Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas domingo, 13 de março de 2022

UM QUARTO DE SÉCULO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM QUARTO DE SÉCULO

Machado de Assis

 

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

Eram quatro horas da tarde. Oliveira e Tomás conversavam à porta da casa do Desmarais, Rua do Ouvidor, ano de 1868, quando passou do lado oposto uma senhora, vestida de preto. Oliveira disse a Tomás:

 

— É a viúva Sales; espera.

 

E atravessando a rua, foi falar à viúva Sales, cinco a seis minutos apenas. As últimas palavras foram estas:

 

— Mas não posso contar com a senhora?

 

— Mana Rita está constipada; se ela ficar boa, vamos.

 

— Vou rezar para que fique boa.

 

— Os hereges não rezam, replicou a viúva sorrindo e despedindo-se.

 

Oliveira tornou à porta do Desmarais. Tomás seguiu com os olhos a viúva, até que ela dobrou a primeira esquina.

 

— Não é possível, disse ele.

 

— Que é que não possível?

 

— Essa viúva... É viúva de um médico, um doutor João Sales?

 

— Isso.

 

— D. Raquel?

 

— Exatamente.

 

— Filha de um conselheiro de guerra?

 

— Xavier de Matos. Conheces?

 

— Sim, conheço, isto é, conheci. Foi há muitos anos. Está mudada.

 

— Um pouco mais gorda.

 

— Conhecia-a magrinha.

 

— Mas não está mais velha. Queres vê-la, queres jantar com ela, lá em casa, sábado?

 

— Ela vai?

 

— Prometeu que iria, se a mana ficasse boa.

 

— Sim, Mariana, mais velha que ela.

 

— Não, Rita, mais moça. A mais velha morreu há anos; era casada com um deputado do Norte. A mais moça não casou. Vivem juntas.

 

— Vou.

 

— Seis em ponto.

 

— Em ponto.

 

— Bem, agora que a viste, que tens algumas notícias, que vais jantar com ela e conosco, sábado, às seis horas em ponto, quero que me digas tudo ou só metade, o que puder ser contado.

 

— Tudo é nada, respondeu Tomás. Que diabo de idéia é essa?

 

— Meu caro, quando eu me despedi dela, tu não me viste chegar ao pé de ti; ias atrás dela com os olhos, com os ouvidos, com tudo. O coração batia-te que se ouvia cá fora como o meu relógio de parede bate as horas, nos primeiros dias da semana, por estar de corda nova. Relojoeiro, desfaz o teu relógio.

 

Tomás sorriu, mas não sorriu bem; parecia acanhado. Oliveira não soube ser discreto. Íntimos desde a Faculdade de Direito de S. Paulo, onde se formaram, foram confidentes um do outro, até o dia em que a vida os separou; novamente ligados, Oliveira cuidava estar no mesmo ponto em que a vida os deixara antes. Tomás, pela sua parte, vacilava. Evidentemente, havia alguma coisa que dizer.

 

— Tudo é pouco.

 

— Esse pouco.

 

— Gostei dela em solteira, mas foi coisa que passou, como outras. Sabes que nós, por esse tempo, namorávamos a todas.

 

— Mas nunca me falaste desta.

 

— Provavelmente, falei; mas eram tantas! Bom tempo, Oliveira! Era melhor que isto de hoje com os nossos bigodes grisalhos, tu pai de filhos, eu solteirão desamparado, quarenta e quatro anos no lombo; tu tens mais três.

 

— Mais dois.

 

— Creio que já foram quatro, mas o tempo diminui tudo, começando por si mesmo.

 

— Vai para o diabo. Quarenta e seis, feitos em março.

 

Trocaram ainda algumas palavras, e despediram-se. Oliveira meteu-se no carro que estava no largo de S. Francisco de Paulo e foi para Andaraí. Tomás meteu-se na gôndola e guiou para o Catete.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

Tomás de Castro Rodrigues tinha realmente alguns fios de prata nos bigodes e nos cabelos; vieram-lhe cedo e tendiam a multiplicar-se. Bonita figura, bem posta sobre uns pés pequenos, elegante com certa graça do outono, dava ainda um noivo decente. Não casara por não achar noiva que o quisesse, dizia ele; mas, realmente, por causa de uma paixão da mocidade, esta mesma viúva Sales que passou agora na Rua do Ouvidor, então Raquel, simples Raquel.

 

Não tomes isto ao pé da letra, para me não acusares de romantismo. É certo que ele prometeu não casar nunca, depois da paixão de Raquel; mas, não foi precisamente a paixão que o deixou solteiro. Esta doeu-lhe por muito tempo, fê-lo empreender uma viagem à Europa, onde se demorou quatro anos. Os quatro anos, porém, não foram gastos em suspirar. O tempo e a distância depressa o fizeram sarar; a própria vida é que o confinou na solidão. Solidão fácil, aliás, composta de prazeres, viagens, distrações amorosas e outras. Quando se afastou da Europa, tornou para o Rio de Janeiro, onde assistiu à morte do pai, que lhe deixou todos os seus bens. Tomás era filho único. Já então Raquel, tendo casado com um negociante de Pelotas, havia partido para o Sul. Tomás começou a advogar; parece que defendeu algumas causas, perdeu-as todas, ou quase todas. Não fechou a banca; mas achava meio de não se meter em muito trabalho; este foi naturalmente fugindo, de maneira que, em pouco tempo, acabaram os clientes. A banca era pretexto para ter um lugar de descanso e conversação, e dar emprego a um servente.

 

Assim se passaram três a quatro anos. A Europa entrou a fazer cócegas ao advogado sem causas; mas o amigo Oliveira, já então casado, deu-lhe de conselho que entrasse na política. A idéia de ser ministro foi talvez o único motivo de aceitação deste conselho por um homem que não tinha partido nem inclinações políticas. Na Faculdade escrevera e falara nas liberdades públicas, no futuro dos povos, nas instituições democráticas, tudo isso, porém, sem convicção profunda nem superficial, um simples uso, uma espécie de oração necessária. Concluindo o curso, não pensou em libertar nem oprimir os povos. Agora a perspectiva ministerial fez alguma coisa; podia ser até que ele desse um bom orador, tendo sido dos melhores de seu tempo em S. Paulo.

 

Oliveira arranjou-lhe a cadeira, por intermédio de um parente ministro; aproveitou-se uma vaga, e Tomás entrou na Câmara. No distrito que o elegeu ficou o seu nome execrado; disseram-lhe todas as coisas feias, ambicioso vulgar, intruso, lacaio de ministro, gatuno, e besta. “Não é diploma que ele leva aqui; é uma gazua”, escreveu um jornal. Tomás quis rejeitar o diploma; não tinha a ambição necessária, ou qualquer sentimento equivalente, para suportar todo esse desejo de injúrias; mas Oliveira riu-lhe na cara, disse-lhe que não fosse tolo e ficasse; que os autores da palavrada não sentiam nada do que diziam, era a irritação própria da pretensão de outro candidato. Tomás obedeceu e entrou na Câmara.

 

Não foi ministro, proferiu dois discursos, aborreceu-se ao fim de algum tempo; cinco anos depois fazia outra viagem à Europa. Lá esteve, tornou a ir e regressou agora, há quatro meses, sem carreira, sem ambições, sem família. Conservava a riqueza, isso sim, não era gastador, vivia das rendas.

 

Resta dizer da paixão que primeiro o levou a andar por esse mundo. Já notei que, indiretamente, foi ela que o impediu de casar. É possível que, se houvesse de fazer vida regular, casasse e fundasse família. Raquel tinha vinte anos, quando ele a viu pela primeira vez, em um baile do Cassino Fluminenses. Era linda entre as lindas. Não lhe parecendo que ela o rejeitasse, buscou relacionar-se com a família. Houve da parte dele confiança demasiada; desde que começou a ir à casa dela, Raquel retraiu-se. Mas isto mesmo tornou mais forte a paixão do rapaz, — ou antes, foi isso que verdadeiramente a gerou. Até então o sentimento não passava do tom médio e comum de tantos amores que acabam em nada ou em casamento. Que motivo tinha Raquel para aceitá-lo a princípio e retrair-se depois? Talvez a lua o explique, talvez o vento. Não foi o mesmo que teve, mais tarde, para aceitá-lo novamente; aqui foi a piedade. Em verdade, a paixão do moço era tal que ela entendeu de bom aviso dar-lhe novas esperanças, e acabar casando. Pode ser que fosse assim, se ela não adoecesse daí a algumas semanas, indo para Minas, convalescer. Antes de concluído o prazo, Tomás correu a visitá-la. Esse encontro, após a ausência e a moléstia, devia desenganá-lo. Raquel desacostumara-se de o ver, não teve saudades, não lhe escrevera apesar das cartas dele, e o acolhimento foi apenas polido, senão pior. A piedade gastara as forças na tentativa de um amor que não queria nascer. Tomás voltou desesperado.

 

A verdade parece ser que Raquel era, mais que tudo, desconfiada e tímida. Pelo mesmo tempo em que Tomás a cortejava, era pretendida por mais dois homens, e essa competência produziu efeito contrário ao que se devia supor. Em casa, Raquel era chamada esquisitona. Acresce que um dos dois pretendentes, depois de desenganado, casou com outra moça, amiga dela, sem intervalo de dois meses. Essa facilidade de passar de uma a outra mulher fê-la ainda mais tímida e desconfiada. Tinha medo de entregar-se. De resto, foi a própria violência do amor de Tomás que o perdeu. Raquel achou a nota excessiva e teve medo. A separação fez-se com dor para ele, naturalmente sem saudade para ela. Nenhum pretendente os separou. Foi só depois que apareceu o negociante de Pelotas, sem paixão, apresentado pelo pai, como moço de muito futuro, e sério. Sales tinha trinta anos. Raquel aceitou-o sem combate nem entusiasmo; casou e partiu. Já Tomás estava na Europa.

 

Sales, negociante de Pelotas e doutor em medicina, liquidou a casa no fim de poucos anos e veio para o Rio de Janeiro. A idéia dele era viver uma vida elegante, participar de todos os prazeres da alta roda da capital. Contava com o papel eminente que caberia à mulher, agora mais bela que nunca. Assim foi. Em poucas semanas, em três meses, o nome de Raquel andava em todas as bocas, e a pessoa em todos os bailes e teatros. Toda a gente a conhecia na rua. Sales comprou uma carruagem e uma parelha de cavalos ingleses. A primeira modista era dela. Não eram dela as primeiras modas porque vinham feitas da Europa; mas entre as primeiras divulgadoras de um corte, de uma fazenda ou de um chapéu, estava a bela Raquel, — ou a bela Sales, como iam dizendo alguns, até que este nome se generalizou.

 

Pouco mais de um ano bastou a cansar o marido. Os hábitos do comércio ou da província, — os dele, ao menos, — não se podiam casar com a vida agitada que ele mesmo quisera e escolhera. Os bailes pareciam-lhes tristes, ao cabo de uma ou duas horas. Quando havia jogo, Sales atirava-se às cartas, enquanto a mulher valsava ou polcava. Gostava mais do teatro, e particularmente do teatro lírico; mas, se a primeira e segunda estação o encantaram, a terceira entrou a aborrecê-lo. Em casa, recebia bem e estava mais a gosto; mas tudo somado, a realidade da vida elegante não correspondia à expectação. Além do mais, para um homem afeito às lidas do comércio, a vida ociosa era pesada e vazia. Não sabendo que fazer do tempo, Sales lembrou-se de exercer a medicina. Curava de graça; não lhe faltavam doentes, e atrás deles a reputação. Assim passou alguns anos, até que ele próprio adoeceu, e, mais infeliz que os seus enfermos, sucumbiu.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

No sábado marcado, Tomás acudiu a Andaraí, onde já achou a viúva. Oliveira tinha anunciado a vinda do amigo, mas nem então, nem quando este chegou, houve da parte de Raquel a menor emoção. Ela falou ao namorado de outros dias, como se nada houvesse passado entre ambos, em bem ou em mal. Oliveira fê-los sentar, à mesa, ao pé um do outro; mas a vizinhança não alterou a disposição da viúva.

 

Tomás achou-a ainda bela, e, a muitos respeitos, melhor. Trinta e sete ou trinta e oito anos é o que devia ter. Era conversada, interessante, atenta, falando de tudo e bem, sem excesso, sem impertinência, calando a tempo, tudo isso com uma boca fresca e uns olhos capazes de paixão e de mando. Assim pareceram eles a Tomás, que estava comovido e ia-se sentindo acanhado. Para um homem vivido, o estado era inexplicável, se não fora a situação especialíssima. Ele supôs, e qualquer pessoa o suporia, que o longo celibato e a diferença dos tempos o teriam armado contra essa senhora, e foi contrário. Já não falo dos termos da separação de outrora, que eram um atrativo mais, não diminuído pela viuvez. A viuvez era antes um pico.

 

Raquel demorou-se pouco. A irmã, que estava presente, embora restabelecida, não podia apanhar sereno e a noite esfriava. Foi a razão dada pela viúva Sales para sair e não cantar, como lhe pedia Oliveira.

 

— Uma só daquelas músicas espanholas, que a senhora canta com tanta graça.

 

— Deixei a graça em casa; fica para outra vez.

 

A mulher de Oliveira ofereceu-lhes pousada por uma noite. Era impossível que D. Rita saísse; podiam ficar; iria levá-las no dia seguinte. Raquel não aceitou nada e despediram-se às nove horas. Tomás não ousou apertar fortemente a mão que ela lhe estendeu, à despedida, posto que esse fosse o seu desejo; tocou-lhe apenas nos dedos. Entretanto, esperava que ela lhe oferecesse a casa, e Raquel não lhe ofereceu coisa nenhuma.

 

Oliveira deu o braço a D. Rita, até o carro, deixando ao amigo a fineza de ir com a viúva. Tomás aproveitou o favor. Entre a casa, que ficava no centro de uma chácara, e a rua, havia cerca de trinta passos; Tomás fê-los compridos como léguas, sem achar uma palavra que dizer. Sentia o braço dela no seu, francamente pousado, sem cerimônia nem medo, e a sensação que isto lhe dava ainda mais lhe atava a língua. Enfim, chegaram ao carro.

 

— Obrigada, disse-lhe Raquel estendendo a mão.

 

Quando o carro partiu:

 

— Que tal a achaste? perguntou Oliveira.

 

— Achei-a bem.

 

— Estavas pálido.

 

— Eu?

 

— Deixa ver a tua mão; está fria. Seriamente, tu sentiste alguma coisa.

 

— Coisa nenhuma; tive recordações, mas, aos quarenta e quatro anos, as recordações são como brinquedos velhos e quebrados. Achei-a elegante. Queres que te diga? Mais distinta que em solteira.

 

— Mais senhora, mais tranqüila. O que tu queres dizer é que, em solteira, dava-te as mãos para que as beijasses.

 

— Nunca lhe beijei as mãos.

 

— Nunca! Nem os olhos?

 

— Menos ainda os olhos. Era muito arisca.

 

Tinham subido a escada de pedra, e parado à porta da sala de visitas. Oliveira pegou na mão do amigo, e, depois de alguns segundos:

 

— Se resolveres casar com ela, fala-me, disse.

 

— Casar?

 

— Fala-me, repetiu Oliveira.

 

— Tu estás tonto...

 

— Não é conselho que te estou dando; digo-te só que, se resolveres, estou pronto a servir de terceiro. Faz-se isto aos amigos velhos. Tu estás velho.

 

— Um pedido; não digas nada à tua mulher.

 

— De quê?

 

— Do que houve entre mim e Raquel.

 

— Já sabe. Contei-lhe tudo hoje de manhã; mas descansa, é discreta. Anda tomar uma xícara de chá; tens as mãos frias...

 

Tomás foi acabar a noite em um teatro. Não perdeu o sono, e acordou à hora do costume. Entretanto, a segunda ou terceira idéia que lhe acudiu, depois de acordado, foi a formosa viúva. Gostou de pensar nela; reconhecia que ela fora apenas polida, nem sequer faceira, nada que revelasse o desejo de lhe parecer bem. Durante uma semana pensou muitas vezes em Raquel. Chegou a esperá-la na Rua do Ouvidor. Sabendo onde morava, passou por lá duas vezes, sem a ver. Quinze dias depois do jantar, indo a Niterói, achou-a na barca. Ia só, com um véu pelo rosto, e parece que o vira, porque voltou a cara para o lado do mar. Tomás hesitou um instante; afinal foi cumprimentá-la. Raquel falou-lhe com afabilidade; ele sentou-se no mesmo banco.

 

— Há de crer que não vou à Praia Grande há dez anos? disse ele.

 

— Eu há dois meses. Vou visitar uma tia que está doente.

 

— Uma tia? Não me lembra, aventurou Tomás.

 

— Uma tia do finado.

 

O finado era o marido. Raquel referiu-lhe a moléstia, a idade, os costumes da pessoa, como se fossem coisas que o interessassem. Depois falou do mar. Depois falou do céu. Tudo como quem mata a alfinetadas um tempo que não quer morrer. Tomás pouco dizia; todo ele era ouvidos para escutá-la, olhos para vê-la, com os seus ombros fortes, as mãos finamente enluvadas, e os olhos, que pareciam de esfinge, agora que o céu os cobria. Pareciam ao nosso herói; ele é que o dizia consigo, romanticamente, não eu, que apenas traduzo aqui o próprio sentir do solteirão. Esfinge era a imagem velha; mas tinha para ele a mocidade de sua mocidade.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

Repetiram-se os encontros. Poucas semanas depois, Tomás fazia à viúva a sua primeira visita. Já então se podia dizer completamente enamorado, posto não ousasse confessá-lo, antes buscasse encobri-lo. Nada lhe dava certeza de poder ser aceito; mas também é verdade que não achava aparência de recusa. A viúva era atraente, cortês, interessante, ouvia-o com muito prazer, chegava a falar de outros tempos sem hesitação.

 

O quarto de século de distância eliminou-se como um castelo em ruínas de um teatro dá lugar a um campo alastrado de verdura, ao aceno do contra-regra. Tudo se renovava inteiramente. Casamento de um, ausência, dispersão de sentimentos, cansaço, fastio, desapareceram; e não foi só a moça que substituiu a viúva, mas o próprio sonho antigo que integralmente emergiu dos tempos. Tomás achou em si a força necessária para restaurar as suas imaginações perdidas. O que ele outrora pedia ao casamento com a solteira, achou-o nas mãos da viúva, como se o ofício delas não fosse mais que esperar por ele, guardando-se intactas do mundo e seus favores.

 

Seis meses não é pouco tempo entre um solteirão e uma viúva; mas tal foi o prazo decorrido sem que ele dissesse nada. Oliveira, a princípio, quis precipitar as coisas; a mulher disse-lhe que não; seria tomar a responsabilidade do que podia acontecer.

 

— Não são duas crianças, observou ela.

 

— Por isso mesmo, confirmou Oliveira rindo.

 

Um dia, enfim, Tomás resolveu pedir a viúva.

 

Escreveu-lhe uma carta, que rasgou, por achá-la extensa; escreveu outra, mais extensa, e mandou-lha.

 

Raquel, logo que deu com as primeiras palavras, interrompeu a leitura e deixou-se estar com os olhos no ar, perdidos. Sabia o conteúdo do papel; talvez houvesse ajudado a escrevê-lo. É o que perguntava agora a si mesma, um pouco arrependida, um pouco satisfeita. Não vos admireis deste sentimento duplo, que parecerá contraditório, e na verdade o é; mas a contradição também é deste mundo. Raquel, já viúva, rejeitara duas propostas de casamento. Era a terceira, e podia rejeitá-la, como as outras. Que é que a impedia de o fazer? Não chegava a explicar-se.

 

A idéia de que ele ficara solteiro, para não casar nunca, e rompia a promessa para acabar casando com ela, foi a causa principal da animação que lhe dera agora. A animação tinha de produzir os seus efeitos. Diante destes é que a viúva parecia espantada. Os olhos perderam-se cada vez mais, até que buscaram a carta e leram o que dizia.

 

O estilo era inflamado. Uma só vez a carta aludia ao passado: “Se achar que este meu modo de sentir é juvenil, saiba que dia houve em que o meu coração parou, e que a minha idade é a dele”. Raquel releu a carta, naturalmente não lhe respondeu logo; fá-lo-ia no dia seguinte. Tinha de refletir primeiro.

 

— Sim ou não? perguntou a si mesma.

E depois de alguns minutos:

 

— Amanhã; tenho tempo.

 

Parecerá esquisito que ainda agora hesitasse; mas a esquisitice também é deste mundo. Gostava do antigo noivo; não encarava até então a idéia de casar. Podia propor um adiamento. Verdade é que o adiamento acabaria, e sempre chegaria a necessidade de dar resposta. No dia seguinte, sentou-se, pegou na pena e começou dez vezes um bilhete em que lhe dizia que ia pensar; não atinava com o modo de concluir, e, por fim, achou que o alvitre era mau. O melhor era recusar logo. Com que palavras escreveria a negativa? Era melhor aceitar; mas, como?

 

Tudo isso parecer-vos-á insuportável, leitora atenta, e a mim também, que o estou contando, não menos que à própria dama em cujo cérebro todos esses pensamentos se esbarravam uns nos outros, sem vitória de nenhum. Passaram-se três dias. Ao quarto, Raquel consultou a irmã, que a animou a aceitar o marido.

 

— Estás certa que nenhum interesse o atrai?

 

— Seguramente.

 

— Pois aceita.

 

Raquel respondeu enfim, com duas linhas apenas, que pareceram a Tomás muito mais compridas que a longa carta que lhe escrevera: “Dou-lhe a minha mão, e espero que sejamos felizes”. Tomás foi agradecer-lhe a resposta. Estava trêmulo, como se contasse vinte anos, e fosse aquele o primeiro amor. A própria Raquel, uma vez decidida, tinha a comoção da adolescência. Pouco mediou entre a aceitação e a realização. Dois meses depois estavam casados.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

Após um quarto de século, voltara Tomás ao ponto de onde partira. Tendo navegado mares longos e enfadonhos, ei-lo que aporta à mesma terra vizinha, cujo acesso fora o sonho dos primeiros anos.

 

— Raquel, vinte e cinco anos de separação e desesperança, disse ele na carruagem que o trazia da igreja.

 

A lua-de-mel foi passada em Petrópolis, longe do universo, porque eles acharam uma casa separada do centro, e não saíram dela uns três dias. O plano do marido era não sair nunca; uma tarde, porém, transpondo o jardim, chegaram à rua, depois à outra rua. No dia seguinte, foram à Rua do Imperador; antes do fim da semana seguiram em carro ao alto da serra, a ver chegar o trem.

 

Não se pense que lhes foi indiferente a vista de coisas estranhas. Ao contrário, acharam certo prazer em mostrar aos outros a própria felicidade, Raquel ainda mais que o marido. Duas semanas depois de subidos a Petrópolis, recebeu Tomás uma carta de Oliveira. Era longa, banal, mas amiga; acabava perguntando quando esperavam descer do céu.

 

— Podemos ir amanhã, propôs a mulher.

 

— Já!

 

— Se você quiser; eu estou bem.

 

Tomás refletiu um instante.

 

— Sim, podemos ir amanhã ou depois.

 

A eternidade ficou reduzida de alguns séculos de séculos; mas, como todas as eternidades deste mundo são assim, a questão é saber em que proporção se reduzem. Ora, eles tiveram duas semanas de lua-de-mel; havia-as muito menores.

 

Três, quatro, cinco meses passaram, sem acontecimento apreciável. Mas há uma falta de acontecimentos, que o estado moral supre, e um homem e uma mulher podem viver mais que Alexandre ou César. Tal não era o estado do casal recente. Ao cabo de três meses, Tomás sentia em Raquel uma placidez de espírito, que não era o alvoroço que esperava, nem ainda o dos primeiros dias. Esse mesmo dos dias iniciais não correspondeu à esperança, mas confundia-se com o dele, e ambos lhe pareceram no mesmo grau infinito. Pouco a pouco, o estado normal vingou; ao fim de seis semanas, a diferença apareceu, até que, dobrado o prazo, Raquel ficou sendo uma senhora tranqüila, sem assomos de nenhuma espécie, sem inquietações nem saudades. Tudo o que pode definir bem a ausência de paixão parecia reunir-se nela. Quando a convicção desse estado entrou no ânimo do marido, houve uma tal ou qual sombra no céu conjugal. O pior é que ela não deu pelo fenômeno. Tomás encerrava-se longas horas no gabinete, a pretexto de trabalho, mas realmente para ler romances parisienses, comprados às dúzias. Raquel não iria arrancá-lo ao suposto trabalho, nem ralhava pelo excesso de esforço que devia atribuir-lhe. Um dia, quando muito, perguntou-lhe o que estava fazendo.

 

— Estou compondo um livro, disse ele, um estudo, uma obra política.

 

— Você quer ser deputado?

 

— Não.

 

E depois de um instante, sorrindo:

 

— Você gostaria de ouvir os meus discursos na câmara?

 

— Naturalmente.

 

Há mil modos de dizer naturalmente; Raquel escolheu um que não significava a co-participação da glória, e não o fez por afligi-lo, mas por não saber de outro. Tomás, que de começo, lia os romances com pouca atenção, acabou lendo-os por gosto e voltando assim a uma das suas diversões antigas. As longas reclusões eram menos aborrecidas que antes. Outras vezes demorava-se fora, ia a reuniões, ao teatro, a jantares, sem que Raquel achasse que dizer uma palavra amarga. Também não o recebia triste nem alegre. Uma ou outra vez bocejava este gracejo:

 

— Sim, senhor, bela vida para um homem casado.

 

— Eu te explico...

 

Tomás explicava-se, mas era difícil saber se ela escutava a explicação. Não tinha nos olhos sequer uma sombra de desconfiança. Nem ciúmes, nem despeito, nem nada.

 

Ao fim de seis meses Raquel foi a um baile. Havia anos que não pisava em nenhum, e já depois de casada, recusara ir a dois. Aceitara aquele. Não teve a folgança de outro tempo, mas achou alguma coisa que podia trazê-la. Daí a aceitação do segundo em que dançou, e de mais dois. O marido, fez-se sócio do Cassino Fluminense, a pedido dela.

 

— Com uma condição, disse Raquel; é que uma quadrilha será nossa.

 

— Justo.

 

Assim fizeram nos dois primeiros bailes; no terceiro, já não dançaram juntos.

 

— Raquel casou comigo, sem entusiasmo, pensava ele; foi como quem aceita um vestido novo. Não digo novo, mas bonito, talhado à moda...

 

Um dia, chegou a insinuar-lhe isto mesmo, no terraço da casa, antes do jantar. Ambos liam; ele, erguendo os olhos da página, viu que ela estava com o livro no regaço e as pálpebras caídas.

 

— É do livro ou do companheiro? perguntou ele.

 

Raquel sorriu constrangida, mas não disse nada.

 

Como ele insistisse:

 

— É do companheiro, respondeu.

 

— Talvez.

 

— Que idéia!

 

— Sim, a resposta é de gracejo, mas pode ser exata, sem que você dê por isso. Não me há de fazer crer que lhe dou a felicidade esperada, se é que esperou alguma. Não; você casou para fugir à importunação. A liberdade era melhor; podia ser até, — quem sabe? — podia ser que a sorte... Não falemos nisto!

 

Raquel olhava espantada. Tomás atirara o livro para um sofá e erguera-se, metendo as mãos nas algibeiras das calças. Mordia o beiço, e olhava para fora. Raquel fechou tranqüilamente o livro.

 

— Tomás, que idéias são essas?

 

— Que idéias?

 

— Essas.

 

— Essas quais?

 

— Essas! Não compreendo nada do que você me acaba de dizer. Principalmente, não compreendo que na nossa idade... Não somos crianças, Tomás, esses arrufos são bons para os vinte anos. Pois você crê que eu viva aborrecida...?

 

— Não vive de outra maneira, interrompeu o marido. Eu sinto, eu vejo, eu percebo tudo. Peço-lhe que não me obrigue a ir adiante. Olhe se os bailes a aborrecem, apesar de não ser criança? Tudo que é ir divertir-se é excelente; a minha companhia é que é um aborrecimento mortal.

 

Era a primeira vez que ele falava assim, em tal maneira, e com tal despeito, que Raquel sentiu-se lisonjeada. Vendo que era sincero, posto lhe parecesse esquisito, ela disse quatro ou cinco palavras amigas e alegres; ergueu-se, arrancou-lhe as mãos do bolso e fechou-as nas suas.

 

— Criança! disse. Pois você então pensa deveras que me aborrece? Tudo porque fechei os olhos, lendo um livro aborrecido. Ora, Tomás! Vamos, ria, ria um pouco.

 

— Deixa...

 

— Há de rir. Vamos, ria!

 

Tomás acabou rindo. O melhor era terminar ali mesmo o debate, e, se não estivessem expostos, terminá-lo com um beijo. Mas o riso do marido foi tão forçado que a mulher entendeu desculpar-se do que lhe parecia fastio ou indiferença. Era o modo dela. Nunca fora expansiva; a própria mãe a achava sempre assim; ia a falar do primeiro marido, mas recuou a tempo.

 

Um tanto vexado da cena, Tomás depressa se reconciliou; ela por sua parte, buscou trocar de maneiras; troca difícil. Tomás não achara no casamento a realização esperada de um sonho de longos anos. Toda essa mulher, deixada em botão, achada em flor, parecia uma flor sem cheiro. Raquel sacrificou os seus bailes; passou a fazer reuniões em casa, dava jantares, cercava-se de amigas. Conseguia prendê-lo; lia até o fim, com os olhos abertos, todos os livros que ele lhe dava. Entrou a censurá-lo, quando ele se demorava fora; e, em vez de ir dormir, como a princípio, deixava-se estar até uma e duas horas, quando ele voltava do teatro, nas noites em que ia só ou com algum amigo. A solicitude teve o mesmo efeito da indiferença; tudo acabou no mesmo tédio.

 

— Talvez o mal esteja em mim, pensou ele um dia.

 

E inclinando o espírito aos tempos de solteiro, sentiu grande saudade. Para reaver um pouco da sensação antiga, convidou a mulher a uma viagem à Europa; foram, gastaram dois anos, tornaram mais conservados; mas a viagem não apertou os laços da afeição. Realmente, o consórcio era para ele mesmo um ofício novo, aprendido fora de tempo, quando a pessoa só ama e conhece outro ofício.

 

Já se não queixava; deixava-se ir com os anos. Vieram os cinqüenta. A cunhada morreu. A casa fez-se mais deserta. Tomás, fora do voltarete, só achava prazer na Rua do Ouvidor. Era ainda e sempre o mesmo homem elegante. Deleitava-se em ver passar as senhoras, mirá-las, acompanhá-las com os olhos e as idéias. Chamava a isto liberdade — uma liberdade que perdeu, que entregou por seu gosto nas mãos do casamento.

 

Mudando de casa por esse tempo, mandou preparar ao rés-do-chão um gabinete para si, exclusivo, reprodução do último aposento de solteiro. Nada havia ali que cheirasse ao casamento, nem a fotografia da mulher, nada. Era a casa do celibato, em que ele se metia duas e três horas diariamente, para viver outra vida não totalmente outra, mas algo que a lembrasse.

 

Raquel não se opôs à alteração nem a sentiu. Viviam em boa paz, uma santa paz bocejada e ininterrupta. Os anos vieram vindo. Um dia, Raquel caiu doente, uma febre perniciosa que a levou em poucos dias. Tomás foi dedicado, não poupou esforços de toda a espécie para salvá-la; ela morreu-lhe nos braços, ele quis acompanhá-la ao enterro. Oliveira foi ter com o amigo.

 

— Tomás, disse-lhe, tu não podes viver só aqui; anda cá para casa. Arranjo-te um cômodo grande e livre; ficas a teu gosto.

 

— Obrigado, Oliveira; deixa-me; algum dia, pode ser.

 

Meteu-se no aposento de solteiro, agora de viúvo, sempre de solitário. Nada alterou a casa, em cima, onde almoçava e jantava. Fez no ano seguinte outra viagem à Europa, muito mais alegre, como um pássaro livre. Gostava da lufa-lufa de estradas de ferro, de hotéis, de teatros, de revistas militares, bulevares; foi à França, foi à Inglaterra, à Alemanha, e voltou o mesmo velho petimetre. Vinte e quatro horas depois de chegado, estava no cemitério, visitando a sepultura da mulher. Deu-lhe um mausoléu rico e belo, obra de um escultor italiano, e continuou a visitá-la naquele palácio último. Os empregados do cemitério já o conheciam.

 

— É o viúvo da D. Raquel, diziam eles pelo epitáfio. Se todos fossem como este!

 

Não podiam crer, nem eu digo isto, que ele amasse mais a mulher morta que viva; é falso. O que se pode admitir é que ele sentia antes a perda da mulher que do casamento.


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