O PRESTÍGIO DO ROUGE
Humberto de Campos
Quando a gripe devorava, no Rio de janeiro, diariamente, centenas de vidas, a porta do Céu fazia, recordar, lá em cima, as portas de cinema, em dia de programa sensacional. Homens, mulheres, crianças, pessoas cuja morte estava iminente ou marcada para uma época muito distante, amontoavam-se diante da grande fachada refulgente de estrelas, reclamando, com o bilhete de entrada, o prêmio das suas boas obras ou do seu martírio.
— Antônio Esmeraldino Gomes de Albuquerque! — chamava, em voz alta, o santo do dia, lendo uma lista de nomes.
— Presente! — respondia o invocado, encaminhando-se para a porta.
São Pedro conferia os sinais da pessoa e dava-lhe, então, entrada, entre o coro festivo dos anjos.
Uma tarde, porém, chegou à fachada do Paraíso, entre milhares de vítimas da epidemia, uma senhora de uns quarenta e tantos anos, vitimada naquele dia. Pálida, com os lábios alvos como a cera dos círios que deixara na terra, a sua fisionomia denunciava cansaço, tristeza, sofrimento. De repente, chamaram um nome:
— D. Luíza Gonçalves Pedreira.
— Presente! — confirmou a nobre defunta, pondo, já um dos pés no batente sagrado.
Uma grande mão desceu, porém, sobre o seu ombro, detendo-a.
— É a senhora? — indagou, severo, o chaveiro.
— Sou eu mesma, meu santo!
— Mas a outra, a que vivia na terra, tinha, segundo os sinais que me fornecem, as faces muito coradas.
A dama não respondeu.
— E os lábios muito vermelhos.
Novo silêncio.
— E os cabelos muito negros.
Silêncio ainda.
— E umas olheiras muito pronunciadas.
Nesse ponto, antes que a enumeração tomasse um caráter comprometedor, D. Luisinha teve uma ideia: mergulhou as mãozinhas pálidas no forro da mortalha, arrancou de lá um lápis de "rouge", um pedaço de bistre, um canudo de cosmético, penteou-se, empoou-se, endireitou-se, e, levantando a cabeça, encarou o apóstolo.
— Pronto! — exclamou a dama.
São Pedro mirou-a, sorrindo. E, escancarando a porta, convidou:
— Ahn! É a senhora mesmo... Entre!
E ela entrou.