo a nenhuma suspeita. É certo, porém, que ele gostava dela, e muito, e se nunca lho declarou, menos o faria agora. Evitava até ir lá; mas Carlota convidou-o algumas vezes a jantar, com outras pessoas; D. Maria Soares, que o viu ali, também o convidou, e foi assim que ele achou-se mais vezes do que pretendia em contato com a senhora do outro.
— Parece que até já está pateta.
— Oitocentos contos? repetiu D. Maria Soares.
— Oitocentos; é uma boa fortuna.
Assim se explica o primeiro convite de D. Maria Soares ao Andrade, para ir jantar à casa dela, com a amiga, e outras pessoas. Andrade foi, jantou, conversou, tocou piano, — pois também sabia tocar piano, — e recebeu da viúva os mais ardentes encômios. Realmente, nunca tinha visto tocar assim; não conhecia amador que pudesse competir com ele. Andrade gostou de ouvir isto, principalmente porque era dito ao pé de Carlota. Para provar que a viúva não elogiava a um ingrato, voltou ao piano, e deu sonatas, barcarolas, rêveries, Mozart, Schubert, nomes novos e antigos. D. Maria Soares estava encantada.
Carlota percebeu que ela começava a cortejá-lo, e sentiu não ter intimidade com ele, que lhe permitisse dizer-lho por brinco; era um modo de os casar mais depressa, e Carlota estimaria ver a amiga em segundas núpcias, com oitocentos contos à porta. Em compensação disse-o à amiga, que pela regra eterna das coisas negou-o a pés juntos.
— Pode negar, mas eu bem vejo que você anda ferida, insistiu Carlota.
— Então é ferida que não dói, porque eu não sinto nada, replicou a viúva.
Em casa, porém, advertiu que Carlota lhe falara com tal ingenuidade e interesse, que era melhor dizer tudo, e utilizá-la na conquista do advogado. Na primeira ocasião, negou sorrindo e vexada; depois, abriu o coração, previamente aparelhado para recebê-lo, cheio de amor por todos os cantos. Carlota viu tudo, andou por ele, e saiu convencida de que, apesar da diferença de idade, nem ele podia ter melhor esposa, nem ela melhor marido. A questão era uni-los, e Carlota dispôs-se à obra.
Eram então passados dois meses depois da saída do Vieira, e chegou uma carta dele com a notícia de estar de cama. A letra pareceu tão trêmula, e a carta era tão curta, que lançou o espírito de Carlota na maior perturbação. No primeiro instante, a sua idéia foi embarcar e ir ter com o marido; mas o advogado e a viúva procuravam aquietá-la, dizendo-lhe que não era caso disso, e que provavelmente já estaria bom; em todo caso, era melhor esperar outra carta.
Veio outra carta, mas do Romualdo, dizendo que o estado do Vieira era grave, não desesperado; os médicos aconselhavam que tornasse para o Rio de Janeiro; eles viriam na primeira ocasião.
Carlota ficou desesperada. Começou por não crer na carta. “Meu marido morreu, soluçava ela; estão me enganando”. Entretanto, veio terceira carta do Romualdo, mais esperançada. O doente já podia embarcar, e viria no vapor que dali sairia dois dias depois; ele o acompanharia com todas as cautelas, e a mulher podia não ter cuidado nenhum. A carta era simples, verdadeira, dedicada e pôs um calmante no espírito da moça.
Com efeito, Romualdo embarcou, acompanhando o doente, que passou bem o primeiro dia de mar. No segundo piorou, e o estado agravou-se de modo que, ao chegar à Bahia, pensou o Romualdo que era melhor desembarcar; mas o Vieira recusou formalmente uma e muitas vezes, dizendo que se tivesse de morrer, preferia vir morrer ao pé da família. Não houve remédio senão ceder, e por mal dele, expirou vinte e quatro horas depois.
Poucas horas antes de morrer, o advogado sentiu que era chegado o termo fatal, e fez algumas recomendações ao Romualdo, relativamente a negócios de família e do foro; umas deviam ser transmitidas à mulher; outras ao Andrade, companheiro de escritório, outras a parentes. Só uma importa ao nosso caso.
— Diga à minha mulher que a última prova de amor que lhe peço é que não se case...
— Sim... sim...
— Mas, se ela, a todo o transe entender que se deve casar, peça-lhe que a escolha do marido recaia no Andrade, meu amigo e companheiro, e...
Romualdo não entendeu essa preocupação da última hora, nem provavelmente o leitor, nem eu, — e o melhor, em tal caso, é contar e ouvir a coisa sem pedir explicação. Foi o que ele fez; ouviu, disse que sim, e poucas horas depois, expirava o Vieira. No dia seguinte, entrava o vapor no porto, trazendo a Carlota um cadáver, em vez do marido que daqui partira. Imaginem a dor da pobre moça, que aliás receava isso mesmo, desde a última carta de Romualdo. Chorara em todo esse tempo, e rezou muito, e prometeu missas, se o pobre Vieira lhe chegasse vivo e são: mas nem rezas, nem promessas, nem lágrimas.
Romualdo veio à terra, e correu à casa de D. Maria Soares, pedindo a sua intervenção para preparar a recente viúva a receber a fatal notícia; e ambos passaram à casa de Carlota, que adivinhou tudo, apenas os viu. O golpe foi o que devia ser, não é preciso narrá-lo. Nem o golpe, nem o enterro, nem os primeiros dias. Saiba-se que Carlota retirou-se da cidade por algumas semanas, e só voltou à antiga casa, quando a dor lhe consentiu vê-la, mas não pôde vê-la sem lágrimas. Ainda assim não quis outra; preferia padecer, mas queria as mesmas paredes e lugares que tinham visto o marido e a sua felicidade.
Passados três meses, Romualdo tratou de desempenhar-se da incumbência que o Vieira lhe dera, à última hora, e nada mais difícil para ele, não porque amasse a viúva do amigo, — realmente, tinha sido uma coisa passageira, — mas pela natureza mesmo da incumbência. Entretanto, era forçoso fazê-lo. Escreveu-lhe uma carta, dizendo que tinha de dizer-lhe, em particular, coisas graves que ouvira ao marido, poucas horas antes de morrer. Carlota respondeu-lhe com este bilhete:
Pode vir quanto antes, e se quiser hoje mesmo, ou amanhã, depois do meio-dia; mas prefiro que seja hoje. Desejo saber o que é, e ainda uma vez agradecer-lhe a dedicação que mostrou ao meu infeliz marido.
Romualdo foi nesse mesmo dia, entre três e quatro horas. Achou ali D. Maria Soares, que não se demorou muito, e os deixou sós. Eram duas viúvas, e ambas de preto, e Romualdo pôde compará-las, e achou que a diferença era imensa; D. Maria Soares dava a sensação de uma pessoa que escolhera a viuvez por ofício e comodidade. Carlota estava ainda acabrunhada, pálida e séria. Diferença de data ou de temperamento? Romualdo não pôde averiguá-lo, não chegou sequer a formular a questão. Medíocre de espírito, este homem tinha uma dose grande de sensibilidade, e a figura de Carlota impressionou-o de modo, que não lhe deu lugar a mais do que à comparação das pessoas. Houve mesmo da parte de D. Maria Soares duas ou três frases que pareceram ao Romualdo um tanto esquisitas. Uma delas foi esta:
— Veja se persuade a nossa amiga a conformar-se com a sorte; lágrimas não ressuscitam ninguém.
Carlota sorriu sem vontade, para responder alguma coisa, e Romualdo rufou com os dedos sobre o joelho, olhando para o chão. D. Maria Soares levantou-se afinal, e saiu. Carlota, que a acompanhou até à porta, voltou ansiosa ao Romualdo, e pediu que lhe dissesse tudo, tudo, as palavras dele, e a doença, e como foi que começou, e os cuidados que lhe deu, e que ela soube aqui e lhe agradecia muito. Tinha visto uma carta de pessoa da província, dizendo que a dedicação dele não podia ser maior. Carlota falava às pressas, cheia de comoção, sem ordem nas idéias.
— Não falemos do que fiz, disse o Romualdo; cumpri um dever natural.
— Bem, mas eu agradeço-lhe por ele e por mim, replicou ela estendendo-lhe a mão.
Romualdo apertou-lhe a mão, que estava trêmula, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Ao mesmo tempo, olhou para ela e viu que a cor pálida ia-lhe bem, e com o vestido preto, tinha um tom ascético e particularmente interessante. Os olhos cansados de chorar não traziam o mesmo fulgor de outro tempo, mas eram muito melhores assim, como uma espécie de meia-luz de alcova, abafada pelas cortinas e venezianas fechadas.
Nisto pensou na comissão que o levava ali, e estremeceu. Começava a palpitar, outra vez, por ela, e agora que a achava livre, ia levantar duas barreiras entre ambos: — que se não casasse, e que, a fazê-lo, casasse com outro, uma pessoa determinada. Era exigir demais. Romualdo pensou em não dizer nada, ou dizer outra coisa qualquer. Que coisa? Qualquer coisa. Podia atribuir ao marido uma recomendação de ordem geral, que se lembrasse dele, que lhe sufragasse a alma por certa maneira. Tudo era crível, e não prenderia assim o futuro com uma palavra. Carlota, sentada defronte, esperava que ele falasse; chegou a repetir o pedido. Romualdo sentiu um repelão da consciência. No momento de formular a recomendação falsa, recuou, teve vergonha, e dispôs-se à verdade. Ninguém sabia o que se passara entre ele e o finado, senão a consciência dele, mas a consciência bastava, e ele obedeceu. Paciência! era esquecer o passado, e adeus.
— Seu marido, — começou —, no mesmo dia em que morreu, disse-me que tinha um grande favor que pedir-me, e fez-me prometer que cumpriria tudo. Respondi-lhe que sim. Então, disse-me ele que era um grande benefício que a senhora lhe fazia, se se conservasse viúva, e que lhe pedisse isto, como um desejo da hora da morte. Entretanto, dado que não pudesse fazê-lo...
Carlota interrompeu-o com o gesto: não queria ouvir nada, era penoso. Mas o Romualdo insistiu, tinha de cumprir...
Foram interrompidos por um criado; o Dr. Andrade acabava de chegar, trazendo à viúva uma comunicação urgente.
Andrade entrou, e pediu a Carlota para lhe falar em particular.
— Não é preciso, retorquiu a moça, este senhor é nosso amigo, pode ouvir tudo.
Andrade obedeceu e disse ao que vinha; este incidente é sem valor para o nosso caso. Depois, conversaram os três durante alguns minutos. Romualdo olhava para o Andrade com inveja, e tornou a perguntar a si mesmo se lhe convinha dizer alguma coisa. A idéia de dizer outra coisa qualquer começou a turvar-lhe novamente o espírito. Ao ver o jovem advogado tão gracioso, tão atraente, Romualdo concluiu, — e não concluiu mal, — que o pedido do morto era um incitamento; e se Carlota nunca pensara em casar, era ocasião de fazê-lo. O pedido chegou a parecer-lhe tão absurdo, que a idéia de alguma desconfiança do marido veio naturalmente, e atribuiu-lhe assim a intenção de punir moralmente a mulher: — conclusão, por outro lado, não menos absurda, à vista do amor que ele testemunhara no casal.
Carlota, na conversação, manifestou o desejo de retirar-se para a fazenda de uma tia, logo que acabasse o inventário; mas, se demorasse muito tempo iria em breve.
— Farei o que puder para ir depressa, disse o Andrade.
Daí a pouco saiu este, e Carlota, que o acompanhara até a porta, voltou ao Romualdo, para dizer-lhe:
— Não quero saber o que foi que meu marido lhe confiou. Ele pede-me o que por mim mesmo faria: — ficarei viúva...
Romualdo podia não ir adiante, e desejou isso mesmo. Estava certo da sinceridade da viúva, e da resolução anunciada; mas o diabo do Andrade com os seus modos finos e olhos cálidos fazia-lhe travessuras no cérebro. Entretanto, a solenidade da promessa tornou a aparecer-lhe como um pacto que se havia de cumprir, custasse o que custasse. Ocorreu-lhe um meio-termo: obedecer à viúva, e calar-se, e, um dia, se ela deveras se mostrasse disposta a contrair segundas núpcias, completar-lhe a declaração. Mas não tardou em ver que isto era uma infidelidade disfarçada; em primeiro lugar, ele poderia morrer antes, ou estar fora, em serviço ou doente; em segundo lugar, poderia ser que lhe falasse, quando ela estivesse apaixonada por outro. Resolveu dizer tudo.
— Como ia dizendo, continuava ele, seu marido...
— Não diga mais nada, interrompeu Carlota; para quê?
— Será inútil, mas devo cumprir o que prometi ao meu pobre amigo. A senhora pode dispensá-lo, eu é que não. Pede-lhe que se conserve viúva; mas que, no caso de não lhe ser possível, pedir-lhe-ia bem que a sua escolha recaísse no... Dr. Andrade...
Carlota não pôde ocultar o espanto, e não teve só um, mas dois, um atrás do outro. Quando Romualdo concluía o pedido, antes de dizer o nome do Andrade, Carlota imaginou que ia citar o dele mesmo; e, rápido, tanto lhe pareceu um desejo do marido como uma astúcia do portador, que a cortejara antes. Esta segunda suspeita entornou-lhe na alma um grande desgosto e desprezo. Tudo isso passou como um relâmpago, e quando chegou ao fim, ao nome do Andrade, mudou de espanto, e não foi menor. Esteve calada alguns segundos, olhando à toa; depois, repetiu o que já dissera.
— Não pretendo casar.
— Tanto melhor, disse ele, para os desejos últimos de seu marido. Não lhe nego que o pedido me pareceu exceder do direito de um moribundo; mas não me cabe discuti-lo: é questão entre a senhora e a sua consciência.
Romualdo levantou-se.
— Já? disse ela.
— Já.
— Jante comigo.
— Peço-lhe que não; virei outro dia, disse ele estendendo-lhe a mão.
Carlota estendeu-lhe a mão. Pode ser que se ela estivesse com o espírito quieto, percebesse nos modos do Romualdo alguma coisa que não era a audácia de outrora. Na verdade, ele estava agora acanhado, comovido, e a mão tremia-lhe um tanto. Carlota apertou-lha cheia de agradecimento; ele saiu.
Ficando só, Carlota refletiu em tudo o que se passara. A lembrança do marido pareceu-lhe também extraordinária; e, não tendo ela jamais pensado no Andrade, não pôde furtar-se a pensar nele e na simples indicação do moribundo. Tanto pensou em tudo isso, que lhe ocorreu finalmente a posição do Romualdo. Esse homem tinha-a cortejado, parecia querê-la, recebeu do marido, prestes a expirar, a confidência última, o pedido da viuvez e a designação de um sucessor, que não era ele, mas outro; e, não obstante, cumpriu tudo fielmente. O procedimento pareceu-lhe heróico. E daí pode ser que já não a amasse: e foi, talvez, um capricho de momento; estava acabado; nada mais natural.
No dia seguinte, ocorreu a Carlota a idéia de que Romualdo, sabendo da amizade do marido com o Andrade, podia ir comunicar a este o pedido do moribundo, se já o não tinha feito. Mais que depressa, lembrou-se de mandar chamá-lo, e pedir-lhe que viesse vê-la; chegou mesmo a escrever-lhe um bilhete, mas mudou de idéia, e, em vez de pedir-lho de viva voz, determinou fazê-lo por escrito. Eis o que escreveu:
Estou certa de que as últimas palavras de meu marido foram apenas repetidas a mim e a ninguém mais; entretanto, como há outra pessoa, que poderia ter interesse em saber...
Chegando a este ponto da carta, releu-a, e rasgou-a. Parecia-lhe que a frase tinha um tom misterioso, inconveniente na situação. Começou outra, e não lhe agradou também; ia escrever terceira, quando vieram anunciar-lhe a presença do Romualdo; correu à sala.
— Escrevia-lhe agora mesmo, disse ela logo depois.
— Para quê?
— Referiu aquelas palavras de meu marido a alguém?
— A ninguém. Não podia fazê-lo.
— Sei que não o faria; entretanto, nós, as mulheres, somos naturalmente medrosas, e o receio de que alguém mais, quem quer que seja, saiba do que se passou, peço-lhe que por nenhuma coisa refira a outra pessoa...
— Certamente que não.
— Era isto o que lhe dizia a carta.
Romualdo vinha despedir-se; seguia daí três dias para o Norte. Pedia-lhe desculpa de não ter aceitado o convite de jantar, mas na volta...
— Volta? interrompeu ela.
— Conto voltar.
— Quando?
— Daqui a dois meses ou dois anos.
— Cortemos ao meio; seja daqui a quatro meses.
— Depende.
— Mas, então, sem jantar comigo uma vez? Hoje, por exemplo...
— Hoje estou comprometido.
— E amanhã?
— Amanhã vou a Juiz de Fora.
Carlota fez um gesto de resignação; depois perguntou-lhe se na volta do Norte.
— Na volta.
— Daqui a quatro meses?
— Não posso afirmar nada.
Romualdo saiu; Carlota ficou pensativa algum tempo.
“Singular homem! pensou ela. Achei-lhe a mão fria e, entretanto...”
Depressa passou a Carlota a impressão que lhe deixara o Romualdo. Este seguiu, e ela retirou-se à fazenda da tia, enquanto o Dr. Andrade continuou o inventário. Quatro meses depois, voltou Carlota a esta corte, mais curada das saudades, e em todo caso cheia de resignação. A amiga encarregou-se de acabar a cura, e não lhe foi difícil.
Carlota não esquecera o marido; ele estava presente ao coração, mas o coração também cansa de chorar. Andrade que a freqüentava, não pensara em substituir o finado marido; ao contrário, parece que principalmente gostava da outra. Pode ser também que fosse mais cortesão com ela, por ela ser menos recente viúva. O que toda a gente cria é que dali, qualquer que fosse a escolhida, tinha de nascer um casamento com ele. Não tardou que as pretensões de Andrade se inclinassem puramente à outra.
“Tanto melhor” pensou Carlota, logo que o percebeu.
A idéia de Carlota é que, sendo assim, não ficava ela obrigada a desposá-lo; mas esta idéia não a formulou inteiramente; era confessar que estaria inclinada a casar.
Passaram-se ainda algumas semanas, oito ou dez, até que um dia anunciaram os jornais a chegada de Romualdo. Ela mandou-lhe um cartão de cumprimento, e ele deu-se pressa em pagar-lhe a visita. Acharam-se mudados; ela pareceu-lhe menos pálida, um pouco mais tranqüila, para não dizer alegre; ele menos áspero no aspecto, e até mais gracioso. Carlota convidou-o a jantar com ela daí a dias. A amiga estava presente.
Romualdo foi circunspecto com ambas, e, posto que trivial, conseguia pôr nas palavras uma nota de interesse. O que, porém, realçava a pessoa dele era, — em relação a uma, a transmissão do recado do marido, e a respeito da outra a paixão que sentira pela primeira, e a possibilidade de vir a desposá-la. A verdade é que ele passou uma noite excelente, e saiu de lá encantado. A segunda convidou-o também para jantar daí a dias, e os três reuniram-se outra vez.
— Ele ainda gosta de ti? perguntava uma.
— Não, acabou.
— Não acabou.
— Por que não? Há tanto tempo.
— Que importa o tempo?
E teimava que o tempo era coisa importante, mas também não valia nada, principalmente em certos casos. Romualdo parecia pertencer à família dos apaixonados sérios. Enquanto dizia isso, olhava para ela a ver se lhe descobria alguma coisa; mas era difícil ou impossível. Carlota levantava os ombros.
Andrade supôs também alguma coisa, por insinuação da outra viúva, e tratou de ver se descobria a verdade; não descobriu coisa nenhuma. O amor de Andrade ia crescendo. Não tardou que o ciúme viesse fazer-lhe cortejo. Pareceu-lhe que a amada via o Romualdo com olhos singulares; e a verdade é que estava muita vez com ele.
Para quem se lembra das primeiras impressões das duas viúvas, há de ser difícil ver na observação do nosso Andrade; mas eu sou historiador fiel, e a verdade antes de tudo. A verdade é que ambas as viúvas começavam a cercá-lo de especiais atenções.
Romualdo não o percebeu logo, porque era modesto, apesar de audaz, às vezes; e da parte de Carlota não chegou mesmo a perceber nada; a outra, porém, houve-se de maneira que não tardou em descobrir-se. Era certo que o cortejava.
Daqui nasceram os primeiros elementos de um drama. Romualdo não acudiu ao chamado da bela dama, e esse procedimento não fez mais do que irritá-la e dar-lhe o gosto de teimar e vencer. Andrade, ao ver-se posto de lado, ou quase, determinou lutar também e destruir o rival nascente, que podia ser em breve triunfante. Já isso bastava; mas eis que Carlota, curiosa da alma do Romualdo, sentiu que este objeto de estudo podia escapar-se-lhe, desde que a outra o quisesse para si. Já então eram passados treze meses da morte do marido, o luto estava aliviado, e a beleza dela, com ou sem luto, fechado ou aliviado, estava no cume.
A luta que então começou teve diferentes fases, e durou cerca de cinco meses mais. Carlota, no meio dela, sentiu que alguma coisa batia no coração de Romualdo. As duas viúvas em breve descobriram as baterias; Romualdo solicitado por ambas, não se demorou na escolha; mas o desejo do morto? No fim de cinco meses as duas viúvas estavam brigadas, para sempre; e no fim de mais três (custa-me dizê-lo, mas é verdade), no fim de mais três meses, Romualdo e Carlota iam meditar juntos e unidos sobre a desvantagem de morrer primeiro.
ROGÉRIO, O RUDE
Raul Pompéia
E um velho apareceu. Muito velho; os cabelos brancos, encacheada coma desciam-lhe aos ombros, tão brancos, tão realmente prata, que todo o ouro do dia nascente não conseguia dourar. Perdia-se sobre aquele inverno, todo o esforço de um sol pujante de primavera.
— Vens, talvez ao meu apelo? Ninguém me pode valer. Queixo-me do passado irrevogável que me preparou esta vida de amarguras. Não há remédio.
— Nada desejo, entretanto, para mim; meu filho são as minhas aspirações e o infeliz, tão moço, é já um condenado. Eu o quisera iluminado e a escola o repeliu. Cresceu-lhe pelos à beira da testa como orelhas de onagro e eu lhe quisera um perfil de medalha. Indico-lhe a cidade, o caminho largo do sucesso e o selvagem reclama o campo, o campo. Quisera vê-lo calcando aos pés o galanteio das princesas, tapete de corações!... e vou surpreendê-lo a desabotoar amor às virtudes campônias cheirando a estrume e a feno...
— Tranquiliza-te. Teu filho está grande. Mas é preciso que me ouças. Deixa cair a foice; o trabalho é a escravidão. Míseros, aqueles que se escravizam à gleba. O pedreiro acumula a alvenaria, sobrepondo custosamente as lascas de rocha; edifica o fundamento e o esqueleto da muralha. Vem o pintor e encobre a valia de todo aquele trabalho com a ligeira camada das tintas. E o arquiteto vem e debuxa a linha aristocrática do arabesco, que é como uma inscrição em que se recomenda ao futuro e à glória. E o estatuário sobre o monumento do pintor e do arquiteto apoia uma grande estátua, asas de bronze abertas para o céu, como um anjo insolente de gênio, presto a escapar-se para a apoteose. Quem vai lembrar-se, diante desta grandeza, do obscuro operário da muralha? O pedreiro trabalha; é o servo; os outros triunfam. Triunfar é fabricar aparências. O melhor pedestal da nossa vitória é o despeito da concorrência. A evidência fere o despeito com um deslumbramento. Fabrica a evidência e verás.
"Nada me perguntes. Bem sei do que digo. Sou muito velho. Chamam-me zombando o Experiência, e eu me chamo Século. Sou filho do Tempo e vou... meu destino é ir. Os dias são os meus irmãos; passam por mim, conheço-lhes o sorriso. Toma. Este é o cofre dos meus recursos. Retira a mão, cheia quanto precisares. Tudo terás para teu filho. O condão misterioso da caixa guarda expedientes contados pelos teus desejos. Tudo terá teu filho. Será grande, iluminado, poderoso. Vencerá distâncias sociais e altitudes de prestígio. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Ele será Papa! Chamar-se-á - Leão."
E o velho extinguiu-se numa evasão de sonho, desfeito em névoa, em nada, como uma forma de vapores no espaço, deixando apenas por momentos a impressão lúcida das alvas barbas, como a lembrança de um meteoro.
"Fabrica a evidência e verás, dissera o velho, fabrica e evidencia. Mas é incrível! A alma latente do mundo não se revela assim... mas este cofre é real, é positivo. Uma ilusão palpável?! E o que será então a realidade? Abramo-lo e ensaiemos."
Aberto o cofre, foi como um derramamento de Paraíso. Expandiu-se no ambiente uma sensação de ventura que chegou até às flores. Os pedúnculos dobraram-se vencidos, ternos da morbidez langue do ar.
— Que meu filho apareça.
E mal fora este desejo enunciado, que surgiu em pessoa Rogério, o rude, olhos oblíquos de selvagem, pelos fartos à beira da testa, como orelhas de onagro:
— Que me quereis, pai?
— Que sejas nutrido...
E ali mesmo, a olhos vistos Rogério inchou como um balão, arredondou-se de plástica; exibiu-se às ambições paternas, bochechudo como um sopro de Éolo, alteadas as protuberâncias da carne em polpas de ádipe, avançando e ostensivo o umbigo em próspero ventre de Sileno jovem.
— Que sejas belo.
E no mesmo instante, sobre a gorda prosperidade de Rogério, abriram-se as rosas da formosura. Esvaíram-se os pelos do onagro; o olhar oblíquo do selvagem endireitou-se em franca perpendicular, temperada de atrevimento. Fossem lá reconhecê-lo dentro daquela frescura macia de cores e de carnes, esgaravatar-lhe a minguadíssima parcela de boçalidade agreste que lhe servia de alma, nos interstícios da Ironia daquele sorriso de bailarina petulante.
— Que detestes convictamente o campo e todas as suas tentações.
E no coração de Rogério nasceu de súbito estranho mal-estar, a febre dos predestinados; espécie de saudade absurda de coisas desconhecidas, grandes ruas, vastas praças, tumulto e movimento durante o dia, luz e festas durante a noite; sede de viagens e fome de aventuras, avidez intensa por grandes tentativas e maiores êxitos. Apagou-se a memória dos primeiros anos, a meninice de poldro, a adolescência de bode farto. Fugiu-lhe de vez o aferradíssimo apego aos idílios do estrume e dos fenos.
"Parte, meu filho, e vai pelo mundo. Grande hás de ser, iluminado e poderoso. Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Tu serás Papa! Chamar-te-ás Leão. Parte!"
E tantas vezes abriu-se o cofre dos recursos que, Rogério o rude subiu ao trono pontifical.
Mordei-vos, despeitados! Invejosos, imitadores e plagiários, basbaques das honrarias que levais a vida olhando para o alto, impotentes de todas as categorias, e de todas as ambições, mordei-vos! Ele triunfou. Entronizou-se no superlativo da pose. Tudo que se arma na terra de brocardo e ouro, tudo ele foi; hoje, é Papa e chama-se Leão. Dobrai o joelho; beijai-lhe as pegadas, que cada prego de seu calçado grava no chão um selo de santidade. O favor de um só dos seus olhares exalta-nos e nos enche com a munificência de Assuerus. Que se há de fazer ao homem a quem el-rei quer honrar? Ele olha e basta. Aquele olhar veste-nos do linho real, e, sobre opulentos jaezes de um corcel altivo, passeia-nos através dos aplausos de uma capital em delírio.
Roma é o cenário do seu triunfo, a herdeira universal do esplendor artístico das idades, do aparato ostentoso da humana vaidade no passado, metrópole arrogante de todas as ênfases do catolicismo, orgulhosa da glória dinástica das próprias tradições.
Lá está.
Diante, rojam-se os cardeais, fazendo agitar-se em mar de sangue a multidão dos ombros em cabeções vermelhos. Mais baixo, no escuro, a massa miserável de uma população prostrada. Dessa humilhação e dessa sombra, eleva-se apenas, medroso ainda assim de se elevar, um murmúrio de prece. Ao redor do trono, sob o dossel, vistosa homenagem da Arte, imagens que passam com a expressão celestial dos rostos de Fra-Angélico, visões da capela Sixtina, academias funambulescas que se contorcem, acrobatas do terror, que se despenham de toda a altura do céu e da Fé - povoando o espaço de aspectos contraditórios em grandiosa desordem, enquanto vibra e avulta, solene na cúpula enorme, a música dos êxtases de Santa Cecília.
E ele no centro, Rogério, hoje Leão, nutrido e belo, em seda branca da cor das transfigurações, sob a tiara de ouro, pasmado de se ver tão grande, mal avistando ao longe, na multidão, o pai que o adora de baixo, acaçapado e satisfeito!
Até que um dia, notando-se-lhe espantosa imobilidade, como se pela magia transformadora das grandezas, acabasse por se consubstanciar o entronizado com o trono, alguém ousado subiu até a eminência a verificar...
Levantaram-lhe a tiara como uma tampa, e viram, maravilha! e viram, no fundo, seco, mirrado e reduzido...
Rogério, o rude, morrera havia muito, dentro daquela armadura de esplendor e de aparência, da nostalgia dos seus campos, represália terrível da boçalidade ludibriada.
OS SUSPENSÓRIOS
Humberto de Campos
Um advogado ilustre, pessoa da minha estima, contava-me, há dias, um caso curioso que o impressionara profundamente. Procurado por uma senhora, que desejava divorciar-se, fizera ele a petição competente, com todo o segredo, e foi levá-la ao juiz. E regozijava-se com a surpresa que ia causar ao péssimo esposo da sua cliente, quando abriu a boca estupefato: no cartório havia, já, uma petição do marido, que apelava para o mesmo recurso judiciário apoiado nas mesmas razões em que se apoiava a mulher. E, como conversa puxa conversa, contou-me o ilustre causídico uma história interessante, que ele havia lido, poucos dias antes, em certa revista estrangeira.
Homem de gênio desigual, o Sr. Fabiano preparava-se para sair, quando, de repente, começou a perder a paciência. Faltava-lhe o suspensório, que devia estar preso à calça vestida na véspera, e era com indignação que ele berrava, com as mãos segurando o cós:
— Não o viste, Maria?
A criada respondia-lhe negativamente e ele trovejava para a mulher:
— Não o viste, Marcela?
De repente, coordenando as ideias, ajustando o "puzzle" das lembranças recentes, calou-se, acalmando completamente a tempestade. E ia fazer o possível para que ninguém falasse mais em tal coisa, quando a mulher chegou à porta do quarto, avisando:
— Fabiano, aí tem uma pessoa que quer falar contigo, com urgência.
— Quem é?
— O Sr. Otaviano, da farmácia.
Um minuto depois, mostrando nas olheiras escuras as infinitas torturas de uma noite de insônia, entrava no quarto, usando da intimidade que ligava as duas famílias, o Sr. Otaviano, farmacêutico de renome. Estava soturno, grave, circunspecto, e, sentindo-se a sós com o amigo, explicou, misterioso, o motivo daquela visita matinal:
— Você sabe — começou, — que eu tinha absoluta confiança em minha mulher. Em minha casa não entrava, jamais, outro homem. Entretanto, ao penetrar, ontem, no nosso quarto de dormir, encontrei isto debaixo da cama. Veja!
E, dizendo isso, arrancou do bolso do sobretudo, que não tirara, um par de suspensórios azul, com fivelas de prata, que exibiu, confiante, aos olhos espantados do amigo.
A essas vozes, porém, a porta escancara-se e, de um pulo, aparece no meio do quarto uma figura de mulher. Era D. Marcela que, tendo visto e ouvido tudo pela fechadura, bradava, branca de cólera:
— Mas, que é isso, afinal? Esse suspensório é o teu, que estas procurando há meia hora!
E cerrando os punhos, no rumo do esposo:
— Indigno! Canalha! Miserável! Não fico nesta casa mais, nem um minuto! Cachorro!...
E prorrompendo em soluços:
— Bandido! Infame! Desgraçado!...
Atarantado com o que acabava de ouvir, o Sr. Otaviano recuara até à parede, boquiaberto. Pálido, tonto, desorientado, o Sr. Fabiano fizera outro tanto, em sentido contrário. E ia a comédia por essa altura, com a moça a arrancar furiosamente os cabelos no meio do quarto, quando apareceu à porta a criada, trazendo alguma coisa nas mãos.
— Patrão, achei os seus suspensórios.
A patroa parou de chorar, estacando, de olhos escancarados, pálida, de cera. E a criada continuou:
— Estavam na secretária da senhora, ao lado do canapé.
Recobrando ânimo, o Sr. Fabiano encaminhou-se, rápido, para a rapariga, e vendo que os suspensórios eram cinzentos, e não azuis, como os seus, trovejou, furibundo:
— De quem são estes suspensórios, senhora?
Mas não obteve resposta. D. Marcela, apavorada havia saído pela porta dos fundos.
NOITE DE ALMIRANTE
Machado de Assis
Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:
- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...
Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.
A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.
- Juro por Deus que está no céu. E você?
- Eu também.
- Diz direito.
- Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.
Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.
Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.
- Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.
- Mas que foi? que foi?
A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...
- Mas virada por quê?
- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.
- Onde mora ela?
- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.
Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.
- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.
E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.
- Sei tudo, disse ele.
- Quem lhe contou?
Deolindo levantou os ombros.
- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
- Disseram.
- Disseram a verdade.
Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.
Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...
- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...
- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...
- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...
- A que horas volta José Diogo?
- Não volta hoje.
- Não?
- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?
Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?
A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.
- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?
Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.
- Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.
Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?
A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.
- Realmente, são muito bonitos.
Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.
Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.
Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.
- Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?
- Que foi?
- Que vai matar-se.
- Jesus!
- Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.
- Eu aqui ainda não vi destes.
- Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...
A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.
QUASE TRAGÉDIA
Raul Plmpéia
(Grafia original)
Conto da Lua-de-Mel
Quando se é recém-casado por esses primeiros dias velozes que fogem para o passado, com uma rapidez incrível; em que almeja-se ardentemente que a noute desça, porque se ama o recato das sombras; em que suspira-se pela manhã, porque a manhã traz aquela preciosa luz fresca que convida a esses passeios ricos de efusões e mútuas expansões amorosas; nesses rápidos dias que os europeus gostam de saborear à beira do Adriático, cobrindo-se com o céu da Itália, ou no meio dos lagos da Suíça, entre os nevoeiros que descem das cumeadas glaciais e brancas; nesse fragmento de vida que os Fluminenses passam refugiados nas alturas verdes e saudáveis da Tijuca, nos saborosos dias da lua-de-mel, há certas confidências murmuradas docemente entre os esposos, confissões muito em segredo, que só entre os dous pombinhos se dizem, e como arrulhos se perdem na ventania que a floresta manda...
E assim deve ser. Tal é a doçura estranha dessas conversações, tal é a intimidade religiosa, em que se confundem a expansão e a reserva, num mistério tão delicado, que é melhor, muito melhor que se percam no espaço, longe dos ouvidos indiscretos como o canto do pássaro na mata virgem...
Foi numa dessas entrevistas meigas e misteriosas, que a pequena Adélia pôde saber porque motivo, pouco antes do seu casamento, Eduardo deixara dous dias em seguida de ir vê-la à casa do pai e soubera também o motivo daquela palidez cruel com que ele reaparecera, rindo muito, jurando que aquilo fora um ligeiro incômodo; que já estava perfeitamente bem, sem conseguir entretanto, ocultar absolutamente que sofria.
Haviam se casado.
Aqueles dous dias e aquela palidez, foram a tristeza da sua alegria no casamento.
Eduardo estava pálido, dentro da casaca preta que mais pálido o fazia. Adélia ficara também pálida e melancólica.
Quando ela soube o motivo, quando descobriu a cicatriz recente que ele tinha pouco acima do calcanhar direito, foi então que a melancolia desapareceu-lhe; mas como não sofreu ainda de vê-lo doente da ferida que mal acabava de fechar-se!
Pôs-se a refletir no fato.
Teve medo de interrogar positivamente Eduardo. Fez conjeturas, todas as conjeturas, e tratou muito dele, maternalmente como uma irmã, como uma filha, muito empenhada em vê-lo completamente restabelecido...
Eduardo pelo contrário inebriado de amor por ela, não cuidava de si. Só queria beijá-la. Cobria-lhe de beijos as pálpebras, ambas as faces, os lábios, beijava-lhe até, cousa incrível! beijava-lhe a concha das orelhinhas rosadas de veludo! Pobre Eduardo!...
Afinal Adélia veio a conhecer tudo. Tudo... que poema! Escapara de ver na candura nívea das asas do seu amor uma triste mancha de sangue. A história do seu noivado por um triz que dava em tragédia e todos os sorrisos e juras por uma linha que não degeneraram em pranto e desespero.
Felizmente tudo ficara em riso, o sangue se reduzia a salpicos vermelhinhos, pontuando as asas de neve dos seus Cupidos.
Parece invenção. Entretanto, a cicatriz lá estava, pouco acima do calcanhar de Eduardo, como a prova palpitante.
Foi assim.
Moravam em Santa Teresa. Da casa de Adélia, no alto, avistava-se embaixo, numa das ruas da encosta do morro, a casa onde morava Eduardo.
Todas as tardes, depois que ele a pediu em casamento, o moço subia a ver a noiva e visitar a família do futuro sogro.
Raramente faltava. Quando ficou determinado o dia do casamento, as visitas de Eduardo tomaram-se infalíveis. Em todo o lugar falava-se do próximo enlace.
Repentinamente, com grande espanto de todos da casa de Adélia e principalmente desta, Eduardo falta um dia. Mandaram saber porque.
- Estava incomodado.
Falta segunda vez...
Duas vezes... Era incrível...
Um noivo como ele faltar duas vezes... era grave.
Nova visita.
- Vai melhor... mas...
Todos ficaram sobressaltados.
Quanto caiporismo!
Havia alguns dias que tudo acontecia naquela casa. Um telegrama viera, noticiando moléstia grave de um parente que estava em Cabo Frio, o padrinho de Adélia, para sinal; a estouvada da Joana quebrara uma dúzia de pratos, por querer carregá-los todos duma vez em pilha; ainda mais, entrara pelas janelas da frente, uma grande borboleta preta que fora pousar exatamente na caixa do enxoval da menina...
O cão do vizinho uivara toda a noute...
Acontecia tudo. Até na véspera mesmo da doença de Eduardo, a casa fora visitada à noute, pelos ladrões que haviam espatifado a hera de um muro que dava para a ribanceira de um morro por onde naturalmente os gatunos haviam passado. E isso não fora uma vez só. Primeiro, o pai de Adélia muito escrupuloso dos seus penates, examinando o jardim, como de costume vira o caminho aberto na hera. No outro dia achou a planta mais estragada... já começavam a desaparecer peças de roupa do quintal, por exemplo um lenço de Adélia que ficara no coradouro...
No outro dia, o velho esperou.
Pôde, apenas, distinguir uma sombra escorregando para o lado da ribanceira. Correu ao jardim com a decrépita espingarda, que representava a derradeira segurança do seu lar, mas não viu nada.
Ainda uma vez, esperou o tratante (que afinal parecia não ser tão bandido como se supusera a princípio, porque as galinhas não desapareciam do galinheiro, nem as roupas do coradouro). O velho pai de Adélia escorou-o, dedo no gatilho e olho na hera do muro. Logo que percebeu a sombra... fogo!...
Não se ouviu nem um grito, através da noute, mas o pai de Adélia não teve ânimo de ir verificar se acabava de fazer um cadáver...
Na manhã seguinte, achou-se sangue pela hera e pelo chão.
Contudo a preocupação de Adélia não era a borboleta preta na caixa do enxoval, nem o cão do vizinho uivando à noute, nem mesmo as suspeitas verificadas de que os ladrões visitavam o quintal... A sua preocupação era outra.
Havia dias, que ela encontrava, todas as manhãs, uma flor, no peitoril da janela do seu quarto.
Não acreditava em duendes, mas tinha medo de verificar qual era a mão misteriosa que depunha ali o matutino brinde. Depois, era tão bom não saber cousa alguma e adorar todo o dia aquela rosa, aquele cravo, ou aquele raminho de violetas que dir-se-iam cair do céu com o orvalho!...
Repentinamente deixam de aparecer as flores!...
E esta desgraça, que ela amargava de si para si intimamente, como nos dias anteriores, saboreara a contemplação dos brindes misteriosos, acabrunhava-a, mortificava-a.
Uma suspeita que minava-lhe o cérebro, avultou, ocupou-lhe o espírito todo... Aqueles ladrões... aqueles ramos de hera quebrada no muro da ribanceira... o sangue... o sangue sobretudo!...
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Uma daquelas entrevistas deliciosas de mel veio trazer luz às apreensões. O gatuno era ele. Levara o lenço de Adélia com que santa intenção! o pobre... As flores era ele o duende que as depunha todas as noutes no peitoril...
E o tiro! o horrível tiro da paternal vigilância fora também para Eduardo!...
Eis aí como o noivado de Adélia teve uma quase tragédia e como os Cupidos do seu amor tiveram salpicos rubros na brancura das asas.
MODAS
Humberto de Campos
A imprensa carioca tem mostrado, nestes últimos tempos, um desusado interesse pelo Japão. "A Noite" mantém em Tóquio um correspondente epistolar, o Sr. Carlos Abreu, e não há quem não tenha lido, e quem não admire, no Rio, as crônicas deliciosas que o nosso cônsul em Kobe, o Sr. Osório Dutra, está mandando para "O Imparcial". Despertada assim a fome de pitoresco do público, não há, hoje, quem não deseje conhecer a terra do Mikado, com as suas "gueixas", os seus crisântemos, as suas cegonhas azuis e as suas cerejeiras cor de rosa, enfim, o Japão verídico ou de legenda, com os seus pequenos leques de seda e os seus grandes templos de porcelana.
Entre os curiosos desse gênero está, como era natural, o antigo engenheiro da Central do Brasil, Dr. Guilherme Viana, cuja velhice decorre, hoje, no meio da melhor prosperidade econômica, ao lado da esposa, a virtuosa Dona Saturnina, da filha viúva, D. Odete Meireles, e da sua encantadora sobrinha Maria Otávia, botão de rosa de dezoito pétalas, que é, pode-se dizer, uma segunda filha do casal. Interessado, dessa forma, pelo Império do Sol Nascente, o velho engenheiro perguntou-me, outro dia, se eu possuía nas minhas estantes alguma obra sobre o Japão. Eu lhe falei em cinco ou seis, entre as quais as dos nossos patrícios Drs. Oliveira Lima, Luiz Guimarães e padre Feitosa, e o meu amigo escolheu:
— Mande-me o livro do padre; deve ser mais fiel, mais de acordo com a verdade. E mande-me outro qualquer, de autor estrangeiro.
No dia seguinte remetia-lhe eu a "Viagem ao Japão", de monsenhor Feitosa, e uma obra de Mabel Bacon, americana, traduzida, há anos, para o francês, com o título de "Jeunes filles et femmes au Japon". E ontem fui visitar o meu velho amigo, a quem encontrei com os dois volumes em cima da mesa, rodeado das três senhoras que lhe compõem a totalidade da família.
— Excelente livro, o do padre; — observou-me, de supetão, o meu velho camarada. — Achei apenas um pouco exagerado, naquela parte em que ele diz ter visto os soldados de um destacamento tirarem a farda, e descansarem, nus, à vista de toda gente, ao lado das baionetas.
— E o outro livro, o da americana? — indaguei.
— Também tem exageros, excessos abomináveis, como, por exemplo, esse em que a autora conta que, no interior do país, as camponesas trabalham ao sol, cultivando a terra, tendo sobre o corpo unicamente um chapéu de abas largas, e, à cintura, um leque, amarrado por um cordão.
— Como é essa vestimenta? — indagou
— Um chapéu de palha, e um leque à cintura, — repetiu o pai.
— E nada mais! — acentuou.
A essa informação, D. Saturnina juntou as gordas mãos sobre o estômago, espantada:
— Meu Deus! Parece até "toilette" do Municipal!
Mas não terminou. Escandalizada com aquela heresia, a viúva interrompeu-a, protestando, logo, não em nome da decência, mas em nome do bom gosto:
— Oh, mamãe, assim, também, não!
E acrescentou, com horror:
— Onde a senhora já viu a gente ir ao Municipal de chapéu?!...
UMA NOITE
Machado de Assis
Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:
- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...
Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.
A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.
- Juro por Deus que está no céu. E você?
- Eu também.
- Diz direito.
- Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.
Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.
Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.
- Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.
- Mas que foi? que foi?
A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...
- Mas virada por quê?
- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.
- Onde mora ela?
- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.
Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.
- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.
E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.
- Sei tudo, disse ele.
- Quem lhe contou?
Deolindo levantou os ombros.
- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
- Disseram.
- Disseram a verdade.
Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.
Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...
- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...
- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...
- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...
- A que horas volta José Diogo?
- Não volta hoje.
- Não?
- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?
Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?
A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.
- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?
Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.
- Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.
Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?
A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.
- Realmente, são muito bonitos.
Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.
Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.
Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.
- Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?
- Que foi?
- Que vai matar-se.
- Jesus!
- Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.
- Eu aqui ainda não vi destes.
- Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...
A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.
OS PARRICIDAS
Raul Pompéia
ALTRUÍSMO
Humberto de Campos
"Domingo, 6. Regresso, enfim, à pátria querida, e aos braços do meu marido. Após dois anos de ausência, embarquei, ontem, às 5 horas da tarde, em Lisboa, aonde cheguei anteontem, de Paris. O navio vai repleto de passageiros, principalmente de emigrantes, embarcados em Vigo e no Porto. O mar apresenta-se bem, e a viagem está sendo feita sem novidade.
Segunda-feira, 7. — Tudo continua bem a bordo. Os passageiros de 1ª classe, na sua maior parte argentinos, bebem e jogam, no "bar". No tombadilho, alguns ingleses, que se dirigem ao Rio e a Buenos— Aires, fumando displicentemente. Algumas francesas que conduzem vestidos feitos para a sociedade carioca; e três ou quatro famílias brasileiras, que se conservam nos seus camarotes.
Terça-feira, 8. — A viagem continua excelente. Em palestra com o imediato, este me informou que vão a bordo, para o Rio, Santos, Montevidéu e Buenos-Aires, 1.275 passageiros. Uma verdadeira cidade flutuante, em que não há cinco pessoas que reciprocamente se conheçam!
Quarta-feira, 9. — O mar permanece calmo, e o céu prenuncia bom tempo. À mesa do almoço, notei que o comandante olhava insistentemente para mim, distinguindo-me entre as outras senhoras. Achei esquisita a insistência, e fiz-me de desentendida. À noite, não desci para o jantar.
Quinta-feira, 10. — O comandante continuou, hoje, à mesa, a olhar-me com desusado atrevimento, a ponto de esquecer-se do talher e do whisky. É um inglesão alto, robusto, de quarenta e poucos anos presumíveis, bigode louro, tez corada e fina, olhos azuis como o oceano. Um verdadeiro tipo de marujo britânico. Entretanto, a sua insistência irrita-me. Por quem me tomará ele?
Sexta-feira, 11. — Após o jantar, o comandante Wiliam desceu da casa de comando ao tombadilho, procurando conversar comigo, em inglês. Fiz todo o possível para impedir uma declaração indelicada, não o conseguindo. Não é que o homem está mesmo apaixonado?
Sábado, 12. — Esta situação começa a incomodar-me. O comandante passou o dia quase todo a perseguir-me, insistindo em declarar-me a sua paixão desordenada. Tenho a impressão de que o homem enlouqueceu. E eu, sozinha, sem um amigo, sem um conhecido que me defenda! Como é perigoso para uma senhora viajar só!...
Domingo, 13. — O comandante enlouqueceu, positivamente. Hoje, à tarde, aproveitando um momento em que ficamos sós no salão de música, apertou-me os pulsos com violência, dizendo-me que não lhe é possível resistir mais. Diz ele que, se eu me não entregar à sua paixão louca, ele meterá o navio a pique em pleno oceano, fazendo perecer todos que nele viajam. Dai-me forças, meu Deus! Dai-me coragem!
Segunda-feira, 14. — Que dia horrível, este! Como um louco, o cabelo e o bigode revoltos, os olhos inchados pela insônia e pelo desejo, o comandante declarou-me, trêmulo sob palavra de honra, que, se eu não for à meia-noite de hoje, ao seu camarote, meia hora depois ele fará explodir o navio, em uma catástrofe de que se não salvará ninguém. Que situação a minha! Tende piedade de mim, minha Nossa Senhora da Penha! Iluminai-me, minha Virgem Maria!
Terça-feira, 15. — Salvei da morte 1.275 passageiros! Não haverá outros navios correndo perigo no mar?"
METAFÍSICA DAS ROSAS
Machado de Assis
LIVRO PRIMEIRO
No princípio era o Jardineiro. E o Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para glória e contemplação das Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas, os galhos, os troncos e botões. Criou a terra e o estrume. Criou as árvores grandes para que amparassem o toldo azul que cobre o jardim e a chácara, e ele não caísse e esmagasse as Rosas. Criou as borboletas e os vermes. Criou o sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.
Grande é o Jardineiro! Suas longas pernas são feitas de tronco eterno. Os braços são galhos que nunca morrem; a espádua é como um forte muro por onde a erva trepa. As mãos, largas, espalham benefícios às Rosas.
Vede agora mesmo. A noite voou, amanhã clareia o céu, cruzam-se as borboletas e os passarinhos, há uma chuva de pipilos e trinados no ar. Mas a terra estremece. É o pé do Jardineiro que caminha para as Rosas. Vede: traz nas mãos o regador que borrifa sobre as Rosas a água fresca e pura, e assim também sobre as outras plantas, todas criadas para glória das Rosas. Ele o formou no dia em que, tendo criado o sol, que dá vida às Rosas, este começou a arder sobre a terra. Ele o enche de água todas as manhãs, uma, duas, cinco, dez vezes. Para a noite, pôs ele no ar um grande regador invisível que peneira orvalho; e quando a terra seca e o calor abafa, enche o grande regador das chuvas que alagam a terra de água e de vida.
LIVRO II
Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente das Rosas. E o Jardineiro, vendo-as tristes, perguntou-lhes:
— Que tendes vós, que inclinais as pétalas para o chão? Dei-vos a chácara e o jardim; criei o sol e os ventos frescos; derramo sobre vós o orvalho e a chuva; criei todas as plantas para que vos amem e vos contemplem. A minha mão detém no meio do ar os grandes pássaros para que vos não esmaguem ou devorem. Sois as princesas da terra. Por que inclinais as pétalas para o chão?
Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as servisse.
O Jardineiro sacudiu a cabeça com um gesto terrível; o jardim e a chácara estremeceram até aos fundamentos. E assim falou ele, encostado ao bastão que trazia:
— Dei-vos tudo e não estais satisfeitas? Criei tudo para vós e pedis mais? Pedis a contemplação de outros olhos; ides tê-la. Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá, contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e ame.
E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão. No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos, mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz, abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto, soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.
E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:
— Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores, as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras.
LIVRO III
O homem e a mulher tiveram filhos e os filhos outros filhos, e disseram eles entre si:
— O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e danças para que as Rosas vivam alegres.
Então vieram à chácara e ao jardim, e bailaram e riram, e giraram em volta das Rosas, cortejando-as e sorrindo para elas. Vieram também outros e cantaram em verso os merecimentos da Rosas. E quando queriam falar da beleza de alguma filha das mulheres faziam comparação com as Rosas, porque as Rosas são as maiores belezas do universo, elas são as senhoras de tudo o que vive e respira.
Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres: Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o Jardineiro disse-lhes: — Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um lugar de delícias que vos indicarei.
Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme ordenara o Jardineiro. E levando-as para fora do jardim, foram com elas a um lugar de delícias, misterioso e remoto, onde todos os filhos dos homens e todas as filhas das mulheres as adoram prostrados no chão. E depois que o Jardineiro manda embora o sol, pega das Rosas cortadas pelos homens e pelas mulheres, e uma por uma prega-as no toldo azul que cobre a chácara e o jardim, onde elas ficam cintilantes durante a noite. E é assim que não faltam luzes que clareiem a noite quando o sol vai descansar por trás das grandes árvores do ocaso.
Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os ventos, nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais do que o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas sublimes.
O MODELO DO ANJO
Raul Pompéia
Estava aberta a exposição.
O bonito frontispício da Academia de Belas-Artes arregalava as janelas, como grandes olhos satisfeitos, e, com fome pantagruélica, ia devorando a multidão que se lhe enfiava pelo pórtico. A fachada despia-se de sua melancolia de pedra, e parecia abrir-se num vasto sorriso. E as flâmulas e bandeiras fincadas nas cornijas, com que atiravam das suas dobras multicores punhados de alegria sobre os que entravam.
Na área semicircular que existe diante do edifício apertava-se o povo, arquejando aos calores da mais límpida soalheira. Ali suava a impaciência, debatendo-se aos empurrões.
Acabava de ser franqueado ao público o ingresso no edifício.
O imperador, que assistira à abertura da exposição acompanhado dos visitantes de convite especial, tinha já ido embora, feita a sua visita às salas de trabalhos. Chegara a vez de todos. Todos queriam entrar.
Um homem, entretanto, se conservava à distância, e estava parado junto de uma das paredes do conservatório, olhando para o povo.
Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho. Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisticamente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica, e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de prata. Semeava olhares por aquela multidão sufocando-se para entrar no templo das artes. Um sorriso vago passeava-lhe nos lábios:
- Que entusiasmo! murmurou, não me é possível entrar hoje...
Estas palavras, ditas distraidamente, foram ouvidas pelas pessoas mais próximas, que viram-no depois retirar-se andando compassadamente, e desaparecer no Rocio.
O interessante personagem encaminhou-se para a rua do Ouvidor. No adro de S. Francisco de Paula um moço que passava, saudou-o, tirando o chapéu:
- Sr. comendador!...
Pouco mais adiante um homem parou-lhe em frente.
Era Vítor Meireles.
O nosso comendador fez um gracioso cumprimento ao pintor, que, sem preâmbulos, perguntou-lhe:
- Então, caro mio, como vai a sua Visão?
- Apenas desenhada...
- Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime... Já se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de rosas, meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, vai dar ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da menina e a túnica abundante e leve do anjo que arrebata a criança através da luz, prestam-se para um ensamble majestoso, não falando nas lindas combinações de reflexos que virão por .... Oh! eu imagino!.. O seu quadro vai fazer barulho... Vamos ver aqui no Rio um painel religioso digno da Renascença...
- Ora, Vítor!...
Qual ora!... Eu não o conheço e você não me conhece?... Quer ouvir o que eu digo?... Entusiasmo e perseverança, que você terá um sucesso...
- Qual! Não espero grande cousa..
- Verá... E depois mande-o à Itália, para experimentar...
- Que homem para dizer cousas bonitas!... Verdade é que você me está animando... Eu hei de trabalhar com gosto, fique certo... Olhe... além do croquis do schizzo que você viu... já executei estudos especiais das figuras... já fiz na tela o desenho do conjunto... Encontrei, porém, uma dificuldade. Falta-me um modelo... Quero dar ao meu anjo um rosto que seja ao mesmo tempo um reflexo deste mundo e do outro; um meio termo entre o idealismo do sobrenatural e a realidade terrena, que faça sentir que o anjo é do céu, mas acha-se na terra; em suma, a fusão da beleza etérea com a beleza que se apalpa. Quero um rosto que preste para receber os toques do meu ideal, uma carinha própria...
- Uma carinha de matar a gente, observou, rindo, Vítor Meireles...
- E não encontro...
- Não é fácil... não é fácil...
- Bem o vejo... Na Itália fora menos difícil. Há muita mocinha para modelo... Aqui está-se como num deserto... muita moça bonita... modelo... nenhum! Ninguém quer ser...
- Eu tenho um... talvez...
- Bonita?
- Admirável... da cabeça aos pés...
- Que idade?
- Vinte e três anos.
- É muito velha... Em todo o caso, se ela quiser...
- Pagando-se bem, ela quer.
- Se quiser e servir... Onde mora ela?
- Rua... número...
- Hei de vê-la... Preciso ver tudo... Ando sequioso como um conquistador...
- Tem motivos.
Algumas palavras mais trocaram os pintores; depois, cada um foi para sua banda.
O comendador, ou Giacometo, como o chamara Vítor Meireles, entrou na rua do Ouvidor e desceu até à dos Ourives, examinando com interesse o semblante das jovens transeuntes.
Pela rua dos Ourives dirigiu-se à da Ajuda, e lá entrou em um corredor do lado esquerdo.
II
Entremos. Tem-se primeiro que subir uma escada. No alto da escada há uma pequena sala de recepção, forrada de azul, bem arranjada, que dá para uma outra sala muito clara, muito arejada, com janelas para a rua e fisionomia de atelier. Grande mesa ao centro, coberta de pincéis, palhetas, tintas, rolos de tela, frascos de óleo e aguarrás, em ativa confusão. Por volta, as paredes encobertas sob uma nuvem de quadros bem acabados, mas sem moldura. Nos cantos, diversos cavaletes com pinturas por concluir, dos quais destacava-se um maior sobre o qual se via uma grande tela já riscada e com algumas pinceladas a esmo... Era a casa de Carlo Giacometo, um valente pintor, educado em Roma e Milão, que vira o dia na cidade do paganismo formidável e do catolicismo dos Papas, à sombra inspiradora do zimbório de S. Pedro.
Estava no Brasil, havia dois anos somente. O seu coração de artista o trouxera. Haviam-lhe falado de um grande país, onde o homem se compreende pequeno ante a grandeza esmagadora de tudo o que o cerca. Nesse país não se sonha o ideal, porque o ideal palpita no céu profundo e azul, nas matas ínvias, na rocha esfolada pelas cachoeiras e no sol que dá fulgurações a tudo. Ele quisera ver.
Sim, que Giacometo era um artista.
Tinha maneiras de olhar e movimentos que pareciam estudados à vista de um ensaiador. Estava sempre como que apertado num círculo de conveniências artísticas com que se dava perfeitamente. As próprias dobras do vestuário amarrotavam-se-lhe graciosas, tal qual se fossem corrigidas a dedo. Um artista, da periferia até o âmago.
Não admira, pois, que ele houvesse feito viagem para o Brasil por amor do belo.
Graças aos auxílios de Júlio Mill, um notável paisagista francês, que aqui viveu obscuramente e na obscuridade morreu, Giacometo estabeleceu-se. Fez relações com os artistas mais distintos da nossa roda de pintores; arranjou discípulos e encomendas, que davam-lhe bastante para levar a vida sem tocar na pequena fortuna que possuía na Itália..
Até à época da nossa narrativa, Giacometo não tinha executado senão pequenos quadros e retratos, muito apreciados pelos conhecedores, mas impróprios para fazer sensação. O seu sucesso devia ser a Visão, o belo projeto que conhecemos.
Era encomenda de um rico visconde, que queria ter no seu gabinete a lembrança viva de uma filhinha que perdera havia tempo. O visconde tomava imenso interesse pelo quadro, e não apertava os cordões da sua generosidade para recompensar o artista.
O motivo do quadro era delicadamente arrebatador, para uma alma como a de Cario Giacometo.
A recompensa era deslumbrante. Tudo convidava.
Carlo atirou-se à empresa com toda a vontade, com todo o fervor, com toda a consciência.
Não era para menos. Tratava-se da sua reputação em país estrangeiro, da sua glorificação talvez. Away!
Em pouco tempo estavam feitas as despesas urgentes: tintas, tela, pincéis novos. E Carlo preparava croquis, ensaiando-se para a grande execução. O fogo do seu entusiasmo foi vivamente atiçado pelo aplauso dos artistas de nota que examinaram os croquis. Houve até um pintor que pediu-lhe antecipadamente o pincel que rematasse o trabalho.
Giacometo começou. Traçou o desenho na tela. Apareceu-lhe então um sério embaraço. Faltava um modelo. Para a criança que ele queria pintar levada para o céu, possuía excelentes fotografias e as informações do visconde. Mas o anjo?...
Carlo daria à menina a expressão da felicidade metafísica de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível e doce das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos nos pequeninos sonos do berço...
A dificuldade era o anjo.
Para o rosto do anjo convergiam os esforços de Giacometo. Aí a sua verdadeira criação. Aí o momento estético da concepção, por assim dizer. Carecia-se de um modelo excepcional.
Giacometo saiu à caça.
Apesar dos seus cinqüenta anos e das suas octogenárias cãs, o pintor desenvolveu uma atividade de fanático.
Percorria as ruas observando atentamente, varava rótulas e sacadas com uns olhares sedentos. Nem uma só moça escapava-lhe. Era como D. Juan de barbas brancas.
Uma vez, andou escandalosamente atrás de uma criadinha. Não pôde falar-l. A criadinha desconfiou e apressou o passo para casa. Cano não insistiu. A criadinha, conquanto bonita, não era exatamente o seu ideal; além disso, não pareceu-lhe de um branco muito puro... Não servia.
Em outra ocasião, parou muito à vontade diante de uma jovem senhora, que na sua janela via os bondes e abanava vagarosamente um leque. Quando a moça deu com aquele sujeito todo elegante, de barbas cor de espuma, ficou admirada, e, retirando-se vivamente atirou-lhe uma risada. Giacometo não percebeu a desfeita, mas sentiu... Aquela rapariga aproximava-se bem...
Passou-lhe pelo cérebro o pensamento de apresentar-se à moça.
Por que não? O que lhe faltava era simplesmente uma pessoa que se quisesse deixar retratar em uma grande tela. Não se tratava exatamente de um modelo vivo... Que dúvida haveria...
Refletindo mais, lembrou-se da dificuldade em que se veria, caso um exame de perto lhe mostrasse que a moça não prestava. Com que cara havia de dizer:
- V. Exa. não serve para meu anjo...
Giacometo desistiu.
Desistir não é desanimar. E o pintor procurava... Visitou os arrabaldes, as ilhas da baía, fez mesmo algumas viagenzinhas... Entretanto, quando alguém que sabia da sua empresa perguntava-lhe:
- E o anjo?
- Não achei ainda!... respondia.
III
Por esse tempo abriu-se a exposição de Belas Artes. Giacometo mandara alguns quadros. Para ver que figura fazia o seu trabalho, no meio do dos demais expositores, Cano Giacometo foi visitá-la. No primeiro dia não pôde entrar. Três dias depois voltou à carga. Não havia a mesma afluência do primeiro dia. O pintor entrou...
Passou rapidamente os olhos pelas pinturas expostas na saleta fronteira à entrada, nessa onde se vê uma estátua de Pedro II, muito branca, de espada pendente à esquerda, fitando tranqüilo um cavaleiro de bronze, que galopa nos ares ao longe e acena-lhe com um rolo de papel.
Seguiu depois pelo corredor que leva à pinacoteca, e, na porta da primeira sala à direita parou. Tinha avistado um dos seus quadros.
Giacometo foi vê-lo de perto.
Entretanto, a vista encontrou-lhe uma grande tela pendurada à esquerda.
Um assunto delicado. Representava uma bela rapariguinha de quatorze ou quinze anos, braços e ombros nus, debruçada numa janela, tentando quebrar com os dedos o pedúnculo de uma rosa. A janela ou trapeira era do tamanho da moldura, de sorte que a figura parecia inclinar-se para fora do painel. Tinha uma execução magistral esse trabalho.
Giacometo sentiu-se preso pelo quadro. Esqueceu completamente os sentidos. Era o maravilhoso semblante da rapariguinha que quebrava o pedúnculo e ria para o espectador...
O pintor consultou o catálogo que lhe haviam oferecido na porta do edifício. Rezava assim:
- Sessenta e quatro. Cópia do natural; trabalho do Sr F.C. Rua da Ajuda n. ...
Que felicidade! F. C. era um pintor seu vizinho, que o tinha em muita consideração e se mostrava seu amigo...
Giacometo contemplou por mais algum tempo o belo quadro, e depois, esquecendo completamente a exposição, retirou-se apressado.
Um conhecido, que o viu andando muito precipitado, perguntou-lhe:
- Onde vai tão apressado, comendador?
- Já tenho o anjo! respondeu ele, sem saber se falava a uma pessoa que tivesse notícia de sua empresa.
Em poucos minutos chegava à rua da Ajuda e batia à porta de F.C.
Veio recebê-lo uma espécie de criada, raquítica, sem sangue e sem carne, metida em uma saia cheia de rugas verticais, que escapava-se-lhe dos ossudos quadris como de dous cabides. Parecia bem moça. Tinha, porém, o rosto escalavrado, o que duplicava-lhe a idade.
- O Sr. F. C. está em casa? perguntou Giacometo.
- Sim, senhor...
- Quero falar-lhe.
- Entre...
E a magra porteira, retirando-se pata um lado, deu caminho ao pintor.
Giacometo encaminhou-se logo para o atelier de F.C. e foi surpreendê-lo em trabalho.
- Oh! meu grande Giacometo, o que significa esta visita? Você custa tanto a aparecer...
- Sabe?... Venho aqui por causa do meu anjo...
- Ainda o teu anjo...
- É exato... Com certeza os do céu não custaram tanto trabalho a quem os fez...
- Mas em que posso eu servir-lhe...
- Vai dar-me o modelo...
- Como?!
- É muito simples... Quem é o autor do quadro n. 64 da exposição?...
- Oh!... Mas você não é homem de copiar...
- Sei... sei... O que eu quero não é o seu lindo quadro; é o precioso modelo que lhe serviu... Deve ser uma perfeição.
- É impossível achar-se cousa que mais satisfaça... É quase o meu sonho... Com algum fulgor mais na fisionomia... está feito o meu anjo... Diga-me quem foi o seu modelo... Juro-lhe que qualquer despesa que haja de fazer não me amedronta...
Um sorriso amargo, inexplicável, traçou-se no rosto de F.C.
- Ai, meu caro Giacometo, eu vou apresentar-te o meu modelo... É minha sobrinha, uma órfã que minha mulher acolheu... Está comigo há meses... Talvez você a tenha visto...
- Nunca! protestou fortemente Carlo... O meu anjo não passaria despercebido!
- Pobre anjo!...
- Não o compreendo...
- Vai compreender... Espere um pouco...
F. C. afastou-se da tela diante da qual conversava com Giacometo, e, oferecendo-lhe uma cadeira, desapareceu no interior da casa.
Instantes após, voltava, impelindo delicadamente pelos ombros a mesma pessoa que recebera o nosso comendador.
- Aqui está o modelo... disse em tom de tristeza.
- O modelo? perguntou Giacometo de um modo estranho.
F. C. afirmou com a cabeça.
A pobre mocinha curvava a cabeça com um acanhamento doloroso.
Esta cena foi de efeito fulminante para Carlo Giacometo. O desgraçado fixava na moça um olhar de louco.
- Ah! meu bom Carlo, as bexigas podem arruinar um modelo...
O artista da Visão deixou pender a cabeça e cobriu o rosto com a mão...
Parecia um condenado. As lágrimas passavam-se por entre os dedos e iam desaparecer-lhe na longa barba.
No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo encomenda da Visão recebeu uma cartinha:
"Meu caro Sr. visconde. - Com profundo pesar declaro a V. Exa. que não me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incumbência...
"Etc. - Cano Giacometo."
O visconde recorreu a outro.
Estava aberta a exposição.
O bonito frontispício da Academia de Belas-Artes arregalava as janelas, como grandes olhos satisfeitos, e, com fome pantagruélica, ia devorando a multidão que se lhe enfiava pelo pórtico. A fachada despia-se de sua melancolia de pedra, e parecia abrir-se num vasto sorriso. E as flâmulas e bandeiras fincadas nas cornijas, com que atiravam das suas dobras multicores punhados de alegria sobre os que entravam.
Na área semicircular que existe diante do edifício apertava-se o povo, arquejando aos calores da mais límpida soalheira. Ali suava a impaciência, debatendo-se aos empurrões.
Acabava de ser franqueado ao público o ingresso no edifício.
O imperador, que assistira à abertura da exposição acompanhado dos visitantes de convite especial, tinha já ido embora, feita a sua visita às salas de trabalhos. Chegara a vez de todos. Todos queriam entrar.
Um homem, entretanto, se conservava à distância, e estava parado junto de uma das paredes do conservatório, olhando para o povo.
Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol das três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de preto, calça e sobrecasaca, numa correção excepcional. Apesar de encanecido, este homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não podia ser muito velho. Era simpático e de uma elegância esquisita. A cabeleira ia-lhe aos ombros em duas ondulações reluzentes; as barbas caíam-lhe abandonadas artisticamente à natureza. Tinha uma das mãos no peito, em atitude napoleônica, e a outra segurando ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de prata. Semeava olhares por aquela multidão sufocando-se para entrar no templo das artes. Um sorriso vago passeava-lhe nos lábios:
- Que entusiasmo! murmurou, não me é possível entrar hoje...
Estas palavras, ditas distraidamente, foram ouvidas pelas pessoas mais próximas, que viram-no depois retirar-se andando compassadamente, e desaparecer no Rocio.
O interessante personagem encaminhou-se para a rua do Ouvidor. No adro de S. Francisco de Paula um moço que passava, saudou-o, tirando o chapéu:
- Sr. comendador!...
Pouco mais adiante um homem parou-lhe em frente.
Era Vítor Meireles.
O nosso comendador fez um gracioso cumprimento ao pintor, que, sem preâmbulos, perguntou-lhe:
- Então, caro mio, como vai a sua Visão?
- Apenas desenhada...
- Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime... Já se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de rosas, meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, vai dar ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da menina e a túnica abundante e leve do anjo que arrebata a criança através da luz, prestam-se para um ensamble majestoso, não falando nas lindas combinações de reflexos que virão por .... Oh! eu imagino!.. O seu quadro vai fazer barulho... Vamos ver aqui no Rio um painel religioso digno da Renascença...
- Ora, Vítor!...
Qual ora!... Eu não o conheço e você não me conhece?... Quer ouvir o que eu digo?... Entusiasmo e perseverança, que você terá um sucesso...
- Qual! Não espero grande cousa..
- Verá... E depois mande-o à Itália, para experimentar...
- Que homem para dizer cousas bonitas!... Verdade é que você me está animando... Eu hei de trabalhar com gosto, fique certo... Olhe... além do croquis do schizzo que você viu... já executei estudos especiais das figuras... já fiz na tela o desenho do conjunto... Encontrei, porém, uma dificuldade. Falta-me um modelo... Quero dar ao meu anjo um rosto que seja ao mesmo tempo um reflexo deste mundo e do outro; um meio termo entre o idealismo do sobrenatural e a realidade terrena, que faça sentir que o anjo é do céu, mas acha-se na terra; em suma, a fusão da beleza etérea com a beleza que se apalpa. Quero um rosto que preste para receber os toques do meu ideal, uma carinha própria...
- Uma carinha de matar a gente, observou, rindo, Vítor Meireles...
- E não encontro...
- Não é fácil... não é fácil...
- Bem o vejo... Na Itália fora menos difícil. Há muita mocinha para modelo... Aqui está-se como num deserto... muita moça bonita... modelo... nenhum! Ninguém quer ser...
- Eu tenho um... talvez...
- Bonita?
- Admirável... da cabeça aos pés...
- Que idade?
- Vinte e três anos.
- É muito velha... Em todo o caso, se ela quiser...
- Pagando-se bem, ela quer.
- Se quiser e servir... Onde mora ela?
- Rua... número...
- Hei de vê-la... Preciso ver tudo... Ando sequioso como um conquistador...
- Tem motivos.
Algumas palavras mais trocaram os pintores; depois, cada um foi para sua banda.
O comendador, ou Giacometo, como o chamara Vítor Meireles, entrou na rua do Ouvidor e desceu até à dos Ourives, examinando com interesse o semblante das jovens transeuntes.
Pela rua dos Ourives dirigiu-se à da Ajuda, e lá entrou em um corredor do lado esquerdo.
II
Entremos. Tem-se primeiro que subir uma escada. No alto da escada há uma pequena sala de recepção, forrada de azul, bem arranjada, que dá para uma outra sala muito clara, muito arejada, com janelas para a rua e fisionomia de atelier. Grande mesa ao centro, coberta de pincéis, palhetas, tintas, rolos de tela, frascos de óleo e aguarrás, em ativa confusão. Por volta, as paredes encobertas sob uma nuvem de quadros bem acabados, mas sem moldura. Nos cantos, diversos cavaletes com pinturas por concluir, dos quais destacava-se um maior sobre o qual se via uma grande tela já riscada e com algumas pinceladas a esmo... Era a casa de Carlo Giacometo, um valente pintor, educado em Roma e Milão, que vira o dia na cidade do paganismo formidável e do catolicismo dos Papas, à sombra inspiradora do zimbório de S. Pedro.
Estava no Brasil, havia dois anos somente. O seu coração de artista o trouxera. Haviam-lhe falado de um grande país, onde o homem se compreende pequeno ante a grandeza esmagadora de tudo o que o cerca. Nesse país não se sonha o ideal, porque o ideal palpita no céu profundo e azul, nas matas ínvias, na rocha esfolada pelas cachoeiras e no sol que dá fulgurações a tudo. Ele quisera ver.
Sim, que Giacometo era um artista.
Tinha maneiras de olhar e movimentos que pareciam estudados à vista de um ensaiador. Estava sempre como que apertado num círculo de conveniências artísticas com que se dava perfeitamente. As próprias dobras do vestuário amarrotavam-se-lhe graciosas, tal qual se fossem corrigidas a dedo. Um artista, da periferia até o âmago.
Não admira, pois, que ele houvesse feito viagem para o Brasil por amor do belo.
Graças aos auxílios de Júlio Mill, um notável paisagista francês, que aqui viveu obscuramente e na obscuridade morreu, Giacometo estabeleceu-se. Fez relações com os artistas mais distintos da nossa roda de pintores; arranjou discípulos e encomendas, que davam-lhe bastante para levar a vida sem tocar na pequena fortuna que possuía na Itália..
Até à época da nossa narrativa, Giacometo não tinha executado senão pequenos quadros e retratos, muito apreciados pelos conhecedores, mas impróprios para fazer sensação. O seu sucesso devia ser a Visão, o belo projeto que conhecemos.
Era encomenda de um rico visconde, que queria ter no seu gabinete a lembrança viva de uma filhinha que perdera havia tempo. O visconde tomava imenso interesse pelo quadro, e não apertava os cordões da sua generosidade para recompensar o artista.
O motivo do quadro era delicadamente arrebatador, para uma alma como a de Cario Giacometo.
A recompensa era deslumbrante. Tudo convidava.
Carlo atirou-se à empresa com toda a vontade, com todo o fervor, com toda a consciência.
Não era para menos. Tratava-se da sua reputação em país estrangeiro, da sua glorificação talvez. Away!
Em pouco tempo estavam feitas as despesas urgentes: tintas, tela, pincéis novos. E Carlo preparava croquis, ensaiando-se para a grande execução. O fogo do seu entusiasmo foi vivamente atiçado pelo aplauso dos artistas de nota que examinaram os croquis. Houve até um pintor que pediu-lhe antecipadamente o pincel que rematasse o trabalho.
Giacometo começou. Traçou o desenho na tela. Apareceu-lhe então um sério embaraço. Faltava um modelo. Para a criança que ele queria pintar levada para o céu, possuía excelentes fotografias e as informações do visconde. Mas o anjo?...
Carlo daria à menina a expressão da felicidade metafísica de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível e doce das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos nos pequeninos sonos do berço...
A dificuldade era o anjo.
Para o rosto do anjo convergiam os esforços de Giacometo. Aí a sua verdadeira criação. Aí o momento estético da concepção, por assim dizer. Carecia-se de um modelo excepcional.
Giacometo saiu à caça.
Apesar dos seus cinqüenta anos e das suas octogenárias cãs, o pintor desenvolveu uma atividade de fanático.
Percorria as ruas observando atentamente, varava rótulas e sacadas com uns olhares sedentos. Nem uma só moça escapava-lhe. Era como D. Juan de barbas brancas.
Uma vez, andou escandalosamente atrás de uma criadinha. Não pôde falar-l. A criadinha desconfiou e apressou o passo para casa. Cano não insistiu. A criadinha, conquanto bonita, não era exatamente o seu ideal; além disso, não pareceu-lhe de um branco muito puro... Não servia.
Em outra ocasião, parou muito à vontade diante de uma jovem senhora, que na sua janela via os bondes e abanava vagarosamente um leque. Quando a moça deu com aquele sujeito todo elegante, de barbas cor de espuma, ficou admirada, e, retirando-se vivamente atirou-lhe uma risada. Giacometo não percebeu a desfeita, mas sentiu... Aquela rapariga aproximava-se bem...
Passou-lhe pelo cérebro o pensamento de apresentar-se à moça.
Por que não? O que lhe faltava era simplesmente uma pessoa que se quisesse deixar retratar em uma grande tela. Não se tratava exatamente de um modelo vivo... Que dúvida haveria...
Refletindo mais, lembrou-se da dificuldade em que se veria, caso um exame de perto lhe mostrasse que a moça não prestava. Com que cara havia de dizer:
- V. Exa. não serve para meu anjo...
Giacometo desistiu.
Desistir não é desanimar. E o pintor procurava... Visitou os arrabaldes, as ilhas da baía, fez mesmo algumas viagenzinhas... Entretanto, quando alguém que sabia da sua empresa perguntava-lhe:
- E o anjo?
- Não achei ainda!... respondia.
III
Por esse tempo abriu-se a exposição de Belas Artes. Giacometo mandara alguns quadros. Para ver que figura fazia o seu trabalho, no meio do dos demais expositores, Cano Giacometo foi visitá-la. No primeiro dia não pôde entrar. Três dias depois voltou à carga. Não havia a mesma afluência do primeiro dia. O pintor entrou...
Passou rapidamente os olhos pelas pinturas expostas na saleta fronteira à entrada, nessa onde se vê uma estátua de Pedro II, muito branca, de espada pendente à esquerda, fitando tranqüilo um cavaleiro de bronze, que galopa nos ares ao longe e acena-lhe com um rolo de papel.
Seguiu depois pelo corredor que leva à pinacoteca, e, na porta da primeira sala à direita parou. Tinha avistado um dos seus quadros.
Giacometo foi vê-lo de perto.
Entretanto, a vista encontrou-lhe uma grande tela pendurada à esquerda.
Um assunto delicado. Representava uma bela rapariguinha de quatorze ou quinze anos, braços e ombros nus, debruçada numa janela, tentando quebrar com os dedos o pedúnculo de uma rosa. A janela ou trapeira era do tamanho da moldura, de sorte que a figura parecia inclinar-se para fora do painel. Tinha uma execução magistral esse trabalho.
Giacometo sentiu-se preso pelo quadro. Esqueceu completamente os sentidos. Era o maravilhoso semblante da rapariguinha que quebrava o pedúnculo e ria para o espectador...
O pintor consultou o catálogo que lhe haviam oferecido na porta do edifício. Rezava assim:
- Sessenta e quatro. Cópia do natural; trabalho do Sr F.C. Rua da Ajuda n. ...
Que felicidade! F. C. era um pintor seu vizinho, que o tinha em muita consideração e se mostrava seu amigo...
Giacometo contemplou por mais algum tempo o belo quadro, e depois, esquecendo completamente a exposição, retirou-se apressado.
Um conhecido, que o viu andando muito precipitado, perguntou-lhe:
- Onde vai tão apressado, comendador?
- Já tenho o anjo! respondeu ele, sem saber se falava a uma pessoa que tivesse notícia de sua empresa.
Em poucos minutos chegava à rua da Ajuda e batia à porta de F.C.
Veio recebê-lo uma espécie de criada, raquítica, sem sangue e sem carne, metida em uma saia cheia de rugas verticais, que escapava-se-lhe dos ossudos quadris como de dous cabides. Parecia bem moça. Tinha, porém, o rosto escalavrado, o que duplicava-lhe a idade.
- O Sr. F. C. está em casa? perguntou Giacometo.
- Sim, senhor...
- Quero falar-lhe.
- Entre...
E a magra porteira, retirando-se pata um lado, deu caminho ao pintor.
Giacometo encaminhou-se logo para o atelier de F.C. e foi surpreendê-lo em trabalho.
- Oh! meu grande Giacometo, o que significa esta visita? Você custa tanto a aparecer...
- Sabe?... Venho aqui por causa do meu anjo...
- Ainda o teu anjo...
- É exato... Com certeza os do céu não custaram tanto trabalho a quem os fez...
- Mas em que posso eu servir-lhe...
- Vai dar-me o modelo...
- Como?!
- É muito simples... Quem é o autor do quadro n. 64 da exposição?...
- Oh!... Mas você não é homem de copiar...
- Sei... sei... O que eu quero não é o seu lindo quadro; é o precioso modelo que lhe serviu... Deve ser uma perfeição.
- É impossível achar-se cousa que mais satisfaça... É quase o meu sonho... Com algum fulgor mais na fisionomia... está feito o meu anjo... Diga-me quem foi o seu modelo... Juro-lhe que qualquer despesa que haja de fazer não me amedronta...
Um sorriso amargo, inexplicável, traçou-se no rosto de F.C.
- Ai, meu caro Giacometo, eu vou apresentar-te o meu modelo... É minha sobrinha, uma órfã que minha mulher acolheu... Está comigo há meses... Talvez você a tenha visto...
- Nunca! protestou fortemente Carlo... O meu anjo não passaria despercebido!
- Pobre anjo!...
- Não o compreendo...
- Vai compreender... Espere um pouco...
F. C. afastou-se da tela diante da qual conversava com Giacometo, e, oferecendo-lhe uma cadeira, desapareceu no interior da casa.
Instantes após, voltava, impelindo delicadamente pelos ombros a mesma pessoa que recebera o nosso comendador.
- Aqui está o modelo... disse em tom de tristeza.
- O modelo? perguntou Giacometo de um modo estranho.
F. C. afirmou com a cabeça.
A pobre mocinha curvava a cabeça com um acanhamento doloroso.
Esta cena foi de efeito fulminante para Carlo Giacometo. O desgraçado fixava na moça um olhar de louco.
- Ah! meu bom Carlo, as bexigas podem arruinar um modelo...
O artista da Visão deixou pender a cabeça e cobriu o rosto com a mão...
Parecia um condenado. As lágrimas passavam-se por entre os dedos e iam desaparecer-lhe na longa barba.
No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo encomenda da Visão recebeu uma cartinha:
"Meu caro Sr. visconde. - Com profundo pesar declaro a V. Exa. que não me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incumbência...
"Etc. - Cano Giacometo."
O visconde recorreu a outro.
A VINGANÇA
Humberto de Campos
Quando o caboclo Amâncio tomou por arrendamento as últimas quatro estradas de seringueiras do major Nataniel, Francisco das Chagas, cearense chegado há três anos do Canindé, já se achava estabelecido nas quatro outras que lhe ficavam vizinhas, e que faziam parte, todas, do seringal "Bom Sucesso". As madeiras que ele ia sangrar haviam descansado dois cortes e deviam dar bastante leite naquele verão. Essa vantagem ia custar-lhe, todavia, duplo trabalho inicial, com a limpa dos vãos obstruídos pela vegetação, e com a construção de outra barraca, por haver tombado, já, transformando-se em um monte de palha podre, aquela em que vivera o seu antecessor. Levantá-la-ia, entretanto, no mesmo lugar, para aproveitar o porto e os pés de cará, tornados selvagens pelo abandono. Dois dias de foice, desbastando os arbustos novos, poupar-lhe-iam quatro semanas de machado.
Ao fim de uma quinzena, quando as chuvas deixaram de fustigar a floresta, e o rio começou a baixar, estava o Amâncio na sua barraca de bossú a paxiuba, cujas paredes e cobertura de palha nova, a transformavam, quando batida de sol, em uma caixa de ouro, arrepiada de arabescos bizarros. Amarrada à frondosa e torta gameleira do porto, a "montaria" dançava ao sabor da correnteza e do vento, afrouxando e esticando a corda. E na barraca, ou no terreiro, a Mariana, cantarolando ininteligivelmente o dia todo, e a encher com a sedução bárbara do sexo aquele verde palmo do Deserto.
A mudança, do seringal "Maranguape" para o "Bom Sucesso", a que se abalançara o Amâncio, fora involuntariamente causada pela rapariga. Legitimamente casada, por um padre em desobriga, com o velho índio Martinho, ficara, quando este morreu, em mãos do mulato Isidoro, que assumira perante o coronel Dondon, proprietário das estradas que o índio ocupava, a responsabilidade da dívida do defunto. Quando o mulato foi assassinado pelo preto Leôncio, o coronel Dondon recolheu a rapariga ao barracão, como garantia da conta do finado. E como ele, Amâncio, possuía saldo na casa, ficou com a Mariana, e, para evitar a continuação das relações estabelecidas entre ela e o coronel, encerrou as suas transações com este, e mudou de patrão, levando a cabocla.
Mariana não era, positivamente, nem bonita, nem moça. Índia de raça pura, era gorda, e baixa, com a mesma largura nos ombros e nos quadris, e devia andar pelos quarenta anos. O rosto redondo, sombreado e gorduroso, apresentava uma testa estreita, coroada de cabelos lisos e luzidios, que lhe desciam até à cintura. Tinha nariz chato, e olhos pequenos e negros, ligeiramente convergentes. A boca de tamanho regular e lábios finos, deixava em exposição, quando ria, as gengivas arroxeadas, em cuja orla corria uma fieira de dentes pontiagudos, cortados em bico de serra. Vestia, quase sempre, por gosto hereditário, saia e casaco de chita vermelha, os quais, anunciando-a de longe, davam a impressão de uma guará de penas rubras, pousando na proa das "montarias" ou pescando à beira do rio. Não tinha beleza nem graça. Mas era mulher, naquelas regiões em que há uma para dois mil homens, e, só por isso, era desejada, e por ser desejada, vivia contente, exprimindo o seu contentamento em melopéias, cujas palavras só ela entendia.
Achava-se o Amâncio instalado, já, há uma semana, na sua barraca nova, quando, uma tarde, o Chagas passou pelo seu porto, remando sozinho. A Mariana estava à margem do rio, de cócoras, lavando roupa, e, como de costume, cantarolando para si mesma. A saia, arregaçada até os joelhos, deixava à mostra as pernas morenas e grossas, iguais e sólidas como dois toros de madeira cortados no mesmo tronco. Ao defrontar o porto, levou o cearense a mão ao chapéu de carnaúba, em sinal de respeito. A cabocla respondeu ao cumprimento, e continuou a esfregar a roupa, mas sem olhar para o sabão. O jacumã do seringueiro roncou forte, rasgando a água. E quando a "montaria" do Chagas desapareceu na curva do rio, em que as margens eram dois muros de vegetação compacta, Mariana ainda esfregava o mesmo punho de camisa. Os seus olhos tortos acompanhavam o remador como dois novelos de linha preta cujas pontas se achassem amarradas à popa da embarcação, a qual, na sua marcha, os fosse pouco a pouco desenrolando.
Nessa tarde, até à noite, Mariana não cantarolou mais. No dia seguinte, porém, ao entardecer, passou a cantar alto, sentiu-se mais contente do que dantes. Soturno e desconfiado, o Amâncio, em quem não haviam desaparecido ainda a agudeza e perspicácia do selvagem primitivo, não custou a adivinhar o que se passava nas horas em que se achava ausente. Rara era a tarde em que não descobria, na ribanceira do porto, marca de uma proa de "montaria". E rara, também, a em que não encontrava a chaleira quente, com os vestígios de que, pouco antes da sua chegada, se tinha feito café. E se os olhos não lhe dissessem essas cousas, a alma lhe teria dito outras equivalentes, pois que, ao chegar à barraca, não encontrava mais as mesmas carícias gulosas, os mesmos abraços vibrantes de animalidade. Antes de descobrir os passos do Chagas na areia molhada do seu porto, ou a terra frouxa do seu terreiro, já o caboclo os havia adivinhado no coração de Mariana. O coração das mulheres que amam em segredo e pecado é como os troncos que têm abelhas: basta que alguém lhes chegue o ouvido para escutar a zoada lá dentro.
Dias depois dessa descoberta, o Amâncio começou a aproximar-se, com boas maneiras, do Francisco das Chagas. Ao encontrá-lo no rio, parava de remar, detinha a marcha da "montaria" e, cofiando no queixo a barbicha escura e rala, punha-se a conversar sobre o tempo, sobre o rendimento das seringueiras, ou sobre a queda crescente do preço da borracha no barracão, dando sinais inequívocos de que lhe era agradável a sua camaradagem. Convidado por mais de uma vez, o cearense começou a freqüentar a barraca do Amâncio, com a presença deste, que se mostrava sempre comunicativo e obsequioso, servindo-lhe, conforme a demora, uma xícara de café ou um gole de aguardente. Até que, um dia, ficou combinada entre os dois aquela "espera" aos veados no igarapé dos Mutuns.
- Você vem mesmo, homem de Deus? - indagou o caboclo, como quem duvida.
- Venho, "seu" compadre; eu já não disse? Só se Deus Noss'enhor e São Francisco das Chagas do Canindé não quiserem.
E tocou no chapéu, num sinal de devoção.
Ao entardecer do dia aprazado, armado cada um com o seu rifle e levando a tiracolo a corda com que deviam trazer a caça graúda, meteram-se ambos na "montaria" Chagas e penetraram, meia légua rio acima, no estreito caminho dágua, remando com lentidão. A floresta começava a mergulhar na noite, e parecia em êxtase para esse mistério. A quietação era absoluta. Ouvia-se o estalar dos ramos secos, a queda dos açaís maduros no espelho dágua, e o ruído dos jacumãs, ferindo a superfície lisa do igarapé. Há uma hora de transição, na selva, em que os animais do dia já se recolheram e em que os da noite ainda não estão acordados. Hora de trégua; hora de armistício dos seres e das coisas selvagens. E era essa hora que soava no relógio imenso da Natureza quando o Chagas e o Amâncio encalharam a "montaria" numa sapopemba, e percorreram os cem metros que os separavam da árvore em cuja fronde se deviam esconder, à espera dos veados que aí vinham comer as frutas miúdas caídas durante o dia. Só um pouco mais tarde, com o aparecimento da primeira estrela, os sapos romperam com a sua orquestra, enchendo a noite de milhões de vozes confusas, como se todos os troncos, todos os galhos, todas as raízes, todas as folhas, se transformassem de súbito em bárbaros instrumentos musicais.
Vencendo a vegetação rasteira e luxuriante das terras baixas e quase alagadas, chegaram os caçadores a um lugar mais alto, onde um bacurizeiro erguia a fronde elegante no meio de outras árvores de porte menor, cujo fruto era particularmente procurado pelos veados da região. Subiram, o Amâncio primeiro, o Chagas em seguida. Escolheram, para refúgio, um galho alto e sólido, aberto em forquilha e afogado em folhagem densa, de outra árvore que invadia com as suas ramagens a sombra do bacurizeiro. E a escuridão envolveu tudo, aumentando os rumores circunstantes.
Escachados no galho escolhido, os dois caçadores trocavam apenas uma ou outra palavra. Sentia-se, porém, que um e outro estendiam por longe os fios do próprio pensamento, à semelhança de cigarras que lançassem o canto através do espaço, levando-o a distâncias que desconhecem. E o pensamento do nordestino errava, às vezes, tão distante dali, que ele nem se apercebia do movimento leve das mãos do companheiro, o qual acabava de amarrar uma das pontas da sua corda ao galho da árvore, e começava a experimentar, entre as folhas, um laço corredio e seguro, que havia na outra extremidade.
Noite alta, já, escutaram, os dois, o urro de uma onça, do lado oposto ao igarapé. E logo duas brasas esverdeadas se acenderam na treva. Duas outras fulgiram, pouco atrás. E a selva como que se calou apavorada, com a presença dos felinos sanguinários e hostis. Aproveitando a atenção com que o companheiro perscrutava a escuridão ameaçadora, o Amâncio aproximou-se dele e, docente, passou-lhe por um dos pés, apertando-o de leve, o laço que havia feito na corda. De súbito, reunindo toda a sua força nos braços, o caboclo levou as mãos ambas aos peitos do cearense, lançando-o fora do galho. Um berro de surpresa e de dor alarmou a solidão, a corda esticou num estalo, o bacurizeiro estremeceu sacudido, e um corpo ficou bailando no ar, no escuro, a pouco mais de dois metros acima do solo. Ao grito apavorado e apavorante do homem, as onças fugiram, espantadas, em saltos elásticos, entre o estrépito seco de galhos e cipós rebentados na passagem.
- Ai!... Ai!... Ai!... Amâncio... Pelo amor de Deus... me salve!... Ai!... ai!... Amâncio, por que você fez isso?... Que é que eu lhe fiz, Amâncio .... Ai, meu São Francisco do Canindé!...
Quieto, o caboclo conservou-se calado. Os dois rifles, que se achavam entre a folhagem, estavam nas suas mãos. Podia descer, e ir-se embora; a sua vingança ainda não estava, entretanto, terminada. O Chagas soltou alguns gritos estrangulados, pedindo socorro. Compreendendo, porém, a inutilidade desse esforço naquela solidão em que o homem era a mais estranha das sombras, voltou a gemer, espaçadamente. Estava de cabeça para baixo e, com o deslocamento da perna, impossibilitado de alcançar a corda com as mãos, para salvar-se. E gemia há mais de uma hora quando luziram, de novo, a treva, os olhos da onça. Chagas gritou, para afugentá-la; mas a ameaça, em vez de amedrontar, incentivou o felino, que marchou, agachando-se, na direção do bacurizeiro. Outras onças urraram perto. Seis, oito, dez olhos verdes luziram na escuridão. De súbito, a primeira onça deu um salto, alcançando com os dentes e com uma das patas o corpo do seringueiro. Um grito de terror e de angústia espalhou-se pela mata. Mas as feras não fugiram. Pelo contrário, acorreram em bando, como se tivessem adivinhado, pela voz estrangulada da vítima, que ela estava sem defesa. E foi horrível, então, o que Amâncio presenciou, ou, antes. percebeu, imóvel, do seu esconderijo. As ouças, em saltos enormes, disputavam-se os pedaços da carne do Chagas. Numa dança de corpos que se chocavam no ar, e de urros de raiva, estraçalhavam elas, no espaço, os membros do seringueiro. O galho em que se achava o Amâncio era sacudido, abalado pelas feras, quando estas alcançavam a corda, nos seus saltos rápidos e seguros, que se cruzavam na sombra. Segurando-se para não cair, o caboclo ouvia a queda do sangue na terra, como de um pote pequeno cuja água se derrama. Em certo momento, a corda parou de esticar, e o galho de ser agitado pelos felinos. Arrastando membros inteiros para as moitas próximas, as onças devoravam, rosnando, os pedaços que haviam arrebatado umas às outras. O Amâncio ouvia, perfeitamente, o roer dos ossos. Ao fim de algumas horas, os sapos deixaram de coaxar. As onças, satisfeitas, afastaram-se, para beber e dormir. A selva aquietava-se, como se lhe passassem a mão pelo imenso dorso verde, numa grande carícia voluptuosa. Uma claridade tênue varou as folhas. Pipilou o primeiro pássaro. Outros responderam. Com os dois rifles a tiracolo o Amâncio desceu do bacurizeiro. Ao chegar em baixo, olhou a corda.
Da extremidade desta, preso pelo tornozelo, pendia, sangrento e sujo, esfiapando as cartilagens, o pé esquerdo do Chagas, cuja roupa, reduzida a farrapos estraçalhados e sangrentos, jazia espalhada em torno, entre folhas machucadas e empapadas de sangue, de mistura com fragmentos de carne e pedaços de ossos roídos.
O MELHOR REMÉDIO
Machado de Assis
O que se vai ler passa-se num bond. D. CLARA está sentada; vê D. AMÉLIA que procura um lugar; e oferece-lhe um ao pé de si.
AMBAS (sorrindo) Uma coisa muito engraçada; vou contar-lhe...
O MAL DE COM QUIXOTE
Raul Pompéia
Foi um dia apresentado ao Dr. X..., alienista notável do Rio de Janeiro, um curioso enfermo, vítima de uma singular mania.
Singulares são, em última análise, todas as manias de louco; entretanto, a do caso a que aludo, possuía a notável qualidade de consistir numa cousa que tinha seus ares de teoria, através da qual uma sólida corrente de argumentação arrastava o espírito demente ao mais estranho disparate.
- É preciso extraí-lo, raciocinava o louco... O coração é uma víscera perfeitamente tola... Não passa de um estúpido fole, soprando sangue pelas artérias, em vez de ar... A ciência pode trocá-lo por um aparelho qualquer, que o substitua na função de centro circulatório, evitando, contudo, as regalias morais que goza a tal víscera da minha implicância.
"Ne sutor ultra crepidam, ouvi sempre dizer. Se o coração se contentasse com o papel fisiológico de fole, de bomba de compressão, e lá se conservasse modestamente, no fundo da sua gaiola de costelas, a trabalhar obscuro e honrado, nas suas diástoles e sístoles, eu não exigiria que mo extraísse como um obstáculo que estraga-me o organismo e a vida; mas o intruso esquece que nasceu para fole; mete-se pelos domínios da existência moral, a fazer concorrência com os sisudos miolos, e deita, então, quanta tolice pode fazer o sapateiro de Horácio.
"Talvez eu passe por doido, mas afirmo que, se tenho tentado arrancar esse músculo e se exijo a extirpação desse órgão nocivo, ainda que me arrisque a sucumbir, é que muito tenho refletido no assunto, e as minhas convicções contra o coração vêm de longa data, penetraram com valentes raízes no meu espírito.
"A vida dos homens é o positivo. Fora do positivo, existe, apenas, o vasto mar do ridículo. A pilotagem da vida consiste em evitar o naufrágio no grande mar.
"Todavia, o naufrágio é quase inevitável, porque o navio leva uma carga enorme e irrequieta, que faz variar constantemente o centro de gravidade e perturba a todo o momento a flutuação regular.
"Esta carga é a tal víscera.
"Carga ao mar, pois! libertemos a nau!...
"O positivo é o sério, é o grave, é o normal, é o burguês, é o vulgar, é o comum, é o tranqüilo, é o prudente, é o fecundo; é o almoço de todas as manhãs e o jantar de todas as tardes; é a herança para a prole. Fora disso, o exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idealista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente; o pão nosso de cada dia, no mais restrito sentido dominical; o tolo, o desfrutável, em suma.
"É sempre o mesmo abismo de ridículo, ameaçando o sério e o positivo.
"E procuremos o que nos faz pender constantemente para o abismo do desfrute... É a víscera; é a víscera fatal!...
"O coração produz, na família, o enamorado, um tolo; na sociedade, o herói, outro tolo; na literatura, o sentimental, outro tolo; na filosofia, o melancólico, mais um tolo...
"Enamorado, herói, sentimental, melancólico, tudo gira numa vertigem de ridículo, debaixo do grande olho positivo, que ri, como quem vê arder a barba do vizinho, e vai deduzindo em silêncio as gordas e proveitosas normas da experiência.
- "Savoir vivre!...
"O coração é o pai do ridículo pungente. Há quem ache graça no idiotismo e na asneira. Isto é o ridículo banal e fútil.
"Ridículo miserável, profundo, é o das vítimas do coração. É o ridículo propriamente dito; é o ridículo humano.
"Pôr um termo a este mal parece-me um dever elementar da ciência. Sabe-se que a origem do mal aí está palpitando, por entre a quarta costela e a quinta.
"A medicina reflita...
"Tanto mais que não é só o fato objetivo do ridículo que condena o coração. É, ainda mais, o fato subjetivo dos sofrimentos rudes que causa a víscera a quem a traz, cada vez que dá em espetáculo às gargalhadas positivas uma fraqueza e uma tolice da criatura humana.
"Não há nada mais salutar do que o riso. Entre outras vantagens, tem a grande vantagem de não ser a lágrima.
"O riso é a mais agradável manifestação do positivo.
"Quem solta a gargalhada, tem a superioridade de não ser o palhaço.
"Riamos, com os diabos!... Vale mais mofar do que ser mofado.
"No circo da vida, a gargalhada ocupa as arquibancadas anfiteatrais. No meio, faz caretas e macaquices o grotesco, o ridículo, o náufrago da víscera.
"O homem que ri, está fora do picadeiro. Cuidado com a víscera, que ainda leva-te para dentro!...
"É preciso, portanto, que se resolva um meio de abolir o risco de rolar da arquibancada.
"É o que eu procuro.
"Quem sabe bem rir, não cria tropeços à própria liberdade.
"Há uma cousa que chama-se o amor, e uma cousa que apelida-se o ódio. A liberdade positiva tem os pulsos ligados por essas duas algemas. Descubram a outra ponta da cadeia, que hão de encontrá-la soldada ao maldito fole do sangue.
"O amor faz a fidelidade, a dedicação, o cativeiro voluntário e outras cousas que a linguagem, com o seu modo astucioso de resolver as dificuldades, denomina virtudes; faz também, transformando-se por movimentos reflexos, ou paralelos de espírito, o que se chama a indignação, a revolta, o ciúme, a vingança, o ódio, enfim; e certas cousinhas que ainda a linguagem, sem grandes argumentos, especializa com o rótulo de vícios.
"Tudo isso é uma série de algemas, que prendem duma ou doutra sorte. Apaixonado significa acorrentado. Quem ama, prende-se; quem odeia, prende-se. Só é livre quem ri.
"Por isso é que o riso é salutar e raro.
"A gargalhada é essencialmente filha do cérebro. É livre como o sátiro do bosque.
"Viva a gargalhada!
"Quem dá vaias, não as leva.
"É a grande garantia da gargalhada. Contra esta garantia existe a víscera-fole. Risque-se a víscera, em nome da liberdade, ou ao menos em nome da seriedade positiva da vida.
"Dizem que Molière é a comédia... Eu não penso assim. Moliêre escreveu o drama dos idiotas, encenou a parvoice fútil. Para mim, a comédia, a comédia real veio de Inglaterra com aquele pobre Romeu, que passava noutes a cantar serenatas embaixo da varanda da namorada, entoando com os galos; ou ia de madrugada subir por escadas de corda, sem pensar no papel que faria, se a polícia o agarrasse como um gatuno.
"Cômico, para mim, é o furibundo barba-azul do Otelo, que seria um tanto mais brando, se temesse o código. Cômicas são todas essas caricaturas de malucos, engendradas pelo poeta psicólogo inglês.
"A comédia de Shakespeare é na verdade triste. Mas é triste, porque é real; e é triste somente para quem não sabe rir dessa cousa tola chamada paixão.
"Comparados Romeu e D. Juan, o nosso Romeu não passa de um principiante, que não entende do riscado, e que ainda suspira, à luz de alvoradas, como a gata ao cio.
"É que D. Juan sabe rir.
"Certo é também que na comédia de Shakespeare há sangue; mas isso não obscurece o grotesco.
"Triboulet, que começa por fazer rir, acaba por fazer chorar.
"De mais, o sangue da comédia inglesa é a última conseqüência da ridícula soberania do fole circulatório. É requinte sui generis do desfruto.
"Quando aquela gente suicida-se, ou cai assassinada e mesmo quando assassina, ouve-se o bom senso positivo, burguês e prático dizer: - pobres diabos!
"O positivo é que é o verdadeiro. É preciso conciliar-se tudo com ele.
"As nevroses constituem a praga da humanidade.
- Guerra às nevroses!
"A cidadela das nevroses é a famosa víscera.
"Arrasemos a cidadela!
"Sim, meu caro doutor, já é tempo de lançar-se mão aos freios da estafada cavalgadura de D. Quixote, que vai desastradamente passeando a gesticulação ossuda do seu entusiasmo cavalheiresco, por entre a vaia das gerações!
"Já é tempo de suspender-se este espetáculo do cavalheiro da Mancha, eternamente bom, mas eternamente tolo!..."
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O médico, que acompanhava extasiado a estranha dissertação do louco, concentrou-se por momentos, e disse-lhe:
- Esteja tranqüilo, meu amigo, não pense mais nisto; eu vou extirpar-lhe o coração... vou curá-lo.
AS LOÇÕES MIRACULOSAS
Humberto de Campos
A coisa mais fácil de inventar, é, neste mundo, o tônico para cabelo. Não há barbeiro por mais modesto e preguiçoso, que não possua a sua fórmula prestigiosa, destinada a fazer rebentar uma cabeleira encaracolada na calva mais rebelde e, se possível, numa bola de bilhar. Quanto à utilidade real dessas loções, desses tônicos, dessas tinturas miraculosas, prova-a o número, sempre crescente, de carecas, existente no Rio de janeiro.
O mais curioso é, no entanto, o entusiasmo, a fé, a convicção, com que os "fígaros" fazem a propaganda do seu preparado. Concluída a barba do freguês, o bárbaro, empunhando ainda a navalha, propõe à vítima:
— Vamos, agora, a uma fricção do nosso tônico?
Agredido assim, o freguês encara o agressor, medindo-o de alto a baixo, com raiva; ao dar, porém, com os olhos na lâmina faiscante, aberta a dois palmos do seu pescoço, capitula, forçosamente, concordando, desarmado:
— Ponha!
Autorizado a cometer o crime nefando, o barbeiro passa, então, a fazer o elogio do seu remédio.
— É um prodígio, senhor doutor! — assegura. — Se ele caísse numa pedra, no chão, a pedra criaria cabelo!...
O mais curioso propagandista desse gênero foi, entretanto, o de que deu notícia, há muitos anos, na imprensa do norte, um saudoso jornalista paraense. Apanhado, certa vez, de surpresa, em uma cadeira de barbearia, esse mártir foi intimado, de súbito, pelo homem da navalha:
— Então, uma loçãozinha para nascer o cabelo; não?
O desventurado ia recusar terminantemente a proposta, mas o barbeiro atalhou, abrindo a navalha:
— É um verdadeiro milagre, o meu preparado. Basta cair na calva, para o cabelo começar, logo, a nascer. É assombroso! É prodigioso! É formidável!
E enquanto esfregava na cabeça do freguês a água do pote perfumada, contou:
— O senhor quer ver o que é a minha loção? Uma vez, estando eu a fabricar este preparado, peguei um jarro, que estava cheio dele, e coloquei-o em uma prateleira, pregada à parede. Debaixo da prateleira, que é alta, ficava o meu baú, um baú grande, de couro curtido, todo pregueado, daqueles antigos, sólidos, enormes, que se faziam em Portugal. Pois, bem; o jarro, que estava rachado, começou a vazar o líquido na prateleira, que o fazia cair, por seu turno, sobre o baú; e de tal forma que, na dia seguinte, ao abrir a porta encontrei o baú...
— Molhado, não? — interrompeu o jornalista.
E o fígaro, sério:
— Não, senhor; coberto de cabelo!
E esfregou-lhe a careca, com força.
MÉDICO É REMÉDIO
Machado de Assis
Em que diabo conversam estas duas moças metidas na alcova? Conversam do Miranda, um rapaz engenheiro, que vai casar com uma amiga delas. Este Miranda é um noivo como qualquer outro, e não inventou o quadrado da hipotenusa; é bonito, mas não é um Apolo. Também não é rico. Tem mocidade, alguma instrução e um bom emprego. São vantagens, mas não explicam que as duas moças se fechem na alcova para falar dele, e muito menos que uma delas, a Julieta, chore às bandeiras despregadas.
Para compreender ambas as coisas, e principalmente a segunda, é preciso saber que o nosso Miranda e Julieta amaram-se algum tempo. Pode ser mesmo que ele não a amasse; ela é que com certeza morria por ele. Trocaram muitas cartas, as dele um pouco secas como um problema, as dela enfeitadas de todos os retalhos de frases que lhe lembravam dos romances. Creio mesmo que juraram entre si um amor eterno, não limitado à existência do sol, no máximo, mas eterno, eterno como o próprio amor. Vai então o miserável, aproveita-se da intimidade de Julieta com Malvina, namora a Malvina e pede-a em casamento. O que ainda agrava este fato é que Malvina não tinha melhor amiga que Julieta; andaram no colégio, eram da mesma idade e trocavam as suas mais íntimas confidências. Um dia Julieta notou certa frieza na outra, escassez de visitas, poucas cartas; e tão pouco advertiu na causa que, achando também alguma diferença no Miranda, confiou à amiga as suas tristezas amorosas. Não tardou, porém, que a verdade aparecesse. Julieta disse à amiga coisas duras, nomes feios, que a outra ouviu com a placidez que dá a vitória, e perdoou com magnanimidade. Não é Otávio o demente, é Augusto.
Casam na quarta-feira próxima. O pai da noiva, amigo do pai de Julieta, mandou-lhe um convite. O ponto especial da consulta de Julieta a esta outra amiga Maria Leocádia, é se ela deve confessar tudo à mãe para que não a leve ao casamento. Maria Leocádia reflete.
— Não, respondeu ela finalmente: acho que você não deve dizer nada. Estas coisas não se dizem; e, demais, sua mãe não fará caso, e você tem sempre de ir…
— Não vou, não vou… Só amarrada!
— Velhaca! falsa! interrompia-se Julieta, dirigindo-se mentalmente à outra.
Maria Leocádia confessou que era uma perfídia, e, para ajudar a consolação, disse que o noivo não valia nada, ou muito pouco. Mas a ferida era recente, o amor subsistia e Julieta desatou a chorar. A amiga abraçou-a muito, beijou-a, murmurou-lhe ao ouvido as palavras mais cordiais; falou-lhe ao brio. Julieta enxugou as lágrimas; daí a pouco saía de carro, ao lado da mãe, com quem viera visitar a família da amiga.
O que aí fica passa-se no Rio de Janeiro, onde residem todas as pessoas que figuram no episódio. Há mesmo uma circunstância curiosa: — o pai de Julieta é um oficial de marinha, o de Malvina outro, e o de Maria Leocádia outro. Este último sucumbiu na guerra do Paraguai.
A indiscrição era o pecado venial de Maria Leocádia. Tão depressa falou com o namorado dela, o bacharel José Augusto, como lhe referiu tudo o que se passara. Estava indignada; mas o José Augusto, filósofo e pacato, achou que não era caso de indignação. Concordava que a outra chorasse; mas tudo passa, e eles ainda teriam de assistir ao casamento de Julieta.
— Também o que faltava era ela ficar solteira toda a vida, replicou Maria Leocádia.
— Logo…
Na rua, porém, José Augusto tornou a pensar na amiga da namorada, e achou que era naturalmente triste a situação. Considerou que Julieta não era bonita, nem rica; tinha uma certa graça e algumas prendas; mas os noivos não andavam a rodo, e a pobrezinha ia entrar em nova campanha. Neste ponto da reflexão, sentiu que estava com fome. Tomara apenas uma xícara de chá, e foi comer. Mal se sentou aparece-lhe um colega de academia, formado dois anos, que esperava por dias uma nomeação de juiz municipal para o interior. José Augusto fê-lo sentar; depois, olhou para ele, e, como ferido de uma idéia súbita, desfechou-lhe esta pergunta:
— Marcos, tu queres uma noiva?
Marcos respondeu que preferia um bife sangrento. Estava com fome… Veio o bife, veio pão, vinho, chá, anedotas, pilhérias, até que o José Augusto perguntou-lhe se conhecia Julieta ou a família.
— Nem uma nem outra.
— Hás de gostar dela; é interessantíssima.
— Mas que interesse…?
— Sou amigo da família.
— Pois casa-te.
— Tem alguma coisa?
— Não, não tem; mas é só o que lhe falta. Simpática, bem-educada, inteligente, muito meiga; uma excelente criatura… Não te peço que te obrigues a nada; se não gostares ou tiveres outras idéias, acabou-se. Para começar vai sábado a um casamento.
— Não posso, tenho outro.
— De quem?
— Do Miranda.
— Mas é o mesmo casamento. Conheces a noiva?
— Não; só conheço o Miranda.
— Pois muito bem; lá verás a tua.
Chegou o sábado. O céu trouxe duas cores: uma azul para Malvina, outra feia e horrenda para Julieta. Imagine-se com que dor se vestiu esta, que lágrimas lhe não arrancou a obrigação de ir assistir à felicidade da outra. Duas ou três vezes, esteve para dizer que não ia, ou simplesmente adoecer. Afinal, resolveu ir e mostrar-se forte. O conselho de Maria Leocádia era o mais sensato.
Ao mesmo tempo, o bacharel Marcos dizia consigo, atando a gravata ao espelho:
— Que interesse tem o José Augusto de me fazer casar, e logo com a tal moça que não conheço? Esquisito, realmente… Se, ao menos, fosse alguma coisa que merecesse e pudesse…
Enfiou o colete, e continuou:
— Enfim, veremos. Às vezes estas coisas nascem assim, quando menos se espera… Está feito; não me custa dizer-lhe algumas palavrinhas amáveis… Terá o nariz torto?
Na véspera, o José Augusto dizia a Maria Leocádia:
— Queria guardar o segredo, mas já agora digo tudo. Ando vendo se arranjo um noivo para Julieta.
— Sim?
— É verdade; já dei uns toques. Creio que a coisa pode fazer-se.
— Quem é?
— Segredo.
— Segredo comigo?
— Está bom, mas não passe daqui; é um amigo, o bacharel Marcos, um bonito rapaz. Não diga nada a Julieta; é muito orgulhosa, pode recusar, se entender que lhe estamos fazendo algum favor.
Maria Leocádia prometeu que seria muda como um peixe; mas, sem dúvida, há peixes que falam, porque tão depressa entrou no salão e viu Julieta, perguntou-lhe se conhecia um bacharel Marcos, assim e assim…Julieta respondeu que não, e a amiga sorriu. Por que é que sorria? Por um motivo singular, explicou ela, porque alguma coisa lhe dizia que ele podia e viria a ser a consolação e a desforra.
Julieta estava linda e triste, e a tristeza era o que mais lhe realçava as graças naturais. Ela tratava de dominá-la, e conseguia-o às vezes; mas nem disfarçava tanto, que se não conhecesse por baixo da crosta alegre uma camada de melancolia, nem por tanto tempo que não caísse de espaço a espaço no mais profundo abatimento.
Isto mesmo, por outra forma, e com algumas precauções oratórias, lhe foi dito por José Augusto, ao pedir-lhe uma quadrilha, durante a quadrilha e depois da quadrilha. Começou por lhe declarar francamente que estava linda, lindíssima. Julieta sorriu; o elogio fez-lhe bem. José Augusto, sempre filósofo e pacato, foi além e confessou-lhe em segredo que achava a noiva ridícula.
— Não é verdade? disse vivamente Julieta.
E depois, emendando a mão:
— Está acanhada.
— Não, não; ridícula é que ela está! Todas as noivas ficam bem. Olhe a cintura do vestido: está mais levantada de um lado que de outro…
— O senhor é muito reparador, disse Julieta sorrindo.
Evidentemente, estava gloriosa. Ouvia proclamar-se bela, e a noiva ridícula. Duas vitórias enormes. E o José Augusto não disse aquilo para cumprimentá-la. Pode ser que carregasse a mão no juízo que fez da noiva; mas em relação a Julieta disse a verdade, tal qual a sentia, e continuava a sentir fitando os lindos olhos da abandonada. Daí a pouco apresentou-lhe o Marcos, que lhe pediu uma valsa.
Julieta lembrou-se do que lhe dissera Maria Leocádia a respeito deste Marcos, e, posto não o achasse mau, não o achou tão especialmente belo que merecesse o papel que a amiga lhe atribuiu. Marcos, ao contrário, achou-a divina. Acabada a valsa, foi ter com José Augusto, entusiasmado.
— Realmente, disse ele, a tua recomendada é uma sílfide.
— Ainda bem. Bonita, não?
— Lindíssima, graciosa, elegante, e conversando muito bem.
— Já vês que te não enganei.
— Não; e, realmente, é pena.
— O quê?
— É pena que eu não ouse.
— Que não ouses? Mas, ousa, peralta. O que é que te impede de ousar?
— Ajudas-me?
— Se eu mesmo te propus!
José Augusto ainda nessa noite falou a Julieta acerca do amigo, louvou-lhe as qualidades sólidas e brilhantes, disse-lhe que tinha um grande futuro. Também falou a Maria Leocádia; contou-lhe o entusiasmo do Marcos, e a possibilidade de fazê-lo aceitar pela outra; pediu-lhe o auxílio. Que ela trabalhasse e ele, e tudo se arranjaria. Conseguiu ainda dançar uma vez com Julieta, e falou-lhe da conveniência de casar. Há de haver algum coração nesta sala, reflexionou ele, que sangre muito de amor.
— Por que não diz isso com mais simplicidade? redargüiu ela sorrindo.
A verdade é que Julieta estava irritada com o trabalho empregado em fazê-la aceitar um noivo, naquela ocasião, principalmente, em que era obrigada a fazer cortejo à felicidade da outra. Não falei desta nem do noivo; para quê? Valem como antecedentes da ação. Mas que sejam bonitos ou feios, que estejam ou não felizes, é o que não importa. O que importa unicamente é o que vai suceder com a rival vencida. Esta retirou-se para casa aborrecida, abatida, dizendo mentalmente as coisas mais duras à outra; até a madrugada não pôde dormir. Afinal, passou por uma breve madorna, acordou nervosa e com sono.
— Que mulherzinha! pensava o José Augusto indo para casa. Embatucou-me com as tais palavras: — Por que não diz isso com mais simplicidade? Foi um epigrama fino, e inesperado. E o ladrão estava bonita! Realmente, quem é que deixa a Julieta para escolher a Malvina! A Malvina é uma massa de carne, sem feitio…
Maria Leocádia tomou a peito o casamento da amiga e José Augusto também. Julieta não dava esperanças; e, coisa singular, era menos expressiva com a amiga do que o namorado desta. Tinha vergonha de falar com a outra em tais matérias. Por outro lado, a linguagem de José Augusto era mais própria a fazer-lhe nascer o amor, que ela sinceramente desejava sentir pelo Marcos. Não queria casar sem amor. José Augusto, posto que filósofo e pacato, adoçava as suas reflexões de uma certa cor íntima; além disso, dava-lhes o prestígio do sexo. Julieta chegou a pedir-lhe perdão da resposta que lhe dera no dia das bodas de Malvina.
— Confesso, disse ela, que o amor não pode falar com simplicidade.
José Augusto concordou com esse parecer; e ambos entraram por uma tal floresta de estilo, que se perderam inteiramente. Ao cabo de muitos dias, foram achar-se à porta de uma caverna, de onde saiu um dragão azul, que os tomou e voou com eles pelos ares fora até à porta da matriz do Sacramento. Ninguém ignora o que estes dragões vão fazer às igrejas. Maria Leocádia teve de repetir contra Julieta tudo o que esta disse de Malvina. Plagiária!
OS CÃES E OS GAROS
Raul Pompéia
Desde o histórico amigo do bíblico Tobias, que acompanhou-lhe o filho à miraculosa torrente d'onde devia sair o peixe destinado a curar a cegueira do patriarca, até os celebrados cães de S. Bemardo, passando pelo cão que lambia as chagas de Jó e pelo desrabado animal de Alcebiades; desde o heróico e selvagem companheiro dos esquimaus, que arrosta as temperaturas, levando em turbilhão o trenó, por meio das regiões brancas e frias do ártico, até o mole e macio King-charles, saboroso companheiro dos longos ócios tropicais das cocottes, tudo tem sido poemas em louvor do cão.
Decantam-lhe a bravura; decantam-lhe a fidelidade; incensam-lhe a beleza; elogiam-lhe a obediência; apologiam-lhe a dedicação. Companhias de seguro gravam-lhe a efigie em douradas placas, para garantia contra o fogo; honrados burgueses erigem-lhe estátuas de barro vidrado sobre os capitéis de pedra e caldos portões da chácara: tudo é um aplauso unànime e universal.
Entretanto, o gato, o bravo vigilante das horas mortas, sentinela perdida da meia-noite, passeando à luz misteriosa do luar com os olhos faiscantes como baionetas, para tranqüilidade dos armários e para desgraça dos roedores caseiros; entretanto, o digno gato, o honrado gato, deixam-no de lado, no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas; caluniam-no, excomungam-no e o desamparam, quando muito, aos esqueléticos carinhos de alguma velha bruxa semifantástica, amiga dos morcegos, dos mochos e das caveiras de burro fatídicas.
Pobre gato!
Nos seus minutos de cisma, quando, pousado no peitoril claro de uma janela da casa que habita, lambendo as patinhas e as munhecas asseadas, o gato reflete nos destinos da vida, talvez esteja a pensar consigo, que muito pouco lhe custaria apanhar a glória do cão. Bastava-lhe o sacrificio da própria dignidade; bastava-lhe alienar a sua autonomia felina e pôr de lado os seus orgulhos de sangue.
A glória do cão vem somente disto; o cão escravizou-se.
O gato nunca teve um dono.
Nestor de Roqueplan escreveu que o gato não é animal doméstico do homem: o homem é que é o animal doméstico do gato.
Tinha razão o perspicaz e fino Roqueplan.
Quando se diz: - este gato é meu, diz-se: - eu sou deste gato.
E o motivo é límpido: quando o dono não agrada ao gato, o digno animalzinho deixa-o como quem abandona um traste velho.
Toda a fanfarronice trovejante do cão pode-se-lhe domar a chicote. Ensaie-se a violência com o gato ...
O cão dedica-se, sacrifica-se por conta do seu dono, nunca por conta própria. O cão é fiel, bravo, dedicado, sublime; mas infamemente. Tem a dedicação, a bravura, a fidelidade, a sublimidade do infame, do escravo. No fundo das suas ações acha-se a vontade do dono; nas suas decantadas bravuras, o cão não existe.
O gato, ao contrário, é autonomista. É valente, heróico, sagaz, cheio de inteligência, mais talvez do que o cão, e tudo nobremente, convictamente; certo de que, antes de tudo, ele é Feliz.
Sente nas veias o sangue quente do tigre; lembra-se que os da sua raça terrivel vagam pelas florestas, como reis, em guerra de morte com o homem, que lhes invade o império; recorda-se talvez do bafejo quente das soalheiras de Bengala, onde rejubilam-se os seus congêneres, olhando de frente, através da ramaria, o perfil religioso e enorme dos pagodes, arraial dos homens; esperando bravamente o combate, na mata virgem no arraial das feras.
O gato sabe que é um pequeno tigre; que podia embriagar-se de floresta como os seus irmãos de raça, e que, menos inflexível que os outros, quis entrar em aliança com o homem, por iguais interesses das partes contratantes. Possuída desta convicção, é que a digna criatura desenvolve os seus talentos, na casa dos homens. Incapaz de uma baixeza, vai vivendo à medida dos seus recursos. Se alguém o acaricia, ele aproxima-se, contorcendo-se mansamente, em afetuosas ondeações de espinha, e entrega-se confiado ao amigo ...
Despreza solenemente o cão, ama lascivamente o sol e as claridões. Quando roça-lhe o pêlo de cetim um feixe de luz solar, enrodilha-se todo, dorme e ressona como um prior satisfeito. Não treme, à beira dos precipícios, como os cães.
A vertigem das cimalhas é o seu prazer. Não se deixa levar às feiras como qualquer botocudo idiota, ou qualquer cãozinho pretensioso e fútil. Tem habilidade, mas para o seu uso.
Não sabe cair grotescamente como um burguês gordo que tropeça, ou como um rei velho que escorrega A sua queda é elegante como a de César. Cai sempre firme, sobre as quatro patas, venha de que altura for. Não conhece o estigma da coleira, nem a perseguição aviltante do fiscal.
Tudo diverso do cão.
A cadela é a charra odaliscazinha das Sarjetas. O cão é o bandalho de esquina que vai, de pontapé em pontapé, acabar com lepra num cano de esgoto.
Entretanto, os amores do gato são trágicos como as punhaladas dos Bórgias. Passam-se à noute, como os grandes meteoros do céu e as cousas fantásticas da terra.
Podem ter por confidentes a estrela dalva e a cotovia matinal, como os amores de Romeu. Os gatos batem-se pela sua dama como os heróis da cavalaria e como os tigres da mata. São bravos e apaixonados até o sangue.
Os sete fólegos que lhe atribuem, ele os despende sem avareza, quando em proveito da própria dignidade ou da própria paixão.
A morte do gato é quase sempre um mistério. Não morre; desaparece como o Rómulo sagrado da lenda. Não dá-se ao luxo canino de apodrecer nas praias.
Assim é que bem se consola o gato, nos tácitos queixumes das suas cismas ...
O cão tem incensadores que o exploram e que o infamam.
Tem golilha, como um forçado; como um escravocrata, não tem vergonha.
Esta falta de brio e essa coleira levam-no a toda a parte, encadeado ao homem. Penetra no convento com a mesma cara com que barafusta pelo teatro; segue a trote miúdo o préstito triunfal das ovações, e vai depois acompanhar a mula do carvoeiro; visita os templos da virtude e os gineceus da vergonha, sorrindo sempre, baixamente, com a cauda e com a língua.
Adula sem fazer questão de lugar.
Ambiciona só isto: - um osso. Mas não desdenha os bons bocados dos banquetes, nem o sebo nauseabundo dos trilhos da rua ...
Glória por tal preço ... Antes a secular obscuridade nobre do gato. Faltam-lhe tradições, porque falta-lhe a escravidão e a infâmia.
Em última análise, o cão é um miserável.
Fora da linha dos animais, por uma degradante domesticidade, não conseguiu entrar pela fileira dos homens. O gato conserva orgulhoso o seu tipo definido de fera dócil. Não balança nas oscilações da natureza humana, porque tem as suas próprias, da natureza felina
O cão, seja lícito dizer-se, é o homem através do temperamento canino.
o gato é simplesmente, nobremente, - o gato.
Por isso é que nas alegorias, entra o gato como pilhéria e o cão como insulto.
Enquanto um atravessa, risonho, à disparada, por uma página de caricatura, vai o outro de envolta com uma panela de lama para a cara de um tratante.
Há uma cousa entre os homens que chama-se cinismo: é a arte de ser cão. A arte de ser gato ainda não foi inventada; nem há de ser.
Em suma derradeira indenização do sempre olvidado gato - de todas as criaturas que podem ser atreladas a uma verrina crepitante e vingadora, burro, jumento, touro, tigre, hiena ... nenhuma, nem uma só, leva mais longe do que o glorioso inimigo do gato.
- Cão!
Este insulto tem mais alguma cousa do que três letras; tem três pontas como o chicote siberiano.
Esta palavrinha curta, áspera, rápida, se ainda não é o faz o mesmo escarro, já passou de articulação.
Digam-na para ver se a garganta não quando cospe-a e quando cospe um escarro:
- Cão!
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Damos publicidade a estas estranhas considerações que o acaso entregou-nos, para não desesperarem da justiça os raros amigos do simpático e sempre olvidado povoador dos telhados.
OBEDIÊNCIA
Humberto de Campos
Mal saída do colégio, para onde entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o Comendador Anacleto, enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo. Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:
— Olha, minha filha; esta casa é tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os vizinhos.
E beijando-lhe a testa clara, coroada por uns lindos cabelos castanhos:
— Muito juizinho; ouviu?
Duas semanas não se tinham passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões, vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia, resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do Comendador. Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de joias, carregando, enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado capitalista.
À noite, ao abrir a porta, de regresso ao lar, o Comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida, precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela menina:
— Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde estás, minha filha?
No último quarto da casa, esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.
— Minha filha da minh'alma! — gemeu o velho, atirando-se para ela. — Que foi isso?
— Os ladrões!... — explicou a moça, num gemido.
E enxugando os olhos;
— Levaram tudo: as roupas, as joias, a louça, tudo, enfim. Depois...
— Depois?... — rugiu o velho, com os olhos esbugalhados.
— Desgraçaram-me!... — concluiu a moça, prorrompendo em soluços.
— Desgraçaram-te?... — gritou o velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera atingida no coração.
E após um instante de silêncio desesperado:
— E como foi? Amarraram-te?
— Não, senhor.
— Subjugaram-te?
— Não, senhor.
— Taparam-te a boca?
— Não, senhor.
— E por que não gritaste? — berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.
E a moça, levantando para ele, num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:
— Papai não disse que eu não incomodasse os vizinhos?
MARIANA
Machado de Assis
Voltei de Europa depois de uma ausência de quinze anos. Era quanto bastava para vir achar muita coisa mudada. Alguns amigos tinham morrido, outros estavam casados, outros viúvos. Quatro ou cinco tinham-se feito homens públicos, e um deles acabava de ser ministro de Estado. Sobre todos eles pesavam quinze anos de desilusões e cansaço. Eu, entretanto, vinha tão moço como fora, não no rosto e nos cabelos, que começavam a embranquecer, mas na alma e no coração que estavam em flor. Foi essa a vantagem que tirei das minhas constantes viagens. Não há decepções possíveis para um viajante, que apenas vê de passagem o lado belo da natureza humana e não ganha tempo de conhecer-lhe o lado feio. Mas deixemos estas filosofias inúteis.
Também achei mudado o nosso Rio de Janeiro, e mudado para melhor. O jardim do Rocio, o boulevard Carceller, cinco ou seis hotéis novos, novos prédios, grande movimento comercial e popular, tudo isso fez em meu espírito uma agradável impressão.
Fui hospedar-me no Hotel Damiani. Chamo-lhe assim para conservar um nome que tem para mim recordações saudosas. Agora o hotel chama-se Ravot. Tem defronte uma grande casa de modas e um escritório de jornal político. Dizem-me que a casa de modas faz mais negócio que o jornal. Não admira; poucos lêem, mas todos se vestem.
Estava eu justamente a contemplar o espetáculo novo que a rua me oferecia quando vi passar um indivíduo cuja fisionomia me não era estranha. Desci logo à rua e cheguei à porta quando ele passava defronte.
— Coutinho! exclamei.
— Macedo! disse o interpelado correndo a mim.
Entramos no corredor e aí demos aberta às nossas primeiras expansões.
— Que milagre é este? por que estás aqui? quando chegaste?
Estas e outras perguntas fazia-me o meu amigo entre repetidos abraços. Convidei-o a subir e a almoçar comigo, o que aceitou, com a condição porém de que iria buscar mais dois amigos nossos, que eu estimaria ver. Eram efetivamente dois excelentes companheiros de outro tempo. Um deles estava à frente de uma grande casa comercial; o outro, depois de algumas vicissitudes, fizera-se escrivão de uma vara cível.
Reunidos os quatro na minha sala do hotel, foi servido um suculento almoço, em que aliás eu e o Coutinho tomamos parte. Os outros limitavam-se a fazer a razão de alguns brindes e a propor outros.
Quiseram que eu lhes contasse as minhas viagens; cedi francamente a este desejo natural. Não lhes ocultei nada. Contei-lhes o que havia visto desde o Tejo até o Danúbio, desde Paris até Jerusalém. Fi-los assistir na imaginação às corridas de Chantilly e às jornadas das caravanas no deserto; falei do céu nevoento de Londres e do céu azul da Itália. Nada me escapou; tudo lhes referi.
Cada qual fez as suas confissões. O negociante não hesitou em dizer tudo quanto sofrera antes de alcançar a posição atual. Deu-me notícia de que estava casado, e tinha uma filha de dez anos no colégio. O escrivão achou-se um tanto envergonhado quando lhe tocou a vez de dizer a sua vida; todos nós tivemos a delicadeza de não insistir nesse ponto.
Coutinho não hesitou em dizer que era mais ou menos o que era outrora a respeito da ociosidade; sentia-se entretanto mudado e entrevia ao longe idéias de casamento.
— Não te casaste? perguntei eu.
— Com a prima Amélia? disse ele; não.
— Por quê?
— Porque não foi possível.
— Mas continuaste a vida solta que levavas?
— Que pergunta! exclamou o negociante. É a mesma coisa que era há quinze anos. Não mudou nada.
— Não digas isso; mudei.
— Para pior? perguntei eu rindo.
— Não, disse Coutinho, não sou pior do que era; mudei nos sentimentos; acho que hoje não me vale a pena cuidar de ser mais feliz do que sou.
— E podias sê-lo, se te houvesse casado com tua prima. Amava-te muito aquela moça; ainda me lembro das lágrimas que lhes vi derramar em um dia de entrudo. Lembras-te?
— Não me lembra, disse Coutinho ficando mais sério do que estava; mais creio que deve ter sido isso.
— E o que é feito dela?
— Casou.
— Ah!
— É hoje fazendeira; e dá-se perfeitamente com o marido. Mas não falemos nisto, acrescentou Coutinho, enchendo um cálix de cognac; o que lá vai, lá vai!
Houve alguns instantes de silêncio, que eu não quis interromper, por me parecer que o nome da moça trouxera ao rapaz alguma recordação dolorosa.
Rapaz é uma maneira de dizer. Coutinho contava já seus trinta e nove anos e tinha alguns fios brancos na cabeça e na barba. Mas apesar desse evidente sinal do tempo, eu aprazia-me em ver os meus amigos pelo prisma da recordação que levara deles.
Coutinho foi o primeiro que rompeu o silêncio.
— Pois que estamos aqui reunidos, disse ele, ao cabo de quinze anos, deixem que, sem exemplo, e para completar as nossas confidências recíprocas, eu lhes confesse uma coisa, que nunca saiu de mim.
— Bravo! disse eu; ouçamos a confidência de Coutinho.
Acendemos nossos charutos. Coutinho começou a falar:
— Eu namorava a prima Amélia, como sabem; o nosso casamento devia efetuar-se um ano depois que daqui saíste. Não se efetuou por circunstâncias que ocorreram depois, e com grande mágoa minha, pois gostava dela. Antes e depois amei e fui amado muitas vezes; mas nem depois nem antes, e por nenhuma mulher fui amado jamais como fui...
— Por tua prima? perguntei eu.
— Não; por uma cria de casa.
Olhamos todos espantados um para outro. Ignorávamos esta circunstância, e estávamos a cem léguas de semelhante conclusão. Coutinho não parece atender ao nosso espanto; sacudia distraidamente a cinza do charuto e parecia absorto na recordação que o seu espírito evocava.
— Chamava-se Mariana, continuou ele alguns minutos depois, e era uma gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo de minha mãe os mesmos afagos que ela dispensava às outras filhas. Não se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre, e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da sua situação, e não abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que na situação em que se achava só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora.
A sua educação não fora tão completa como a de minhas irmãs; contudo, Mariana sabia mais do que outras mulheres em igual caso. Além dos trabalhos de agulha que lhe foram ensinados com extremo zelo, aprendera a ler e a escrever. Quando chegou aos 15 anos teve desejo de saber francês, e minha irmã mais moça lho ensinou com tanta paciência e felicidade, que Mariana em pouco tempo ficou sabendo tanto como ela.
Como tinha inteligência natural, todas estas coisas lhe foram fáceis. O desenvolvimento do seu espírito não prejudicava o desenvolvimento de seus encantos. Mariana aos 18 anos era o tipo mais completo da sua raça. Sentia-se-lhe o fogo através da tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que lhe rompia dos olhos negros e rasgados. Tinha os cabelos naturalmente encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo voluptuoso, pé pequeno e mãos de senhora. É impossível que eu esteja a idealizar esta criatura que no entanto me desapareceu dos olhos; mas não estarei muito longe da verdade.
Mariana era apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e senhoras. Meu tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: — “Por que diabo está tua mãe guardando aqui em casa esta flor peregrina? A rapariga precisa de tomar ar”.
Posso dizer, agora que já passou muito tempo, esta preocupação do tio nunca me passou pela cabeça; acostumado a ver Mariana bem tratada parecia-me ver nela uma pessoa da família, e além disso, ser-me-ia doloroso contribuir para causar tristeza a minha mãe.
Amélia ia lá a casa algumas vezes; mas era o princípio, e antes que nenhum namoro houvesse entre nós. Cuido, porém, que foi Mariana quem chamou a atenção da moça para mim. Amélia deu-mo a entender um dia. O certo é que uma tarde, depois de jantar, estávamos a tomar café no terraço, e eu reparei na beleza de Amélia com uma atenção mais demorada que de costume. Fosse acaso ou fenômeno magnético, a moça olhava também para mim. Prolongaram-se os nossos olhares... ficamos a amar um ao outro. Todos os amores começam pouco mais ou menos assim.
Acho inútil contar minuciosamente este namoro de rapaz, que vocês em parte conhecem, e que não apresentou episódio notável. Meus pais aprovaram a minha escolha; os pais de Amélia fizeram o mesmo. Nada se opunha à nossa felicidade. Preparei-me um dia de ponto em branco e fui pedir a meu tio a mão da filha. Foi-me ela concedida, com a condição apenas de que o casamento seria efetuado alguns meses depois, quando o irmão de Amélia tivesse completado os estudos, e pudesse assistir à cerimônia com a sua carta de bacharel.
Durante este tempo Mariana estava em casa de uma parenta nossa que nô-la foi pedir para costurar uns vestidos. Mariana era excelente costureira. Quando ela voltou para casa, estava assentado o meu casamento com Amélia; e, como era natural, eu passava a maior parte do tempo em casa da prima, saboreando aquelas castas efusões de amor e ternura que antecedem o casamento. Mariana notou as minhas prolongadas ausências, e, com uma dissimulação assaz inteligente, indagou de minha irmã Josefa a causa delas. Disse-lho Josefa. Que se passou então no espírito de Mariana? Não sei; mas no dia seguinte, depois do almoço quando eu me dispunha a ir vestir-me, Mariana veio encontrar-me no corredor que ia ter ao meu quarto, com o pretexto de entregar-me um maço de charuto que me caíra do bolso. O maço fora previamente tirado da caixa que eu tinha no quarto.
— Aqui tem, disse ela com voz trêmula.
— O que é? perguntei.
— Estes charutos... caíram do bolso de senhor moço.
— Ah!
Recebi o maço de charutos e guardei-o no bolso do casaco; mas durante esse tempo, Mariana conservou-se diante de mim. Olhei para ela; tinha os olhos postos no chão.
— Então, que fazes tu? disse eu em tom de galhofa.
— Nada, respondeu ela levantando os olhos para mim. Estavam rasos de lágrimas.
Admirou-me essa manifestação inesperada da parte de uma rapariga que todos estavam acostumados a ver alegre e descuidosa da vida. Supus que houvesse cometido alguma falta e recorresse a mim para protegê-la junto de minha mãe. Nesse caso a falta devia ser grande, porque minha mãe era a bondade em pessoa, e tudo perdoava às suas amadas crias.
— Que tens, Mariana? perguntei.
E como ela não respondesse e continuasse a olhar para mim, chamei em voz alta por minha mãe. Mariana apressou-se a tapar-me a boca, e esquivando-se às minhas mãos fugiu pelo corredor fora.
Fiquei a olhar ainda alguns instantes para ela, sem compreender nem as lágrimas, nem o gesto, nem a fuga. O meu principal cuidado era outro; a lembrança do incidente passou depressa, fui vestir-me e saí.
Quando voltei à casa não vi Mariana, nem reparei na falta dela. Acontecia isso muitas vezes. Mas depois de jantar lembrou-me o incidente da véspera e perguntei a Josefa o que haveria magoado a rapariga que tão romanescamente me falara no corredor.
— Não sei, disse Josefa, mas alguma coisa haverá porque Mariana anda triste desde anteontem. Que supões tu?
— Alguma coisa faria e tem medo da mamãe.
— Não, disse Josefa; pode ser antes algum namoro.
— Ah! tu pensas quê?
— Pode ser.
— E quem será o namorado da senhora Mariana, perguntei rindo. O copeiro ou o cocheiro?
— Tanto não sei eu; mas seja quem for, será alguém que lhe inspirasse amor; é quanto basta para que se mereçam um ao outro.
— Filosofia humanitária!
— Filosofia de mulher, respondeu Josefa com um ar tão sério que me impôs silêncio.
Mariana não me apareceu nos três dias seguintes. No quarto dia, estávamos almoçando, quando ela atravessou a sala de jantar, tomou a bênção a todos e foi para dentro. O meu quarto ficava além da sala de jantar e tinha uma janela que dava para o pátio e enfrentava com a janela do gabinete de costura. Quando fui para o meu quarto, Mariana estava nesse gabinete ocupada em preparar vários objetos para uns trabalhos de agulha. Não tinha os olhos em mim, mas eu percebia que o seu olhar acompanhava os meus movimentos. Aproximei-me da janela e disse-lhe:
— Estás mais alegre, Mariana?
A mulatinha assustou-se, voltou a cara para diversos lados, como se tivesse medo de que as minhas palavras fossem ouvidas, e finalmente impôs-me silêncio com o dedo na boca.
— Mas que é? perguntei eu dando à minha voz a moderação compatível com a distância.
Sua única resposta foi repetir-me o mesmo gesto.
Era evidente que a tristeza de Mariana tinha uma causa misteriosa, pois que ela receava revelar nada a esse respeito.
Que seria senão algum namoro como minha irmã supunha? Convencido disto, e querendo continuar uma investigação curiosa, aproveitei a primeira ocasião que se me ofereceu.
— Que tens tu, Mariana? disse eu; andas triste e misteriosa. É algum namorico? Anda, fala; tu és estimada por todos cá de casa. Se gostas de alguém poderás ser feliz com ele porque ninguém te oporá obstáculos aos teus desejos.
— Ninguém? perguntou ela com singular expressão de incredulidade.
— Quem teria interesse nisso?
— Não falemos nisso, nhonhô. Não se trata de amores, que eu não posso ter amores. Sou uma simples escrava.
— Escrava, é verdade, mas escrava quase senhora. És tratada aqui como filha da casa. Esqueces esses benefícios?
— Não os esqueço; mas tenho grande pena em havê-los recebido.
— Que dizes, insolente?
— Insolente? disse Mariana com altivez. Perdão! continuou ela voltando à sua humildade natural e ajoelhando-se a meus pés; perdão, se disse aquilo; não foi por querer: eu sei o que sou; mas se nhonhô soubesse a razão estou certa que me perdoaria.
Comoveu-me esta linguagem da rapariga. Não sou mau; compreendi que alguma grande preocupação teria feito com que Mariana esquecesse por instantes a sua condição e o respeito que nos devia a todos.
— Está bom, disse eu, levanta-te e vai-te embora; mas não tornes a dizer coisas dessas que me obrigas a contar tudo à senhora velha.
Mariana levantou-se, agarrou-me na mão, beijou-a repetidas vezes entre lágrimas e desapareceu.
Todos estes acontecimentos tinham chamado a minha atenção para a mulatinha. Parecia-me evidente que ela sentia alguma coisa por alguém, e ao mesmo tempo que o sentia, certa elevação e nobreza. Tais sentimentos contrastavam com a fatalidade da sua condição social. Que seria uma paixão daquela pobre escrava educada com mimos de senhora? Refleti longamente nisto tudo, e concebi um projeto romântico: obter a confissão franca de Mariana e, no caso em que se tratasse de um amor que a pudesse tornar feliz, pedir a minha mãe a liberdade da escrava.
Josefa aprovou a minha idéia, e incumbiu-se de interrogar a rapariga e alcançar pela confiança aquilo que me seria mais difícil obter pela imposição ou sequer pelo conselho.
Mariana recusou dizer coisa nenhuma a minha irmã. Debalde empregou esta todos os meios de sedução possíveis entre uma senhora e uma escrava. Mariana respondia invariavelmente que nada havia que confessar. Josefa comunicou-me o que se passara entre ambas.
—Tentarei eu, respondi; verei se sou mais feliz.
Mariana resistiu às minhas interrogações repetidas, asseverando que nada sentia e rindo de que se pudesse supor semelhante coisa. Mas era um riso forçado, que antes confirmava a suspeita do que a negativa.
— Bem, disse eu, quando me convenci de que nada podia alcançar; bem, tu negas o que te pergunto. Minha mãe saberá interrogar-te.
Mariana estremeceu.
— Mas, disse ela, por que razão sinhá velha há de saber disto? Eu já disse a verdade.
— Não disseste, respondi eu; e não sei por que recusas dizê-la quando tratamos todos da tua felicidade.
— Bem, disse Mariana com resolução, promete que se eu disser a verdade não me interrogará mais?
— Prometo, disse eu rindo.
— Pois bem; é verdade que eu gosto de uma pessoa...
— Quem é?
— Não posso dizer.
— Por quê?
— Porque é um amor impossível.
— Impossível? Sabes o que são amores impossíveis?
Roçou pelos lábios da mulatinha um sorriso de amargura e dor.
— Sei! disse ela.
Nem pedidos, nem ameaças conseguiram de Mariana uma declaração positiva a este respeito. Josefa foi mais feliz do que eu; conseguiu não arrancar-lhe o segredo, mas suspeitar-lho, e veio dizer-me o que lhe parecia.
— Que seja eu o querido de Mariana? perguntei-lhe com um riso de mofa e incredulidade. Estás louca, Josefa. Pois ela atrever-se-ia!...
— Parece que se atreveu.
— A descoberta é galante; e realmente não sei o que pense disto...
Não continuei, disse a Josefa que não falasse em semelhante coisa e desistisse de maiores explorações. Na minha opinião o caso tomava outro caráter; tratava-se de uma simples exaltação de sentidos.
Enganei-me.
Cerca de cinco semanas antes do dia marcado para o casamento, Mariana adoeceu. O médico deu à moléstia um nome bárbaro, mas na opinião de Josefa era doença de amor. A doente recusou tomar nenhum remédio; minha mãe estava louca de pena; minhas irmãs sentiam deveras a moléstia da escrava. Esta ficava cada vez mais abatida; não comia, nem se medicava; era de recear que morresse. Foi nestas circunstâncias que eu resolvi fazer um ato de caridade. Fui ter em Mariana e pedi-lhe que vivesse.
— Manda-me viver? perguntou ela.
— Sim.
Foi eficaz a lembrança; Mariana restabeleceu-se em pouco tempo. Quinze dias depois estava completamente de pé.
Que esperanças concebera ela com as minhas palavras, não sei; cuido que elas só tiveram efeito por lhe acharem o espírito abatido. Acaso contaria ela que eu desistisse do casamento projetado e do amor que tinha à prima, para satisfazer os seus amores impossíveis? Não sei; o certo é que não só se lhe restaurou a saúde como também lhe voltou a alegria primitiva.
Confesso, entretanto que, apesar de não competir de modo nenhum os sentimentos de Mariana, entrei a olhar para ela com outros olhos. A rapariga tornara-se interessante para mim, e qualquer que seja a condição de uma mulher, há sempre dentro de nós um fundo de vaidade que se lisonjeia com a afeição que ela nos vote. Além disto, surgiu em meu espírito uma idéia que a razão pode condenar, mas que nossos costumes aceitam perfeitamente. Mariana encarregara-se de provar que estava acima das veleidades. Um dia de manhã fui acordado pelo alvoroço que havia em casa. Vesti-me à pressa e fui saber o que era. Mariana tinha desaparecido de casa. Achei minha mãe desconsoladíssima: estava triste e indignada ao mesmo tempo. Doía-lhe a ingratidão da escrava. Josefa veio ter comigo.
— Eu suspeitava, disse ela, que alguma coisa acontecesse. Mariana andava alegre demais; parecia-me contentamento fingido para encobrir algum plano. O plano foi este. Que te parece?
— Creio que devemos fazer esforços para capturá-la, e uma vez restituída à casa, colocá-la na situação verdadeira do cativeiro.
Disse isto por me estar a doer o desespero de minha mãe. A verdade é que, por simples egoísmo, eu desculpava o ato da rapariga.
Parecia-me natural, e agradava-me ao espírito, que a rapariga tivesse fugido para não assistir à minha ventura, que seria realidade daí a oito dias. Mas a idéia de suicídio veio aguar-me o gosto; estremeci com a suspeita de ser involuntariamente causa de um crime dessa ordem; impelido pelo remorso, saí apressadamente em busca de Mariana.
Achei-me na rua sem saber o que devia fazer. Andei cerca de vinte minutos inutilmente, até que me ocorreu a idéia natural de recorrer à polícia; era prosaica a intervenção da polícia, mas eu não fazia romance; ia simplesmente em cata de uma fugitiva.
A polícia nada sabia de Mariana; mas lá deixei a nota competente; correram agentes em todas as direções: fui eu mesmo saber nos arrabaldes se havia notícia de Mariana. Tudo foi inútil; às três horas da tarde voltei para casa sem poder tranqüilizar minha família. Na minha opinião tudo estava perdido.
Fui à noite à casa de Amélia, aonde não fora de tarde, motivo pelo qual havia recebido um recado em carta a uma de minhas irmãs. A casa de minha prima ficava em uma esquina. Eram oito horas da noite quando cheguei à porta da casa. A três ou quatro passos estava um vulto de mulher cosido com a parede. Aproximei-me: era Mariana.
— Que fazes aqui? perguntei eu.
— Perdão, nhonhô; vinha vê-lo.
— Ver-me? mas por que saíste de casa, onde eras tão bem tratada, e donde não tinhas o direito de sair, porque és cativa?
— Nhonhô, eu saí porque sofria muito...
— Sofrias muito! Tratavam-te mal? Bem sei o que é; são os resultados da educação que minha mãe te deu. Já te supões senhora e livre. Pois enganas-te; hás de voltar já, e já, para casa. Sofrerás as conseqüências da tua ingratidão. Vamos...
— Não! disse ela; não irei.
— Mariana, tu abusas da afeição que todos temos por ti. Eu não tolero essa recusa, e se me repetes isso...
— Que fará?
— Irás à força - irás com dois soldados.
— Nhonhô fará isso? disse ela com voz trêmula. Não quero obrigá-lo a incomodar os soldados, iremos juntos, ou irei só. O que eu queria, é que nhonhô não fosse tão cruel... porque enfim eu não tenho culpa se... Paciência! vamos... eu vou.
Mariana começou a chorar. Tive pena dela.
— Tranqüiliza-te, Mariana, disse-lhe; eu intercederei por ti. Mamãe não te fará mal.
— Que importa que faça? Eu estou disposta a tudo... Ninguém tem que ver com as minhas desgraças... Estou pronta; podemos ir.
— Saibamos outra coisa, disse eu, alguém te seduziu para fugir?
Esta pergunta era astuciosa; eu desejava apenas desviar do espírito da rapariga qualquer suspeita de que eu soubesse dos seus amores por mim. Foi desastrada a astúcia. O único efeito da pergunta foi indigná-la.
— Se alguém me seduziu? perguntou ela; não, ninguém; fugi porque eu o amo, e não posso ser amada, eu sou uma infeliz escrava. Aqui está por que eu fugi. Podemos ir; já disse tudo. Estou pronta a carregar com as conseqüências disto.
Não pude arrancar mais nada à rapariga. Apenas quando lhe perguntei se havia comido, respondeu-me que não, mas que não tinha fome.
Chegamos à casa eu e ela perto das nove horas da noite. Minha mãe já não tinha esperanças de tornar a ver Mariana; o prazer que a vista da escrava lhe deu foi maior que a indignação pelo seu procedimento. Começou por invectivá-la. Intercedi a tempo de acalmar a justa indignação de minha mãe e Mariana foi dormir tranqüilamente.
Não sei se tranqüilamente. No dia seguinte tinha os olhos inchados e estava triste. A situação da pobre rapariga interessara-me bastante, o que era natural, sendo eu a causa indireta daquela dor profunda. Falei muito nesse episódio em casa de minha prima. O tio João Luís disse-me em particular que eu fora um asno e um ingrato.
— Por quê? perguntei-lhe.
— Porque devias ter posto Mariana debaixo da minha proteção, a fim de livrá-la do mau tratamento que vai ter.
— Ah! não, minha mãe já lhe perdoou.
— Nunca lhe perdoará como eu.
Falei tanto em Mariana que minha prima entrou a sentir um disparatado ciúme. Protestei-lhe que era loucura e abatimento ter zelos de uma cria de casa, e que o meu interesse era simples sentimento de piedade. Parece que as minhas palavras não lhe fizeram grande impressão.
Extremamente leviana, Amélia não soube conservar a necessária dignidade, quando foi a minha casa. Conversou muito na necessidade de tratar severamente as escravas, e achou que era dar mau exemplo mandar-lhes ensinar alguma coisa.
Minha mãe admirou-se muito desta linguagem na boca de Amélia e redarguiu com aspereza o que lhe dava direito a sua vontade. Amélia insistiu; minhas irmãs combateram as suas opiniões: Amélia ficou amuada. Não havia pior posição para uma senhora.
Nada escapara a Mariana desta conversa entre Amélia e minha família; mas ela era dissimulada e nada disse que pudesse trair os seus sentimentos. Pelo contrário redobrou de esforços para agradar a minha prima; desfez-se em agrados e respeitos. Amélia recebia todas essas demonstrações com visível sobranceria em vez de as receber com fria dignidade.
Na primeira ocasião em que pude falar a minha prima, chamei a sua atenção para esta situação absurda e ridícula. Disse-lhe que, sem o querer, estava a humilhar-se diante de uma escrava. Amélia não compreendeu o sentimento que me ditou estas palavras, nem a procedência das minhas palavras. Viu naquilo uma defesa de Mariana; respondeu-me com algumas palavras duras e retirou-se para os aposentos de minhas irmãs onde chorou à vontade. Finalmente tudo se acalmou e Amélia voltou tranqüila para casa.
Quatro dias antes do dia marcado para o meu casamento, era a festa do natal. Minha mãe costumava dar festas às escravas. Era um costume que lhe deixara minha avó. As festas consistiam em dinheiro ou algum objeto de pouco valor. Mariana recebia ambas as coisas por uma especial graça. De tarde tiveram gente em casa para jantar: alguns amigos e parentes. Amélia estava presente. Meu tio João Luís era grande amador de discursos à sobremesa. Mal começavam a entrar os doces, quando ele se levantou e começou um discurso que a julgar pelo intróito, devia ser extenso. Como ele tinha suma graça, eram gerais as risadas desde que empunhou o copo. Foi no meio dessa geral alegria que uma das escravas veio dar parte de que Mariana havia desaparecido.
Este segundo ato de rebeldia da mulatinha produziu a mais furiosa impressão em todos. Da primeira vez houve alguma mágoa e saudade de mistura com a indignação. Desta vez houve indignação apenas. Que sentimento devia inspirar a todos a insistência dessa rapariga em fugir de uma casa onde era tratada como filha? Ninguém duvidou mais que Mariana era seduzida por alguém, idéia que na primeira vez se desvaneceu mediante uma piedosa mentira da minha parte; como duvidar agora?
Tais não eram as minhas impressões. Senhor do funesto segredo da escrava, sentia-me penalizado por ser causa indireta das loucuras dela e das tristezas de minha mãe. Ficou assentado que se procuraria a fugitiva e se lhe daria o castigo competente. Deixei que esse momento de cólera se consumasse, e levantei-me para ir procurar Mariana.
Amélia ficou desgostosa com esta resolução, e bem o revelou no olhar; mas eu fingi que a não percebia e saí.
Dei os primeiros passos necessários e usuais. A polícia nada sabia, mas ficou avisada e empregou meios para alcançar a fugitiva. Eu suspeitava que desta vez ela tivesse cometido suicídio; fiz neste sentido as diligências necessárias para ter alguma notícia dela viva ou morta.
Tudo foi inútil.
Quando voltei à casa eram dez horas da noite; todos estavam à minha espera, menos o tio e a prima que já se haviam retirado.
Minha irmã contou-me que Amélia saíra furiosa, porque achava que eu estava dando maior atenção do que devia a uma escrava, embora bonita, acrescentou ela.
Confesso que naquele momento o que me preocupava mais era Mariana; não porque eu correspondesse aos seus sentimentos por mim, mas porque eu sentia sérios remorsos de ser causa de um crime. Fui sempre pouco amante de aventuras e lances arriscados e não podia pensar sem algum terror na possibilidade de morrer alguém por mim.
Minha vaidade não era tamanha que me abafasse os sentimentos de piedade cristã. Neste estado as invectivas da minha noiva não me fizeram grande impressão, e não foi por causa delas que eu passei a noite em claro.
Continuei no dia seguinte as minhas pesquisas, mas nem eu nem a polícia fomos felizes.
Tendo andado muito, já a pé, já de tílburi, achei-me às cinco horas da tarde no Largo de S. Francisco de Paula, com alguma vontade de comer; a casa ficava um pouco longe e eu queria continuar depois as minhas averiguações. Fui jantar a um hotel que então havia na antiga Rua dos Latoeiros.
Comecei a comer distraído e ruminando mil idéias contrárias, mil suposições absurdas. Estava no meio do jantar quando vi descer do segundo andar da casa um criado com uma bandeja onde havia vários pratos cobertos.
— Não quer jantar, disse o criado ao dono do hotel que se achava no balcão.
— Não quer? perguntou este; mas então... não sei o que faça... reparaste se... Eu acho bom ir chamar a polícia.
Levantei-me da mesa e aproximei-me do balcão.
— De que se trata? perguntei eu.
— De uma moça que aqui apareceu ontem, e que ainda não comeu até hoje...
Pedi-lhe os sinais da pessoa misteriosa. Não havia dúvida. Era Mariana.
— Creio que sei quem é, disse eu, e ando justamente em procura dela. Deixe-me subir.
O homem hesitou; mas a consideração de que não lhe podia convir continuar a ter em casa uma pessoa por cuja causa viesse a ter questões com a polícia, fez com que me deixasse o caminho livre.
Acompanhou-me o criado, a quem incumbi de chamar por ela, porque se conhecesse a minha voz, supunha eu que me não quisesse abrir.
Assim se fez. Mariana abriu a porta e eu apareci. Deu um grito estridente e lançou-se-me nos braços. Repeli aquela demonstração com toda a brandura que a situação exigia.
— Não venho aqui para receber-te abraços, disse eu; venho pela segunda vez buscar-te para casa, donde pela segunda vez fugiste.
A palavra fugiste escapou-me dos lábios; todavia, não lhe dei importância senão quando vi a impressão que ela produziu em Mariana. Confesso que devera ter alguma caridade mais; mas eu queria conciliar os meus sentimentos com os meus deveres, e não fazer com que a mulher não se esquecesse de que era escrava. Mariana parecia disposta a sofrer tudo dos outros, contanto que obtivesse a minha compaixão. Compaixão tinha-lhe eu; mas não lho manifestava, e era esse todo o mal.
Quando a fugitiva recobrou a fala, depois das emoções diversas por que passara desde que me viu chegar, declarou positivamente que era sua intenção não sair dali. Insisti com ela dizendo-lhe que poderia ganhar tudo procedendo bem, ao passo que tudo perderia continuando naquela situação.
— Pouco importa, disse ela; estou disposta a tudo.
— A matar-te, talvez? perguntei eu.
— Talvez, disse ela sorrindo melancolicamente; confesso-lhe até que a minha intenção era morrer na hora do seu casamento, a fim de que fossemos ambos felizes, — nhonhô casando-se, eu morrendo.
— Mas desgraçada, tu não vês que...
— Eu bem sei o que vejo, disse ela; descanse; era essa a minha intenção, mas pode ser que o não faça...
Compreendi que era melhor levá-la pelos meios brandos; entrei a empregá-los sem esquecer nunca a reserva que me impunha a minha posição. Mariana estava resolvida a não voltar. Depois de gastar cerca de uma hora, sem nada obter, declarei-lhe positivamente que ia recorrer aos meios violentos, e que já lhe não era possível resistir. Perguntou-me que meios eram; disse-lhe que eram os agentes policiais.
— Bem vês, Mariana, acrescentei, sempre hás de ir para casa; é melhor que me não obrigues a um ato que me causaria alguma dor.
— Sim? perguntou ela com ânsia; teria dor em levar-me assim para casa?
— Alguma pena teria decerto, respondi; porque tu foste sempre boa rapariga; mas que farei eu se continuas a insistir em ficar aqui?
Mariana encostou a cabeça à parede e começou a soluçar; procurei acalmá-la; foi impossível. Não havia remédio; era necessário empregar o meio heróico. Saí ao corredor para chamar pelo criado que tinha descido logo depois que a porta se abriu.
Quando voltei ao quarto, Mariana acabava de fazer um movimento suspeito. Parecia-me que guardava alguma coisa no bolso. Seria alguma arma?
— Que escondeste aí? perguntei eu.
— Nada, disse ela.
— Mariana, tu tens alguma idéia terrível no espírito... Isso é alguma arma...
— Não, respondeu ela.
Chegou o criado e o dono da casa. Expus-lhes em voz baixa o que queria; o criado saiu, o dono da casa ficou.
— Eu suspeito que ela tem alguma arma no bolso para matar-se; cumpre arrancar-lha.
Dizendo isto ao dono da casa, aproximei-me de Mariana.
— Dá-me o que tens aí.
Ela contraiu um pouco o rosto. Depois, metendo a mão no bolso, entregou-me o objeto que lá havia guardado.
Era um vidro vazio.
— Que é isto, Mariana? perguntei eu, assustado.
— Nada, disse ela; eu queria matar-me depois d’amanhã. Nhonhô apressou a minha morte, nada mais.
— Mariana! exclamei eu aterrado.
— Oh! continuou ela com voz fraca; não lhe quero mal por isso. Nhonhô não tem culpa: a culpa é da natureza. Só o que eu lhe peço é que não me tenha raiva, e que se lembre algumas vezes de mim...
Mariana caiu sobre a cama. Pouco depois entrava o inspetor. Chamou-se à pressa um médico; mas era tarde. O veneno era violento; Mariana morreu às 8 horas da noite.
Sofri muito com este acontecimento; mas alcancei que minha mãe perdoasse à infeliz, confessando-lhe a causa da morte dela. Amélia nada soube, mas nem por isso deixou o fato de influir em seu espírito. O interesse com que eu procurei a rapariga, e a dor que a sua morte me causou, transtornaram a tal ponto os sentimentos da minha noiva, que ela rompeu o casamento dizendo ao pai que havia mudado de resolução.
Tal foi, meus amigos, este incidente da minha vida. Creio que posso dizer ainda hoje que todas as mulheres de quem tenho sido amado, nenhuma me amou mais do que aquela. Sem alimentar-se de nenhuma esperança, entregou-se alegremente ao fogo do martírio; amor obscuro, silencioso, desesperado, inspirando o riso ou a indignação, mas no fundo, amor imenso e profundo, sincero e inalterável.
Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela Rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos restituído a mocidade.
O PERFUME DOS BOLOS
Raul Pompéia
Já lá vão seis anos...
Eu via sempre, por volta das dez horas, passar-me pela porta a pequena Berta.
Era a filha mais nova do meu vizinho confeiteiro.
Que linda Berta! Chamavam-na, por graça, a menina azul. Dava razão a isso o saiote azul, que ela trajava sempre, e o corpete de cabeção, azul ainda como a saia, e os olhos cor de céu e os louros cabelos quase brancos, com brilhos metálicos anilados, e, ainda mais, a coloração fina que sombreava-lhe a alvura da face, reflexo não sei se do corpete azul, se do azul luminoso dos olhos.
Perfeitamente encantadora, a criança...
À pequenina da minha rua, um freguês do confeiteiro comia bolos ao almoço.
Berta os levava.
Eu gostava de vê-la passar, trazendo nas mãos, à altura dos ombros, uma pequena bandeja, coberta por um guardanapo alvíssimo. Mais lindos sete anos, nunca vi, nem mais perfumosos bolos.
A menina passava, caminhando rápido; altiva e tímida como uma antílope. Os cabelos cortados rente, deixavam-lhe descoberta a nuca, móvel e branca como um pescoço de cisne. Após ela, ia o apetitoso perfume da massa tostada dos bolos, quentes e fumegantes ainda.
Berta atirava-me um sorriso de malícia inocente e ficava logo muito séria, quase ameaçadora. Eu lançava-lhe punhados de violetas, só para vê-la pisar as flores com o seu adorável desdém...
De repente, Berta desapareceu. Perguntei por ela. Morrera.
............................................................
O freguês da esquina ainda come bolos, ao almoço, como há seis anos.
O meu vizinho confeiteiro ainda os fornece como outrora.
Apenas já não os leva a menina azul.
Há seis anos que os portadores variam.
Atualmente, quem passa com os bolos, é um garotinho maltrapilho, que anda de cabeça baixa, desconfiado, olhando de través, com uns modos de cãozinho escorraçado...
Para mim, entretanto, apesar dos meus olhos, é Berta ainda quem os leva.
Quando o garotinho passa é a menina azul que eu vejo.
Aquele perfume de massa tostada e quente desperta-me ao vivo o risonho quadro das boas manhãs doutro tempo.
Distingo o olhar e o sorriso de Berta, os seus movimentos tímidos e altivos de antílope; vejo-a ainda pisando com o seu adorável desdém as minhas pobres violetas...
O garotinho, com certeza não sabe porque sorrio-me para ele, quando ele passa.
Responde ao meu sorriso com uma careta amável, ingênua e idiota...
Um destes dias, pediu-me um vintém...
Apesar de tudo, para mim, a portadora dos bolos continua a ser Berta, a menina azul.
VIVER!
Machado de Assis
Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o horizonte, onde passam duas águias cruzando-se. Medita, depois sonha. Vai declinando o dia.
AHASVERUS. - Chego à cláusula dos tempos; este é o limiar da eternidade. A terra está deserta; nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o último; posso morrer. Morrer! Deliciosa idéia! Séculos de séculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me. Aquela montanha é áspera como a minha dor; aquelas águias, que ali passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis também, águias divinas?
PROMETEU. - Certo que os homens acabaram; a terra está nua deles.
AHASVERUS. - Ouço ainda uma voz... Voz de homem? Céus implacáveis, não sou então o último? Ei-lo que se aproxima... Quem és tu? Há em teus grandes olhos alguma coisa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos de Israel; não és homem...
PROMETEU. - Não.
AHASVERUS. - Raça divina?
PROMETEU. - Tu o disseste.
AHASVERUS. - Não te conheço; mas que importa que te não conheça? Não és homem; posso então morrer; pois sou o último, e fecho a porta da vida.
PROMETEU. - A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma, outras se abrirão. És o último da tua espécie? Virá outra espécie melhor, não feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem derradeiro, toda a plebe dos espíritos perecerá para sempre; a flor deles é que voltará à terra para reger as coisas. Os tempos serão retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça...
AHASVERUS. - Que importa à espécie que vai morrer comigo toda essa delícia póstuma? Crê-me, tu que és imortal, para os ossos que apodrecem na terra as púrpuras de Sidônia não valem nada. O que tu me contas é ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade deste havia delitos e enfermidades; a tua exclui todas as lesões morais e físicas. O Senhor te ouça! Mas deixa-me ir morrer.
PROMETEU. - Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias?
AHASVERUS. - A pressa de um homem que tem vivido milheiros de anos. Sim, milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as gerações e todas as ruínas, para experimentar esse profundo fastio da existência.
PROMETEU. - Milheiros de anos?
AHASVERUS. - Meu nome é Ahasverus: vivia em Jerusalém, ao tempo em que iam crucificar Jesus Cristo. Quando ele passou pela minha porta, afrouxou ao peso do madeiro que levava aos ombros, e eu empurrei-o, bradando-lhe que não parasse, que não descansasse, que fosse andando até à colina, onde tinha de ser crucificado... Então uma voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre, continuamente, até o fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para com aquele que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os fariseus diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matá-lo; eu, pobre ignorante, quis realçar o meu zelo e daí a ação daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa irremissível.
PROMETEU. - Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benévola. Os outros homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capítulo de outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. Há páginas melancólicas? Há outras joviais e felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-lo inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, não dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a aflição da alma, e a alegria da alma suprindo à desolação das coisas; dança alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo.
AHASVERUS. - Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana.
PROMETEU. - Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perpétuo, explica-te. Conta-me tudo; saíste de Jerusalém...
AHASVERUS. - Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem aí respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava comigo a moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em capítulo? Os que se foram, à nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes tu o que é ver as mesmas coisas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre ocasos?
PROMETEU. - Mas não padeceste, creio; é alguma coisa não padecer nada.
AHASVERUS. - Sim, mas vi padecer os outros homens, e para o fim o espetáculo da alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doido. Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada.
PROMETEU. - Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos inúmeros o efeito da cólera divina?
AHASVERUS. - Tu?
PROMETEU. - Prometeu é o meu nome.
AHASVERUS. - Tu Prometeu?
PROMETEU. - E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e água os primeiros homens, e depois, compadecido, roubei para eles o fogo do céu. Tal foi o meu crime. Júpiter, que então regia o Olimpo, condenou-me ao mais cruel suplício. Anda, sobe comigo a este rochedo.
AHASVERUS. - Contas-me uma fábula. Conheço esse sonho helênico.
PROMETEU. - Velho incrédulo! Anda ver as próprias correntes que me agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindade orgulhosa e terrível... Chegamos, olha, aqui estão elas...
AHASVERUS. - O tempo que tudo rói não as quis então?
PROMETEU. - Eram de mão divina; fabricou-as Vulcano. Dois emissários do céu vieram atar-me ao rochedo, e uma águia, como aquela que lá corta o horizonte, comia-me o fígado, sem consumi-lo nunca. Durou isto tempos que não contei. Não, não podes imaginar este suplício...
AHASVERUS. - Não me iludes? Tu Prometeu? Não foi então um sonho da imaginação antiga?
PROMETEU. - Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo.
AHASVERUS. - Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens?
PROMETEU. - Foi o meu crime.
AHASVERUS. - Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime inexpiável. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, é certo; mas tu, que me trouxeste à existência, divindade perversa, foste a causa original de tudo.
PROMETEU. - A morte próxima obscurece-te a razão.
AHASVERUS. - Sim, és tu mesmo, tens a fronte olímpica, forte e belo titão: és tu mesmo... São estas as cadeias? Não vejo o sinal das tuas lágrimas.
PROMETEU. - Chorei-as pela tua raça.
AHASVERUS. - Ela chorou muito mais por tua culpa.
PROMETEU. - Ouve, último homem, último ingrato!
AHASVERUS. - Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade perversa. Aqui estão as cadeias. Vê como as levanto nas mãos; ouve o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outrora?
PROMETEU. - Hércules.
AHASVERUS. - Hércules... Vê se ele te presta igual serviço, agora que vais ser novamente agrilhoado.
PROMETEU. - Deliras.
AHASVERUS. - O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitáfio de um mundo. Chamarei a águia, e ela virá; dir-lhe-ei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses.
PROMETEU. - Pobre ignorante, que rejeitas um trono! Não, não podes mesmo rejeitá-lo.
AHASVERUS. - És tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os braços. Assim, bem, não resistirás mais; arqueja para aí. Agora as pernas...
PROMETEU. - Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contra mim; mas eu, que não sou homem, não conheço a ingratidão. Não arrancarás uma letra ao teu destino, ele se cumprirá inteiro. Tu mesmo serás o novo Hércules. Eu, que anunciei a glória do outro, anuncio a tua; e não serás menos generoso que ele.
AHASVERUS. - Deliras tu?
PROMETEU. - A verdade ignota aos homens é o delírio de quem a anuncia. Anda, acaba.
AHASVERUS. - A glória não paga nada,
e extingue-se.
PROMETEU. - Esta não se extinguirá. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da águia como me há de devorar a entranha; mas escuta... Não, não escutes nada; não podes entender-me.
AHASVERUS. - Fala, fala.
PROMETEU. - O mundo passageiro não pode entender o mundo eterno; mas tu serás o elo entre ambos.
AHASVERUS. - Dize tudo.
PROMETEU. - Não digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu não fuja, para que me aches aqui à tua volta. Que te diga tudo? Já te disse que uma raça nova povoará a terra, feita dos melhores espíritos da raça extinta; a multidão dos outros perecerá. Nobre família, lúcida e poderosa, será perfeita comunhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo é preciso, e esse elo és tu.
AHASVERUS. - Eu?
PROMETEU. - Tu mesmo, tu eleito, tu, rei. Sim, Ahasverus, tu serás rei. O errante pousará. O desprezado dos homens governará os homens.
AHASVERUS. - Titão artificioso, iludes-me... Rei, eu?
PROMETEU. - Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradição do mundo velho, e ninguém pode falar de um a outro como tu. Assim não haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito procederá do imperfeito, e a tua boca dir-lhe-á as suas origens. Contarás aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Reviverás assim como a árvore a que cortaram as folhas secas, e conserva tão-somente as viçosas; mas aqui o viço é eterno.
AHASVERUS. - Visão luminosa! Eu mesmo?
PROMETEU. - Tu mesmo.
AHASVERUS. - Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é a remissão gloriosa do meu pecado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e melhor? Não, tu mofas de mim.
PROMETEU. - Bem, deixa-me, voltarás um dia, quando este imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova. Aqui me acharás tranqüilo. Vai.
AHASVERUS. - Saudarei outra vez o sol?
PROMETEU. - Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca mais se fechará a tua pálpebra. Fita-o, se podes.
AHASVERUS. - Não posso.
PROMETEU. - Podê-lo-ás depois quando as condições da vida houverem mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem futuro ficará concentrado tudo o que há melhor na natureza, enérgico ou sutil, cintilante ou puro.
AHASVERUS. - Jura que me não mentes.
PROMETEU. - Verás se minto.
AHASVERUS. - Fala, fala mais, conta-me tudo.
PROMETEU. - A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás prodigiosa. O seio de Abraão das tuas velhas Escrituras não é senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os profetas. Lá contarás à gente estupefata não só as grandes ações do mundo extinto, como também os males que ela não há de conhecer, lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinável toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma túnica incorruptível.
AHASVERUS. - Verei ainda este imenso céu azul!
PROMETEU. - Olha como é belo.
AHASVERUS. - Belo e sereno como a eterna justiça. Céu magnífico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meus pensamentos, como outrora; tu me darás os dias claros e as noites amigas...
PROMETEU. - Auroras sobre auroras.
AHASVERUS. - Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias...
PROMETEU. - Desata-as, Hércules novo, homem derradeiro de um mundo, que vás ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguém poderá mudá-lo. És mais ainda que o teu Moisés. Do alto do Nebo, viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jericó, que ia pertencer à sua posteridade; e o Senhor lhe disse: "Tu a viste com teus olhos, e não passarás a ela." Tu passarás a ela, Ahasverus; tu habitarás Jericó.
AHASVERUS. - Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena... Rei disseste?
PROMETEU. - Rei eleito de uma raça eleita.
AHASVERUS. - Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas águias aproximam-se.)
UMA ÁGUIA. - Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.
A OUTRA. - Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.
A ADÚLTERA
Humberto de Campos
Regressava Jesus, naquela tarde, do monte das Oliveiras, quando, em meio do caminho, com o sol a esconder-se, ao longe, no leito de fogo das montanhas, foi rodeado por um pequeno grupo de fariseus, que traziam de rastros, pálida e desgrenhada, uma pobre mulher que se debatia entre eles. Supondo confundir o Rabino com a sua consulta inesperada, um escriba, de nome Barachias, adiantou-se dois passos, e pediu, com fingida humildade:
— Mestre, esta mulher foi surpreendida a trair o esposo, a quem jurara fidelidade. A lei de Moisés determina que ela seja apedrejada, e morta pela multidão. Que devemos fazer?
Jesus, que lhe ouvira o coração antes de lhe escutar a palavra, baixou-se na areia da estrada, e pôs-se, com o dedo, a escrever.
— Mestre — tornou o fariseu, — esta mulher foi apanhada em flagrante, traindo o seu esposo. Devemos matá-la à pedrada, como estabelece a lei de Moisés?
Jesus, em silêncio, continuava a escrever sobre a areia, quando, de repente, erguendo-se, respondeu:
— Só o justo pode punir o pecador. Aquele, pois, que, dentre vós nunca pecou, atire a primeira pedra!
A estas palavras, Barachias desapareceu, e, com ele, um a um, aqueles que o acompanhavam, ficando no caminho, apenas, Jesus e a pecadora. Agradecida e assustada, ia a mísera atirar-se de joelhos para beijar as sandálias do Mestre, quando o Rabino a deteve pelos braços, dizendo-lhe, severo:
— Nada me deves, mulher. Em verdade te digo, que as leis de meu Pai são mais implacáveis do que as leis de Moisés. Poupei-te a vida porque a própria morte não puniria a tua falta!
E, repelindo-a com a mão, suavemente:
— Anda; vai! A vergonha do teu crime, na tua velhice, será, na terra, o teu castigo!
E, baixando os olhos, continuou, sozinho, a caminho de Jerusalém...
MARCHA FÚNEBRE
Machado de Assis
DEPUTADO Cordovil não podia pregar olho uma noite de agosto de 186… Vieracedo do Cassino Fluminense, depois da retirada do Imperador, e durante o baile nãotivera o mínimo incômodo moral nem físico. Ao contrário, a noite foi excelente, tãoexcelente que um inimigo seu, que padecia do coração, faleceu antes das dez horas, e anotícia chegou ao Cassino pouco depois das onze.Naturalmente concluis que ele ficou alegre com a morte do homem, espécie de vingançaque os corações adversos e fracos tomam em falta de outra. Digo-te que concluis mal;não foi alegria, foi desabafo. A morte vinha de meses, era daquelas que não acabammais, e moem, mordem, comem, trituram a pobre criatura humana. Cordovil sabia dospadecimentos do adversário. Alguns amigos, para o consolar de antigas injúrias, iamcontar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de braços, vivendoas noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem esperanças, nem as tardesdesenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra de compaixão, que o alvissareiroadotava, e repetia, e era mais sincera naquele que neste. Enfim acabara de padecer; daí odesabafo.
Este sentimento pegava com a piedade humana. Cordovil, salvo em política, nãogostava do mal alheio. Quando rezava, ao levantar da cama: “Padre Nosso, que estás nocéu, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, assimna terra como no céu, o pão nosso de cada dia nos dá hoje, perdoa as nossas dívidas,como nós perdoamos aos nossos devedores”… não imitava um de seus amigos querezava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores, como dizia de língua; essechegava a cobrar além do que eles lhe deviam, isto é, se ouvia maldizer de alguém,decorava tudo e mais alguma cousa e ia repeti-lo a outra parte. No dia seguinte, porém,a bela oração de Jesus tornava a sair dos lábios da véspera com a mesma caridade deofício.Cordovil não ia nas águas desse amigo; perdoava deveras. Que entrasse no perdão umtantinho de preguiça, é possível, sem aliás ser evidente. Preguiça amamenta muitavirtude. Sempre é alguma cousa minguar força à ação do mal. Não esqueça que odeputado só gostava do mal alheio em política, e o inimigo morto era inimigo pessoal.Quanto à causa da inimizade, não a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida.– Coitado! descansou, disse Cordovil.Conversaram da longa doença do finado . Também falaram das várias mortes destemundo, dizendo Cordovil que a todas preferia a de César, não por motivo do ferro, maspor inesperada e rápida.– Tu quoque? perguntou-lhe um colega rindo.Ao que ele, apanhando a alusão, replicou:– Eu, se tivesse um filho, quisera morrer às mãos dele. O parricídio, estando fora docomum, faria a tragédia mais trágica.Tudo foi assim alegre. Cordovil saiu do baile com sono, e foi cochilando no carro,apesar do mal calçado das ruas. Perto de casa. sentiu parar o carro e ouviu rumor devozes. Era o caso de um defunto, que duas praças de polícia estavam levantando do chão.
— Assassinado? perguntou ele ao lacaio, que descera da almofada para saber o que era.– Não sei, não, senhor.– Pergunta o que é.– Este moço sabe como foi, disse o lacaio, indicando um desconhecido, que falava aoutros.O moço aproximou-se da portinhola, antes que o deputado recusasse ouvi-lo. Referiu-lhe então em poucas palavras o acidente a que assistira.– Vínhamos andando, ele adiante, eu atrás. Parece que assobiava uma polca. Indo aatravessar a rua para o lado do Mangue, vi que estacou o passo, a modo que torceu ocorpo, não sei bem, e caiu sem sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de umsobradinho, examinou o homem e disse que “morreu de repente”. Foi-se juntando gente,a patrulha levou muito tempo a chegar. Agora pegou dele. Quer ver o defunto?– Não, obrigado. Já se pode passar?– Pode.– Obrigado. Vamos, Domingos.Domingos trepou à almofada, o cocheiro tocou os animais, e o carro seguiu até à Rua deS. Cristóvão, onde morava Cordovil.Antes de chegar à casa , Cordovil foi pensando na morte do desconhecido. Em simesma, era boa; comparada à do inimigo pessoal, excelente. Ia a assobiar, cuidandosabe Deus em que delícia passada ou em que esperança futura; revivia o que vivera, ouantevia o que podia viver, senão quando, a morte pegou da delícia ou da esperança, e lá
se foi o homem ao eterno repouso.
Morreu sem dor, ou, se alguma teve, foi acasobrevíssima, como um relâmpago que deixa a escuridão mais escura.Então pôs o caso em si. Se lhe tem acontecido no Cassino a morte do Aterrado? Nãoseria dançando; os seus quarenta anos não dançavam. Podia até dizer que ele só dançouaté aos vinte. Não era dado a moças, tivera um afeição única na vida, — aos vinte ecinco anos, casou e enviuvou ao cabo de cinco semanas para não casar mais. Não é quelhe faltassem noivas, — mormente depois de perder o avô, que lhe deixou duas fazendas.Vendeu-as ambas e passou a viver consigo, fez duas viagens à Europa, continuou apolítica e a sociedade. Ultimamente parecia enojado de uma e de outra, mas não tendoem que matar o tempo, não abriu mão delas. Chegou a ser ministro uma vez, creio queda Marinha, não passou de sete meses. Nem a pasta lhe deu glória, nem a demissãodesgosto. Não era ambicioso, e mais puxava para a quietação que para o movimento.Mas se lhe tivesse sucedido morrer de repente no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha,entre duas portas? Podia ser muito bem. Cordovil compôs de imaginação a cena, elecaído de bruços ou de costas, o prazer turbado, a dança interrompida… e dali podia serque não; um pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens animando as damas, aorquestra continuando por instantes a oposição do compasso e da confusão. Nãofaltariam braços que o levassem para um gabinete, já morto, totalmente morto.”Tal qual a morte de César”, ia dizendo consigo.E logo emendou:”Não, melhor que ela; sem ameaça, nem armas, nem sangue, uma simples queda e ofim. Não sentiria nada.”Cordovil deu consigo a rir ou a sorrir, alguma cousa que afastava o terror e deixava asensação da liberdade. Em verdade, antes a morte assim que após longos dias ou longosmeses e anos, como o adversário que perdera algumas horas antes. Nem era morrer; eraum gesto de chapéu, que se perdia no ar com a própria mão e a alma que lhe deramovimento. Um cochilo e o sono eterno. Achava-lhe um só defeito, — o aparato. Essamorte no meio de um baile defronte do Imperador, ao som de Strauss, contada, pintada, enfeitada nas folhas públicas, essa morte pareceria de encomenda.
Paciência, uma vezque fosse repentina.Também pensou que podia ser na Câmara, no dia seguinte, ao começar o debate doorçamento. Tinha a palavra; já andava cheio de algarismos e citações. Não quisimaginar o caso, não valia a pena; mas o caso teimou e apareceu de si mesmo. O salãoda Câmara, em vez do do Cassino, sem damas ou com poucas, nas tribunas. Vastosilêncio. Cordovil em pé começaria o discurso, depois de circular os olhos pela casa,fitar o ministro e fitar o presidente: “Releve-me a Câmara que lhe tome algum tempo,serei breve, buscarei ser justo…” Aqui uma nuvem lhe taparia os olhos, a língua pararia,o coração também, e ele cairia de golpe no chão. Câmara, galerias, tribunas ficariamassombradas. Muitos deputados correriam a erguê-lo; um, que era médico, verificaria amorte; não diria que fora de repente, como o do sobradinho do Aterrado, mas por outroestilo mais técnico. Os trabalhos seriam suspensos, depois de algumas palavras dopresidente e escolha da comissão que acompanharia o finado ao cemitério …Cordovil quis rir da circunstância de imaginar além da morte, o movimento e osaimento, as próprias notícias dos jornais, que ele leu de cor e depressa. Quis rir, maspreferia cochilar; os olhos é que, estando já perto de casa e da cama, não quiseramdesperdiçar o sono, e ficaram arregalados.Então a morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no diaseguinte em plena sessão da Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, aoabrirem-lhe a portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de uma noite ruidosapara outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma deluta ou resistência. O estremeção que teve fez-lhe ver que não era verdade.Efetivamente, o carro entrou na chácara, estacou, e Domingos saltou da almofada paravir abrir-lhe a portinhola. Cordovil desceu com as pernas e a alma vivas, e entrou pelaporta lateral, onde o aguardava com um castiçal e vela acesa o escravo Florindo. Subiu aescada, e os pés sentiam que os degraus eram deste mundo; se fossem do outro,desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no quarto, olhou para a cama; era a mesmados sonos quietos e demorados.– Veio alguém?
— Não, senhor, respondeu o escravo distraído, mas corrigiu logo: Veio, sim, senhor;veio aquele doutor que almoçou com meu senhor domingo passado.– Queria alguma cousa?– Disse que vinha dar a meu senhor uma boa notícia, e deixou este bilhete — que eubotei ao pé da cama.O bilhete referia a morte do inimigo; era de um dos amigos que usavam contar-lhe amarcha da moléstia. Quis ser o primeiro a anunciar o desenlace, um alegrão, com umabraço apertado. Enfim, morrera o patife. Não disse a cousa assim por esses termosclaros, mas os que empregou vinham a dar neles, acrescendo que não atribuiu esse únicoobjeto à visita. Vinha passar a noite; só ali soube que Cordovil fora ao Cassino. Ia a sair,quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe deixasse escrever duas linhas.Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia do outro. Fez umgesto de melancolia e exclamou a meia voz:– Coitado! Vivam as mortes súbitas!Florindo, se referisse o gesto e a frase ao doutor do bilhete, talvez o fizesse arrependerda canseira. Nem pensou nisso; ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu asúltimas ordens e despediu-se. Cordovil deitou-se.– Ah! suspirou ele estirando o corpo cansado.Teve então uma idéia, a de amanhecer morto. Esta hipótese, a melhor de todas, porque oapanharia meio morto, trouxe consigo mil fantasias que lhe arredaram o sono dos olhos.Em parte, era a repetição das outras, a participação à Câmara, as palavras do presidente,comissão para o saimento, e o resto. Ouviu lástimas de amigos e de fâmulos, viunotícias impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era já sonho.Não era. Chamou-se ao quarto, à cama, a si mesmo: estava acordado.
OLHOS
Raul Pompéia
Era um comprido velho, magro, de longos braços, pendentes como esses ramos dos pinheiros, que as gravuras representam debruçados às escarpas, sobre catadupas, ou sobre abismos. Rigorosamente trajado de preto, cismador e melancólico, produzia-me o mesmo efeito das lutuosas árvores das paisagens setentrionais.
Ao lado dele, em violento contraste de cor, vestida de branco, numa toilette refolhada de musselina, com um laço negro, a prender os cabelos, caminhava uma menina.
O velho acariciava a criança, sob um olhar de ternura; a menina com a cabeça muito voltada, porque o velho era alto, sorria para ele e segurava-lhe a grande mão descarnada nas suas pequeninas, alisando-lhe com amor os dedos, delicadamente.
Aproximaram-se.
O velho, apesar dos cabelos brancos, não o era tanto, de perto, como me parecera, à distância. Dir-se-ia encanecido pelas neves de um inverno precoce, adiantado pelos dissabores da vida; a que resistira, entretanto, a relativa frescura da fisionomia.
A menina era graciosa, mas feia. Devia ter sete anos. Aparentava trinta, com aquele arzinho de senhora e o rosto moreno, magro, de maçãs pronunciadas e os olhos rasgados, pensadores, como desiludidos há muito dos enganos da infância.
Passaram por mim; o velho cortesmente, cumprimentou-me com uma inclinação de cabeça. A criança imitou com graça a cortesia do velho. À primeira curva da alameda, sumiram-se, devorados por uma escura garganta de bosque.
Vi-os, essa vez, no Passeio Público. Tornei a vê-los no dia seguinte. Vi-os depois, todos os dias, por muito tempo, até que, mudando-me para longe, deixei de visitar, pela manhã, o deleitoso Jardim do Boqueirão.
Agora, há dias, dez anos decorridos, passando casualmente, de bonde pela rua do Passeio, às 8 horas, às horas do flânerie matinal do outro tempo, deu-me vontade de entrar no jardim.
Caminhando ao acaso, satisfeito de sentir a brisa do mar, que chegava muito fresca, através das árvores; e o festivo sol domingueiro peneirado dos ramos, traçando arabescos dançantes na areia, ao acaso, fui dar com o banco de pedra onde outrora sentava-me e do qual via passar o velho alto, de braços pendentes e ar melancólico de pinheiro das montanhas, com a criança de branco, de sete anos e grandes olhos pensadores...
Como fazia, outrora, sentei-me e fiquei a pensar nas cousas todas do meu passado que se ligavam à recordação dos passeios, tornando a ver, em toda a realidade representativa da cisma, o velho de preto a passar e a criança.
Assim estava eu, quando senti que alguém pousava a mão sobre o meu ombro.
Volto-me bruscamente. Um homem estava ao meu lado. Sentado como eu, olhava-me.
E quem havia de ser?! O velho!... o velho dos meus antigos passeios! O mesmo homem de preto, magro e alto com a mesma expressão desolada das árvores dos montes!...
- O senhor! exclamei, com um espanto fácil de calcular.
- Eu mesmo, caro senhor... Reconheço-o, tal qual o senhor me reconhece.
- Parabéns ao acaso, que me fez encontrá-lo... uma pessoa que conheci em dias agradáveis do meu passado!...
- O seu encontro, infelizmente a mim, só me desperta recordações amargas...
- Recordações amargas...
- Recordações dolorosas... Tão dolorosas que me levaram a importuná-lo... É quase doçura a confidência dos pesares... E o senhor que me viu com ela bem pode compreender-me... Lembra-se da menina?...
- Lembro-me... aquela gentil criança...
- Tão meiga, tão boa... morreu!... A minha Ema...
"Quando, outrora, nos encontrávamos aqui, eu vinha com ela a passeio... Queria distraí-la da lembrança da mãe, que tudo, tudo em casa recordava... a pobre morta que me deixara a inocente... Aquela filha era a minha vida. A luz daqueles olhos bania as sombras da minha sorte. Minha pobre alma vivia naquele raio de olhar como vivem as cores do íris, numa réstea de sol.
"Nasci na roça, muito longe do torvelinho detestável das praças... Os olhos da criança, profundo espelho das minhas saudades, mostravam-me o brilho das manhãs da minha mocidade... Eu via-lhe dentro das negras pupilas, a vivenda alegre de meus pais, a verde paisagem onde correram os meus folguedos de menino, a revoada das narcejas sobre a lagoa...
"Morava solitário e triste numa rua estreita e escura. Nos dias chuvosos, vivíamos num crepúsculo desagradável. A lembrança de minha mulher e dos dias felizes da família, cruciava-me especialmente, nesses dias anuviados... Pois, era bastante um olhar da minha adorada Ema, um olhar! e as tristezas fugiam; das nuvens de chuva coava-se para mim um dia claro... Que se espessasse a valer o teto de chumbo da borrasca!... Para mim fazia sol!... No ar vibravam sutilmente, ao longe, notas de música, oscilantes e vagas... Nos olhos dela eu via o céu imenso e as andorinhas, muito alto, em chusma, brincando como sorrisos no azul.
"Ema valia todo o meu passado... Eu que apreciei a leitura e que fui amigo de acompanhar, do meu sossego, a novidade dos acontecimentos, o rumor da vida, nada mais lia que os poemas daquele olhar, nada mais observava que a vida intensa daqueles olhos queridos... Ema era a minha vida presente, como o meu passado...
"Morreu!...
"Também foi bom... A pobrezinha era feia... Morreu aos dezesseis anos. Vivia triste de se achar feia: ninguém havia de amá-la; tinha-lhe amor o pai; mas, pobres das que não são belas! era isso bastante?... Ema gostou de morrer: morreu sorrindo...
"Entretanto, Deus sabe, que magia celeste lhes morava nos olhos, que paraíso inefável Ema guardava ali nas pálpebras, onde eu às vezes me perdia extasiado, como se, realmente, se me soltasse o espírito para uma região alheia a este mundo, vasta, ilimitada, suavemente iluminada por um clarão difuso de estrelas."
UM HOMEM CÉLEBRE
Machado de Assis
- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?
Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.
- Diga, minha senhora.
- É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.
Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.
Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.
- Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.
Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.
Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?
Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.
Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.
- Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.
- A bengala.
- Mas parece que hoje chove.
- Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
- Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.
Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:
- Espera aí.
Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.
Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.
- Vai fazer grande efeito.
Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, - ou por alusão a algum sucesso do dia, - ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.
- Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.
- Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.
Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.
Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.
- E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.
Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.
Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...
- As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.
Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.
- Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
- Vai casar com uma viúva.
- Velha?
- Vinte e sete anos.
- Bonita?
- Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.
Os escrivães não deviam ter espírito, - mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.
Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.
Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.
- Acaba, disse Maria; não é Chopin?
Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.
- Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!
Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.
Poucos dias depois, - uma clara e fresca manhã de maio de 1876, - eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.
Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.
Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.
Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.
Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.
- Para quê? dizia ele a si mesmo.
Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.
- Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
- Nada.
- Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.
- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.
Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.
Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.
Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.
- Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
- Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.
- Adeus.
- Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.
Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.
PARÁBOLAS
Humberto de Campos
Em matéria de parábolas, eu conhecia, apenas, as que o Nazareno arquitetou para edificação dos seus discípulos: a do bom samaritano, a do filho pródigo, a do semeador, e três ou quatro outras, igualmente profundas e morais. Agora, acabo de conhecer mais umas duzentas, contidas em um volume encantador, publicado há dois dias pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto.
As "Parábolas" do brilhante romancista da "Maria Bonita" e da "Esfinge" são, como todas as parábolas bem urdidas e meditadas, um excelente repositório de "ensinamentos, de exemplo", de lições adaptáveis à vida dos homens. E entre elas nenhuma é, talvez, tão humana, tão sábia, nem tão oportuna, como a do melro e do tico-tico. "Descobri num arbusto, quase à beira do caminho, no meu jardim — escreve o autor, — um ninho de tico-tico. Vi-o voar, quando me aproximava, e pude notar três ovinhos depostos na fofa cama bem feita. Pareceu-me que um dos ovos era diferente na forma e na cor, dos outros dois, mas não insisti na minha malícia. Seria lá com o tico-tico. Não perturbei mais o mistério dessa maternidade com a minha indiscrição. Muitos dias depois, distraído, vou pelas mesmas bandas e ouço inquieto pipilar. Pé, ante pé, chego à espreita: o tico-tico depois de saltitar de galho em galho, acerca-se do ninho, trazendo no bico a nutrição para a ninhada que o chamava sôfrega. Olho paro o ninho e vejo um passarinho só, grande, bem maior que o outro, vestido de penugem negra, de amplo bico aberto, à espera de alimento... O filho do tico-tico era um melro!"
Entusiasmado com essa página de Afrânio Peixoto, eu acabava de lê-la para a admiração do desembargador Bernardo Meireles quando o velho político do Império me interrompeu, indagando:
— Como se chama essa história?
— Parábola, desembargador.
— Parábola? — trovejou o ancião, fazendo ressoar no soalho o seu bengalão de maçaranduba, e agitando, num tremor subitâneo, as barbas veneráveis. — Que parábola, o quê!?...
E acentuou, indignado:
— Uma grande patifaria, é que é!
E chamando os oito netinhos, filhos da mesma filha, começou a distribuir biscoitos por esse pequeno viveiro humano, em que havia, cantando, pipilando chilreando, melros, canários, tico-ticos, cambachirras, curiós...
MANUSCRITO DE UM SACRISTÃO
Machado de Assis
CAPÍTULO PRIMEIRO
Ao dar com o padre Teófilo falando a uma senhora, ambos sentadinhos no banco da igreja, e a igreja deserta, confesso que fiquei espantado. Note-se que conversavam em voz tão baixa e discreta, que eu, por mais que afiasse o ouvido e me demorasse a apagar as velas do altar, não podia apanhar nada, nada, nada. Não tive remédio senão adivinhar alguma coisa. Que eu sou um sacristão filósofo. Ninguém me julgue pela sobrepeliz rota e amarrotada nem pelo uso clandestino das galhetas. Sou um filósofo sacristão. Tive estudos eclesiásticos, que interrompi por causa de uma doença e que inteiramente deixei por outro motivo, uma paixão violenta, que me trouxe à miséria. Como o seminário deixa sempre um certo vinco, fiz-me sacristão aos trinta anos, para ganhar a vida. Venhamos, porém, ao nosso padre e à nossa dama.
CAPÍTULO II
Antes de ir adiante, direi que eram primos. Soube depois que eram primos, nascidos em Vassouras. Os pais dela mudaram-se para a Corte, tendo Eulália (é o seu nome) sete anos. Teófilo veio depois. Na família era uso antigo que um dos rapazes fosse padre. Vivia ainda na Bahia um tio dele, cônego. Cabendo-lhe nesta geração envergar a batina, veio para o seminário de S. José, no ano de mil oitocentos e cinqüenta e tantos, e foi aí que o conheci. Compreende-se o sentimento de discrição que me leva a deixar a data no ar.
CAPÍTULO III
No seminário, dizia-nos o lente de retórica:
— A teologia é a cabeça do gênero humano, o latim a perna esquerda, e a retórica a perna direita.
Justamente da perna direita é que o Teófilo coxeava. Sabia muito as outras coisas: teologia, filosofia, latim, história sagrada; mas a retórica é que lhe não entrava no cérebro. Ele, para desculpar-se, dizia que a palavra divina não precisava de adornos. Tinha então vinte ou vinte e dois anos de idade, e era lindo como S. João.
Já nesse tempo era um místico; achava em todas as coisas uma significação recôndita. A vida era uma eterna missa, em que o mundo servia de altar, a alma de sacerdote e o corpo de acólito; nada respondia à realidade exterior. Vivia ansioso de tomar ordens para sair a pregar grandes coisas, espertar as almas, chamar os corações à Igreja, e renovar o gênero humano. Entre todos os apóstolos, amava principalmente São Paulo.
Não sei se o leitor é da minha opinião; eu cuido que se pode avaliar um homem pelas suas simpatias históricas; tu serás mais ou menos da família dos personagens que amares deveras. Aplico assim aquela lei de Helvetius: “O grau de espírito que nos deleita dá a medida exata do grau de espírito que possuímos”. No nosso caso, ao menos, a regra não falhou. Teófilo amava São Paulo, adorava-o, estudava-o dia e noite, parecia viver daquele converso que ia de cidade em cidade, à custa de um ofício mecânico, espalhando a boa nova aos homens. Nem tinha somente esse modelo, tinha mais dois: Hildebrando e Loiola. Daqui podeis concluir que nasceu com a fibra da peleja e do apostolado. Era um faminto de ideal e criação, olhando todas as coisas correntes por cima da cabeça do século. Na opinião de um cônego, que lá ia ao seminário, o amor dos dois modelos últimos temperava o que pudesse haver perigoso em relação ao primeiro.
— Não vá o senhor cair no excesso e no exclusivo, disse-lhe um dia com brandura; não pareça que, exaltando somente a Paulo, intenta diminuir Pedro. A igreja, que os comemora ao lado um do outro, meteu-os ambos no Credo; mas veneremos Paulo e obedeçamos a Pedro. Super hanc petram…
Os seminaristas gostavam do Teófilo, principalmente três, um Vasconcelos, um Soares e um Veloso, todos excelentes retóricos. Eram também bons rapazes, alegres por natureza, graves por necessidade e ambiciosos. Vasconcelos jurava que seria bispo; Soares contentava-se com algum grande cargo; Veloso cobiçava as meias roxas de cônego e um púlpito. Teófilo tentou repartir com eles o pão místico dos seus sonhos, mas reconheceu depressa que era manjar leve ou pesado demais, e passou a devorá-lo sozinho. Até aqui o padre; vamos agora à dama.
CAPÍTULO IV
Agora a dama. No momento em que os vi falar baixinho na igreja, Eulália contava trinta e oito anos de idade. Juro-lhes que era ainda bonita. Não era pobre; os pais deixaram-lhe alguma coisa. Nem casada; recusou cinco ou seis pretendentes.
Este ponto nunca foi entendido pelas amigas. Nenhuma delas era capaz de repelir um noivo. Creio até que não pediam outra coisa, quando rezavam antes de entrar na cama, e ao domingo, à missa, no momento de levantar a Deus. Por que é que Eulália recusava-os todos? Vou dizer desde já o que soube depois. Supuseram-lhe, a princípio, um simples desdém, — nariz torcido, dizia uma delas; — mas, no fim da terceira recusa, inclinaram-se a crer que havia namoro encoberto, e esta explicação prevaleceu. A própria mãe de Eulália não aceitou outra. Não lhe importaram as primeiras recusas; mas, repetindo-se, ela começou a assustar-se. Um dia, voltando de um casamento, perguntou à filha, no carro em que vinham, se não se lembrava que tinha de ficar só.
— Ficar só?
— Sim, um dia hei de morrer. Por ora tudo são flores; cá estou para governar a casa; e você é só ler, cismar, tocar e brincar; mas eu tenho de morrer, Eulália, e você tem de ficar só…
Eulália apertou-lhe muito a mão, sem poder dizer palavra. Nunca pensara na morte da mãe; perdê-la era perder metade de si mesma. Na expansão de momento, a mãe atreveu-se a perguntar-lhe se amava alguém e não era correspondida. Eulália respondeu que não. Não simpatizara com os candidatos. A boa velha abanou a cabeça; falou dos vinte e sete anos da filha, procurou aterrá-la com os trinta, disse-lhe que, se nem todos os noivos a mereciam igualmente, alguns eram dignos de ser aceitos, e que importava a falta de amor? O amor conjugal podia ser assim mesmo; podia nascer depois, como um fruto da convivência. Conhecera pessoas que se casaram por simples interesse de família e acabaram amando-se muito. Esperar uma grande paixão para casar era arriscar-se a morrer esperando.
— Pois sim, mamãe, deixe estar…
E, reclinando a cabeça, fechou um pouco os olhos para espiar alguém, para ver o namorado encoberto, que não era só encoberto, mas também e principalmente impalpável. Concordo que isto agora é obscuro; não tenho dúvida em dizer que entramos em pleno sonho.
Eulália era uma esquisita, para usarmos a linguagem da mãe, ou romanesca, para empregarmos a definição das amigas. Tinha, em verdade, uma singular organização. Saiu ao pai. O pai nascera com o amor do enigmático, do arriscado e do obscuro; morreu quando aparelhava uma expedição para ir à Bahia descobrir a “cidade abandonada”. Eulália recebeu essa herança moral, modificada ou agravada pela natureza feminil. Nela dominava principalmente a contemplação. Era na cabeça que ela descobria as cidades abandonadas. Tinha os olhos dispostos de maneira que não podiam apanhar integralmente os contornos da vida. Começou idealizando as coisas, e, se não acabou negando-as, é certo que o sentimento da realidade esgarçou-se-lhe até chegar à transparência fina em que o tecido parece confundir-se com o ar.
Aos dezoito anos, recusou o primeiro casamento. A razão é que esperava outro, um marido extraordinário, que ela viu e conversou, em sonho ou alucinação, a mais radiosa figura do universo, a mais sublime e rara, uma criatura em que não havia falha ou quebra, verdadeira gramática sem irregularidades, pura língua sem solecismos.
Perdão, interrompe-me uma senhora, esse noivo não é obra exclusiva de Eulália, é o marido de todas as virgens de dezessete anos. Perdão, digo-lhe eu, há uma diferença entre Eulália e as outras, é que as outras trocam finalmente o original esperado por uma cópia gravada, antes ou depois da letra, e às vezes por uma simples fotografia ou litografia, ao passo que Eulália continuou a esperar o painel autêntico. Vinham as gravuras, vinham as litografias, algumas muito bem acabadas, obra de artista e grande artista, mas para ela traziam o defeito de ser cópias. Tinha fome e sede de originalidade. A vida comum parecia-lhe uma cópia eterna. As pessoas do seu conhecimento caprichavam em repetir as idéias umas das outras, com iguais palavras, e às vezes sem diferente inflexão, à semelhança do vestuário que usavam, e que era do mesmo gosto e feitio. Se ela visse alvejar na rua um turbante mourisco ou flutuar um penacho, pode ser que perdoasse o resto; mas nada, coisa nenhuma, uma constante uniformidade de idéias e coletes. Não era outro o pecado mortal das coisas. Mas, como tinha a faculdade de viver tudo o que sonhava, continuou a esperar uma vida nova e um marido único.
Enquanto esperava, as outras iam casando. Assim perdeu ela as três principais amigas: Júlia Costinha, Josefa e Mariana. Viu-as todas casadas, viu-as mães, a princípio de um filho, depois de dois, de quatro e de cinco. Visitava-as, assistia ao viver delas, sereno e alegre, medíocre, vulgar, sem sonhos nem quedas, mais ou menos feliz. Assim se passaram os anos; assim chegou aos trinta, aos trinta e três, aos trinta e cinco, e finalmente aos trinta e oito em que a vemos na igreja, conversando com o padre Teófilo.
CAPÍTULO V
Naquele dia mandara dizer uma missa por alma da mãe, que morrera um ano antes. Não convidou ninguém: foi ouvi-la sozinha. Ouviu-a, rezou, depois sentou-se no banco.
Eu, depois de ajudar à missa, voltei para a sacristia, e vi ali o padre Teófilo, que viera da roça duas semanas antes e andava à cata de alguma missa para comer. Parece que ele ouviu do outro sacristão ou do mesmo padre oficiante o nome da pessoa sufragada; viu que era o da tia e correu à igreja, onde ainda achou a prima no banco. Sentou-se ao pé dela, esquecido do lugar e das posições, e falaram naturalmente de si mesmos. Não se viam desde longos anos. Teófilo visitara-as logo depois de ordenado padre; mas saiu para o interior e nunca mais soube delas, nem elas dele.
Já disse que não pude ouvir nada. Estiveram assim perto de meia hora. O coadjutor veio espiar, deu com eles e ficou justamente escandalizado. A notícia do caso chegou, dois dias depois, ao bispo. Teófilo recebeu uma advertência amiga, subiu à Conceição e explicou tudo: era uma prima, a quem não via desde muito. O padre coadjutor, quando soube da explicação, exclamou com muito critério que o ser parente não lhe trocava o sexo nem supria o escândalo.
Entretanto, como eu tinha sido companheiro do Teófilo no seminário e gostava dele, defendi-o com muito calor e fiz chegar o meu testemunho ao Palácio da Conceição. Ele ficou-me grato por isso, e daí veio a intimidade de nossas relações. Como os dois primos podiam ver-se em casa, Teófilo passou a visitá-la, e ela a recebê-lo com muito prazer. No fim de oito dias, recebeu-me também; ao cabo de duas semanas era eu um dos seus familiares.
Dois patrícios que se encontram em plaga estrangeira e podem finalmente trocar as palavras mamadas na infância não sentem maior alvoroço do que estes dois primos, que eram mais que primos: moralmente eram gêmeos. Ele contou-lhe a vida e, como os acontecimentos acarretassem os sentimentos, ela olhou para dentro da alma do primo e achou que era a sua mesma alma e que, em substância, a vida de ambos era a mesma. A diferença é que uma esperou quieta o que o outro andou buscando por montes e vales; no mais, igual equívoco, igual conflito com a realidade, idêntico diálogo de árabe e japonês.
— Tudo o que me cerca é trivial e chocho, dizia-lhe ele.
Com efeito, gastara o aço da mocidade em divulgar uma concepção que ninguém lhe entendeu. Enquanto os três amigos mais chegados do seminário passavam adiante, trabalhando e servindo, afinados pela nota do século, Veloso cônego e pregador, Soares com uma grande vigararia, Vasconcelos a caminho de bispar, ele Teófilo era o mesmo apóstolo e místico dos primeiros anos, em plena aurora cristã e metafísica. Vivia miseravelmente, costeando a fome, pão magro e batina surrada; tinha instantes e horas de tristeza e de abatimento: confessou-os à prima…
— Também o senhor? perguntou ela.
E as suas mãos apertaram-se com energia: entendiam-se. Não tendo achado um astro na loja de um relojoeiro, a culpa era do relojoeiro; tal era a lógica de ambos. Olharam-se com a simpatia de náufragos, — náufragos e não desenganados, — porque não o eram. Crusoé, na ilha deserta, inventa e trabalha; eles não; lançados à ilha, estendiam os olhos para o mar ilimitado, esperando a águia que viria buscá-los com as suas grandes asas abertas. Uma era a eterna noiva sem noivo, outro o eterno profeta sem Israel; ambos punidos e obstinados.
Já disse que Eulália era ainda bonita. Resta dizer que o padre Teófilo, com quarenta e dois anos, tinha os cabelos grisalhos e as feições cansadas; as mãos não possuíam nem a maciez nem o aroma da sacristia, eram magras e calosas e cheiravam ao mato. Os olhos é que conservavam o fogo antigo, era por ali que a mocidade interior falava cá para fora, e força é dizer que eles valiam só por si todo o resto.
As visitas amiudaram-se. Afinal íamos passar ali as tardes e as noites e jantar aos domingos. A convivência produziu dois efeitos, e até três. O primeiro foi que os dois primos, freqüentando-se, deram força e vida um ao outro; relevem-me esta expressão familiar: — fizeram um pique-nique de ilusões. O segundo é que Eulália, cansada de esperar um noivo humano, volveu os olhos para o noivo divino e, assim como ao primo viera a ambição de S. Paulo, veio-lhe a ela a de Santa Teresa. O terceiro efeito é o que o leitor já adivinhou.
Já adivinhou. O terceiro foi o caminho de Damasco, — um caminho às avessas, porque a voz não baixou do céu, mas subiu da terra; não chamava a pregar Deus, mas a pregar o homem. Sem metáfora, amavam-se. Outra diferença é que a vocação aqui não foi súbita como em relação ao apóstolo das gentes; foi vagarosa, muito vagarosa, cochichada, insinuada, bafejada pelas asas da pomba mística.
Note-se que a fama precedeu ao amor. Sussurrava-se desde muito que as visitas do padre eram menos de confessor que de pecador. Era mentira; eu juro que era mentira. Via-os, acompanhava-os, estudava esses dois temperamentos tão espirituais, tão cheios de si mesmos, que nem sabiam da fama, nem cogitavam no perigo da aparência. Um dia vi-lhes os primeiros sinais do amor. Será o que quiserem, uma paixão quarentona, rosa outoniça e pálida, mas era, existia, crescia, ia tomá-los inteiramente. Pensei em avisar o padre, não por mim, mas por ele mesmo; mas era difícil, e talvez perigoso. Demais, eu era e sou gastrônomo e psicólogo; avisá-lo era botar fora uma fina matéria de estudo e perder os jantares dominicais. A psicologia, ao menos, merecia um sacrifício: calei-me.
Calei-me à toa. O que eu não quis dizer, publicou-o o coração de ambos. Se o leitor me leu de corrida, conclui por si mesmo a anedota, conjugando os dois primos; mas, se me leu devagar, adivinha o que sucedeu. Os dois místicos recuaram; não tiveram horror um do outro nem de si mesmos, porque essa sensação estava excluída de ambos, mas recuaram, agitados de medo e de desejo.
— Volto para a roça, disse-me o padre.
— Mas por quê?
— Volto para a roça.
Voltou para a roça e nunca mais cá veio. Ela, é claro que tinha achado o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou. Eu, gastrônomo e psicólogo, continuei a ir jantar com Eulália aos domingos. Considero que alguma coisa deve subsistir debaixo do sol, ou o amor ou o jantar, se é certo, como quer Schiller, que o amor e a fome governam este mundo.
HINO AURIVERDE
Raul Pompéia
Era pelas últimas horas de uma tarde admirável.
A estrada torcia-se como uma serpente enorme, recolhendo-se cuidadosa às sombras vertidas pelo chão juntamente com as folhas secas escapadas aos fartos penachos do arvoredo.
O sol passava por cima da floresta, vergastando com chibatadas de fogo os grelos tenros da ramaria e os grelos deixavam-se cair exaustos sob o suplício.
Apareceu então na estrada uma espécie de mendigo. Seguia lento, cabeça inclinada; amparava-se a um pau mal desgalhado e trazia na mão um pedaço de corda. De vez em quando o sol furava os ramos e jogava-lhe à nuca um punhado de fogo.
II
O mendigo não sentia as garotadas do sol. Ia refletindo, remordendo meias palavras, nessa reflexão difícil de um espírito obscuro e selvagem. Pensava naquela infâmia de pele preta, que lhe haviam colado à carne; naquela robustez maldita, que parecia querer eternizar-lhe o suplício do cativeiro; recordava-se das chicotadas do cafezal, daquele trabalho cruel que mal rendia-lhe a farinha abjeta da ração... E que tempo havia!... Dantes, ele tinha o cabelo preto e a pele lisa; agora os cabelos estavam como paina, brancos, brancos, e a pele riscada de rugas... Só ficara-lhe dos primeiros anos o pulso rijo para o eito e a canela forte para as pernadas. O tormento da força.
III
De súbito, no meio dos sussurros indistintos do mato, feitos de chilros de pássaros e de marulho de folhas, ouviu-se um acorde que não era o canto das folhas, nem a conversa dos passarinhos.
O mendigo preto parou. Pôs-se a ouvir aquela música melancólica e agradável, que entrava religiosamente na mata, como a nota de um órgão.
A povoação estava perto. A música era um realejo que se tocava.
- Aqui está bom, disse o velho escravo.
E preparou com a corda um laço.
O realejo executava, então, uma outra peça. Tinha o mesmo tom vagaroso e triste, como se estivesse combinado para acompanhar os preparativos sombrios do escravo.
IV
À beira do caminho havia um tronco notável, que estendia acima da estrada um galho musculoso como um braço enorme, terminando como um punho colossal, fechado e ameaçador.
O escravo subiu e sentou-se tristemente sobre os músculos magníficos desse braço hercúleo. Lançou alguns olhares para o seu bastão, que ficara lá embaixo. O único companheiro e o derradeiro amigo.
Enfiou depois o pescoço no colar sinistro da sua corda. Prendeu-lhe a outra ponta ao punho arrogante, fechado para o céu...
V
O céu brilhava azul, como um pensamento de criança: e, no meio das bonanças harmoniosas daquela tarde serena, voava, macia como uma nuvem tênue, a solfa queixosa do realejo.
Aquela música!... aquela tarde...
O velho escravo levantou os olhos, do bastão, para o espaço; foi, sem tremer, até a ponta do galho que o sustinha, e escorregou...
VI
Naquele instante, o realejo tocava para os meninos da povoação as harmonias patrióticas do hino nacional...
UM DIA DE ENTRUDO
Machado de Assis
Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas dágua, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores.
Dois dias antes de chegar o entrudo já a família de D. Angélica Sanches estava entregue aos profundos trabalhos de fabricar limões de cheiro. Era de ver como as moças, as mucamas, os rapazes e os moleques, sentados à volta de uma grande mesa compunham as laranjas e limões que deviam no domingo próximo molhar o paciente transeunte ou confiado amigo da casa.
Não ficou estéril a aliança de Sanches e Angélica. Cinco foram os frutos de tão abençoada união, dois do sexo masculino e três do sexo feminino.
Carlos e Benjamim se chamaram os rapazes; as raparigas receberam os nomes de Teresa, Ermelinda e Joana. Os sinais particulares desta prole eram os seguintes: Joana tinha o nariz muito comprido, Ermelinda era muita pequena, Teresa era alta e cheia. Quanto aos rapazes, a única diferença entre Carlos e Benjamim era que o primeiro ria à cara do segundo regularmente uma vez por semana, sem que o outro tirasse nunca desforra de semelhante afronta.
Ultimamente a afronta tinha sido tal que Benjamim achou prudente deixar de falar ao irmão. Havia já cinco dias que reinava entre ambos essa interrupção de relações diplomáticas, quando a festa do entrudo veio reconciliar tudo. No momento em que tomamos conhecimento com a família Sanches estão eles em boa harmonia despejando cera dentro das fôrmas de limões ou enchendo os que já estão prontos com água de cheiro.
Fora injustificável esquecimento deixar de mencionar entre os fabricantes de limões o jovem Batista, rapaz alegre e magro, dono de um armarinho na mesma rua em que moravam os Sanches, amigo de moças e até, dizem, namorado de Teresa. Citarei do mesmo modo uma prima de D. Angélica (42 anos) e uma sobrinha da dita (26), sendo que esta (D. Lucinda) era filha daquela (D. Maria).
Vinham para a mesa as caçarolas cheias de cera derretida, e todos aqueles operários mergulhavam nelas os limões e as laranjas, ou despejavam cera dentro de fôrmas de pau.
- Olhe, prima; este saiu bem bom, diz Lucinda.
- Já viu os meus? pergunta Teresa.
- Quantos tem você?
- Doze.
- Eu tenho nove.
- Eu cá já fiz vinte e quatro, exclama Carlos. O Benjamim só fez cinco.
- Mas é que eu não sei o que tem a minha fôrma, redargúi o pobre Benjamim envergonhado
- És um desastrado! não passas disto!
- Carlos! que é isso? Eu não quero bulha.
Estas palavras foram ditas por D. Angélica que nesse momento, tendo vindo de dentro com a prima D. Maria, contava-lhe não sei que história de legumes e escravos.
- Tia Maria hoje não tem feito nada, exclamam as raparigas Sanches.
- Pois já não fiz dois limões?
- Dois só! está bem aviada!
- Está bom, raparigas, dêem cá uma fôrma, não quero parecer que sou vadia.
- Bem, acabem com isso por enquanto, que é preciso pôr a mesa.
- Já, mamãe! exclamaram as filhas.
- Pois então? são duas horas e meia.
Carlos aprovou in-petto a idéia de pôr a mesa, e D. Maria, que costumava jantar à uma hora, achou a resolução de D. Angélica acertadíssima.
- Tem razão, prima, se deixarmos estas meninas aqui, são capazes de ficar até amanhã.
- Não é conveniente, disse Batista com uma voz entrecortada pelas urgências do defluxo, não é conveniente interromper o trabalho enquanto há cera liquida. A cera é um produto que...
- Que não dá de jantar! interrompeu brutalmente Carlos pondo a fôrma de lado e levantando-se da mesa.
As moças insistiram e ficaram ainda um quarto de hora fazendo limões. Benjamim queria levantar-se também, mas um olhar de Lucinda o deteve e desde já qualquer leitor, ainda que não seja mais perspicaz que um chapéu, terá compreendido que os dois jovens se amavam.
A saída de Carlos agradou geralmente à sociedade, o filho mais velho de D. Angélica era um verdadeiro perturbador de festas. Ausente, reinou mais tranqüilidade; Batista pôde olhar mais vezes para Teresa, e Benjamim piscar mais livremente os olhos a Lucinda. Se Carlos estivesse presente, não hesitaria em dizer:
- Temos namoro! não?... Que é isso, Sr. Batista?... Olá prima, então?...
- Dizia eu que em 7 de Abril...
E outras frases como estas reduziam as faces dos culpados a verdadeiras inflamações de vergonha.
Batista sentiu-se até mais livre da voz, e proferiu a propósito do entrudo dois ou três axiomas, um dos quais declarou tê-lo ouvido de um padre, que era o homem mais sensato que conhecera.
- Sensato era o meu Tomás, acudiu D. Angélica; que juízo tinha ele! que cabeça de homem! Deus lhe fale n'alma. Contarei o seguinte caso. No tempo do 7 de Abril...
Nesse instante entrou na sala o esfomeado Carlos e vendo iminente uma história que provavelmente já conhecia, exclamou:
- Oh! mamãe? não se janta hoje?
- Eu sei, respondeu D. Angélica, estas meninas ainda aqui estão.
- Pois acabem com isso...
Carlos atirou-se à mesa e tal bulha fez que impediu o trabalho e a anedota. D. Angélica adiou a prova do bom juízo do finado Tomás Sanches, as moças deixaram a mesa, e a mucama veio pôr a mesa do jantar.
Aproveitando o intervalo, pois aceitara o oferecimento de D. Angélica para jantar, foi Batista alguns instantes ao armarinho para saber se havia novidade. Teresa foi logo à janela e trocou um sorriso com o namorado.
- Eu creio que há alguma coisa. Tu não sabes nada?
Ermelinda respondeu:
- Eu nada, titia.
- Mas é impossível que não haja, e se é exato falarei disto a tua mãe.
- Por que? perguntou Ermelinda sobressaltada.
- Não convém que tua irmã se case com um dono de armarinho... um pax vobis, uma posição inferior.
Ermelinda calou-se prometendo a si mesma ir contar tudo à irmã.
Carlos passeava pela sala de jantar, atirando de quando em quando bolas de papel ao irmão, que, por prudência, fingia estar contando as tábuas do assoalho.
Joana contava a Lucinda um namoro que tivera com um rapaz da rua do Piolho, enquanto a prima lançava de quando em quando um olhar a Benjamim.
- Muito custa a vir este jantar. Parece que nunca mais se acaba de pôr esta mesa. Tia Maria, já há de estar com uma fome!
Carlos dizia estas palavras tirando da mesa um pedaço de pão e mastigando para enganar o estômago.
- Não te pareça! disse D. Maria, por certo que estou com fome...
Finalmente ficou o jantar na mesa.
- Bem, vamos entrar em serviço.
- Não, senhor! disse D. Angélica, esperemos o Batistinha.
- Onde foi ele?
- Foi à casa.
- Esta agora! Havemos de estar em casa à espera de um estranho! e logo quem!
- Carlos! exclamou a mãe, tu hás de ser sempre um...
- Estou capaz de ir jantar a uma casa de pasto.
- Pois vai!
Nesse momento ouviram-se passos na escada.
- Graças! disse Carlos. Chega o desejado.
Não era o desejado. Era o Sr. Tibúrcio Mendes, negociante de negros novos, homem taludo e bojudo, vermelho e asseado.
- Dá licença, D. Angélica? disse ele parando na escada.
- Entre, Sr. Tibúrcio. Bons olhos o vejam.
Na entrada o Sr. Tibúrcio foi cumprimentando rasgadamente a companhia.
- Faltava este cágado! disse entre si Carlos.
E já ruminava seriamente o projeto, anteriormente indicado, de ir jantar à casa de pasto, quando apareceu o dono do armarinho. Batista explicou a demora dizendo que a causa fora uma altercação com um sujeito a propósito de agulhas n. 5, coisa que não interessava absolutamente a ninguém, mas que todos ouviram com paciência cristã.
O jantar nada ofereceu de notável; os dois namoros continuaram como antes, isto é, dirigidos sempre com a máxima precaução por causa do grande desmancha-prazeres da casa. A única coisa que causou certa estranheza a Batista, que pela primeira vez se encontrava com Tibúrcio, foi a voracidade que este sujeito desenvolveu, a ponto de o deixar sem assado nem arroz.
Foi por ocasião do jantar que Tibúrcio declarou que fazia anos na terça-feira do entrudo, e, como fosse solteiro, D. Angélica convidou-o a festejar o dia jantando lá em casa. Tibúrcio não viu um olhar trocado entre Carlos e as irmãs. Prometeu que viria jantar.
Toda a tarde, manhã e a tarde do dia seguinte foram consagradas ao fabrico dos limões de cheiro, Tibúrcio assistiu até à noite ao trabalho das moças e dos rapazes. Como ele era amigo de conversar com mulheres, dificilmente se despregou da sala de trabalho. Foi muito contra a vontade que cedeu ao convite de D. Angélica que tinha a mania de jogar o solo. D. Maria também jogava e aceitou o convite. A mesa foi posta ao pé da mesa dos limões de cheiro.
Jogava-se o solo a grãos de milho, que é para os jogadores de profissão, o mesmo que, para os bêbados, beber água simples.
- Mas eu peço licença, disse Tibúrcio, para retirar-me as nove horas.
- É a hora em que tomamos chá, respondeu D. Angélica dando as cartas.
Passaram todos naquela mão. Como todos conversavam, o diálogo apresentava alguma curiosidade.
- Bolo?
- Pode vir!
- Dá cá cera!
- Dê-me o ás de paus.
- Onde está a fôrma?
- É furado?
- É seguro.
- Mano, não me quebre o limão.
- Corto.
- Olha, Lucinda, que bonito limão saiu este!...
- Rei...
- Água de cheiro?
- Valete...
- Não me pise os pés, Sr. Batista.
- É dama... Paguem!
- Dá cá o tabuleiro. Quem dá cartas?
- Pois eu cuidei que o solo estivesse furado, dizia Tibúrcio no fim deste diálogo. Os ouros estavam com a Sra. D. Maria, e se não se descarta do valete, bem podia ser que eu o encontrasse em quarto, e estava perdido.
- A prima jogou mal, dizia D. Angélica. Devia esperá-lo nos outros.
- Eu esperava nas copas.
- As copas estavam seguras.
Às nove horas terminou o jogo, serviu-se o chá, saiu Tibúrcio, e todos foram dormir.
Amanheceu o dia de domingo com um belíssimo sol; era um verdadeiro dia de entrudo. Desde manhã puseram-se os tabuleiros em ordem para a batalha. Carlos e Benjamim preparavam as caldeiradas dágua e duas panelas que mandaram para a cocheira. Nessa ocasião houve uma pequena altercação entre os dois irmãos; Carlos acabou puxando as orelhas a Benjamim, o qual, por dizer alguma coisa, disse que lhe daria uma facada, o que lhe valeu outro puxão de orelhas do irmão.
Triste inspiração foi a de Batista que marcou esse dia para pedir a mão de D. Teresa. A moça entendia que se devia aproveitar um dia alegre para achar D. Angélica de bom humor, verdadeiro engano porque D. Angélica, conquanto não jogasse o entrudo, achava prazer em ver brincar as raparigas e não prestava grande atenção a outras coisas.
O dia começou bem; alguns sujeitos que passavam foram alvo de meia dúzia de limões de cheiro que os deixaram um tanto úmidos; e mais nada.
Jantou-se mais cedo.
Às três horas e meia estavam as moças vestidas e prontas à janela; a sala estava cheia de tabuleiros com limões de cheiro.
Os rapazes ausentaram-se.
Correu assim uma hora sem incidente notável. Constante fogo de água trazia a rua agitada. Os gamenhos, munidos de limões iam atirando às senhoras que estavam às janelas, e estas correspondiam ao ataque com um vigor nunca visto.
Havia em casa de D. Angélica cerca de 1.200 limões; imaginem se o combate podia fraquear.
Ao cabo duma hora de combate, desapareceu Lucinda pelo interior da casa. D. Maria e D. Angélica que estavam assentadas na sala conversavam sobre os sucessos da sua mocidade. De quando em quando algum limão ia bater numa e noutra, o que as fazia rir.
- Jesus! Acuda-me prima Angélica! Credo! Vingança!
Surpresa geral. As moças voltaram-se para dentro e os rapazes vendo aquela muralha de costas fizeram uma descarga em regra.
- Que é? perguntou D. Angélica espantada. Será o canhoto?
- Qual, canhoto! quero vingança! que desaforo!
- Mas que é?
- Ia eu agora lá dentro, quando encontrei na sala de jantar a um canto, adivinhem o que? Encontrei seu filho Benjamim quebrando limões no ombro de minha filha! Que desaforo! Fiquei sem saber de mim... Isto se atura, prima? Cão! Ter o atrevimento de... Prima, manda dar uma sova no seu pequeno...
Neste tempo já Lucinda tinha entrado na sala e ouviu a narração da mãe com um espanto tão fingido que parecia um diplomata.
- Estás ai!... exclamou D. Maria. Deixe estar que me pagarás lá em casa!
- Mas que é?...
O rapaz que estava na cocheira, correu ao chamado da mãe.
- Que é isso, Benjamim? pois então tu tens o desaforo, o atrevimento de não respeitar tua tia nem a minha casa...
Benjamim ficou mais admirado que se visse a cascata de Paulo Afonso; olhou para todos que tinham os olhos nele e perguntou:
- Mas que é mamãe? eu não sei de que fala.
- Você enganou-se, prima.
- Mas se eu vi!...
Carlos tinha subido também, e, ou para salvar o irmão a quem não tinha raiva, ou para terminar um incidente que perturbaria a festa, confirmou o dito do moleque.
Mas D. Maria que tinha visto, insistia e punha em dúvida a asserção dos sobrinhos e do moleque.
- Foi engano! diziam uns.
- Titia estava preocupada e pareceu-lhe ver...
- Qual engano nem preocupação! Pois eu vi.
Entrara no meio desta bulha o jovem Batista, trajando casaca, luvas de pelica, e gravata branca. Veio de sege para chegar intacto, apesar de morar perto Ouviu a discussão, informou-se do que era e concluiu que devia ser engano de D. Maria. Esta insistiu na afirmativa.
- Dá-se muitas vezes, disse Batistinha sentenciosamente, que a nossa imaginação figura objetos reais quando eles são simplesmente hipotéticos... A história tem um exemplo: Brutus dizem que viu a sombra de César. Foi naturalmente a impressão imaginária que lhe produziu a espécie de presença real. O órgão visual tem fenômenos extravagantes; os recentes trabalhos da ciência...
As moças voltaram as costas e foram para a janela, exceto Teresa que ficou ouvindo o discurso do namorado. Os rapazes desceram à cocheira.
Batista continuou o discurso. Como tinha lido uns livros de ciência, explicou às senhoras qual a organização do nervo ótico, e como por acaso falasse em olhos bonitos, lembrou-se D. Angélica de contar uma anedota acerca dos olhos do finado Sanches em 1834.
O incidente acabou assim, D. Maria convencida de que realmente fora imaginação sua.
- Agora, se D. Angélica quiser dar-me a honra de uma palavra em particular, disse Batista, ficar-lhe-ei sumamente penhorado.
- Agora reparo, disse D. Angélica. Que trajo para dia de entrudo!
- Minha senhora, respondeu Batista, os grandes sentimentos não conhecem entrudo
- Fala muito bem este moço, pensou D Maria.
A dona da casa foi com Batista para o interior.
- Minha senhora, disse Batista arrestando-se na sala diante de D. Angélica, muito há que eu nutro, dentro do meu coração, um destes sentimentos que, mal aplicados, podem produzir não só os infortúnios domésticos como até a ruína dos impérios, e, bem aplicados, são a verdadeira bem-aventurança deste mundo. O amor, minha senhora, é o que o bordão é para os cegos, o vento para os navegantes, a saúde para os enfermos, o espaço para os passarinhos...
- Então, ama?
- Loucamente. Seria um inferno este amor se não fosse retribuído. O que é um amor sem retribuição? É o abutre de Prometeu. Sou recompensado com igual amor ao meu: amor amore, diz a sentença latina.
- Que deseja de mim?
- A luz. A senhora tem a minha luz nas suas mãos; pode dar-ma se quiser. Amo sua filha D. Teresa, e desejo unir-me a ela pelos laços matrimoniais...
- Quanto ao que me pede, concluiu ela, se Teresa quiser, não tenho razão que opor a uma união que desejo ver feliz e tranqüila.
- A senhora chega ao sublime! disse Batista.
Depois abrindo os braços:
- Minha mãe! exclamou ele.
- Quando poderei ter resposta definitiva?
- Já, se quer; mas é melhor logo... Quando lhe...
Neste momento ouviu-se um grande grito, depois outro e outro; depois um barulho infernal. D. Angélica correu à sala para saber o que era; Batista foi atrás dela.
Na sala ninguém sabia a causa do barulho.
O barulho vinha da cocheira.
- Há de ser algum sujeito que os rapazes meteram no banho, disse D. Angélica trêmula. Ah! meu Deus! estes pequenos ainda me hão de dar algum desgosto grande!
Quis descer; mas Batista a impediu alegando gravemente que uma senhora nunca deve descer.
Os gritos continuaram ainda algum tempo. Depois cessaram; ouviu-se uma voz trêmula de frio lançar uma imprecação aos rapazes.
- Ah! meu Deus! que rapazes! que desgostos!
Subiu alguém a escada; daí a alguns segundos, entrava na sala o Sr. Tibúrcio, vestido de branco, mas todo molhado como se saísse do mar. Entrou respingando a sala toda.
- Jesus! que é isso?
- Ah! minha senhora, eis o estado em que me puseram os seus rapazes! Veja se isto não é um desaforo! Entrei com toda a confiança em sua casa, e os seus meninos, sem que eu lhes houvesse feito mal, agarram-me, metem-me dentro de uma gamela e despejam-me um barril de água por cima, ajudados por dois moleques!
A narração fez enraivecer D. Angélica e rir as raparigas. Efetivamente a figura do Tibúrcio era mais para rir que outra coisa. O homem bufava que parecia uma baleia.
Batista agradeceu ao céu ter vindo em ocasião em que encontrou os rapazes em cima, escapando assim a alguma caçoada.
Assentou-se o Tibúrcio, enquanto D. Angélica ia ver se havia roupa em casa que lhe servisse para mudar aquela.
Tibúrcio contava as suas impressões do banho a D. Maria, e Batista conversava com D. Teresa a quem deu a agradável notícia de que tudo estava arranjado.
De repente aparece Carlos à porta da sala, armado de uma grande seringa de folha de Flandres, pede silêncio às moças com um sinal, e deita um esguicho à nuca do Tibúrcio.
Tibúrcio soltou um grito, pegou na cadeira e removeu como pôde o corpo até à porta da sala; mas Carlos, que sabia o sistema dos antigos Partos, fugiu dando-lhe mais um esguicho pela cara.
- Não se zangue, disse D. Maria acalmando Tibúrcio que prometeu desancar o rapaz; isto afinal são brincadeiras de rapazes... Todos eles o respeitam muito.
- Não está mau o respeito!
- Sr. Tibúrcio, vá lá para o quarto da sala de costura; já lá mandei pôr alguma roupa.
Tibúrcio obedeceu.
Subiram.
- Que desaforo é esse, rapazes? disse ela.
- O que é mamãe? perguntaram ambos.
- Pois então vocês não respeitam um homem velho e sério, que nos visita? Isto é bonito?
- Mas foi uma brincadeira.
- Pois eu não quero mais essa brincadeira... Brinquem lá com quem quiserem mas não com as pessoas que vêm à minha casa.
Interveio o futuro genro de D. Angélica.
- Minha Senhora, eu estou convencido que estes dignos moços brincam como todos os da nossa idade, sem nenhuma intenção de ofensa. São jovens dignos de toda a estima; incapazes de ofender a quem quer que seja, mormente às pessoas que têm a honra de freqüentar esta casa.
- É verdade! disse Carlos...
- Portanto, continuou o advogado dos rapazes. releve-se-lhes um ato próprio do dia.
- Muito bem! exclamaram os dois rapazes aproximando-se de Batista para lhe agradecer a defesa.
Batista estendeu-lhes a mão.
Mas quando menos o esperava, viu-se agarrado pelos quatro braços vigorosos dos rapazes e levado pela sala fora e depois pela escada abaixo. O pobre moço gritava e protestava contra a perfídia e a ingratidão dos seus clientes, mas embalde! A voz de D. Angélica perdeu-se no meio do barulho; Teresa deitou a chorar; D. Maria benzeu-se; e no meio do tumulto apareceu na sala Tibúrcio; apertadíssimo numas calças de Carlos que lhe ficavam acima do tornozelo e numa jaqueta de Benjamim que lhe batia pelo meio das costas.
A figura fez rir ainda mais do que quando Tibúrcio apareceu molhado da cabeça até os pés.
- Que há de novo? Alguma nova travessura?
- Ah! Sr. Tibúrcio, exclamou D. Angélica; o senhor me há de embarcar estes dois rapazes que me põem doida; meta-os na presiganga!
- Pois não, D. Angélica! Mas que fizeram eles agora?
- Levaram para baixo o Sr. Batista.
- Que! pois tiveram também a audácia? Não admira! não me meteram no banho?
Tibúrcio sentiu uma espécie de satisfação em ver que não era a única vitima.
Pouco tempo depois subiu Batista, e, sem ousar aparecer na sala, pediu a D. Angélica que lhe desse alguma roupa que vestir.
Foi satisfeito.
- Andem! lá para cima! quando não... vai tudo a vergalho.
Os rapazes obedeceram.
A tarde caia; os rapazes adiaram a festa para os dias seguintes. Mudaram também de roupa e deixaram-se ficar na sala de jantar.
Batista voltou à sala um pouco envergonhado. Tibúrcio já estava mais calmo; D. Maria começou a rir e D. Angélica encaixou uma anedota a respeito de Sanches. As moças sentaram-se também.
- Gastaram todos os limões? perguntou D. Maria sem ver dois tabuleiros cheios.
- Todos, não, disse Ermelinda; ainda temos para amanhã.
- Isso, sim, disse Tibúrcio, isso é brincadeira que eu aprovo; o limão é delicado e diverte a gente.
- Diz muito bem, assentiu Batista. Mas o banho!
- É selvagem!
- É brutal!
- Deve acabar!
- E há de acabar!
- A civilização não comporta...
- Apoiado!
Os rapazes voltaram à sala. Tibúrcio dirigiu-se a D. Maria para dizer alguma coisa que o impedisse de olhar para os seus algozes; ao passo que Batista tirou o relógio, trouxe-o ao ouvido, deu-lhe corda, etc...., tudo para evitar o primeiro olhar dos filhos de D. Angélica.
Ninguém reparou que os rapazes traziam as mãos nos bolsos grandes dos paletós de brim.
Sentaram-se ambos a conversar. Ao principio nem Tibúrcio nem Batista lhes dirigiu a palavra; mas, convindo evitar o ridículo do amuo depois de banho, pouco e pouco foram conversando com eles e restabeleceu-se a confiança.
Não tardou porém que Carlos pregasse em Tibúrcio um rabo de papel, e Benjamim outro em Batista. O de Batista não foi visto logo pelas outras pessoas. Mas como Tibúrcio estava de costas para o grupo das moças, viram estas logo o apêndice posto por Carlos e riram alegremente. Tibúrcio desconfiou. Olhou para Carlos; este ficou sério.
- De que se riem as moças? perguntou Tibúrcio.
- Não sei, respondeu Carlos; deixe ver. Ah! é uma mancha de cal no seu paletó, deixe limpá-la.
Tibúrcio consentiu de boa-fé; e Carlos fingindo que limpava o paletó, quebrou-lhe um ovo nas costas.
Sentiu Tibúrcio que o rapaz não o limpava, antes o sujava, a gema entornou-se parte no chão, D. Angélica correra para Carlos, este correu pela sala, levantou-se Batista para intervir, mas arrastando também um rabo de papel; Benjamim aproveitou a ocasião e quebrou um ovo nas costas de Batista.
Não tenho forças para descrever o barulho que se seguiu a esta cena. O tumulto foi geral; só se acalmou indo os dois rapazes para um quarto onde D. Angélica os fechou a chave.
Com a noite veio o descanso. As visitas se foram embora, exceto D. Maria e a filha que resolveram ficar até quarta feira de Cinzas.
Pelas 9 horas da noite, D. Angélica foi soltar os prisioneiros. Achou-os jogando as cartas. Anunciou-se o chá e eles vieram para mesa, onde foram recebidos com um olhar furibundo da parte de Teresa, cujo namorado fora vitima das suas travessuras.
Quando se iam deitar o moleque que servia de intermediário entre Benjamim e Lucinda, foi aos dois rapazes e disse-lhes que precisava dizer uma coisa.
Levado ao quarto, disse que Batista tinha por costume pular de noite os quintais até o da casa de D. Angélica e conversar aí para a janela onde a sinhá moça Teresa ficava até muito tarde.
Esta comunicação inesperada tinha a seguinte explicação.
O moleque servia também de corretor entre Teresa e Batista; mas não tendo obtido deste as vantagens que esperava, e principalmente tendo-lhe ele recusado uma jaqueta nova que lhe pedira, entendeu que devia vingar-se assim.
Realmente, Batista podia dar-lhe uma ou duas jaquetas; mas como era muito econômico, entreteve o moleque na esperança e esse foi o seu mal.
Carlos ficou espantado com a notícia.
- Será verdade? perguntou ele a Benjamim.
- É nhonhô, insistiu o moleque, ele quer casar com sinhá moça Teresa, mas é um sovina...
- Virá ele hoje?
- Parece que vem.
Idéia infernal surdiu no espírito de Carlos. Era esperar o Romeu dos quintais e pregar-lhe nova peça.
- Um banho! disse o moleque quando Carlos consultava o irmão.
- Sim, um banho! disse Benjamim.
- Não, disse Carlos, coisa melhor; pensemos nisso. Enquanto os dois estavam em conciliábulo, as raparigas foram deitar-se.
Dormiam no mesmo quarto Lucinda e Teresa.
- Estou muito zangada com o Benjamim, disse Lucinda; não gostei que fizesse aquilo no teu... noivo.
- Cala a boca! não fales alto! Não foi ele só, foi o Carlos, que é sempre o autor destas idéias.
- Amanhã hei de passar uma sarabanda nos dois.
- Não digas nada, é melhor.
- Por que?
- Porque...
- Vais casar, bem sei.
Teresa sorriu.
- Depende de mim, disse ela.
- Titia já te perguntou alguma coisa?
- Nada.
- Mas há de falar...
- Amanhã, talvez.
- Sim, amanhã...
- Que é isto? Isto o que?
- Não ouviste um grito?
- Não; é uma coruja; estás medrosa.
- Pareceu-me.
As duas sentaram-se na cama.
- Que é que tu hás de dizer quando titia te perguntar se queres casar com o Batistinha?
- Velhaca! disse Teresa sorrindo.
- Por que, meu Deus?
- Quero saber também o que hás de dizer quando...
- Quando o que?
- Quando tua mãe te perguntar se queres casar com Benjamim...
- Ora, qual!... Mas vamos lá, dize...
- Eu responderei que é de meu gosto.
- Só isso?
- Pois então?
- Mas isso só não é bonito; é preciso dizer: Com toda a minha alma!
- Deixemos disso; é romântico demais.
Desta vez ouviu-se um sussurro no quintal. As duas chegaram à janela mas não viram ninguém.
- Não é nada, disse Lucinda.
Entraram outra vez e continuaram a conversar. No fim de dez minutos ouviu-se um assobio.
Teresa estremeceu.
- É ele!
Lucinda começou a despir-se.
- Pois então, disse ela, vai conversar enquanto eu me deito.
Teresa chegou à janela e agitou um lenço branco; Batista que já vinha pulando o último quintal, saltou à terra, aproximou-se do poço e começou a conversar debaixo com a namorada.
- Por que veio hoje? perguntou Teresa.
- Acha que fiz mal? disse Batista.
- Deve estar cansado.
- De que?
Teresa quis aludir ao banho mas receou envergonhar o rapaz. Por isso, sem responder à pergunta continuou:
- Mamãe ainda me não falou.
- Quando falará?
- Talvez amanhã.
- Que pretende dizer?
- Ora! que sim! diga-me outra vez; está certo de que foi bem recebido por ela?
- Perfeitamente; vi que ela compreendeu o meu amor; e como não, se é essa alma digna, essa alma celeste, todo cheia dos perfumes do paraíso?
Esta rajada lírica produziu um riso sufocado, que Batista atribuiu a Teresa, e esta a Lucinda. Mas Lucinda já dormia nessa ocasião.
- Riu-se de mim? perguntou Batista.
- Que pergunta!
- Parece...
- Ah! não insulte aquela que vai ser sua esposa.
- Insultá-la? jamais... Não; eu daria o meu sangue para vingar aquele que a insultasse... Mas diga-me, Teresa, você está contente casando comigo?
- Oh! muito feliz!
- Eu também! Havemos de ter uma bela vida!
- Eu espero.
- Contanto que nos não visitem indiscretos, ah! principalmente seus irmãos. Que par de pelintras!
- Deixe-os.
- Oh! se os deixo! São dois pelintras sem iguais. Não compreendem que a dignidade da vida humana é respeitar os outros, porque o homem é feito à imagem de Deus, e quem insulta um homem e o desconceitua, ofende a Deus. Não acha. D. Teresa?
- Parece que sim; disse a moça já um pouco aborrecida com o ar tétrico que o namorado ia dando à conversa.
- Mas eu perdôo a esses rapazes; só o que desejo é que me não visitem...
- Será o que você quiser...
- Teresa, você me ama?
- Muito.
- Para sempre?
- Para sempre. E você?
- Oh! eu! pergunta ao mar se ama a praia; ao zéfiro se ama a flor; à abelha se ama...
Não acabou a frase. Um esguicho anônimo lhe inundou a cara. Batista deu um pulo.
- Que é? perguntou a moça.
- Não sei... respondeu ele suspeitando estar descoberto.
- Mas que foi?
Batista não respondeu; imaginou logo que estava espiado e achou conveniente não dizer palavra e safar-se. Infelizmente, a noite estava escura e podia ele esbarrar-se com algum dos rapazes.
- Meu Deus! exclamou a moça. Que é?
- Nada...
- Alguma coisa há de ser.
- Descanse. Foi um espirro. Como ia dizendo, este momento aqueles seus manos são moços alegres mas dignos... Que galante idéia tiveram de me meter no banho!
- Isso é irônico, disse Teresa.
- Qual! é sincero! eu só me zango no momento; mas depois, reconheço logo que não há intenção de caçoar comigo...
Desta vez recebeu um esguicho por trás.
- Aí! disse ele.
- Mas que tem você? perguntou a namorada aflita...
- Nada! é um calo. São excelentes aqueles moços...
Outro esguicho nas pernas.
- São excelentes; continuou Batista tremendo de frio e de medo. Eu, se os encontrasse agora, abraçava-os.
Desta vez foram dois grandes esguichos. Batista teve idéia de pedir perdão; mas por um resto de pudor, não quis fazer figura triste diante da namorada.
Esta cada vez compreendia menos o rapaz. Os esguichos continuaram; ele falava entrecortando as frases; ela chegou a suspeitar que ele estivesse doido.
- Há de perdoar-me, disse ele, está fazendo um frio; vou-me embora.
- Já?
- Já.
- Adeus.
- Adeus!
- Até amanhã.
Teresa fechou a janela; Batista olhou à roda de si, não viu ninguém e procurou aproximar-se do muro para saltar.
Nesse momento caiu-lhe sobre as costas uma caldeirada dágua.
- Ai! ai! gritou ele.
E saltou o muro.
Mas antes que pudesse segurar-se bem, sentiu as pernas presas por quatro braços vigorosos. Caiu arranhando as mãos no muro.
- Que me quereis? disse ele tremendo.
Abriu-se a janela e apareceu Teresa.
O rapaz foi arrastado berrando para uma grande gamela, já cheia dágua. A moça entrou dando um grito. Acordou Lucinda e ambas foram acordar o resto da família.
- Hão de ser os endiabrados! Que pecado cometi eu? exclamou D. Angélica saltando fora da cama.
Dentro de pouco tempo estavam todos a pé, com velas acesas na mão, e dirigiram-se para o fundo, abrindo as janelas que davam para o quintal.
Batista esperneava dentro da gamela. Os dois irmãos o prendiam enquanto o moleque lhe despejava baldes dágua.
- Que é isto? perguntou D. Angélica.
E avançou brandindo o vergalho.
O perigo era iminente.
Os dois rapazes agarraram em Batista.
Carlos sentiu uma vergalhada nas costas; outra vergalhada foi diretamente a Benjamim. Que fazer? Os dois pegam do corpo de Batista e fizeram dele escudo, de maneira que as vergalhadas que D. Angélica, cega de furor, cuidava dar nos filhos, quem as apanhava era o futuro genro.
Teresa desceu abaixo; e suspendeu o braço da mãe, quando já Batista sentira todo o peso do braço da viúva Sanches.
Cessou a pancadaria; Batista foi levado para cima, e D. Angélica perguntou como é que os dois rapazes tinham podido pilhar Batista no quintal para maltrata-lo assim.
Aqui estava o nó da situação.
Batista, não querendo confessar que fora conversar com a futura noiva, e temendo as revelações dos rapazes, disse que fora lá para tratar com eles uma caçoada, e que aquilo era uma brincadeira.
Ao mesmo tempo dirigiu um olhar suplicante aos moços, que confirmaram a história, escapando assim a uma infalível correção.
Nessa noite todos dormiram mal.
Quando no dia seguinte, Tibúrcio soube do fato, sorriu dizendo que também o Batista merecia a presiganga.
Acabou o entrudo, felizmente para o Batista, e a quaresma felizmente para ele e a noiva, que se casaram e dão-se muito bem.
Batista vendeu o armarinho, e joga o gamão numa botica todas as tardes.
O TROPEIRO
Humberto de Campos
O casamento do Sr. Antônio Moreira, comerciante e fazendeiro em São Bernardo das Russas, cidade cearense a duzentos e quarenta quilômetros de Fortaleza, estava anunciado para a véspera de Natal, que distava, apenas, oito dias. Há um mês, quase, não se falava em outra coisa. A festa devia ser estrondosa, com banda de música e danças por uma semana, e o que era mais, com uma abundância de comidas e bebidas como não havia notícia de outra na redondeza. Antegozando o sucesso daquele acontecimento, o Sr. Antônio chamou, uma tarde, um antigo tropeiro, e ordenou:
— João, você vai, amanhã, à capital. Daqui lá são quarenta léguas, das grandes. Você ponha a cangalha na burra preta; escanche, em cima, o jogo de malas, e, chegando à cidade, receba, na casa da modista para quem vai esta carta, o vestido da noiva.
E olhando o tropeiro, significativamente:
Mas, olhe: você deve estar aqui no sábado, à tarde. Se não, já sabe!
O caboclo correu ao cercado, pôs a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o jogo das malas de couro, e partiu. Chegando a Fortaleza, recebeu a encomenda, e, para estar em São Bernardo no dia determinado, retrocedeu na mesma hora.
O prazo que o Sr. Moreira lhe havia dado para a viagem era, francamente, curto. O caminho não era bom, a burra era velha, e, sexta-feira, à tardinha, faltando ainda dezoito léguas, estava completamente estropiada. Debalde o caboclo, sacudindo o cabresto, lhe metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as forças, tentava um choto manhoso, e voltava ao mesmo passo triste, lento, fatigado.
De repente, surgiu à margem da estrada uma palhoça de lavrador. João bateu:
— Ôi, de casa!
— Ôi, de fora!
E apareceu à porta de esteira um sertanejo cobreado, dando as "boas-tardes".
O tropeiro, que era mais ou menos conhecido por ali, perguntou, interessado, se não havia um cavalo, um burro, um jumento, que lhe pudessem alugar. O dono da casa foi franco: animais, não tinha; informado, porém, do compromisso do viajante, lembrou-lhe, experiente, um remédio:
— Homem, você quer um conselho? E ensinou:
— Olhe, ali, atrás da casa, tem uma pimenteira. Está encarnada de pimenta. Você apanha uma porção delas, machuca num caco, faz uma bolota de pano, e... e... passa!
O João aceitou a receita: machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à ponta de um pau, ensopou-os no molho, e passou.
Passou e despediu-se.
Daí a pouco, a burra começou a aumentar a marcha. Momentos depois, principiou a trotar; e, finalmente, largou, de malas às costas, numa carreira brutal, furiosa, desabalada, caminho em fora.
Seguro à ponta do cabresto, o caboclo, a princípio, acompanhou o quadrúpede. Quando, porém, este abalou na correria desbragada pela estrada silenciosa, não houve mais recurso: estava, ele também, cansado, fatigado, estropiado. Mas, recordando-se que tinha prometido estar com o animal em São Bernardo das Russas, e este se podia transviar com a roupa da noiva, reuniu, num supremo esforço todas as suas energias de inteligência e de músculos, arrancou, num movimento rápido, o cinturão de couro, e, fazendo em si mesmo o que havia feito com a burra, largou-se, também, pelo caminho soturno, numa carreira desenfreada!
No dia seguinte, pela manhã, oito horas antes da que lhe fora marcada, atravessavam os dois, o tropeiro e a burra, em disparada, as últimas ruas de São Bernardo das Russas.
O MACHETE
Machado de Assis
Inácio Ramos contava apenas dez anos quando manifestou decidida vocação musical. Seu pai, músico da imperial capela, ensinou-lhe os primeiros rudimentos da sua arte, de envolta com os da gramática de que pouco sabia. Era um pobre artista cujo único mérito estava na voz de tenor e na arte com que executava a música sacra. Inácio, conseguintemente, aprendeu melhor a música do que a língua, e aos quinze anos sabia mais dos bemóis que dos verbos. Ainda assim sabia quanto bastava para ler a história da música e dos grandes mestres. A leitura seduziu-o ainda mais; atirou-se o rapaz com todas as forças da alma à arte do seu coração, e ficou dentro de pouco tempo um rabequista de primeira categoria.
A rabeca foi o primeiro instrumento escolhido por ele, como o que melhor podia corresponder às sensações de sua alma. Não o satisfazia, entretanto, e ele sonhava alguma coisa melhor. Um dia veio ao Rio de Janeiro um velho alemão, que arrebatou o público tocando violoncelo. Inácio foi ouvi-lo. Seu entusiasmo foi imenso; não somente a alma do artista comunicava com a sua como lhe dera a chave do segredo que ele procurara.
Inácio nascera para o violoncelo.
Daquele dia em diante, o violoncelo foi o sonho do artista fluminense. Aproveitando a passagem do artista germânico, Inácio recebeu dele algumas lições, que mais tarde aproveitou quando, mediante economias de longo tempo, conseguiu possuir o sonhado instrumento.
Já a esse tempo seu pai era morto. — Restava-lhe sua mãe, boa e santa senhora, cuja alma parecia superior à condição em que nascera, tão elevada tinha a concepção do belo. Inácio contava vinte anos, uma figura artística, uns olhos cheios de vida e de futuro. Vivia de algumas lições que dava e de alguns meios que lhe advinham das circunstâncias, tocando ora num teatro, ora num salão, ora numa igreja. Restavam-lhe algumas horas, que ele empregava ao estudo do violoncelo.
Havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos. A rabeca, que ele ainda amava como o primeiro veículo de seus sentimentos de artista, não lhe inspirava mais o entusiasmo antigo. Passara a ser um simples meio de vida; não a tocava com a alma, mas com as mãos; não era a sua arte, mas o seu ofício. O violoncelo sim; para esse guardava Inácio as melhores das suas aspirações íntimas, os sentimentos mais puros, a imaginação, o fervor, o entusiasmo. Tocava a rabeca para os outros, o violoncelo para si, quando muito para sua velha mãe.
Moravam ambos em lugar afastado, em um dos recantos da cidade, alheios à sociedade que os cercava e que os não entendia. Nas horas de lazer, tratava Inácio do querido instrumento e fazia vibrar todas as cordas do coração, derramando as suas harmonias interiores, e fazendo chorar a boa velha de melancolia e gosto, que ambos estes sentimentos lhe inspirava a música do filho. Os serões caseiros quando Inácio não tinha de cumprir nenhuma obrigação fora de casa, eram assim passados; sós os dois, com o instrumento e o céu de permeio.
A boa velha adoeceu e morreu. Inácio sentiu o vácuo que lhe ficava na vida. Quando o caixão, levado por meia dúzia de artistas seus colegas, saiu da casa, Inácio viu ir ali dentro todo o passado, e presente, e não sabia se também o futuro. Acreditou que o fosse. A noite do enterro foi pouca para o repouso que o corpo lhe pedia depois do profundo abalo; a seguinte porém foi a data da sua primeira composição musical. Escreveu para o violoncelo uma elegia que não seria sublime como perfeição de arte, mas que o era sem dúvida como inspiração pessoal. Compô-la para si; durante dois anos ninguém a ouviu nem sequer soube dela.
A primeira vez que ele troou aquele suspiro fúnebre foi oito dias depois de casado, um dia em que se achava a sós com a mulher, na mesma casa em que morrera sua mãe, na mesma sala em que ambos costumavam passar algumas horas da noite. Era a primeira vez que a mulher o ouvia tocar violoncelo. Ele quis que a lembrança da mãe se casasse àquela revelação que ele fazia à esposa do seu coração: vinculava de algum modo o passado ao presente.
— Toca um pouco de violoncelo, tinha-lhe dito a mulher duas vezes depois do consórcio; tua mãe me dizia que tocavas tão bem!
— Bem, não sei, respondia Inácio; mas tenho satisfação em tocá-lo.
— Pois sim, desejo ouvir-te!
— Por hora, não, deixa-me contemplar-te primeiro.
Ao cabo de oito dias, Inácio satisfez o desejo de Carlotinha. Era de tarde, — uma tarde fria e deliciosa. O artista travou do instrumento, empunhou o arco e as cordas gemeram ao impulso da mão inspirada. Não via a mulher, nem o lugar, nem o instrumento sequer: via a imagem da mãe e embebia-se todo em um mundo de harmonias celestiais. A execução durou vinte minutos. Quando a última nota expirou nas cordas do violoncelo, o braço do artista tombou, não de fadiga, mas porque todo o corpo cedia ao abalo moral que a recordação e a obra lhe produziam.
— Oh! lindo! lindo! exclamou Carlotinha levantando-se e indo ter com o marido.
Inácio estremeceu e olhou pasmado para a mulher. Aquela exclamação de entusiasmo destoara-lhe, em primeiro lugar porque o trecho que acabava de executar não era lindo, como ela dizia, mas severo e melancólico e depois porque, em vez de um aplauso ruidoso, ele preferia ver outro mais consentâneo com a natureza da obra, — duas lágrimas que fossem, — duas, mas exprimidas do coração, como as que naquele momento lhe sulcavam o rosto.
Seu primeiro movimento foi de despeito, — despeito de artista, que nele dominava tudo. Pegou silencioso no instrumento e foi pô-lo a um canto. A moça viu-lhe então as lágrimas; comoveu-se e estendeu-lhe os braços.
Inácio apertou-a ao coração.
Carlotinha sentou-se então, com ele, ao pé da janela, donde viam surdir no céu as primeiras estrelas. Era uma mocinha de dezessete anos, parecendo dezenove, mais baixa que alta, rosto amorenado, olhos negros e travessos. Aqueles olhos, expressão fiel da alma de Carlota, contrastavam com o olhar brando e velado do marido. Os movimentos da moça eram vivos e rápidos, a voz argentina, a palavra fácil e correntia, toda ela uma índole, mundana e jovial. Inácio gostava de ouvi-la e vê-la; amava-a muito, e, além disso, como que precisava às vezes daquela expressão de vida exterior para entregar-se todo às especulações do seu espírito.
Carlota era filha de um negociante de pequena escala, homem que trabalhou a vida toda como um mouro para morrer pobre, porque a pouca fazenda que deixou, mal pôde chegar para satisfazer alguns empenhos. Toda a riqueza da filha era a beleza, que a tinha, ainda que sem poesia nem ideal. Inácio conhecera-a ainda em vida do pai, quando ela ia com este visitar sua velha mãe; mas só a amou deveras, depois que ela ficou órfã e quando a alma lhe pediu um afeto para suprir o que a morte lhe levara.
A moça aceitou com prazer a mão que Inácio lhe oferecia. Casaram-se a aprazimento dos parentes da moça e das pessoas que os conheciam a ambos. O vácuo fora preenchido.
Apesar do episódio acima narrado, os dias, as semanas e os meses correram tecidos de ouro para o esposo artista. Carlotinha era naturalmente faceira e amiga de brilhar; mas contentava-se com pouco, e não se mostrava exigente nem extravagante. As posses de Inácio Ramos eram poucas; ainda assim ele sabia dirigir a vida de modo que nem o necessário lhe faltava nem deixava de satisfazer algum dos desejos mais modestos da moça. A sociedade deles não era certamente dispendiosa nem vivia de ostentação; mas qualquer que seja o centro social há nele exigências a que não podem chegar todas as bolsas. Carlotinha vivera de festas e passatempos; a vida conjugal exigia dela hábitos menos frívolos, e ela soube curvar-se à lei que de coração aceitara.
Demais, que há aí que verdadeiramente resista ao amor? Os dois amavam-se; por maior que fosse o contraste entre a índole de um e outro, ligava-os e irmanava-os o afeto verdadeiro que os aproximara. O primeiro milagre do amor fora a aceitação por parte da moça do famoso violoncelo. Carlotinha não experimentava decerto as sensações que o violoncelo produzia no marido, e estava longe daquela paixão silenciosa e profunda que vinculava Inácio Ramos ao instrumento; mas acostumara-se a ouvi-lo, apreciava-o, e chegara a entendê-lo alguma vez.
A esposa concebeu. No dia em que o marido ouviu esta notícia sentiu um abalo profundo; seu amor cresceu de intensidade.
— Quando o nosso filho nascer, disse ele, eu comporei o meu segundo canto.
— O terceiro será quando eu morrer, não? perguntou a moça com um leve tom de despeito.
— Oh! não digas isso!
Inácio Ramos compreendeu a censura da mulher; recolheu-se durante algumas horas, e trouxe uma composição nova, a segunda que lhe saía da alma, dedicada à esposa. A música entusiasmou Carlotinha, antes por vaidade satisfeita do que porque verdadeiramente a penetrasse. Carlotinha abraçou o marido com todas as forças de que podia dispor, e um beijo foi o prêmio da inspiração. A felicidade de Inácio não podia ser maior; ele tinha tido o que ambicionava: vida de arte, paz e ventura doméstica, e enfim esperanças de paternidade.
— Se for menino, dizia ele à mulher, aprenderá violoncelo; se for menina, aprenderá harpa. São os únicos instrumentos capazes de traduzir as impressões mais sublimes do espírito.
Nasceu um menino. Esta nova criatura deu uma feição nova ao lar doméstico. A felicidade do artista era imensa; sentiu-se com mais força para o trabalho, e ao mesmo tempo como que se lhe apurou a inspiração.
A prometida composição ao nascimento do filho foi realizada e executada, não já entre ele e a mulher, mas em presença de algumas pessoas de amizade. Inácio Ramos recusou a princípio fazê-lo; mas a mulher alcançou dele que repartisse com estranhos aquela nova produção de um talento. Inácio sabia que a sociedade não chegaria talvez a compreendê-lo como ele desejava ser compreendido; todavia cedeu. Se acertara aos seus receios não o soube ele, porque dessa vez, como das outras, não viu ninguém; viu-se e ouviu-se a si próprio, sendo cada nota um eco das harmonias santas e elevadas que a paternidade acordara nele.
A vida correria assim monotonamente bela, e não valeria a pena escrevê-la, a não ser um incidente, ocorrido naquela mesma ocasião.
A casa em que eles moravam era baixa, ainda que assaz larga e airosa. Dois transeuntes, atraídos pelos sons do violoncelo, aproximaram-se das janelas entrefechadas, e ouviram do lado de fora cerca de metade da composição. Um deles, entusiasmado com a composição e a execução, rompeu em aplausos ruidosos quando Inácio acabou, abriu violentamente as portas da janela e curvou-se para dentro gritando.
— Bravo, artista divino!
A exclamação inesperada chamou a atenção dos que estavam na sala; voltaram-se todos os olhos e viram duas figuras de homem, um tranqüilo, outro alvoroçado de prazer. A porta foi aberta aos dois estranhos. O mais entusiasmado deles correu a abraçar o artista.
— Oh! alma de anjo! exclamava ele. Como é que um artista destes está aqui escondido dos olhos do mundo?
O outro personagem fez igualmente cumprimentos de louvor ao mestre do violoncelo; mas, como ficou dito, seus aplausos eram menos entusiásticos; e não era difícil achar a explicação da frieza na vulgaridade de expressão do rosto.
Estes dois personagens assim entrados na sala eram dois amigos que o acaso ali conduzira. Eram ambos estudantes de direito, em férias; o entusiasta, todo arte e literatura, tinha a alma cheia de música alemã e poesia romântica, e era nada menos que um exemplar daquela falange acadêmica fervorosa e moça animada de todas as paixões, sonhos, delírios e efusões da geração moderna; o companheiro era apenas um espírito medíocre, avesso a todas essas coisas, não menos que ao direito que aliás forcejava por meter na cabeça.
Aquele chamava-se Amaral, este Barbosa.
Amaral pediu a Inácio Ramos para lá voltar mais vezes. Voltou; o artista de coração gastava o tempo a ouvir o de profissão fazer falar as cordas do instrumento. Eram cinco pessoas; eles, Barbosa, Carlotinha, e a criança, o futuro violoncelista. Um dia, menos de uma semana depois, Amaral descobriu a Inácio que o seu companheiro era músico.
— Também! exclamou o artista.
— É verdade; mas um pouco menos sublime do que o senhor, acrescentou ele sorrindo.
— Que instrumento toca?
— Adivinhe.
— Talvez piano...
— Não.
— Flauta?
— Qual!
— É instrumento de cordas?
— É.
— Não sendo rabeca... disse Inácio olhando como a esperar uma confirmação.
— Não é rabeca; é machete.
Inácio sorriu; e estas últimas palavras chegaram aos ouvidos de Barbosa, que confirmou a notícia do amigo.
— Deixe estar, disse este baixo a Inácio, que eu o hei de fazer tocar um dia. É outro gênero...
— Quando queira.
Era efetivamente outro gênero, como o leitor facilmente compreenderá. Ali postos os quatro, numa noite da seguinte semana, sentou-se Barbosa no centro da sala, afinou o machete e pôs em execução toda a sua perícia. A perícia era, na verdade, grande; o instrumento é que era pequeno. O que ele tocou não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua, obra de ocasião. Barbosa tocou-a, não dizer com alma, mas com nervos. Todo ele acompanhava a gradação e variações das notas; inclinava-se sobre o instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora a um lado, ora a outro, alçava a perna, sorria, derretia os olhos ou fechava-os nos lugares que lhe pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o menos; vê-lo era o mais. Quem somente o ouvisse não poderia compreendê-lo.
Foi um sucesso, — um sucesso de outro gênero, mas perigoso, porque, tão depressa Barbosa ouviu os cumprimentos de Carlotinha e Inácio, começou segunda execução, e iria a terceira, se Amaral não interviesse, dizendo:
— Agora o violoncelo.
O machete de Barbosa não ficou escondido entre as quatro partes da sala de Inácio Ramos; dentro em pouco era conhecida a forma dele no bairro em que morava o artista, e toda a sociedade deste ansiava por ouvi-lo.
Carlotinha foi a denunciadora; ela achara infinita graça e vida naquela outra música, e não cessava de o elogiar em toda a parte. As famílias do lugar tinham ainda saudades de um célebre machete que ali tocara anos antes o atual subdelegado, cujas funções elevadas não lhe permitiram cultivar a arte. Ouvir o machete de Barbosa era reviver uma página do passado.
— Pois eu farei com que o ouçam, dizia a moça.
Não foi difícil.
Houve dali a pouco reunião em casa de uma família da vizinhança. Barbosa acedeu ao convite que lhe foi feito e lá foi com o seu instrumento. Amaral acompanhou-o.
— Não te lastimes, meu divino artista; dizia ele a Inácio; e ajuda-me no sucesso do machete.
Riam-se os dois, e mais do que eles se ria Barbosa, riso de triunfo e satisfação porque o sucesso não podia ser mais completo.
— Magnífico!
— Bravo!
— Soberbo!
— Bravíssimo!
O machete foi o herói da noite. Carlota repetia às pessoas que a cercavam:
— Não lhes dizia eu? é um portento.
— Realmente, dizia um crítico do lugar, assim nem o Fagundes...
Fagundes era o subdelegado.
Pode-se dizer que Inácio e Amaral foram os únicos alheios ao entusiasmo do machete. Conversavam eles, ao pé de uma janela, dos grandes mestres e das grandes obras da arte.
— Você por que não dá um concerto? perguntou Amaral ao artista.
— Oh! não.
— Por quê?
— Tenho medo...
— Ora, medo!
— Medo de nao agradar...
— Há de agradar por força!
— Além disso, o violoncelo está tão ligado aos sucessos mais íntimos da minha vida, que eu o considero antes como a minha arte doméstica...
Amaral combatia estas objeções de Inácio Ramos; e este fazia-se cada vez mais forte nelas. A conversa foi prolongada, repetiu-se daí a dois dias, até que no fim de uma semana, Inácio deixou-se vencer.
— Você verá, dizia-lhe o estudante, e verá como todo o público vai ficar delirante.
Assentou-se que o concerto seria dali a dois meses. Inácio tocaria uma das peças já compostas por ele, e duas de dois mestres que escolheu dentre as muitas.
Barbosa não foi dos menos entusiastas da idéia do concerto. Ele parecia tomar agora mais interesse nos sucessos do artista, ouvia com prazer, ao menos aparente, os serões de violoncelo, que eram duas vezes por semana. Carlotinha propôs que os serões fossem três; mas Inácio nada concedeu além dos dois. Aquelas noites eram passadas somente em família; e o machete acabava muita vez o que o violoncelo começava. Era uma condescendência para com a dona da casa e o artista! — o artista do machete.
Um dia Amaral olhou Inácio preocupado e triste. Não quis perguntar-lhe nada; mas como a preocupação continuasse nos dias subseqüentes, não se pôde ter e interrogou-o. Inácio respondeu-lhe com evasivas.
— Não, dizia o estudante; você tem alguma coisa que o incomoda certamente.
— Coisa nenhuma!
E depois de um instante de silêncio:
— O que tenho é que estou arrependido do violoncelo; se eu tivesse estudado o machete!
Amaral ouviu admirado estas palavras; depois sorriu e abanou a cabeça. Seu entusiasmo recebera um grande abalo. A que vinha aquele ciúme por causa do efeito diferente que os dois instrumentos tinham produzido? Que rivalidade era aquela entre a arte e o passatempo?
— Não podias ser perfeito, dizia Amaral consigo; tinhas por força um ponto fraco; infelizmente para ti o ponto é ridículo.
Daí em diante os serões foram menos amiudados. A preocupação de Inácio Ramos continuava; Amaral sentia que o seu entusiasmo ia cada vez a menos, o entusiasmo em relação ao homem, porque bastava ouvi-lo tocar para acordarem-se-lhe as primeiras impressões.
A melancolia de Inácio era cada vez maior. Sua mulher só reparou nela quando absolutamente se lhe meteu pelos olhos.
— Que tens? perguntou-lhe Carlotinha.
— Nada, respondia Inácio.
— Aposto que está pensando em alguma composição nova, disse Barbosa que dessas ocasiões estava presente.
— Talvez, respondeu Inácio; penso em fazer uma coisa inteiramente nova; um concerto para violoncelo e machete.
— Por que não? disse Barbosa com simplicidade. Faça isso, e veremos o efeito que há de ser delicioso.
— Eu creio que sim, murmurou Inácio.
Não houve concerto no teatro, como se havia assentado; porque Inácio Ramos de todo se recusou. Acabaram-se as férias e os dois estudantes voltaram para S. Paulo.
— Virei vê-lo daqui a pouco, disse Amaral. Virei até cá somente para ouvi-lo.
Efetivamente vieram os dois, sendo a viagem anunciada por carta de ambos.
Inácio deu a notícia à mulher, que a recebeu com alegria.
— Vêm ficar muitos dias? disse ela.
— Parece que somente três.
— Três!
— É pouco, disse Inácio; mas nas férias que vêm, desejo aprender o machete.
Carlotinha sorriu, mas de um sorriso acanhado, que o marido viu e guardou consigo.
Os dois estudantes foram recebidos como se fossem de casa. Inácio e Carlotinha desfaziam-se em obséquios. Na noite do mesmo dia, houve serão musical; só violoncelo, a instâncias de Amaral, que dizia:
— Não profanemos a arte!
Três dias vinham eles demorar-se, mas não se retiraram no fim deles.
— Vamos daqui a dois dias.
— O melhor é completar a semana, observou Carlotinha.
— Pode ser.
No fim de uma semana, Amaral despediu-se e voltou a S. Paulo; Barbosa não voltou; ficara doente. A doença durou somente dois dias, no fim dos quais ele foi visitar o violoncelista.
— Vai agora? perguntou este.
— Não, disse o acadêmico; recebi uma carta que me obriga a ficar algum tempo.
Carlotinha ouvira alegre a notícia; o rosto de Inácio não tinha nenhuma expressão.
Inácio não quis prosseguir nos serões musicais, apesar de lho pedir algumas vezes Barbosa, e não quis porque, dizia ele, não queria ficar mal com Amaral, do mesmo modo que não quereria ficar mal com Barbosa, se fosse este o ausente.
— Nada impede, porém, concluiu o artista, que ouçamos o seu machete.
Que tempo duraram aqueles serões de machete? Não chegou tal notícia ao conhecimento do escritor destas linhas. O que ele sabe apenas é que o machete deve ser instrumento triste, porque a melancolia de Inácio tornou-se cada vez mais profunda. Seus companheiros nunca o tinham visto imensamente alegre; contudo a diferença entre o que tinha sido e era agora entrava pelos olhos dentro. A mudança manifestava-se até no trajar, que era desleixado, ao contrário do que sempre fora antes. Inácio tinha grandes silêncios, durante os quais era inútil falar-lhe, porque ele a nada respondia, ou respondia sem compreender.
— O violoncelo há de levá-lo ao hospício, dizia um vizinho compadecido e filósofo.
Nas férias seguintes, Amaral foi visitar o seu amigo Inácio, logo no dia seguinte àquele em que desembarcou. Chegou alvoroçado à casa dele; uma preta veio abri-la.
— Onde está ele? Onde está ele? perguntou alegre e em altas vozes o estudante.
A preta desatou a chorar.
Amaral interrogou-a, mas não obtendo resposta, ou obtendo-a intercortada de soluços, correu para o interior da casa com a familiaridade do amigo e a liberdade que lhe dava a ocasião.
Na sala do concerto, que era nos fundos, olhou ele Inácio Ramos, de pé, com o violoncelo nas mãos preparando-se para tocar. Ao pé dele brincava um menino de alguns meses.
Amaral parou sem compreender nada. Inácio não o viu entrar; empunhara o arco e tocou, — tocou como nunca, — uma elegia plangente, que o estudante ouviu com lágrimas nos olhos. A criança, dominada ao que parece pela música, olhava quieta para o instrumento. Durou a cena cerca de vinte minutos.
Quando a música acabou, Amaral correu a Inácio.
— Oh! meu divino artista! exclamou ele.
Inácio apertou-o nos braços; mas logo o deixou e foi sentar-se numa cadeira com os olhos no chão. Amaral nada compreendia; sentia porém que algum abalo moral se dera nele.
— Que tens? disse.
— Nada, respondeu Inácio.
E ergueu-se e tocou de novo o violoncelo. Não acabou porém; no meio de uma arcada, interrompeu a música, e disse a Amaral:
— É bonito, não?
— Sublime! respondeu o outro.
— Não; machete é melhor.
E deixou o violoncelo, e correu a abraçar o filho.
— Sim, meu filho, exclamava ele, hás de aprender machete; machete é muito melhor.
— Mas que há? articulou o estudante.
— Oh! nada, disse Inácio, ela foi-se embora, foi-se com o machete. Não quis o violoncelo, que é grave demais. Tem razão; machete é melhor.
A alma do marido chorava mas os olhos estavam secos. Uma hora depois enlouqueceu.
O FRUTO DA FORMOSURA
Raul Pompéia
Em princípio, ele era pequenino; uma ligeira elevação de carne infantil, macia como a polpa de um fruto esquisito; tinha um biquinho, rubro como uma cereja microscópica; tinha dous anos, então: recebia as carícias maternas de uns lábios ardentes e amorosos.
Foi crescendo... crescendo...
Já lhe notavam tendências para a bela forma redonda. A carne branca, polpuda, elevava-se pouco a pouco.
Foram-no cobrindo, zelosamente de cambraias e fitas.
Em pequenino, andava tantas vezes nu, gozando o contato suave do ar livre e fresco a passar-lhe pela epiderme. Exatamente quando mais lindo ficava, é que o queriam esconder como uma cousa indigna.
Este escrúpulo avultava com o tempo.
Esconderam-no cada vez mais, e cada vez mais, do fundo do seu retiro de linhos e cambraias finíssimas, o indiscreto erguia-se, cercado de rubores incertos e nômades, que percorriam-lhe a epiderme, semeando calor; erguia-se como quem sabe que vai a fazer-se sedutor e deseja que o vejam e o adorem...
Mas a cruel cambraia subia também, com uma impertinência ciosa e avara; o pobre via-se condenado àquela prisão cálida e escura, que o sufocava ferozmente.
Ah! quem lhe dera sentir as auras frescas da tarde e os orvalhos da madrugada; viver à luz dos sóis e dos luares, despido, desembaraçado e nu, como os jambos rosados e venturosos!...
Despiam-no, é certo, mas unicamente para respirar o ambiente morno e viciado das alcovas.
Era nessas ocasiões que ele via como estava belo; mirava-se nas banheiras e nos espelhos, namorava-se como um narciso, o pobre...
E como torturavam-no, depois, aquelas faixas com que o comprimiam!
Parece que havia empenho em deformá-lo, contrariando a natureza que o aviventava. Entretanto, ele resistia e triunfava!
A delicada forma cônica dilatava-se-lhe, encurvava-se, sobressaía com a íntima energia de um botão de magnólia que vai desabrochar em largas pétalas. Sedutor cada vez mais.
Tornou-se tímido. O recato da cambraia que o contrariava agrada-lhe então.
O próprio ambiente morno da alcova parece feri-lo com um contato sacrílego.
O sofrimento que então o tortura já não é a contrariedade daqueles panos que o abafavam.
O sofrimento consiste em pancadas íntimas, violentas, que o agitam e mortificam.
Está amando, o pobre...
Por fim, expande-se.
Rasgam-se os linhos e as cambraias, e dous lábios impetuosos, sedentos, vão lá ao fundo violar o recato do amante misterioso e invisível.
Mudou-se-lhe de todo a natureza, ele engorgita-se em plena maturidade.
Uma criaturinha vem sofregamente sugar-lhe a seiva e nutrir-se dele como a parasita que vive da vitalidade alheia...
..................................................................
Então começa a decadência.
O belo seio, outrora rijo de virgindade e frescura, estremecendo às emoções elétricas do amor, desprende-se tristemente da antiga firmeza escultural e cai, como os frutos caem no fim do outono...
Em breve, há de apodrecer no campo, alimento dos vermes famintos, húmus fecundos da terra, como o fruto que o outono deixa, repasto das novas primaveras, vorazes, egoístas...
É quase a história comum de todos os frutos.
TEMPO DE CRISE
Machado de Assis
Queres tu saber, meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso completas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nato. Aqui a coisa é diversa, assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.
Quando desembarquei estava o C. à minha espera na Praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:
— Caiu o ministério!
Tu sabes que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C. quem eram os novos ministros.
— Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?
— Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.
— Há de haver.
Seguimos para o Hotel da Europa que é na Rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.
À porta perguntei-lhe eu:
— Onde saberemos notícias?
— Aqui mesmo na Rua do Ouvidor.
— Pois então na Rua do Ouvidor é que?
— Sim; a Rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.
Ouvi silenciosamente as explicações do C. e segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito fumando, e conversando com o caixeiro.
— A que horas esteve ela aqui? perguntava o sujeito.
— Às dez.
Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.
— Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C.
— Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão; alguma rosa de Citera.
— Qual! disse eu.
— Por quê?
— Os jardins de Citera são francos; ninguém espreita as rosas por fora...
— Provinciano! disse o C. com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa honra para o jardineiro... Anda sentar-te.
— Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.
— Com razão, respondeu o C. Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os sentimentos e todas as idéias...
— Continua, meu Virgílio.
— Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense. Aqui acharás a flor da sociedade, — as senhoras que vêm escolher jóias ao Valais ou sedas a Notre Dame, — os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Commercio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um coupé à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilante de riqueza, — porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, — é que a simples vista consola.
Saiu-me o C. tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.
O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.
— Cansou de esperar, disse eu.
— Sentemo-nos.
Sentamo-nos.
— Fala-se então de tudo aqui?
— De tudo.
— Bem e mal?
— Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...
Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C. a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.
— Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...
Estas últimas palavras revelaram no C. um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor de morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso Padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.
— Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...
— Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.
O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C. perguntou-lhe o que sabia da crise.
— Nada, respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...
— Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C.
— É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve Câmara?
— Não.
— Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à Câmara...
— Para quê? Aqui mesmo saberemos.
O Dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.
Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.
— Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C. passando algum tempo.
— Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.
— Mas por quê? perguntei eu.
— Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...
— Ah!
— O Ministro do Império quer o Valadares, e o da fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?
— Ora, vivam! Então já sabem da crise?
Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.
— Crise formal? perguntamos todos.
— Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a S. Cristóvão...
— É o que dizia, observou o Dr. Abreu.
— Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C.
— O verdadeiro motivo foi uma questão da guerra.
— Não creia nisso!
O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:
— Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do Ministro da Guerra?
A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...
— Seja qual for o motivo, disse o C., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?
— Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).
— Quem sabe?
Ferreira tomou a palavra:
— A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem a Câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança...
Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.
— Mas então não estão todos em S. Cristóvão? observou o C.
— Este vai naturalmente para lá.
Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco aumentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.
Afirmamos que sim.
— Qual seria a causa? perguntou ele.
O Abreu, que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.
— Está certo disso? perguntou o desembargador.
— Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do Ministro da Guerra.
Nunca vi maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois o C. que me respondeu:
— Não te espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem infocrmado.
Dos presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Bruto diante do cadáver de César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor nem excessiva paixão.
Cada personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.
Vimos ao longe um homem de 35 anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência política.
— Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C.
Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.
A influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.
— Venha cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?
— O que há?
— Sim.
— Há crise.
— Bem; mas os homens saem ou ficam?
Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.
Olhei atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os ocultava de nós.
— Diga o que sabe, Sr. Mendonça, disse o desembargador.
— Eu já disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...
Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.
— Sabem que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.
— Qual é a causa?
— A nomeação de um juiz de direito.
— Só!
— Só.
— Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.
— Foi isso. Os homens lá foram ao paço.
— Será aceita a demissão? perguntei eu.
Mendonça abaixou a voz.
— Creio que é.
Depois apertou a mão ao desembargador, ao C. e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.
— Pois, senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.
Passa defronte um sujeito.
— Anda cá, Lima, gritou Abreu.
O Lima aproximou-se.
— Estás convidado para o ministério?
— Estou; você quer alguma pasta?
Não penses que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.
A única preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares, — a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C. e o Lima, e seguiram viagem.
— São lindas estas moças, disse um dos circunstantes.
— Eu era capaz de as nomear para o ministério.
— Sendo eu presidente do conselho.
— Também eu.
— A mais gorda devia ser Ministro da Marinha.
— Por quê?
— Porque parece mesmo uma fragata.
Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.
— Quem será? Algum ministro?
— Vejamos.
— Não; é a A...
— Como vai bonita!
— Pudera!
— Ela já tem carro?
— Há muito tempo.
— Olhem, ali vem o Mendonça.
— Vem com outro. Quem é?
— É um deputado.
Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.
Houve outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do tom.
Finalmente surgiu de longe o já citado Ferreira.
— Que há? perguntamos quando ele chegou.
— Foi aceita a demissão.
— Quem é o chamado?
— Não se sabe.
— Por quê?
— Dizem que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.
Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.
— Mas donde sabe isso? disse o desembargador.
— Soube na Câmara.
— Não me parece natural.
— Por quê?
— Que força moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?
— Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do Ministro da Fazenda.
Ferreira tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.
— Quem será chamado?
— Naturalmente o N.
— Ou o P.
— Já hoje de manhã se dizia que era o K.
Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.
— Então, Sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.
— O B.
— Com certeza?
— É o que se diz.
— Eu ouvi que só na segunda-feira se organizará ministério novo.
— Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B. foi ao paço.
— Viu-o?
— Não, mas disseram-mo.
— Pois acredite que até segunda-feira...
A conversa ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.
Cada qual expôs a sua conjetura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:
— Está enganado; pode o F. ficar com a pasta da Justiça, o M. com a da Guerra, K. Marinha, T. Obras Públicas, V. Fazenda, X. Império, e C. Estrangeiros.
— Não é possível; o V. é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.
— Mas o V. não pode entrar nessa combinação.
— Por quê?
— É inimigo do F.
— Sim; mas a deputação da Bahia?
Aqui coçava o outro a orelha.
— A deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N.
— O N. não aceita.
— Por quê?
— Não quer ministério de transição.
— Chama a isto ministério de transição?
— Pois que é mais?
Este diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C. e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.
Desta vez íamos ter notícias frescas.
Efetivamente soubemos pelo deputado que o V. tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.
— Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V.; o seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?
— Por ora, disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.
— Quem são?
— Não sei, respondeu o deputado.
Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.
Houve um pequeno silêncio. Conjeturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.
O Abreu dirigiu-se ao deputado.
— V. Ex.a acredita que o ministério fique organizado hoje?
— Creio que sim; mas daí pode ser que não...
— A situação não é boa, observou Ferreira.
— Admira-me que V. Ex.a não seja convidado...
Estas palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:
— Pois não me admira nada disso; deixo o lugar aos componentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.
— Perdão, é muito digno!
Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:
— Podes dar-me uma palavra?
— Que é? perguntou o deputado levantando-se.
— Vem cá.
Foram até à porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.
— Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.
— Acredita? perguntei eu.
— Sem dúvida.
Mendonça foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.
Eram duas horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Um desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.
Às três horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.
Determinamos não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C.) andar na Rua do Ouvidor às 5 horas da tarde.
— Mas qual será o meio de saber? perguntei eu.
— Eu vou ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.
Vários incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma jóia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.
Nada se soube nessa tarde.
Voltei para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C. jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos voltar à Rua do Ouvidor.
— Não era melhor irmos à casa do V., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.
— Principalmente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu o C.; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.
A Rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.
Confesso que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da Rua do Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que os freqüentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os ministros todos.
Encontramos os mesmos amigos da manhã.
Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.
— Que há?
— Está organizado.
— Mas quem são?
O desembargador tirou do bolso uma lista.
— São estes.
Lemos os nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.
— Mas isto é certo? perguntei eu.
— Deram-me agora esta lista; creio que é autêntica.
— O que é? perguntou por trás de mim uma voz.
Era um sujeito moreno e bigode grisalho.
— Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.
— Tenho uma lista.
— Vejamos se combina com esta.
Costearam-se as listas; havia engano num nome.
Mais adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma deles, deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às 9 horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da Rua do Ouvidor, qual era o gabinete.
O Mendonça ficou alegre com o resultado da crise.
Perguntaram-lhe por que razão.
— Tenho dois compadres no ministério! respondeu ele.
Aqui tens o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.
RESPOSTA DIFÍCIL
Humberto de Campos
Rosto em fogo, cabelos em desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas uma carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele, uma punhalada no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro, tauxiado de prata polida, a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no horror daquela situação.
— E dizer-se que eu confiava em ti, tua honra, no teu amor, e que estava em São Paulo tranquilo, sereno, na certeza de que procedias, aqui, com seriedade, com dignidade, com a correção que me havias jurado, de joelhos, diante de Deus!... — geme, quase chorando, o pobre esposo desesperado.
Madame procura, como um náufrago na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o marido atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de novo, a cabeça entre as mãos:
— Que vergonha, meu Deus! que vergonha, agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o rosto diante desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou, impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...
Enfiando os dedos na cabeleira grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais nervoso, a extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos, quando, de repente, para, e reclama, cerrando os punhos:
— Confessa-me, afinal: quando foi que aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha ausência, penetrou nesta casa?
Adivinhando nessa pergunta um caminho para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado de lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes do marido, indaga, apenas, pronta para uma explicação:
— Qual?
LETRA VENCIDA
Machado de Assis
CAPÍTULO PRIMEIRO
Eduardo B. embarca amanhã para a Europa. Amanhã quer dizer 24 de abril de 1861, pois estamos a 23, à noite, uma triste noite para ele, e para Beatriz.
— Beatriz! repetia ele, no jardim, ao pé da janela donde a moça se debruçava estendendo-lhe a mão.
De cima, — porque a janela ficava a cinco palmos da cabeça de Eduardo, — de cima respondia a moça com lágrimas, verdadeiras lágrimas de dor. Era a primeira grande dor moral que padecia, e, contando apenas dezoito anos, começava cedo. Não falavam alto; poderiam chamar a atenção da gente da casa. Note-se que Eduardo despedira-se da família de Beatriz naquela mesma noite, e que a mãe dela e o pai, ao vê-lo sair, estavam longe de pensar que entre onze horas e meia-noite, voltaria o moço ao jardim para fazer uma despedida mais formal. Além disso, os dois cães da casa impediriam a entrada de algum intruso. Se tal supuseram é que não advertiram na tendência corruptora do amor. O amor peitou o jardineiro, e os cães foram recolhidos modestamente para não interromper o último diálogo de dois corações aflitos.
Último? Não é último; não pode ser último. Eduardo vai completar os estudos, e tirar carta de doutor em Heidelberg; a família vai com ele, disposta a ficar algum tempo, um ano, em França; ele voltará depois. Tem vinte e um anos, ela dezoito: podem esperar. Não, não é o último diálogo. Basta ouvir os protestos que eles murmuram, baixinho, entre si e Deus, para crer que esses dois corações podem ficar separados pelo mar, mas que o amor os uniu moralmente e eternamente. Eduardo jura que a levará consigo, que não pensará em outra coisa, que a amará sempre, sempre, sempre, de longe ou de perto, mais do que aos próprios pais.
— Adeus, Beatriz!
— Não, não vá já!
Tinha batido uma hora em alguns relógios da vizinhança, e esse golpe seco, soturno, pingando de pêndula em pêndula, advertiu ao moço de que era tempo de sair; podiam ser descobertos. Mas ficou; ela pediu-lhe que não fosse logo, e ele deixou-se estar, cosido à parede, com os pés num canteiro de murta e os olhos no peitoril da janela. Foi então que ela lhe desceu uma carta; era a resposta de outra, em que ele lhe dava certas indicações necessárias à correspondência secreta, que iam continuar através do oceano. Ele insistiu verbalmente em algumas das recomendações; ela pediu certos esclarecimentos. O diálogo interrompia-se; os intervalos de silêncio eram suspirados e longos. Enfim bateram duas horas: era o rouxinol? Era a cotovia? Romeu preparou-se para ir embora; Julieta pediu alguns minutos.
— Agora, adeus, Beatriz; é preciso! murmurou ele dali a meia hora.
— Adeus! Jura que não se esquecerá de mim?
— Juro. E você?
— Juro também, por minha mãe, por Deus!
— Olhe, Beatriz! Aconteça o que acontecer, não me casarei com outra; ou com você, ou com a morte. Você é capaz de jurar a mesma coisa?
— A mesma coisa; juro pela salvação de minh’alma! Meu marido é você; e Deus que me ouve há de ajudar-nos. Crê em Deus, Eduardo; reza a Deus, pede a Deus por nós.
Apertaram as mãos. Mas um aperto de mão era bastante para selar tão grave escritura? Eduardo teve a idéia de trepar à parede; mas faltava-lhe o ponto de apoio. Lembrou-se de um dos bancos do jardim, que tinha dois, do lado da frente; foi a ele, trouxe-o, encostou-o à parede, e subiu; depois levantou as mãos ao peitoril; e suspendeu o corpo; Beatriz inclinou-se, e o eterno beijo de Verona conjugou os dois infelizes. Era o primeiro. Deram três horas; desta vez era a cotovia.
— Adeus!
— Adeus!
Eduardo saltou ao chão; pegou do banco, e foi repô-lo no lugar próprio. Depois tornou à janela, levantou a mão, Beatriz desceu a sua, e um enérgico e derradeiro aperto terminou essa despedida, que era também uma catástrofe. Eduardo afastou-se da parede, caminhou para a portinha lateral do jardim, que estava apenas cerrada, e saiu. Na rua, a vinte ou trinta passos, ficara de vigia o obsequioso jardineiro, que unira ao favor a discrição, colocando-se a distância tal, que nenhuma palavra pudesse chegar-lhe aos ouvidos. Eduardo, embora já lhe houvesse pago a cumplicidade, quis deixar-lhe ainda uma lembrança de última hora, e meteu-lhe na mão uma nota de cinco mil-réis.
No dia seguinte verificou-se o embarque. A família de Eduardo compunha-se dos pais e uma irmã de doze anos. O pai era comerciante e rico; ia passear alguns meses e fazer completar os estudos do filho em Heidelberg. Esta idéia de Heidelberg parecerá um pouco estranha nos projetos de um homem, como João B., pouco ou nada lido em coisas de geografia científica e universitária; mas sabendo-se que um sobrinho dele, em viagem na Europa, desde 1857, entusiasmado com a Alemanha, escrevera de Heidelberg algumas cartas exaltando o ensino daquela Universidade, ter-se-á compreendido essa resolução.
Para Eduardo, ou Heidelberg ou Hong-Kong, era a mesma coisa, uma vez que o arrancavam do único ponto do globo em que ele podia aprender a primeira das ciências, que era contemplar os olhos de Beatriz. Quando o paquete deu as primeiras rodadas na água e começou a mover-se para a barra, Eduardo não pôde reter as lágrimas, e foi escondê-las no camarote. Voltou logo acima, para ver ainda a cidade, perdê-la pouco a pouco, por uma ilusão da dor, que se contentava de um retalho, tirado à purpura da felicidade moribunda. E a cidade, se tivesse olhos para vê-lo, podia também despedir-se dele com pesar e orgulho, pois era um esbelto rapaz, inteligente e bom. Convém dizer que a tristeza de deixar o Rio de Janeiro também lhe doía no coração. Era fluminense, não saíra nunca deste ninho paterno, e a saudade local vinha casar-se à saudade pessoal. Em que proporções, não sei. Há aí uma análise difícil, mormente agora, que não podemos mais distinguir a figura do rapaz. Ele está ainda na amurada; mas o paquete transpôs a barra, e vai perder-se no horizonte.
CAPÍTULO II
Para que hei de dizer que Beatriz deixou de dormir o resto da noite? Subentende-se que as últimas horas dessa triste noite de 23 de abril foram para ela de vigília e desespero. Direi somente que também foram de devoção. Beatriz, logo que Eduardo transpôs a porta do jardim, atirou-se à cama soluçando e sufocando os soluços, para não ser ouvida. Quando a dor amorteceu um pouco, levantou-se e foi ao oratório de suas rezas noturnas e matinais; ajoelhou-se e encomendou a Deus, não a felicidade, mas a consolação de ambos.
A manhã viu-a tão triste como a noite. O sol, na forma usual, mandou um dos seus raios mais jucundos e vivos ao rosto de Beatriz, que desta vez o recebeu sem ternura nem gratidão. De costume, ela dava a esse raio amado todas as expansões de uma alma nova. O sol, pasmado da indiferença, não interrompeu todavia o seu curso; tinha outras Beatrizes que saudar, umas risonhas, outras lacrimosas, outras apáticas, mas todas Beatrizes... E lá se foi o D. João do azul, espalhando no ar um milhão daquelas missivas radiosas.
Não menos pasmada ficou a mãe ao almoço. Beatriz mal podia disfarçar os olhos cansados de chorar; e sorria, é verdade, mas um sorriso tão forçado, tão de obséquio e dissimulação, que realmente faria descobrir tudo, se desde alguns dias antes, as maneiras de Beatriz não tivessem revelado tal ou qual alteração. A mãe supunha alguma moléstia; agora, sobretudo, que os olhos da moça tinham um ar febril, pareceu-lhe que era caso de doença incubada.
— Beatriz, você não está boa, disse ela à mesa.
— Sinto-me assim não sei como...
— Pois tome só chá. Vou mandar vir o doutor...
— Não é preciso; se continuar amanhã, sim.
Beatriz tomou chá, nada mais do que chá. Como não tinha vontade de outra coisa, tudo se combinou assim, e a hipótese da doença foi aparentemente confirmada. Ela aproveitou-a para meter-se no quarto o dia inteiro, falar pouco, não fazer toilette, etc. Não chamaram o médico, mas ele veio por si mesmo, o Tempo, que com uma de suas velhas poções abrandou a vivacidade da dor, e tornou o organismo ao estado anterior, tendo de mais uma saudade profunda, e a imortal esperança.
Realmente, só sendo imortal a esperança, pois tudo conspirava contra ela. Os pais de ambos os namorados tinham a seu respeito projetos diferentes. O de Eduardo meditava para este a filha de um fazendeiro, seu amigo, moça prendada, capaz de o fazer feliz, e digna de o ser também; e não meditava só consigo, porque o fazendeiro nutria iguais idéias. João B. chegara mesmo a insinuá-lo ao filho, dizendo-lhe que na Europa iria vê-lo alguém que provavelmente o ajudaria a concluir os estudos. Este foi, com efeito, o plano dos dois pais; seis meses depois, iria o fazendeiro com a família à Alemanha, onde casariam os filhos.
Quanto ao pai de Beatriz, os seus projetos eram ainda mais definitivos, se é possível. Tratava de aliar a filha a um jovem político, moço de futuro, e tão digno de ser marido de Beatriz, como a filha do fazendeiro era digna de ser mulher de Eduardo. Esse candidato, Amaral, freqüentava a casa, era aceito a todos, e tratado como pessoa de família, e com um tal respeito e carinho, um desejo tão intenso de o mesclar ao sangue da casa, que realmente faria rir ao rapaz, se ele próprio não estivesse namorado de Beatriz. Mas estava-o, e grandemente namorado; e tudo isso aumentava o perigo da situação.
Não obstante, a esperança subsistia no coração de ambos. Nem a distância, nem os cuidados diversos, nem o tempo, nem os pais, nada diminuía o viço dessa flor misteriosa e constante. Não disseram outra coisa as primeiras cartas, recebidas por um modo tão engenhoso e tão simples, que vale a pena contá-lo aqui, para uso de outros desgraçados. Eduardo mandava as cartas a um amigo; este passava-as a uma irmã, que as entregava a Beatriz, de quem era amiga e companheira de colégio. Geralmente as companheiras de colégio não se recusam a estes pequenos obséquios, que podem ser recíprocos; em todo o caso, — são humanos. As duas primeiras cartas, assim recebidas, foram a transcrição dos protestos feitos naquela noite de 23 de abril de 1861; transcrição feita com tinta, mas não menos valiosa e sincera do que se o fora com sangue. O mar, que deixou passar essas vozes concordes de duas almas violentamente separadas, continuou o perpétuo movimento da sua instabilidade.
CAPÍTULO III
Beatriz voltou aos hábitos anteriores, aos passeios, saraus e teatros do costume. A tristeza, de aguda que era e manifesta, tornou-se escondida e crônica. No rosto era a mesma Beatriz, e tanto bastava à sociedade. Naturalmente não tinha a mesma paixão da dança, nem a mesma vivacidade de maneiras; mas a idade explicava a atenuação. Os dezoito anos estavam feitos; a mulher completara-se.
Quatro meses depois da partida de Eduardo, entendeu a família da moça apressar o casamento desta; e eis aqui as circunstâncias da resolução.
Amaral cortejava a moça ostensivamente, dizia-lhe as finezas usuais, freqüentava a casa, ia onde ela fosse; punha o coração em todas as ações e palavras. Beatriz entendia tudo e não respondia a nada. Usou duas políticas diferentes. A primeira foi mostrar-se de uma tal ignorância que o pretendente achasse mais razoável esquecê-la. Pouco durou esta; era improfícua, tratando-se de um homem verdadeiramente apaixonado. Amaral teimou; vendo-se desentendido, passou a linguagem mais direta e clara. Então começou a segunda política; Beatriz mostrou que entendia, mas deixou ver que nada era possível entre ambos. Não importa; ele teimou ainda mais. Nem por isso venceu. Foi então que o pai de Beatriz interveio.
— Beatriz, disse-lhe o pai, tenho um marido para ti, e estou certo que vais aceitá-lo...
— Papai...
— Mas ainda que, a princípio recuses, não por ser indigno de nós; não é indigno, ao contrário; é pessoa muito respeitável... Mas, como ia dizendo, ainda que a tua primeira palavra seja contra o noivo, previno-te que é desejo meu e há de cumprir-se.
Beatriz fez um movimento de cabeça, rápido, espantado. Não estava acostumada àquele modo, não esperava a intimação.
— Digo-te que é um moço sério e digno, repetiu. Que respondes?
— Nada.
— Aceitas então?
— Não, senhor.
Desta vez foi o pai que teve um sobressalto; não por causa da recusa; ele esperava-a, e estava resolvido a vencê-la, segundo a avisou desde logo. Mas o que o espantou foi a prontidão da resposta.
— Não? disse ele daí a um instante.
— Não, senhor.
— Sabes o que estás dizendo?
— Sei, sim, senhor.
— Veremos se não, bradou o pai levantando-se, e batendo com a cadeira no chão; veremos se não! Tem graça! Não, a mim! Quem sou eu? Não! E por que não? Naturalmente, anda aí algum petimetre sem presente nem futuro, algum bailarino, ou estafermo. Pois veremos...
E ia de um lado para outro, metendo as mãos nas algibeiras da calça, tirando-as, passando-as pelos cabelos, abotoando e desabotoando o paletó, fora de si, irritado.
Beatriz deixara-se estar sentada com os olhos no chão, tranqüila, resoluta. Em certo momento, como o pai lhe parecesse exasperado demais, levantou-se e foi a ele para aquietá-lo um pouco; mas ele repeliu-a.
— Vá-se embora, disse-lhe; vá refletir no seu procedimento, e volte quando estiver disposta a pedir-me perdão.
— Isso já; peço-lhe perdão já, papai... Não quis ofendê-lo; nunca o ofendi... Perdoe-me; vamos, perdoe-me.
— Mas recusas?
— Não posso aceitar.
— Sabes quem é?
— Sei: o Dr. Amaral.
— Que tens contra ele?
— Nada; é um moço distinto.
O pai passou a mão pelas barbas.
— Gostas de outro.
Beatriz calou-se.
— Vejo que sim; está bem. Quem quer que seja, não terá nunca a minha aprovação. Ou o Dr. Amaral, ou nenhum mais.
— Nesse caso, nenhum mais, respondeu ela.
— Veremos.
CAPÍTULO IV
Não percamos tempo. Beatriz não casou com o noivo que lhe davam; não aceitou outro que apareceu no ano seguinte; mostrou uma tal firmeza e decisão, que encheu o pai de assombro.
Assim se passaram os dois primeiros anos. A família de Eduardo voltou da Europa; este ficou, para tornar quando acabasse os estudos. “Se me parecesse, ia já (dizia ele em uma carta à moça), mas quero conceder isto, ao menos, a meu pai: concluir os estudos.”
Que ele estudava, é certo, e não menos certo é que estudava muito. Tinha vontade de saber, além do desejo de cumprir, naquela parte, as ordens do pai. A Europa oferecia-lhe também alguns recreios de diversa espécie. Ele ia nas férias à França e à Itália, ver as belas-artes e os grandes monumentos. Não é impossível que, algumas vezes, incluísse no capítulo das artes e na classe dos monumentos algum namoro de ordem passageira; creio mesmo que é negócio liquidado. Mas, em que é que essas pequenas excursões em terra estranha lhe faziam perder o amor da pátria, ou, menos figuradamente, em que é que essas expansões miúdas do sentimento diminuíam o número e a paixão das cartas que mandava a Beatriz?
Com efeito, as cartas eram as mesmas de ambos os lados, escritas com igual ardor às das primeiras semanas, e nenhum outro método. O método era o de um diário. As cartas eram compostas dia por dia, como uma nota dos sentimentos e dos pensamentos de cada um deles, confissão de alma para alma. Parecerá admirável que este uso fosse constante no espaço de um, dois, três anos; que diremos cinco anos, sete anos! Sete, sim, senhora; sete, e mais. Mas fiquemos nos sete, que é a data do rompimento entre as duas famílias.
Não importa saber por que brigaram as duas famílias. Brigaram; é o essencial. Antes do rompimento desconfiaram os dois pais que os filhos tinham-se jurado alguma coisa antes da separação, e não estavam longe de concordar em que se casassem. Os projetos de cada um deles tinham naufragado; eles estimavam-se; nada havia mais natural do que aliarem-se mais intimamente. Mas brigaram; veio não sei que incidente estranho, e a amizade converteu-se em ódio.
Naturalmente um e outro pensaram logo na possibilidade do consórcio dos filhos, e trataram de afastá-los. O pai de Eduardo escreveu a este, já diplomado, dizendo que o esperasse na Europa; o de Beatriz inventou um pretendente, um rapaz desambicioso que jamais pensaria em pedi-la, mas que o fez, animado pelo pai.
— Não, foi a resposta de Beatriz.
O pai ameaçou-a; a mãe pediu-lhe por tudo o que havia de mais sagrado, que aceitasse o noivo; mostrou-lhe que eles estavam velhos, e que ela precisava ficar amparada. Foi tudo inútil. Nem esse pretendente nem outros que vieram, uns por mão do pai, outros por mão alheia. Beatriz não iludia ninguém, ia dizendo a todos que não.
Um desses pretendentes chegou a crer-se vencedor. Tinha qualidades pessoais distintas, e ela não desgostava dele, tratava-o com muito carinho, e pode ser que sentisse algum princípio de inclinação. Mas a imagem de Eduardo vencia tudo. As cartas dele eram o prolongamento de uma alma querida e amante; e aquele candidato, como os outros, teve de recuar vencido.
— Beatriz, vou morrer dentro de poucos dias, disse-lhe um dia o pai; por que me não dás o gosto de deixar-te casada?
— Qual, morrer!
E não respondia à outra parte das palavras do pai. Eram já passados nove anos da separação. Beatriz tinha então vinte e sete. Via chegar os trinta com tranqüilidade e a pena na mão. Não seriam já diárias as cartas, mas eram ainda e sempre pontuais; se algum paquete não as trazia ou levava, a culpa era do correio, não deles. Realmente, a constância era digna de nota e admiração. O mar separava-os, e agora o ódio das famílias; e além desse obstáculo, deviam contar com o tempo, que tudo afrouxa, e as tentações que eram muitas de um e outro lado. Mas apesar de tudo, resistiam.
O pai de Beatriz morreu dali a algumas semanas. Beatriz ficou com a mãe, senhora achacada de moléstias, e cuja vida naturalmente não iria também muito longe. Esta consideração deu-lhe ânimo para tentar os últimos esforços, e ver se morria deixando a filha casada. Empregou os que pôde; mas o resultado não foi melhor.
Eduardo na Europa sabia tudo. A família dele trasladou-se para lá, definitivamente, para o fim de o reter, e tornar impossível o encontro dos dois. Mas, como as cartas continuavam, ele sabia tudo o que se passava no Brasil. Teve notícia da morte do pai de Beatriz, e dos esforços empregados por ele e depois pela mulher, viúva, para estabelecer a filha; e soube (pode imaginar-se com que satisfação) da resistência da moça. O juramento da noite de 23 de abril de 1861 estava de pé, cumprido, observado à risca, como um preceito religioso, e, o que é mais, sem que lhes custasse mais do que a pena da separação.
Na Europa, morreu a mãe de Eduardo; e o pai teve um instante idéias de voltar ao Brasil; mas era odiento, e a idéia de que o filho podia então casar com Beatriz, fixou-o em Paris.
“Verdade é que ela não deve estar muito tenra...” dizia ele consigo.
Eram então passados quinze anos. Passaram-se mais alguns meses, e a mãe de Beatriz morreu. Beatriz ficou só, com trinta e quatro anos. Teve idéia de ir para Europa, com alguma dama de companhia; mas Eduardo contava então vir ao Rio de Janeiro arranjar alguns negócios do pai, que estava doente. Beatriz esperou; mas Eduardo não veio. Uma amiga dela, confidente dos amores, dizia-lhe:
— Realmente, Beatriz, você tem uma paciência!
— Não me custa nada.
— Mas esperar tanto tempo! Quinze anos!
— Nada mais natural, respondia a moça; eu suponho que estamos casados, e que ele anda em viagem de negócios. É a mesma coisa.
Essa amiga estava casada; tinha já dois filhos. Outras amigas e companheiras de colégio tinham casado também. Beatriz era a única solteira, e solteira abastada e pretendida. Agora mesmo, não lhe faltavam candidatos; mas a fiel Beatriz conservava-se como dantes.
Eduardo não veio ao Brasil, segundo contava, nem naquele nem no ano seguinte. As doenças do pai agravaram-se, tornaram-se longas; e nisto correram mais dois anos. Só então o pai de Eduardo morreu, em Nice, no fim de 1878. O filho arranjou os primeiros negócios e embarcou para o Rio de Janeiro.
— Enfim!
Tinham passado dezoito anos. Posto que eles tivessem trocado os retratos, mais de uma vez durante esse lapso de tempo, acharam-se diferentes do que eram na noite da separação. Tinham passado a idade dos primeiros ardores; o sentimento que os animava era brando, embora tenaz.
Vencida a letra, era razoável pagar; era mesmo obrigatório. Trataram dos papéis; e dentro de poucas semanas, nos fins de 1878, cumpriu-se o juramento de 1861. Casaram-se, e foram para Minas, donde voltaram três meses depois.
— São felizes? perguntei a um amigo íntimo deles, em 1879.
— Eu lhe digo, respondeu esse amigo observador. Não são felizes nem infelizes; um e outro receberam do tempo a fisionomia definitiva, apuraram as suas qualidades boas e não boas, deram-se a outros interesses e hábitos, colheram o fastio e a marca da experiência, além da surdina que os anos trazem aos movimentos do coração. E não viram essa transformação operar-se dia por dia. Despediram-se uma noite, em plena florescência da alma, para encontrarem-se carregados de fruto, tomados de ervas parasitas, e com certo ar fatigado. Junte a isto o despeito de não achar o sonho de outrora, e o de o não trazer consigo; pois cada um deles sente que não pode dar a espécie de cônjuge que aliás deseja achar no outro; pense mais no arrependimento possível e secreto de não terem aceitado outras alianças, em melhor quadra; e diga-me se podemos dizê-los totalmente felizes.
— Então infelizes?
— Também não. Vivem, respeitam-se; não são infelizes, nem podemos dizer que são felizes. Vivem, respeitam-se, vão ao teatro...
AS SINAGOGAS
João do Rio
Ontem, 14 de Hadar de 1664, eu assisti às cerimônias do carnaval nas sinagogas da Sion fluminense. O esperto Mardocheu, que tudo conseguira com a perfumada beleza de Ester, ao comunicar de Suza a sua luminosa vitória, ordenara para todo o sempre diversões e alegria nesse dia. Os filhos de Israel obedecem e, como a pátria de Israel é o mundo, nenhuma cidade ainda sofreu por não festejar data tão preciosa. No Rio, também ontem, cerca de quatro mil famílias divertiram, riram e beberam. Divertiram com discrição, é certo, beberam sem violência, riram com calma, exatamente porque a gente do país de Judá tem a tristeza nalma e a tenacidade na vida.
As festas do peisan foram copiadas dos persas pelos romanos. Os povos modernos copiaram dos romanos, aumentando os dias de prazer e destruindo a intenção cultual da cerimônia. Quem assistiu à orgia continua dos batuques carnavalescos, talvez não possa compreender como cerca de dez mil judeus comemoram o 14 de Hadar, com tanta modéstia e tanta correção.
Esses dez mil judeus divertiram-se, trocaram presentes, cantaram, ouviram mais uma vez a história da linda Ester, lida pela hhasàn nos sagrados livros, e cada um recolheu um momento o espírito para pensar em Mardocheu, no rei Assuéro e na maneira por que 60 milhões de antepassados foram salvos da morte e do patíbulo.
Entretanto, pela vasta cidade, ninguém desconfiou que tanta gente tivesse a alegria nalma.
É que os olhos de Israel são receosos, sempre curvados ao sopro das perseguições, sempre sábios. Festejaram sem que ninguém desse por tal...
O Rio tem uma vasta colônia semita ligada à nossa vida econômica, presa ao alto comércio, com diferentes classes sem relações entre elas e diferentes ritos.
Há os judeus ricos, a colônia densa dos judeus armênios e a parte exótica; a gente ambígua, os centros onde o lenocínio, mulheres da vida airada e caftens, cresce e aumenta; há israelitas franceses, quase todos da Alsácia Lorena; marroquinos, russos, ingleses, turcos, árabes, que se dividem em seitas diversas, e há os Asknenazi comuns na Rússia, na Alemanha, na Áustria, os falachas da África, os rabbanitas, os Karaitas, que só admitem o Antigo Testamento, os argônicos e muitos outros.
Os semitas ricos não têm no Rio ligação com os humildes nem os protegem como em Paris e Londres os grandes banqueiros da força de Hirsch e dos Rottchilds. São todos negociantes, jogam na Bolsa, veraneiam em Petrópolis, vestem-se bem.
Muitos são joalheiros, com a arte de fazer brilhar mais as jóias e de serem amáveis. Franceses, ingleses, alemães, o culto desses cavalheiros apresentáveis e mundanos reveste-se de uma discrição absoluta. Uns praticam o culto íntimo, outros não precisam do hhasan e fazem juntos apenas as duas grandes cerimônias: a Ion-Kipur ou dia das lamentações e do perdão, e o ano novo ou Rasch-Haschana.
Algumas sinagogas já têm sido estabelecidas nas salas de prédios centrais para receber esses senhores. Atualmente não há nenhuma, estando na Europa quem mais se preocupava com isso.
As riquezas das nações estão nas mãos dos judeus, brada o anti-semita Drumont, ao vociferar os seus artigos. A nossa também está, não porém nas dos judeus daqui, que são apenas homens ricos bem instalados nos bancos e na vida.
O outro meio, extraordinariamente numeroso, é onde vicejam o vício e a inconsciência, os rufiões e as simples mulheres que fazem profissão do meretrício. Essa gente vem em grandes levas da Áustria, da Rússia, de Marselha, de Buenos Aires, e habita na maior parte na praça Tiradentes, nas ruas Luís de Camões, Tobias Barreto, Sete de Setembro, Espírito Santo, Senhor dos Passos e nas ruelas transversais à rua da Constituição. Comem quase todas numas pensões especiais dessas ruas equivocas, pensões sujas em que se reúnem homens e mulheres discutindo, bradando, gritando. O alarido é às vezes infernal, porque, quase sempre numa briga de casal, ela explorada por ele, todos intervêm, dão razão, estabelecem contendas. Nestas casas guardam não raro uma sala para costura e outra destinada à sinagoga.
Há mais mulheres do que homens. Os homens são inteligentes, espertos, sabem e explicam com clareza, as mulheres são profundamente ignorantes da própria crença. Quase nenhuma sabe a data exata das festas, a sua duração, a sua razão de ser. É interessante interrogá-las, gastar algumas horas visitando as alfurjas apartadas desta babel americana.
- Então vai à sinagoga?
- Oh! aqui não há nada direito; em Buenos Aires sim.
- Mas você vai sempre a estas reuniões?
- Vou. Então podia deixar de ir?
- Por que vai?
- Porque tenho que ir. Quando saio de casa, deixo uma vela acesa.
- Por quê?
- É costume.
- A festa do ano novo quantos dias dura?
Uma nos diz três dias, outra oito, outras respondem vagamente. Entretanto, russas, inglesas, francesas fazem questão de se dizer judias e obedecem á fé. No dia do Kipur, ou dia do perdão, do arrependimento e das lamentações, fecham-se os prostíbulos, todas elas vão às sinagogas improvisadas soluçar os pecados do ano inteiro, os pecados sem conta. Às 4 da tarde fazem uma refeição sem pão, sem carne e desde que no céu palpita a primeira estrela, até ao outro dia, quando de novo Lúcifer brilha, não se alimentam mais, limpas de todos os desejos e de todas as necessidades humanas.
Estes judeus reúnem-se em qualquer parte, o mais letrado lê a história no tópico necessário, e choram e riem ou cantam, conforme é necessário, crentes ignorantes. As sinagogas ambulantes estão cada ano numa rua. As últimas reuniões deram-se na rua do Espírito Santo, na rua da Constituição, e na rua do Hospício. É chefe do culto, dirigindo os convites e organizando as festas, uma meretriz, a Norma, que ultimamente introduziu no Rio o entôlage, o roubo aos fregueses.
A outra sociedade, a mais densa, é a dos armênios e dos marroquinos. Essa fez-se de grandes levas de imigração para o amanho de terra, em que o Brasil gastou muito dinheiro. Os agentes em Gibraltar aceitavam não só famílias como homens solteiros. As colônias não deram resultados; no Iguaçu os colonos fugiam aos poucos, e em outros lugares foi impossível estabelecê-los, porque o povo até os julgava com chifres de luz como Moisés.
Os judeus árabes apareceram por aqui na miséria, mas aos poucos, pela própria energia, tomaram o comércio ambulante, viraram camelots, montaram armarinhos e acabaram prosperando. Há ruas inteiras ocupadas por eles, naturalmente ligados aos turcos maometanos, aos gregos cismáticos e a outras religiões e ritos degenerados, que pululam nos quarteirões centrais.
Nas levas de imigrantes vieram homens inteligentes e cultos. O hhasan David Hornstein é um exemplo. Esse homem cursou doze anos a Universidade Talmúdica, é poliglota, professor, correspondente de vários jornais escritos em hebreu e rabino diplomado da religião judaica. David estava na Palestina, na colônia Rishon l'Sion, uma espécie de companhia que o falecido barão B. Rothschild instalara em terrenos comprados ao sultão, com grande ódio dos beduínos. Nessa colônia havia médicos, advogados, russos niilistas. O resultado foi a sublevação, que o amável barão, depois da morte do administrador, acabou, dispersando-os amotinados. Vinte e dois desses homens, entre os quais David e o erudito Kulekóf, que acabou rico em São Paulo, partiram para Beirute, depois para Paris. Hirsch deu-lhe 500 francos, fazendo um discurso camarário.
Os judeus revolucionários foram para Gibraltar e aí embarcaram para o Brasil. Todos acabaram com fortuna, menos o rabino, que ficou ensinando línguas, porque o sacerdote judeu não vive do seu culto.
E esta parte densa da colônia judaica que tem duas sinagogas estáveis, uma na rua Luís de Camões, 59 e outra na rua da Alfândega, 369.
A sinagoga da rua Luis de Camões é do rito argônico. Entra-se num corredor sujo, onde crianças brincam. Aos fundos fica a residência da família. Na sala da frente está o templo, que quase sempre tem camas e redes por todos os lados.
As tábuas de Moisés negrejam na parede; a um canto está o altar, e na extremidade oposta fica a arca onde se guarda a sagrada história, resumo de toda a ciência universal, escrita em pele de carneiro e enrolada em formidáveis rolos de carvalho. Só nos dias solenes se transforma o templo. David Hornstein faz as cerimônias no meio da sala, no altar, envolto na sua túnica branca riscada nas extremidades de vivos negros, com um gorro de veludo enterrado na cabeça. Muito míope, o hhasan é acompanhado por três pequenos que entoam o coro.
No altar David retira a capa de veludo roxo dos rolos, abre-os da esquerda para a direita. Ao lado guiam-lhe a leitura com uma mão de prata. Aí, imóvel, sem se mexer, faz a oração secreta para que Deus o atenda e o perdoe de ser enviado e ousar rogar pelo seu povo.
Jeová naturalmente atende e perdoa. O hhasan infatigável já tem desenhado cento e cinqüenta sepulturas, já praticou a circuncisão em cerca de setecentos pequenos, já batizou, mergulhando em três banhos consecutivos, muitas meninas, já casou muitos judeus e prospera falando dos nossos políticos e citando os deputados com familiaridade.
A sinagoga da rua da Alfândega é muito mais interessante. Ocupa todo o sobrado do prédio 363, que é vulgar e acanhado, como em geral os do fim daquela rua. Sobe-se uma escada íngreme, dá-se num corredor que tem na parede as tábuas de Moisés.
Aí vive outro Moisés, o hhasan, com uma face espanhola e um ar bondoso. Na sala de jantar estão as paredes ornadas de símbolos, representando as doze tribos de Judá, e aí passam Moisés, ela de lenço na cabeça, ele com um chapéu de palha velho.
A sala da frente é destinada às cerimônias. Quase não se pode a gente mover, tão cheia está de bancos. No meio colocam o altar de vinhático envernizado, em que o hhasan fica de pé lendo ou cantando.
Nas paredes apenas as tábuas, ao fundo a arca com cortinas de seda, onde se guarda o sagrado livro. Do teto pendem presos de correntes brancas vasos de vidros, cheios de água onde 1amparinas colossais queimam crepitando. Sobre o altar desce o lustre de cristal, chispando luzes nos seus múltiplos pingentes. Além de Moisés, há outro sacerdote, Salomão, tão devoto, que é o hhassidim...
Foi nesta sinagoga, indicada por um negro falacha, cuja origem vem dos tempos de Salomão e da rainha de Sabá, que eu assisti ao peisan.
- Oh! eles são bons e se protegem uns aos outros - dizia o negro assombroso. - A vida do judeu pobre é a do pouco comer, do pouco gozar, do muito sofrer. Agora, fizeram a Irmandade de Proteção Israelita.
Eu olhava a turba colorida, a série de perfis exóticos, de caras espanholas e árabes, de olhos luminosos brilhando à luz dos lampadários. Havia gente morena, gente clara; mulheres vestidas à moda hebraica de túnica e alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus enterrados na cabeça, caras femininas de lenço amarrado na testa e crianças lindas. O hhasan, paramentado, lia solenemente e toda aquela esquisita iluminação de baldes de vidro, fazendo halos de luz e mergulhando na água translúcida as mechas das lamparinas, aquele lustre, onde as luzes ardiam, eram como uma visão de sonho estranho.
Enquanto o hhasan lia, com os pés juntos, sem mover sequer os olhos, com uma voz ácida tremendo no ar, todos tinham nas faces sorrisos de satisfação.
As cidades serão destruídas a ferro e fogo se não festejarem este dia no mês de Hadar. Nós festejamos. E diante das lâmpadas, para aquele punhado de judeus, a história desenrolava a maravilha de Assuero, que reinou desde a Índia até à Etiópia sobre cento e vinte cidades. Era Suza, a capital maravilhosa, Ester suave e cândida, substituindo a rainha Vashi, Mardocheu sentado à porta do templo sem adorar Aman, a quem Assuero tudo dava, Aman forçado a levar Mardocheu em triunfo, tudo por causa de uma mulher trêmula e tímida, que desmaiava, salvando 60 milhões de judeus e mandava matar quinhentos inimigos, pedindo concessões idênticas para as províncias.
Era a data dessa matança; festejava-se o dia em que Aman foi para o patíbulo que preparara para Mardocheu, e o momento em que se espatifara Arisai Frasandata, Delfon, Ebata, Forata, Adalia, Aridata, Fermesta, Aridai e Jerata.
Mas daquele livro sagrado, entre aquelas iluminações, a fé destilava a suprema delícia. Era como se cada palavra recordasse os banquetes dados aos príncipes nos átrios do palácio ornado de pavilhões da cor do céu da cor do jacinto e da cor da açucena; era como se cada período abrisse a visão das colunas de mármore, dos leitos de prata e ouro e dos pavimentos embutidos, onde esmeraldas rolavam...
Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de sinagoga, no fim da rua da Alfândega.
NO MAR
Raul Pompéia
I
Em volta de nós alargava-se um círculo d'água contornado pelo horizonte.
Era o Atlântico.
A noute caíra, uma noute esplêndida. O céu, recamado de cetim azul, cavava-se no alto, profundo e luminoso. Umas estrelas, de luz mortiça apareciam cintilando como cabeças de alfinete de prata e a lua desfigurada e enorme pela refração saía do oriente.
Havia oito dias que estávamos no mar, e cada noute fora para mim um espetáculo incomparável; nenhuma, porém, como a última. A pureza da atmosfera, o sossego das ondas, a tranqüilidade de bordo e o luar casavam-se tanto com o bem-estar de espírito em que me achava que eu me sentia impregnado de romantismo.
Estava sentado na coberta do vapor, sobre um caixão, que tinha (lembro-me ainda) as iniciais C.R. borradas com tinta preta. Levantei-me e me acerquei da amurada.
Firmei no parapeito os cotovelos e pus-me a olhar e a meditar. Por um tapete deslumbrante desenrolado por cima d'água, vinham até o vapor os raios de um luar branco delicioso.
Comecei a ver nesse tapete uns rostos conhecidos, digo, uns semblantes que havia gravados no meu coração. Eram as minhas recordações.
Reconhecia minha mãe, reconhecia meu pai, reconhecia meus irmãos.
Pensei neles e refleti que, dentro de uma semana, estaria eu na Europa, longe, longe dos seus carinhos. Entristeci-me. Súbito, porém, como que senti no cérebro uma chuva de estrelas; principiei a distinguir em meio da noute as grandezas que eu ia encontrar no velho mundo, tão novo para mim. O Brasil e a Europa apresentavam-se distintos na esfera das minhas reflexões. De uma parte, um hemisfério escuro, mergulhado na sombria tristeza da saudade; de outra, um hemisfério radioso iluminado pela minha sede do desconhecido.
O tempo que levei nessas cismas não sei. Fato é que, ao despertar-me delas, vi a lua elevada bastante e o isolamento em torno de mim. Os passageiros, que por ali andavam passeando ao luar, se tinham recolhido; um ou outro marinheiro necessário às manobras mostrava-se, neste ou naquele ponto, como uma sombra...
Ouvi, então, um suspiro abafado.
Cousa esquisita! Um suspiro ali pertinho, um suspiro que me pareceu escapado a um peito amante e a uns lábios formosos de moça poética...
Voltei-me para ver quem era.
A uns oito passos de mim, estava alguém, encostado à amurada como eu e olhando para o mar como eu estivera. Sonhei logo mil romances. O luar clareava um rosto de mulher, não deixando contudo ver-lhe a beleza. Do corpo, pouca cousa aparecia, oculto como se achava na sombra da amurada. Dirigi-me para a suspiradora.
Ela não mostrou perceber o meu movimento. Possível me foi examiná-la.
Era uma linda jovem de dezesseis anos presumíveis. Tinha uns olhos grandes, encantadores, voltados para o mar e uma pequenina mão encostada ao veludo rosado da face.
Trajava de azul, pareceu-me.
Lembrei-me de que, nas minhas cismas, não se me afigurava um rosto como o dessa visão, desse anjo.
É que meu coração não fora ainda penetrado pelas ternuras do amor e eu me habituara no Brasil a ver, nas mulheres, mulheres. Entretanto, naquela que ali estava eu via um anjo.
Esse anjo voltou os olhos para mim.
Vi de frente o mais belo rosto de menina que pudera idealizar.
Tinha cabelos castanhos e a tez entre o moreno e o alvo, isto é, da cor mais simpática do mundo.
O anjo sorriu-me furtivamente...
Eu vira aquela mulher uma única vez a bordo. Fora no dia seguinte ao do nosso embarque. Notara-lhe a beleza simplesmente. Desta vez, entretanto, um interesse excepcional levava-me para ela.
Sorri-me ao seu sorriso.
A linda criança envergonhou-se. Baixou o rosto. Eu estendi o braço e tomei-lhe a cintura. Ela não se ofendeu.
- Como se chama o senhor? perguntou com a voz comprida, balbuciante.
- Júlio, disse eu... E a senhora?
- Júlia, disse-me ela.
Oh! que não sei como referir ao leitor a doçura que me derramou no peito esta coincidência.
Júlia gozou também, com isso. Senti-lhe o braço redondo apertado pela manga do vestido cingir-me o pescoço com força. O meu corpo e o dela estavam achegados um do outro. As palpitações do meu coração encontravam-se com as palpitações do seu coração.
Saboreei num instante todas as alegrias de um amante feliz; e perante a presença da lua, como um namorado da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa Júlia um beijo... demoradamente...
Mais um aperto de mão e separei-me do meu anjo...
II
Dous longos dias se passaram, sem que eu tornasse a ver a minha Júlia, o meu primeiro amor...
Comecei a ter remorsos de não haver perguntado à mocinha quem eram seus pais, quem era ela, dizendo-lhe quem era eu também. Não quis informar-me para não despertar suspeitas. Resolvi esperar.
Debalde porém, postei-me à noute no lugar da minha entrevista.
Júlia não voltou.
Na terceira noute depois do momento mais feliz que tive na minha viagem, vi um homem dirigir-se para mim. Um marinheiro.
Vinha sério e como que tímido.
Cumprimentou-me, cumprimentei-o.
Eu estava à proa do vapor, vendo as ondas passearem à luz do luar, que continuava admirável como na noute de meu beijo. Era tarde.
- Sr. Júlio, disse o marujo, chamando-me pelo meu nome, sem querer, eu o vi, noutro dia, beijar uma moça... Queira acompanhar-me... vai ver uma cousa interessante talvez para o senhor...
Fui com o marinheiro para o tombadilho.
- Fique aqui e espere, mandou ele, indicando a entrada do beliche de um meu amigo de bordo... solteiro e folião...
Mal acabara o homem de falar, vi sair do beliche uma mulher...
Júlia!
O marinheiro olhava-me com um ar compadecido. Juro que tive ímpetos de dar uma bofetada neste homem de bem.
III
Momentos depois, pensa o leitor que estava eu resolvido a suicidar-me?...
Dei uma gargalhada.
SUJE-SE, GORDO!
Machado de Assis
(Grafia original)
Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.
- Fui sempre contrário ao júri, - disse-me aquele amigo, - não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, - proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, - chamava-se Lopes, - replicou com aborrecimento:
- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.
- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer Sujar-se? Suje-se gordo!
"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.
Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
- Como se chama? perguntou o presidente.
- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com um pontinha de riso nos cantos da boca.
Seguiu-se a leitura do processo. Era um falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito. os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.
Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes. os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.
Enquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: "Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.
Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer- lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.
v
REVELAÇÃO
Humberto de Campos
"A recordação de um primeiro beijo de homem, mesmo quando recebido contragosto, transforma-se no espírito da mulher virgem em desejo tenaz, absorvente, imperioso de o repetir, de renovar a sensação daquele delicioso pecado” — COLETTE WILLY
Com os olhos vermelhos de chorar, e com tremores de susto por todo o corpo delicado, a loura Mariazinha penetrou no gabinete do pai, em cujos braços se atirou, desatando em soluços. Trazido um copo d’água, e serenados os seus nervos exaltados, ainda, pelo terror, a moça contou, a custo, com o rosto nas mãos, o caso inominável.
— Eu vinha, — soluçava, entrecortando as palavras, — eu vinha da aula de música, sozinha, com a pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto da praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas, e, pondo o braço no meu pescoço, curvou-me para trás, e...
— E... — interrompeu o pai, com a agonia no coração.
E a moça, terminando, com dificuldade:
— Deu-me um beijo na boca, e correu, no rumo da praia!
O caso havia sido, realmente, assim, mas o Comendador insistiu na explicação:
— E tu não o conheces?
— Não, senhor. É um rapaz alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não sei quem é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei. Intimamente aborrecido com aquela aventura da filha, o Comendador deliberou punir o atrevido, prometendo à menina, entre carícias afetuosas:
— Deixa estar, sossega. Esse patife há de ser castigado. De agora em diante eu passarei a acompanhar-te, e, onde o encontrares, eu quero que mo apontes.
E, entre dentes:
— Patife!
Passada a primeira emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a violência da pureza sem simulações, começou o instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da moça, entre cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na ocasião. À medida, porém, que o tempo se passava, parecia-lhe que aquela carícia brutal aflorava, de novo, na sua boca, numa fome angustiosa de repetição. Debalde, passando a mãozinha pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela lembrança. Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e de modo tal que ela própria já buscava conservá-la no pensamento, como se conserva uma flor encantada, cuja árvore se viu morrer no caminho.
No dia seguinte, após uma noite de angústias deliciosas, em que se casavam, substituindo-se, o pudor e o desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido, que a mocinha ouviu, recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o lindo chapéu de palha de Itália, o convite paterno:
— Mariazinha, estás pronta?
— Já vou, papai! — respondeu a moça, de dentro, dando os últimos retoques na "toilette", diante do toucador.
Durante uma semana o Comendador acompanhou a filha, acima e abaixo, da cidade até o palacete, e do palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu insolente desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com essas idas e vindas fatigantes, mais padecia, ainda, a menina, cujos olhos se foram cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de insônia.
Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a um passeio na praia Mariazinha tomou um susto, que a fez parar, branca, de cera, no gramado por onde ia: diante dela, em um grupo de rapazes, estava, de pé, o estroina, que lhe acordara a alma adormecida na inocência, furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso daquele ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio, não se conteve:
— É aquele, papai! gritou, batendo as mãos geladas pela emoção.
E, atirando-se ao pescoço do rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente, desesperadamente, de beijos...
O LAPSO
Machado de Assis
E vieram todos os officiaes... e o resto do povo, desde o pequeno até ao grande.
E disseram ao propheta Jeremias: Seja aceita a nossa supplica na tua presença.
JEREM. XLII, 1, 2.
Não me perguntem pela familia do Dr. Jeremias Halma, nem o que e que elle veiu fazer ao Rio de Janeiro, n'aquelle anno de 1768, governando o Conde de Azambuja, que a principio se disse o mandára buscar; esta versão durou pouco. Veiu, ficou e morreu com o seculo. Posso affirmar que era medico e hollandez. Viajára muito, sabia toda a chimica do tempo, e mais alguma; fallava correntemente cinco ou seis linguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma theoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos therapeuticos, e outras muitas cousas, que o recommendam á nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso. Ao contrario, a vida e a pessoa d'elle eram como a casa que um patricio lhe arranjou na rua do Piolho, casa singelissima, onde elle morreu pelo natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem do conto. Vamos ao principio.
No fim da rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Thomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas inducções, vereador da camara. Vereador ou não, este Thomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha tambem dividas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar os seus atrazos, a velhacaria tambem; mas quem opinasse por uma ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguem a tarefa de escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do seculo passado, um homem que, por velhacaria ou deleixo, deixava de pagar aos credores. A tradição affirma que este nosso concidadão era exacto em todas as cousas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que usava pagar), não lhe regateavam provas de affeição e apreço: e, se é certo que foi vereador, como tudo faz crer, póde-se jurar que o foi a contento da cidade.
Mas então...? La vou; nem é outra a materia do escripto, senão esse curioso phenomeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Thomé Gonçalves, trajado com o habito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do pallio, e caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguem. Nas janellas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na esquina do becco das Cancellas (a procissão descia a rua do Hospicio), depois de ajoelhados, resados, persignados e levantados, perguntaram um ao outro, se não era tempo de recorrer á justiça.
— Que é que me póde acontecer? dizia um d'elles. Se brigar commigo, melhor; não me levará mais nada de graça. Não brigando, não lhe posso negar o que me pedir, e na esperança de receber os atrasados, vou fiando... Não, senhor; não póde continuar assim.
— Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa da minha dona, que é medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa tão importante... Mas eu como ou bebo da importancia dos outros? E as minhas cabelleiras?
Este era um cabelleireiro da rua da Valla defronte da Sé, que vendera ao Thomé Gonçalves dez cabelleiras, em cinco annos, sem lhe haver nunca um real. O outro era alfaiate, e ainda maior credor que o primeiro. A procissão passára inteiramente; elles ficaram na esquina, ajustando o plano de mandar os meirinhos ao Thomé Gonçalves. O cabelleireiro advertiu que outros muitos credores só esperavam um signal para cahir em cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a conveniencia de metter na conjuração o Matta-sapateiro, que vivia desesperado. Só a elle devia o Thomé Gonçalves mais de oitenta mil reis. N'isso estavam, quando por traz d'elles ouviram uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando porque motivo conspiravam contra um homem doente. Voltaram-se, e, dando com o Dr. Jeremias, desbarretaram-se os dois credores, tornados de profunda veneração; em seguida disseram que tanto não era doente o devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma das varas do pallio.
— Que tem isso? interrompeu o medico; ninguem lhes diz que está doente dos braços, nem das pernas...
— Do coração? do estomago?
— Nem coração, nem estomago, respondeu o Dr. Jeremias. E continuou, com muita doçura, que se tratava de negocios altamente especulativos, que não podia dizer alli, na rua, nem sabia mesmo se elles chegariam a entendel-o. Se eu tiver de pentear uma cabelleira ou talhar um calção— accrescentou para os não affligir,— é provavel que não alcance as regras dos seus officios tão uteis, tão necessarios ao Estado... Eh! eh! eh!
Rindo assim, amigavelmente cortejou-os e foi andando. Os dois credores ficaram embascados. O cabelleireiro foi o primeiro que fallou, dizendo que a noticia do Dr. Jeremias não era tal que os devesse afrouxar no proposito de cobrar as dividas. Se até os mortos pagam, ou alguem por elles, reflexionou o cabelleireiro, não é muito exigir aos doentes igual obrigação. O alfaiate, invejoso da pilheria, fel-a sua cosendo-lhe este babado:— Pague e cure-se.
Não foi dessa opinião o Matta-sapateiro, que entendeu haver alguma razão secreta nas palavras do doutor Jeremias, e propoz que primeiro se examinasse bem o que era, e depois se resolvesse o mais idoneo. Convidaram então outros credores a um conciliabulo, no domingo proximo, em casa de uma D. Anninha, para as bandas do Rocio, a pretexto de um baptizado. A precaução era discreta, para não fazer suppor ao intendente da policia que se tratava de alguma tenebrosa machinação contra o Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em capotes, e, como a illuminação publica só veiu a principiar com o vice-reinado do conde de Rezende, levava cada qual uma lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim ao conciliabulo um rasgo pintoresco e theatral. Eram trinta e tantos, perto de quarenta— e não eram todos.
A theoria de Ch. Lamb ácerca da divisão do genero humano em duas grandes raças, é posterior ao conciliabulo do Rocio; mas nenhum outro exemplo a demonstraria melhor. Com effeito, o ar abatido ou afflicto d'aquelles homens, o desespero de alguns, a preoccupação de todos, estavam de antemão provando que a theoria do fino ensaista é verdadeira, e que das duas grandes raças humanas,— a dos homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado,— a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as maneiras rasgadas e francas da segunda, _the open, trusting, generous manners of the other_. Assim que, n'aquella mesma hora, o Thomé Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os vinhos e gallinhas que comprára fiado; ao passo que os credores estudavam ás escondidas, com um ar desenganado e amarello, algum meio de rehaver o dinheiro perdido.
Logo foi o debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espiritos. Uns inclinavam-se á demanda, outros á espera, não poucos aceitavam o alvitre de consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis partidarios d'este parecer não o defendiam senão com a intenção secreta e disfarçada de não fazer cousa nenhuma; eram os servos do medo e da esperanca. O cabelleireiro oppunha-se-lhe, e perguntava que molestia haveria que impedisse um homem de pagar o que deve. Mas o Matta-sapateiro:— «Sr. compadre, nos não entendemos d'esses negocios; lembre-se que o doutor é estrangeiro, e que nas terras estrangeiras sabem cousas que nunca lembraram ao diabo. Em todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais.» Venceu este parecer; deputaram o sapateiro, o alfaiate e o cabelleireiro para entenderem-se com o Dr. Jeremias, em nome de todos, e o conciliabulo dissolveu-se na patuscada. Terpsychore bracejou e perneou diante d'elles as suas graças jocundas, e tanto bastou para que alguns esquecessem a ulcera secreta que os roia. _Eheu! fugaces..._ Nem mesmo a dor é constante.
No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os tres credores, entre sete e oito horas da manha. «Entrem, entrem...» E com o seu largo carão hollandez, e o riso derramado pela bocca fóra, como um vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande medico veiu em pessoa abrir-lhes a porta. Estudava n'esse momento uma cobra, morta de vespera, no morro de Santo Antonio; mas a humanidade, costumava elle dizer, é anterior á sciencia. Convidou os tres a sentarem-se nas tres unicas cadeiras devolutas; a quarta era a d'elle; as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas de objectos de toda a casta.
Foi o Matta-sapateiro quem expoz a questão; era dos tres o que reunia maior cópia de talentos diplomaticos. Começou dizendo que o engenho do Sr. doutor ia salvar da miseria uma porção de familias, e não seria a primeira nem a ultima grande obra de um medico que, não desfazendo nos da terra, era o mais sabio de quantos cá havia desde o governo de Gomes Freire. Os credores de Thomé Gonçalves não tinham outra esperança. Sabendo que o Sr. doutor attribuia os atrazos d'aquelle cidadão a uma doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes de qualquer recurso á justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero. Era isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores; desejavam saber se era verdade que, além de outros achaques humanos, havia o de não pagar as dividas, se era mal incuravel, e, não o sendo, se as lagrimas de tantas familias...
— Ha uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente commovido, um lapso da memoria; o Thomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de proposito que elle deixa de saldar as contas; é porque esta idéa de pagar, de entregar o preço de uma cousa, varreu-se-lhe da cabeça. Conheci isto ha dois mezes, estando em casa d'elle, quando alli foi o prior do Carmo, dizendo que ia «pagar-lhe a fineza de uma visita». Thomé Gonçalves, apenas o prior se despediu, perguntou-me o que era _pagar_; accrescentou que, alguns dias antes, um boticario lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por ouvil-a da bocca do prior, suppunha ser latim. Comprehendi tudo; tinha estudado a molestia em varias partes do mundo, e comprehendi que elle estava atacado do lapso. Foi por isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem doente.
— Mas então, aventurou o Matta, pallido, o nosso dinheiro está completamente perdido...
— A molestia não é incuravel, disse o medico
— Ah!
— Não é; conheço e possuo a droga curativa, e já a empreguei em dous grandes casos: um barbeiro, que perdera a noção do espaço, e, á noite estendia a mão para arrancar as estrellas do céu, e uma senhora da Catalunha, que perdera a noção do marido. O barbeiro arriscou muitas vezes a vida, querendo sahir pelas janellas mais altas das casas, como se estivesse ao rez do chão...
— Santo Deus! exclamaram os tres credores.
— É o que lhes digo, continuou placidamente o medico. Quanto á dama catalã, a principio confundia o marido com um licenciado Mathias, alto e fino, quando o marido era grosso e baixo; depois com um capitão, D. Hermogenes, e, no tempo em que comecei a tratal-a com um clerigo. Em tres mezes ficou boa. Chamava-se D. Agostinha.
Realmente, era uma droga miraculosa. Os tres credores estavam radiantes de esperança; tudo fazia crer que o Thomé Gonçalves padecia do lapso, e, uma vez que a droga existia, e o medico a tinha em casa... Ah! mas aqui pegou o carro. O Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo, embora entretivesse relações com elle; não podia ir offerecer-lhe os seus prestimos. Thomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem a responsabilidade de convidar o medico, nem os credores podiam tomal-a a si. Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como os do cabelleiro, exprimiram este alvitre desesperado; cotisarem-se os credores, e, mediante uma quantia grossa e appetitosa, convidarem o Dr. Jeremias á cura; talvez o interesse... Mas o illustre Matta via o perigo de um tal proposito, porque o doente podia não ficar bom, e a perda seria dobrada. Grande era a angustia; tudo parecia perdido. O medico rolava entre os dedos a boceta de rapé, esperando que elles se fossem embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que o Matta, como um capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo; advertiu que as suas primeiras palavras tinham commovido o medico, e tornou ás lagrimas das familias, aos filhos sem pão, porque elles não eram senão uns tristes officiaes de officio ou mercadores de pouca fazenda, ao passo que o Thomé Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes, cabelleiras, tudo o que lhes custava dinheiro, tempo e saude... Saude, sim, senhor; os callos de suas mãos mostravam bem que o officio era duro; e o alfaiate, seu amigo, que alli estava presente, e que entisicava, ás noites, á luz de uma candeia, zas-que-darás, puchando a agulha...
Magnanimo Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos humidos de lagrimas. O acanho de suas maneiras era compensado pelas expansões de um coração pio e humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia pôr a sciencia ao serviço de uma causa justa. Demais, a vantagem era tambem e principalmente do proprio Thomé Gonçalves, cuja fama andava abocanhada, por um motivo em que elle tinha tanta culpa como o doudo que pratica uma iniquidade. Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se em rapa-pés infindos e grandes louvores aos insignes merecimentos do medico. Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidando-os a almoçar, obsequio que elles não aceitaram, mas agradeceram com palavras cordialissimas. E, na rua quando elle já os não podia ouvir, não se fartavam de elogiar-lhe a sciencia, a bondade, a generosidade, a delicadeza, os modos tão simples! tão naturaes!
Desde esse dia começou Thomé Gonçalves a notar a assiduidade do medico, e, não desejando outra cousa, porque lhe queria muito, fez tudo o que lhe lembrou por atal-o de vez aos seus penates. O lapso do infeliz era completo; tanto a ideia de _pagar_, como as ideias co-relatas de _credor_, _divida_, _saldo_, e outras tinham-se-lhe apagado da memoria, constituindo-lhe assim um largo furo no espirito. Temo que se me argua de comparações extraordinarias, mas o abysmo de Pascal é o que mais promptamente veiu ao bico da penna. Thomé Gonçalves tinha o abysmo de Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam n'elle mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger de dentes da Escriptura. Urgia extrahir todos esses infelizes e entulhar o buraco.
Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retemperal-o, começou a applicar-lhe a droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiario, porque a cura operava-se de dous modos:— o modo geral e abstracto, restauração da ideia de pagar, com todas as noções co-relatas— era a parte confiada á droga; e o modo particular e concreto, insinuação ou designação de uma certa divida e de um certo credor— era a parte do medico. Supponhamos que o credor escolhido era o sapateiro. O medico levava o doente ás lojas de sapatos, para assistir á compra e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a acção de pagar; fallava da fabricação e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado n'aquelle anno de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta annos antes; fazia com que o sapateiro fosse dez, vinte vezes a casa de Thomé Gonçalves levar a conta e pedir o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabelleireiro, o segeiro, o boticario, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os ultimos com o trabalho anterior, d'onde lhes vinha a compensação da demora.
Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos credores, não se transcrevem as bençãos com que elles encheram o nome do Dr. Jeremias. Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em toda a parte. Parece cousa de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao Thomé Gronçalves, asmado de tantas dividas velhas, não se fartava de elogiar a longanimidade dos credores, censurando-os ao mesmo tempo pela accumulação.
— Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.
— Nós é que lhe marcaremos o tempo, respondiam generosamente os credores.
Restava entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o proprio Dr. Jeremias, pelos honorarios d'aquelle serviço relevantes. Mas, ai delle! a modestia atou-lhe a lingua. Tão expansivo era de coração, como acanhado de maneiras; e planeou tres, cinco investidas, sem chegar a executar nada. E aliás era facil; bastava insinuar-lhe a divida pelo methodo usado em relação á dos outros; mas seria bonito? perguntava a si mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia esperando. Para não parecer que se lhe mettia á cara, entrou a rarear as visitas; mas o Thomé Gonçalves ia ao casebre da rua do Piolho, e trazia-o a jantar, a ceiar, a fallar de cousas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores... Mas os credores, ainda quando pudesse passar-lhes pela cabeça a ideia de ir lembrar a divida, não chegariam a fazel-o, porque a suppunham paga antes de todas. Era o que diziam uns aos outros, entre muitas formulas da sabedoria popular:— Matheus, primeiro os teus— A boa justiça começa por casa— Quem é tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a verdade é que o Thomé Gonçalves, no dia em que fallecera, tinha um só credor no mundo:— o Dr. Jeremias.
Este, nos fins do seculo, chegára á canonisação.
— «Adeus, grande homem!» dizia-lhe o Matta, ex-sapateiro, em 1798, de dentro da sege, que o levava á missa dos carmelitas. E o outro, curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés:
— Grande homem, mas pobre diabo.