O ELEFANTE
Humberto de Campos
Abu-Beker, o mercador opulento que espantava Bagdá com os esplendores do seu luxo, encontrou, um dia, entre as suas quatrocentas mulheres, uma, de beleza excepcional, que lhe enchera do vinho do desejo a bilha de ouro do coração. Chamava-se Kiusa, e sua língua era doce como uma tâmara. Adorando-a até o desespero, uma dúvida o atormentava, dia e noite, na suntuosidade do seu palácio: a dúvida de que aquele corpo era seu, apenas, e de que ninguém lhe violava, subornando os eunucos, a honestidade do gineceu. E foi atormentado que, um dia, se dirigiu à mesquita, e pediu, com o rosto em terra, soluçando versículos do Alcorão:
— Alá, tu, que abranges o universo com teu poder, consente que seja minha, unicamente, a esposa do meu amor. Eu tenho pensado, nas minhas vigílias aflitas, no meio de conservá-la virgem de beijos alheios; e encontrei um remédio: arrebatá-la para as montanhas, para os desertos, para as florestas que marcam os limites do mar, onde não haja outros seres senão eu e ela. Transforma-me, pois, na tua misericórdia, em um elefante soberbo e poderoso, para que eu atravesse, puxando o seu carro, as regiões desertas da Arábia!
Instantes depois, graças a um sortilégio comum nas terras do Crescente, saía as portas de Bagdá um carro suntuoso, tauxiado de ouro e forrado de púrpura, puxado pesadamente por um elefante. E foi de coração sossegado que Abu-Beker penetrou, transformado no monstruoso plantígrado, as florestas da Índia, arrastando pacientemente o carro do seu amor.
Certo dia, após uma viagem penosa e longa, o elefante parou de repente, desatrelou-se com o auxílio da tromba, e, abandonando os varais, deu volta em torno do carro, cuja entrada era por trás. E soltou um rugido de dor e de espanto: dentro, nos coxins que a sua opulência amontoara, deitavam-se enlaçados, Kiusa, maravilhosa de formosura, e bêbada de desejo, e, ao seu lado, beijando-lhe os olhos, Ebn-Ali, mercador de Alexandria! Ele tinha vindo, desde Bagdá, a puxar o carro dos dois amantes, que, dentro, se enlaçavam amorosos, enquanto ele, confiado e sereno, feria as patas pelo caminho!
Um barrido de desespero marcou o fim daquele encantamento humilhante. E era tornado homem, com o seu manto de mercador despedaçado pelos espinhos da viagem, que Abu-Beker gemia, com o rosto no solo.
— Alá, bendito sejas tu, na tua gloriosa sabedoria! Debalde tentarão os homens, mesmo com o teu auxílio, forçar as mulheres à honestidade, quando dias querem traí-los!
E debulhava-se em lágrimas, quando ouviu, de súbito, uma voz poderosa, que lhe disse:
— Mortal, aprende, tu mesmo, à tua custa, esta grande verdade; nenhum homem poderá, jamais, subtrair a mulher à traição, quando ela o queira enganar. O insensato que, como tu, trouxer, por prevenção, o leito às costas, terá, ao fim da viagem, uma surpresa dolorosa: verá que arrastou pelos caminhos, sem o saber, a mulher e o amante!
Abu-Beker levantou-se, enxugou os olhos, e, para esquecer, começou a ler o Alcorão.