Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas segunda, 18 de julho de 2022

HISTÓRIA DE GENTE ALEGRE (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

HISTÓRIA DE GENTE ALEGRE

João do Rio

(Grafia original)

 

- O terraço era admirável. A casa toda parecia mesmo ali pousada à beira dos horizontes sem fim como para admirá-los, e a luz dos pavimentos térreos, a iluminação dos salões de cima contrastava violenta com o macio esmaecer da tarde. Estávamos no Sman-Club, estávamos ambos no terraço do Smart-Club, esse maravilhoso terraço de vila do Estoril, dominando um lindo sítio da praia do Russel - as avenidas largas, o mar, a linha ardente do cais e o céu que tinha luminosidades polidas de faiança persa. Eram sete horas. Com o ardente verão ninguém tinha vontade de jantar. Tomava-se um aperitivo qualquer, embebendo os olhos na beleza confusa das cores do ocaso e no banho viride de todo aquele verde em redor. As salas lá em cima estavam vazias; a grande mesa de bacará, onde algumas pequenas e alguns pequenos derretiam notas do banco - a descansar. O soalho envernizado brilhava. Os divãs modorravam em fila encostados às paredes - os divãs que nesses clubes não têm muito trabalho. Os criados, vindos todos de Buenos Aires e de S. Paulo, criados italianos, marca registrada como a melhor em Londres, no Cairo, em New York, empertigavam-se. E a viração era tão macia, um cheiro de salsugem polvilhava a atmosfera tão levemente, que a vontade era de ficar ali muito tempo, sem fazer nada. Mas a noite já estendia o seu negro brocado picado de estrelas e no plein-air do terraço começavam a chegar os smart-diners. Que curioso aspecto! Havia franceses condecorados, de gestos vulgares, ingleses de smoking e parasita à lapela, americanos de casaca e também de brim branco com sapatos de jogar o foot-ball e o lawn-tennis, os elegantes cariocas com risos artificiais, risos postiços, gestos a contragosto do corpo, todos bonecos vítimas da diversão chantecler, os noceurs habituais, e os michés ricos ou jogadores, cuja primeira refeição deve ser o jantar, e que apareciam de olheiras, a voz pastosa, pensando no bac chemin de fer; no 9 de cara e nos pedidos do último béguin. O prédio, mais uma "vila' da bacia do Mediterrâneo, ardia na noite serena, parecia a miragem dos astros do alto; as toalhas brancas, os cristais, os baldes de cristofle tinham reflexos. Por sobre as mesas corria como uma farândola fantasista de pequenas velas com capuchons coloridos, e vinha de cima uma valsa lânguida, uma dessas valsas de lento inebriar, que adejam vôos de mariposas e têm fermatas que parecem espasmos. No meio daquela roda de homens, que se cumprimentavam rápidos, dizendo apenas as últimas sílabas das palavras: - B'jour; Plo... deus! goo, iam chegando as cocottes, as modernas Aspásias da insignificância. Algumas vinham a arrastar vestidos de cinco mil francos; outras tinham atitudes simplistas dos primitivos italianos. Havia na sombra do terraço, um desfilar de figuras que lembravam Rossetti e Helleu, Mirande e Hermann-Paul, Capielo e Sem, Julião e também Abel Faivre, porque havia cocottes gordas, muito gordas e pintadas, ajaezadas de jóias, suando e praguejando. Falavam todas as línguas estrangeiras - o espanhol, o francês, o italiano, até o alemão com o predomínio do parigot, do argot, da langue verte. Só se falava mesmo calão de boulevard. Fora, à entrada, paravam as lanternas carbunculantes dos autos, havia fonfons roucos, arrancos bruscos de máquinas H.P 6o. Aquele ambiente de internacionalismo à parisiense cheio do rumor de risos, de gluglus de garrafas, de piadas, era uma excitação para a gente chique. O barão André de Belfort, elegantíssimo na sua casaca impecável, convidara-me para um jantar a dois em que se conversasse de arte antiga - porque ele tinha estudos pessoais sobre a noção da linha na Grécia de Péricles. Evidentemente, antes de terminar o jantar teríamos a mesa guarnecida por alguma daquelas figurinhas escapas de Tanagra ou qualquer dos gordos monstros circulantes...

De súbito, porém na alegria do terraço ouvi por trás de mim, uma voz de mulher dizer:

- Pois então não sabes que a Elsa morreu hoje de madrugada?

Não me voltei. A mulher conversava noutra mesa. Mas senti um pasmo assustado. Elsa! Seria a Elsa d'Aragon, uma carnação maravilhosa de dezoito anos, lançada havia apenas um mês por um manager de music hall, cuja especialidade sexual era desvirginar meninas púberes? Seria ela com os seus olhos verdes, a pele veludosa de rosa-chá e aquela esplêndida cabeleira negra de azeviche? E morrer em plena apoteose, cheia de jóias e de apaixonados! Indaguei do meu conviva:

- Morreu a Elsa d'Aragon?

O barão Belfort encomendava enfim o cardápio. Acabou tranqüilamente agrave operação, descansou o monóculo em cima da mesa.

- Exatamente. Parece que a apreciavas? Pobre rapariga! Foi com efeito ela. Morreu esta madrugada.

- De repente?

- Com certeza. Devia ter sido uma linda morte. Beleza horrível. Não se fala noutra coisa hoje nas pensões de artistas, em todos os conventilhos elegantes patronados pelas velhas cocottes ricas, nas rodas dos jogadores. A Elsa era muito nature, com a fobia do artificio, mas soube morrer furiosamente.

- Como foi?

Neste momento chegara a "bisque" e o balde com a Moet, brut imperiale, que o velho dândi bebe sempre desde o começo do jantar.

O barão atacou a "bisque", deu não sei que ordem ao maitre-d' hôtel, e murmurou:

- É uma história interessante. Você decerto ainda não quis fazer a psicologia da mulher alegre atirando-se a todos os excessos por enervamento de não ter o que fazer? Quase todas essas criaturas, altamente cotadas ou apenas da calçada, são, como direi? as excedidas das preocupações. Estão sempre enervadas, paroxismadas. O meio é atrozmente artificial, a gargalhada, o champagne, a pintura encobrem uma lamentável pobreza de sentimentos e de sensações. Ao demais, a vida tem um regulamento geral de excessos, e elas fatalmente pela lei, têm que fazer pagar caro e arruinar os idiotas, têm de amar um rapazola miserável que lhes coma a chelpa e as bata, têm que embriagar-se e discutir os homens, os negócios das outras, tudo mais ou menos exorbitando. Uma paixão de cocotte é sempre caricatural, é sempre para além do natural, do verdadeiro, e a sua pobre vida, tenha ela centenas de contos ou viva sem um real pelas bodegas reles, é sempre uma hipótese falsificada de vida, uma espécie de fjord num copo d'água, à luz elétrica. Todas amam de modo excepcional, jogam excessivamente, embriagam-se em vez de beber, põem dinheiro pela janela afora em vez de gastar, quando choram, não choram, uivam, ganem, cascateiam lágrimas. Se têm filhos, quando os vão ver fazem tais excessos que deixam de ser mães, mesmo porque não o são. Duas horas depois os pequenos estão esquecidos. Se amam, praticam tais loucuras que deixam de ser amantes, mesmo porque não o são. Elas têm várias paixões na vida. Cinco anos de profissão acabam com a alma das galantes criaturinhas. Não há mais nada de verdadeiro. Uma interessante pequena pode se resumir: nome falso, crispação de nervos igual à exploração dos "gigolôs" e das proprietárias, mais dinheiro apanhado e beijos dados. São fantoches da loucura movidos por quatro cordelins da miséria humana.

- A Elsa, então?

- A Elsa foi atirada subitamente numa pensão do Catete. Sabes o que é a vida em casas de tal espécie. Elas acordam para o almoço, em que aparecem vários homens ricos. O almoço é muito em conta, os vinhos são caríssimos.

A obrigação é fazer vir vinhos. Desde manhã elas bebem champagne e licores complicados. Nesses almoços discute-se a generosidade, a tolice, ou a voracidade dos machos. A tarde é dada a um ou a dois. Às cinco toilette e o passeio obrigatório. À noite, o jantar em que é preciso fazer muito barulho, dançar entre cada serviço ou mesmo durante, dizer tolices. Depois o passeio aos music-halls, com os quais têm contrato as proprietárias, e a obrigação de ir a um certo club aquecer o jogo. Cada uma delas tem o seu cachet por esse serviço e são multadas quando vão a outro - que, como é de prever, paga a multa. O resto é ainda o homem até dormir. Nesse fantochismo lantejoulado há vários gêneros: o doidivana, o sério, o reservado, o nature, o romântico, e para encher o vazio, os vícios bizarros surgem. Elas ou tomam ópio, ou cheiram éter, ou se picam com morfina, e ainda assim, nos paraísos artificiais são muito mais para rir, coitadas! mais malucas no manicômio obrigatório da luxúria. A Elsa era do gênero nature. Ancas largas, pele sensível, animal sem vícios. Tentou os petimetres, os banqueiros fatigados, os rapazes calvos e, com oito dias estava com os nervos esgarçados, estava excedida. Mesmo porque, desde a primeira hora olhava-a com seu olhar de mona a Elisa, a interessante Elisa.

- Ah!

- Elisa é um tipo talvez normal nesse ambiente. Tem os cabelos cortados, usa eternamente um gorro de lontra. Nunca a vi com uma jóia e sem o seu tailleur cor-de-castanha. É feia, não deve agradar aos homens, mas presta-se a todos os pequenos serviços dessas damas. Escreve cartas, arranja entrevistas, tem conhecimentos, e dizem-na com todos os vícios, desde o abuso do éter até o unissexualismo. Ora, era Elisa com os seus dois olhos mortos e velados que olhava Elsa, e Elsa sentia uma extraordinária repugnância, um nojo em que havia medo ao mais simples contato. Elisa sorria, a Elisa que está sempre nesses lugares, sem colete com o seu corpo de andrógino morto. E era em toda parte aquele mesmo olhar acompanhando Elsa, pregando-se a todos os seus gestos, lambendo cada atitude da criatura. Uma noite, as duas Lacroix Ducerny, as que vestem sempre iguais e fazem fortuna em comum, asseguraram-me que Elisa já não servia para nada, perdida, louca de paixão; e, com grande pasmo meu ao entrar num club ultra-infame, eu vi a Elsa com um conhecido banqueiro e, muito naturalmente, Elisa ao lado. Era a aproximação...

- Safa!

- Meu caro, nada de repugnâncias. Prove este faisão. Está magnífico. Ora, ontem, no Casino, como a pobre Elsa estava totalmente fora dos nervos e com um vestido verdadeiramente admirável, tive prazer em ir apertar-lhe a mão. - "Então, como vai com esta vida?" - "Como vê, muito bem." - Mas está nervosa." - "Há de ser de falta de hábito. Acabo por acostumar." - 'Com um tão belo físico..." - "Não seja mau, deixe os cumprimentos." E de súbito: - "Diga-me, barão, não há um meio da gente se ver livre disto? Não posso, não tenho mais liberdade, já não sou eu. Hoje, por exemplo, tinha uma imensa vontade de chorar." - "Chore, é uma questão de nervos. Ficará decerto aliviada." - "Mas não é isso, não é isso, homem!" - "Se a menina continua a gritar, participo-lhe que vou embora." - "Não, meu amigo, perdoe. E que eu estou tão nervosa! tanto! tanto... Queria que me desse um conselho." - "Para quê?" - "Para aliviar-me."

- "É difícil. Você sofre de um mal comum, a surmenagem do artifício. Eu podia dizer-lhe: recolha-se a um convento. Mas pareceria brincadeira e talvez viesse a morrer mística, a conversar com os anjos, como Swdenborg. Conheci algumas que acabaram assim. Podia também, se fosse um idiota, aconselhar a vida honesta. Mas isso seria impossível porque o pesar de ter saído desta em que o desperdício é a norma, a saudade e as lembranças deixá-la-iam amargurada. Depois não tem recursos e teria sempre que pôr em circulação o seu lindo capital."

- "Barão, por quem é, fale-me sinceramente."

- "Então, minha filha, aconselho uma paixão ou um excesso, um belo rapaz ou uma extravagância." - "Nesta roda não há belos rapazes." - "De acordo, há quando muito velhos recém-nascidos. Mas é recorrer à multidão, passar uma noite percorrendo os bairros pobres, experimentar. Ou então, minha cara, um grande excesso: champagne, éter ou morfina..." Voltei-me para a sala. Num camarote fronteiro a Elisa olhava com os seus dois olhos de morta. "E se não a repugna muito uma grande mestra dos paraísos artificiais, a Elisa." - "Não fale alto, que ela percebe." - "Então já a sabia lá?"

"Corri-a ontem do meu quarto. É um demônio." - "Mas você precisa de um demônio."

- "O que ela faz..." - "Já sei, toda a gente faz. Mas naturalmente ela é excepcional." - "Barão, vá embora." - "Adeus, minha querida." Quando dei a volta para falar a Elisa, já esta deixara vazio o camarote.

- E então, como morreu a linda criatura?

- Aceitando o meu conselho. A sua morte pertence ao mistério do quarto, mas devia ser horrível. Elsa partiu do music-hall diretamente para casa, pretextando ao banqueiro que lhe ia pôr um pequeno palácio, a forte dor de cabeça - a clássica migraine das cocottes enfaradas ou excedidas. E apareceu na ceia da pensão como uma louca, a mandar abrir champagne por conta própria. Quando por volta de uma hora apareceu a figura de larva da Elisa, deu um pulo da cadeira, agarrou-lhe o pulso: "Vem; tu hoje és minha!" Houve uma grande gargalhada. Essas damas e mais esses cavalheiros tinham uma grande complacência com a Elisa, e aquela vitória excitava-os. Elisa molemente sentou-se ao lado da Elsa, que bebia mais champagne, sentia afrontações e torcia os dedos da apaixonada por baixo da mesa. Era o desespero. Mimi Gonzaga assegurou-me que ela recebera uma carta da mãe logo pela manhã. No fim, Elsa, pálida e ardente, dizia: "Viens, mon chéri, que e te baise!" e mordia raivosamente o pescoço da Elisa. Via-se a repugnância, raiva com que ela fazia a cena de Lesbos - pobre rapariga sem inversões e estetismos a Safo... A ceia acabou em espetáculo, e acabaria com todos os espectadores, se algumas mulheres com ciúmes dos seus senhores - ah! como elas são idiotas! - não os tivessem levado. Elsa às duas e meia fez erguer-se a Elisa, calada e misteriosamente fria. "Vão tomar morfina?" interrogou um dos assistentes, "cuidado, hem?" Elsa deu de ombros, sorriu, saiu arrastando a outra. E a desaparição foi teatral ainda. Os olhos verdes da Elisa bistrados, a sua cabeleira desnastra, agarrando com um desespero de bacante a pastosidade oleosa e aloirada da miserável que a queria.

- Que horror!

- A coitadinha aturdia-se. E o processo habitual. Para mostrar a sua livre vontade caía na extravagância, agarrava o tipo que a repugnava, para mergulhar inteiramente no horror. Estive quase a acreditar que tivesse recebido alguma lembrança dos parentes, e imaginei um instante a cena sinistramente atroz do quarto enfim, como uma larva diabólica, o polvo loiro da roda iria arrancar um pouco de vida àquela linda criatura ardente, ainda com uns restos d'alma de mulher... Nunca porém pensei no fim súbito.

- Pelas cinco horas da manhã, a pensão acordava a uns gemidos roucos, que vinham do quarto de Elsa. Eram bem gritos estertorados de socorro. As mulheres desceram em fralda, os criados ergueram-se com o sorriso cínico habituado àquelas madrugadas agitadas de ataques e de delírios histéricos. A porta do quarto estava fechada. Bateram, bateram muito, enquanto lá dentro o som rouco rouquejava. Foi preciso arrombar a porta. E a cena fez recuar no primeiro momento a tropa do alcouce. Como luz havia apenas a lamparina numa redoma rosa. O quarto, cheio de sombra, mostrava, em cima das poltronas, as sedas e os dessous de renda da Elsa. Um frasco de éter aberto, empestava o ambiente. A Elisa, o corpo da Elisa estava de joelhos à beira da cama. Os braços pendiam como dois tentáculos cortados. Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros amarrados ao alto como um casco de ébano, Elsa d'Aragon, as pernas em compasso, a face contraída ainda sentada garrava com as duas mãos numa crispação atroz, a cabeça da Elisa. Era Elisa que rouquejava. Elsa estava bem morta, o corpo já frio. Devia ter havido luta, resistência de Elsa, triunfo da mulher loira e por fim sem fim até a morte. enquanto a outra se estorcia, apertava-a, arrancava-lhe os cabe1os, machucava-lhe o rosto - aquele horror. Elsa entrara do nada debatendo-se, vitima de um suplício diabólico, mas no último espasmo as suas mãos agarram a assassina. Quando esta afinal satisfeita quis erguer-se, sentiu-se presa pelos cabelos, tentou lutar, viu que a pobre era cadáver. E passou-se então para o monstro o momento do indizível terror, o momento em que se vê para sempre o mundo perdido porque ficou imóvel rouquejando, de joelhos, a cabeça no regaço do cadáver, que mantinha nas mãos cerradas a massa dos seus cabelos de ouro. Os dedos de resto pareciam de aço. Uma das mulheres recorreu à tesoura para despegar a cabeça de Elisa das mãos do cadáver. Quando o corpo tombou no leito com um punhado de cabeleira nas mãos, o bando estremunhado viu surgir a face de Elisa, tão decomposta, tão velha que parecia outra, como que aparvalhada.

Houve um silêncio. O criado servia frutas geladas, esplêndidas pêras de Espanha e uvas das regiões vinhateiras da Burgonha, grandes uvas negras. O barão trincou de uma pêra.

- Foi uma complicação para afastar a polícia e impedir noticias nos jornais que desmoralizariam a casa. Elisa seguiu horas depois para o hospício, babando e estertorando. A Elsa devia ter sido enterrada hoje à tarde. Estive lá a ver o cadáver. Tinha ainda nas mãos cerradas fios de cabelos loiros, como se quisesse arrancar para o túmulo a prova desesperada da sua morte horrível.

E mordeu com apetite a pêra. No salão de cima uma valsa lenta, chorada pelos violinos, enlanguecia o ar. Das mesas do terraço entre a iluminação bizantina das velas de capuchons coloridos subia o zumbido alegre feito de risos e de gorjeios de todas aquelas mulheres que o jantar alegrava.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 17 de julho de 2022

A CARTOMANTE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A CARTOMANTE

Machado de Assis

 

HAMLET observa a Horácio que há mais causas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade.

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois.

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

- Onde é a casa?

- Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

- Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

- O senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tomar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

- Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...

- A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

- As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

- Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer causa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:

- Vá, vá, ragazzo inflamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 16 de julho de 2022

A DOENÇA DE ANTUNES (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

 

A DOENÇA DO ANTUES

Lima Barreto

 

A fama do doutor Gedeão não cessava de crescer.

 

Não havia dia em que os jornais não dessem notícia de mais uma proeza por ele feita, dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia: “O doutor Gedeão, esse maravilhoso clínico e excelente goal-keeper, acaba de receber um honroso convite do Libertad Foot-ball Club, de São José de Costa Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Airoca Foot-ball Club, de Guatemala. Todo o mundo sabe a importância que tem esse desafio internacional e o convite ao nosso patrício representa uma alta homenagem à ciência brasileira e ao foot-ball nacional. O doutor Gedeão, porém, não pôde aceitar o convite, pois a sua atividade mental anda agora norteada para a descoberta da composição da Pomada Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos.”

 

O doutor Gedeão vivia mais citado nos jornais que o próprio presidente da república e o seu nome era encontrado em todas as seções dos cotidianos. A seção elegante de O Conservador, logo ao dia seguinte da notícia acima, ocupou-se do doutor Gedeão da seguinte maneira: “O doutor Gedeão Cavalcanti apareceu ontem no Lírico inteiramente fashionable. O milagroso clínico saltou do seu coupé completamente nu. Não se descreve o interesse das senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu fiquei babado de gozo.

 

A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em instantes de ser médico do bairro ou da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse, para ser o médico da cidade toda, o lente sábio, o literato ilegível à João de Barros, o herói do foot-ball, o obrigado papa-banquetes diários, o Cícero das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos, o dançador dos bailes de bom-tom, etc., etc.

 

O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de carnaval, e havia quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no, para as proezas de que os cinematógrafos são o teatro habitual.

 

Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e todas elas tinham garbo, orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam: – Estou me tratando com o doutor Gedeão.

 

Moças pobres sacrificavam os orçamentas domésticos para irem ao doutor Gedeão e muitas houve que deixavam de comprar o sapato ou o chapéu da moda para pagar a consulta do famoso doutor. De uma, eu sei que lá foi com enormes sacrifícios para curar-se de um defluxo; e curou-se, embora o doutor Gedeão não lhe tivesse receitado um xarope qualquer, mas um específico de nome arrevesado, grego ou copta, Anakati Tokotuta.

 

Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medicamentos vulgares; ele era original na botica que empregava.

 

O seu consultório ficava em uma rua central, bem perto da avenida, ocupando todo um primeiro andar. As antessalas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo pela parede quadros e mapas de coisas da arte de curar.

 

Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo e era de admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória o obrigava a ser conviva de banquetes diários, bem e fartamente regados.

 

Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso clínico, era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com antecedência, às vezes de dias. O preço era alto, para evitar que os viciosos do doutor Gedeão não atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam das luzes do célebre clínico.

 

Custava a consulta cinquenta mil-réis; mas, apesar de tão alto preço, o escritório da celebridade médica era objeto de uma verdadeira romaria e toda a cidade o tinha como uma espécie de Aparecida médica.

 

José Antunes Bulhões, sócio principal da firma Antunes Bulhões & Cia., estabelecido com armazém de secos e molhados, lá pelas bandas do Campo dos Cardosos, em Cascadura, andava sofrendo de umas dores no estômago que não o deixavam comer com toda liberdade o seu bom cozido, rico de couves e nabos, farto de toucinho e abóbora vermelho, nem mesmo saborear, a seu contento, o caldo que tantas saudades lhe dava da sua aldeia minhota.

 

Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais e não havia meio de lhe passar de todo aquela insuportável dorzinha que não o permitia comer o cozido, com satisfação e abundância, e tirava-lhe de qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e apreciava.

 

Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus pertences, muito cheiroso, rico de couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o, namorava-o e ele namorava o cozido sem ânimo de mastigá-lo, de devorá-lo, de engoli-lo com aquele ardor que a sua robustez e o seu desejo exigiam.

 

Antunes era solteiro e quase casto.

 

Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão tangido pela vida e pela sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado todas as satisfações da vida, o amor fecundo ou infecundo, o vestuário, os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar nos contos de réis que lhe dariam a forra mais tarde do seu quase ascetismo atual, no balcão de uma venda dos subúrbios.

 

À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência e gastava sem pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas batatas, no bacalhau que, depois de cozido, era o seu prato predileto.

 

Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordinariamente. Ele se privava do amor; mas que importava se, daqui a anos, ele pagaria para seu gozo, em dinheiro, em joia, em carruagem, em casamento até, corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados, os mais caros que houvesse, aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas finas, mas que importava se, dentro de alguns anos, ele poderia ir aos primeiros teatros daqui ou da Europa, com as mais caras mulheres que escolhesse; mas deixar de comer – isto não! Era preciso que o corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela faina de quatorze ou quinze horas, a servir o balcão, a ralhar com os caixeiros, a suportar desaforos dos fregueses e a ter cuidado com os calotes.

 

Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Gedeão Cavalcanti tinha tido permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes canhões do “Minas Gerais”.

 

Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer: “esse maravilhoso clínico e, certamente, um exímio artilheiro… ”

 

Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde conseguir recordar-se de que aquele nome já por ele fora lido em qualquer parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele o não curaria daquela dorzita ali, no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda adentro o Senhor Albano, empregado na Central, funcionário público, homem sério e pontual no pagamento.

 

Antunes foi-lhe logo perguntando:

 

— Senhor Albano, o senhor conhece o doutor Gedeão Cavalcanti?

 

— Gedeão – emendou o outro.

 

— Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Albano?

 

— Conheço.

 

— E bom médico?

 

— Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente orador, grande poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros…

 

— Então é um bom médico, não é, Senhor Albano?

 

— E. Foi quem salvou a Santinha, minha mulher. Custou-me caro… Duas consultas… Cinquenta mil-réis cada uma… Some.

 

Antunes guardou a informação, mas não se resolveu imediatamente a ir consultar o famoso taumaturgo urbano. Cinquenta mil-réis! E se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinquenta…

 

Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves, rico de toucinho e abóbora vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato sem poder amá-lo com o ardor e a paixão que o seu desejo pedia. Pensou dias e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir a opinião do doutor Gedeão Cavalcanti sobre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de onde em onde.

 

Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas, pôs o colete, o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a estrela de brilhantes, que parece ser o distintivo dos pequenos e grandes negociantes; e encaminhou-se para a estação da estrada de ferro.

 

Ei-lo no centro da cidade

 

Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do continuo do consultório, despedindo-se dos seus cinquenta mil-réis com a dor do pai que leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse seu freguês… Mas qual! Aqueles não voltariam mais…

 

Sentou-se entre cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou encarar os cavalheiros e teve medo das damas. Sentia bem o seu opróbrio, não de ser taberneiro, mas de só possuir de economias duas miseráveis dezenas de contos… Se tivesse algumas centenas—então, sim! — Ele poderia olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, do dinheiro, que havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.

 

Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco se demoravam. Antunes começou a ficar desconfiado… Diabo! Assim tão depressa?

 

Teriam todos pago cinquenta mil-réis?

 

Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso… Mas qual!

 

Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos filhos, como havia ele de pagar-lhe mestres? Cada um enriquece como pode…

 

Foi, por fim, à presença do doutor. Antunes gostou do homem. Tinha um olhar doce, os cabelos já grisalhos, apesar de sua fisionomia moça, umas mãos alvas, polidas…

 

Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz:

 

— Que sente o senhor?

 

Antunes foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago de que vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que desaparecia e aparecia mas que não o deixava nunca. O doutor Gedeão Cavalcanti fê-lo tirar o paletó, o colete, auscultou-o bem, examinou-o demoradamente, tanto de pé como deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante recompunha a sua modesta toilette.

 

Antunes sentou-se também, e esperou que o médico saísse de sua meditação.

 

Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda segurança:

 

— O senhor não tem nada.

 

Antunes ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou indignado:

 

— Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não tenho nada! Esta é boa! Noutra não caio eu!

 

E saiu furioso do consultório que merecia, da cidade, uma romaria semelhante à da milagrosa Lourdes.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 15 de julho de 2022

A BILHA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A BILHA

Humberto de Campos

 

Sentado em um banco de madeira tosca, colocado por ele próprio diante da sua chácara do "Bom Retiro", a dois quilômetros de São Fidelis, olha o coronel Saturnino as grandes águas do Paraíba, que rola, sereno e inchado, no rumo de São João da Barra.

 

 A cinco metros do honrado fazendeiro, no leito do rio, emergem duas cabeças queridas: a do filho, o Alfredinho, um pirralho louro, forte, vivaz, de quatro anos, feitos em setembro, e a da sua segunda esposa, D. Florinda, cujos cabelos castanhos, soltos e molhados, lhe orlam, como um capuz de freira, o formoso rosto moreno. O fazendeiro olha, sorrindo, os dois banhistas que lhe enchem o coração, e dá ordens:

- Não vá para longe, Alfredo. Fique aí mesmo.

E para a esposa:

- Mergulhe, Lindinha. Está com medo?

 

A moça dá um mergulho ligeiro, e aparece mais distante, com os lindos olhos fechados, para que lhe escorra melhor sobre o colo forte, como pérolas dissolvidas, a água que lhe encharca os cabelos.

 

Diverte-se o coronel, assim, com os dois anjos que lhe constituem a família, quando, tomando uma bilha velha e inservível que se achava próxima, se põe de pé, e a atira, longe, um exercício dos músculos vigorosos, na corrente do rio. Apanhada pela correnteza, a vasilha de barro começa a descer, rápida, rodopiando, arrebatada pelas águas. De repente, porém, com a boca para cima, começa a encher-se, afundando-se pouco a pouco, até que desaparece, sem deixar vestígio, no tumulto um redemoinho fervente.

 

Alfredinho olha, atento, a viagem da vasilha, e, vendo-a desaparecer na voragem, franze o cenho infantil, perguntando, intrigado, ao velho:

- Papai, por que é que a bilha foi para o fundo?

- Porque entrou água; está claro! - Explicou o coronel.

- Ela não estava com a boca para cima?

- Estava, sim.

- E como entrou água?

- Porque estava furada, - tornou o velho.

 

O pequeno meditou um instante, franziu a testazinha inteligente, e, olhando Dona Florinda, que se encaminhava com o rosto fora d’água, para o meio do rio, gritou, alto, alarmado, com a vozinha fina:

- Mamãe, venha mais p'ra beira!...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 13 de julho de 2022

FRANÇA JÚNIOR (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

FRANÇA JÚNIOR

Aluísio Azevedo

 

 

Se a nação tivesse de eleger um brasileiro de bom gosto para representá-la lá fora, eu votaria nele.

Votaria, por uma razão muito simples: porque, de todos os brasileiros que eu conheço, ele é que tem uma compreensão mais lúcida do que vem a ser isto de "bom gosto".

Conheço muitos patrícios elegantes, distintos, com o paladar bem educado, não há dúvida alguma; mas é que, em geral, quando um sabe ver não sabe ouvir, quando outro sabe dizer, não sabe sentir.

E o França, vê, diz, ouve e sente.

Pode ser que alguém o faça isoladamente melhor do que ele; porém, mais afinadamente, isso é que não.

Sua toilette, sua filosofia, seu espírito, seus hábitos, suas: relações, seu humor, tudo está dominado pela mesma corrente de originalidade e perfeitamente afinado entre si.

Ele não se parece com pessoa alguma, o que é bom; e ninguém procura se parecer com ele, o que é melhor.

Quem quisesse provar que não tem espírito de espécie alguma, não precisava ouvir as conferências da Glória, ou levar o desespero a ponto de ler os A pedidos do jornal do sr. Castro. Não! Bastava antipatizar com o França.

O França é homem que, visto pela primeira vez, nos faz vontade de ouvi-lo; ouvindo-o temos desejo de ouvi-lo mais, e, se o ouvimos mais, acabou-se... ficamos amigos.

Então, se fala sobre belas-artes!... adeus, minhas encomendas!

Basta dizer que o diabo do homem correu todos os museus da Europa, freqüentou salões, câmaras políticas, clubes, teatros, ateliers, bondoirs, o inferno!

Para cada fato opõe uma anedota; para cada tipo um bom dito; e para cada mulher um galanteio.

E é sempre o mesmo gentleman em toda a parte. Sabe tão bem conduzir uma questão política pela imprensa, como escrever um folhetim literário, dissertar sobre um Corrégio, ou conduzir uma senhora na valsa.

Com o seu bom humor, com a sua vigorosa mocidade, descobre sempre em todas as cousas um lado alegre, que o faz sorrir.

Por intermédio de seus numerosos folhetins de fina observação e graciosa crítica, vive em todas as províncias do Brasil, e convive com toda a parte da população fluminense que sabe ler.

Mas a sua veia principal é a comédia. Seria um grande comediógrafo, se o nosso teatro não fosse uma grande mentira. Contudo, com o que ele fez até hoje, deixa adivinhar o que seria capaz de fazer.

A literatura para ele foi sempre um diletantismo elegante; nunca esperou que ela lhe dispensasse alguma cousa em troca do muito que ele lhe tem dado.

E, além de tudo isso, não sua.

Seus colarinhos e seus punhos têm sempre a mesma irrepreensibilidade aristocrática.

Nunca perde a linha.

Detesta o chinelo e tem horror ao bocejo. Não usa corrente no relógio; veste-se de acordo com a estação e fala cinco ou seis línguas, correntemente.

Uma ocasião, na Tijuca, um português, que trabalhava em uma pedreira, exclamou ao vê-lo aproximar-se:

- Mussiu, não passa agora. Mim vai lasca fogo na pedra.

...........................................................................

Ah! dizem também que é um magistrado de mão cheia.

Pode ser.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 12 de julho de 2022

A SOCIEDADE (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

A SOCIEDADE

Alcântara Machado

 

 

 Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia — uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!

— O que você está fazendo aí no terraço, menina.

— Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

— Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

— Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

— Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

— Não!

— Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

...mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

— Meu pai quer fazer um negócio com o seu.

— Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou!

— Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

— Já sei, mulher, já sei.

Mas era coisa muito diversa.

Cavaliere ufficciale Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua proposta.

— O doutor...

— Eu não sou doutor, Senhor Melli.

— Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. Io resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Coisas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cavaliere ufficciale tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cavaliere ufficciale com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.

— É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível...

— Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.

— Dopoo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.

— Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.

— Francese? Não é feio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer coisa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.

— Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.

— Sei, sei... O seu filho?

— Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cavaliere ufficciale na direção da porta.

— Repito un'altra vez: O doutor pense bem.

O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.

— E então? O que devo responder ao homem?

— Faça como entender, Bonifácio...

— Eu acho que devo aceitar.

— Pois aceite.

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 11 de julho de 2022

UMA ÁGUIA SEM ASAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UMA ÁGUIA SEM ASAS

Machado de Assis

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

Era uma tarde de agosto. Caía o sol, e soprava um vento fresco e brando, como para compensar o dia que estivera extremamente calmoso. A noite prometia ser excelente.

 

Se a leitora quer ir comigo ao Rio Comprido, entraremos juntos na chácara do Sr. James Hope, comerciante inglês desta praça, como se diz em linguagem técnica.

 

James Hope viera para o Brasil em 1830, com pouco mais de 20 anos, e começou imediatamente uma brilhante carreira comercial. Casou pouco depois com a filha de um compatriota, já nascida aqui, e mais tarde fez-se cidadão brasileiro, não só no papel, como no coração.Do seu matrimônio, teve um filho e uma filha; o primeiro, chamado Carlos Hope, seguia a carreira do pai, e contava 26 anos ao tempo em que começa este romance; a filha recebeu o nome de Sara e tinha 22 anos.

 

Sara Hope era solteira. Por quê? A sua beleza era incontestável; reunia a graça brasileira à gravidade britânica, e em tudo parecia destinada a dominar os homens; a voz, o olhar, as maneiras, tudo possuía um misterioso condão fascinador. Além disto, era rica e ocupava uma invejável posição na sociedade. Dizia-se à boca pequena que algumas paixões havia já inspirado a interessante moça; mas não constava que ela as houvesse tido em sua vida.

 

Por quê?

 

Esta pergunta todos a faziam, até o pai que, apesar de robusto e sadio, previa algum acontecimento que viesse a deixar a família sem chefe, e desejava ver casada a sua querida Sara.

 

Na tarde em que começa esta narrativa, estavam todos assentados no jardim, em companhia de mais três rapazes da cidade que tinham ido jantar em casa de James Hope. Dispensem-me de lhes pintar as visitas do velho comerciante. Bastará dizer que um deles, o mais alto, era advogado principiante, dispondo de algum dinheiro do pai; chamava-se Jorge; o segundo, cujo nome era Mateus, era comerciante, sócio de um tio que dirigia uma grande casa; o mais baixo não era coisa nenhuma, tinha algum pecúlio, e chamava-se Andrade. Estudara medicina, mas não tratava doentes, por glória da ciência e sossego da humanidade.

 

James Hope estava extremamente alegre e bem disposto, e todos os mais pareciam gozar o mesmo beatífico estado. Quem entrasse subitamente no jardim, sem ser pressentido, podia descobrir que os três rapazes procuravam obter as boas graças de Sara, tão visivelmente que, não só os pais da moça o percebiam, mas até não podiam encobrir eles mesmos, uns aos outros, as suas pretensões.

 

Se isto era assim, escusado é dizer que a mesma Sara conhecia o jogo dos três rapazes, porque em geral a mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.

 

Longe de parecer incomodada com o fogo dos três exércitos, Sara os tratava com tanta bondade e graça que parecia indicar uma criatura coquete e frívola. Mas quem atentasse alguns largos minutos, conheceria que ela era mais irônica que sincera, e, por isso mesmo que os igualava, os desprezava a todos.

 

James Hope acabava de contar uma anedota da sua mocidade, ocorrida em Inglaterra. A anedota era interessante, e o James sabia narrar, talento difícil e raro. Entusiasmado com os vários pormenores de costumes ingleses a que James Hope teve de aludir, o advogado manifestou o grande desejo que nutria de ver a Inglaterra, e em geral o desejo de viajar toda a Europa.

 

— Há de gostar, disse Hope. As viagens deleitam muito; e além disso, nunca devemos desprezar as coisas estranhas. Eu iria de boa vontade à Inglaterra, durante alguns meses, mas creio que já não posso viver sem o nosso Brasil.

 

— É o que me acontece, acudiu Andrade; acredito que lá fora haja muita coisa melhor do que cá; mas nós cá temos coisas melhores do que lá. Umas compensam as outras; e por isso não valeria a pena de uma viagem.

 

Mateus e Jorge não foram absolutamente desta idéia. Ambos protestaram que dariam algum dia um pulo ao velho mundo.

 

— Mas por que não faz isso que diz, Sr. Hope? perguntou Mateus. Ninguém melhor do que o senhor pode realizar esse desejo.

 

— Sim, mas há um obstáculo...

 

— Não sou eu, acudiu rindo Carlos Hope.

 

— Não és tu, disse o pai, é Sara.

 

— Ah! disseram os rapazes.

 

— Eu, meu pai? perguntou a moça.

 

— Três vezes tenho tentado a viagem, mas Sara opõe sempre algumas razões, e não vou. Creio que descobri a causa da resistência dela.

 

— E qual é? perguntou Sara, rindo.

 

— Sara tem medo do mar.

 

— Medo! exclamou a moça, franzindo as sobrancelhas.

 

O tom com que ela proferiu esta simples exclamação impressionou o auditório. Bastava aquilo para pintar um caráter. Houve alguns segundos de silêncio durante os quais contemplavam a bela Sara, cujo rosto pouco a pouco readquiriu a calma habitual.

 

— Ofendi-te, Sara? perguntou James.

 

— Ah! isso não se diz, meu pai! exclamou a moça com todas as harmonias de sua voz. Não podia haver ofensa; houve apenas uma tal ou qual impressão de espanto, quando ouvi falar de medo. Meu pai sabe que eu não tenho medo...

 

— Sei que não, e já me deste provas disso; mas uma criatura pode ser valorosa e ter medo ao mar...

 

— Pois não é esse o meu caso, interrompeu Sara; se lhe dei algumas razões, é porque me pareceram aceitáveis...

 

— Pela minha parte, interrompeu Andrade, penso que foi um erro que o Sr. Hope aceitasse tais razões. Era conveniente, e mais do que conveniente, era indispensável, que a Inglaterra visse que flores pode dar uma planta sua, quando transplantada às regiões americanas. Miss Hope seria lá o mais brilhante símbolo desta aliança de duas raças vivaces...

 

Miss Hope sorriu ouvindo este cumprimento, e a conversa tomou diversos caminhos.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

Nessa mesma noite, foram os três rapazes cear no Hotel Provençaux, depois de terem passado duas horas no Ginásio. Havia já dois ou três meses que andavam naquela campanha sem se comunicarem uns aos outros as impressões ou as esperanças que tinham. Estas, porém, se alguma vez as tiveram, começavam a diminuir, pelo que não tardaria muito que os três pretendentes se abrissem francamente e dissessem todas as suas idéias a respeito de Sara.

 

Aquela noite foi tacitamente escolhida pelos três para as confidências recíprocas. Estavam numa sala particular onde ninguém os perturbaria. As revelações começaram por alusões vagas, mas não tardou que assumissem um ar de franqueza.

 

— Por que negaremos a verdade? disse Mateus depois de alguns remoques recíprocos; todos três gostamos dela; é claríssimo. E o que também me parece claro é que ela ainda não se manifestou por nenhum.

 

— Nem se manifestará, respondeu Jorge.

 

— Por quê?

 

— Porque é uma namoradeira e nada mais; gosta que lhe façam a corte, e não passa disso. É uma mulher de gelo. Que te parece, Andrade?

 

— Não concordo contigo, acudiu este. Não me parece namoradeira. Pelo contrário, cuido que é uma mulher superior, e que...

 

Estacou. Entrou nesse momento um criado trazendo umas costeletas pedidas. Quando o criado saiu, os outros dois rapazes insistiram para que Andrade concluísse o pensamento.

 

— E quê? disseram eles.

 

Andrade não deu resposta.

 

— Conclui a tua idéia, Andrade, insistiu Mateus.

 

— Creio que ela ainda não encontrou um homem como imagina, explicou Andrade. É romanesca, e só se casará com alguém que lhe realize um tipo ideal; toda a questão é saber que tipo é esse; porque, desde que o soubéssemos, tudo estava decidido. Cada um de nós procuraria ser a reprodução material dessa idealidade desconhecida...

 

— Talvez tenhas razão, observou Jorge; bem pode ser isso; mas, nesse caso, estamos nós em pleno romance.

 

— Sem nenhuma dúvida.

 

Mateus discordou dos outros.

 

— Talvez não seja assim, disse ele; o Andrade terá razão em parte. Creio que o meio de lhe vencer a esquivança é corresponder, não a um tipo ideal, mas a um sentimento próprio, a um traço de caráter, a uma expressão de temperamento. Neste caso, o vencedor será aquele que melhor disser com o gênio dela. Por outras palavras, cumpre saber se ela quer ser amada por um poeta, se por um homem de ciência, etc.

 

— Isso ainda pior, observou Andrade.

 

— Pior será, creio, mas grande vantagem é sabê-lo. Que lhes parece a minha opinião?

 

Concordaram os dois com esta opinião.

 

— Ora bem, continuou Mateus, pois que assentamos nisto, sejamos francos. Se algum de nós sente uma paixão exclusiva por ela, deve dizê-lo; a verdade antes de tudo...

 

— Paixões, respondeu Jorge, eu já as conheci; amei aos 16 anos. Hoje, tenho o coração frio como uma lauda das Ordenações. Desejo casar-me para descansar, e se há de ser com uma mulher vulgar, melhor é que seja com uma formosa e inteligente criatura... Isto quer dizer que nenhum ódio votarei àquele que for mais feliz do que eu.

 

— Minha idéia é outra, disse Andrade; caso por curiosidade. Uns dizem que o casamento é delicioso, outros que aborrecido; e todavia os casamentos não acabam nunca. Tenho curiosidade de saber se é mau ou bom. O Mateus é que me parece verdadeiramente apaixonado.

 

— Eu? disse Mateus deitando vinho no cálice; nem por sombras. Confesso, porém, que lhe tenho alguma simpatia e certa coisa a que chamamos adoração...

 

— Nesse caso... disseram os dois.

 

— Oh! continuou Mateus. Nada disto é amor, pelo menos amor como eu imagino...

 

Dizendo isto, bebeu de um trago o cálice de vinho.

 

— Estamos pois concordes, disse ele. Cada um de nós deve estudar o caráter de Sara Hope, e aquele que atinar com as suas preferências será o feliz...

 

— Fazemos um steeple-chase, disse Andrade.

 

— Não fazemos só isto, observou Mateus; ganhamos tempo e não nos prejudicamos uns aos outros. Aquele que se julgar vencedor, declare-o logo; e os outros deixarão o campo livre. Assim entendidos, conservaremos a nossa recíproca estima.

 

Concordes neste plano, os nossos rapazes gastaram o resto da noite em assuntos diferentes, até que cada um se foi para casa, disposto a morrer ou vencer.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Algum leitor achará este pacto romanesco demais, e um pouco fora dos nossos costumes. Todavia, o fato é verdadeiro. Não direi quem mo referiu, porque não quero fazer mal a um cidadão honrado.

 

Celebrado o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de Sara.

 

Jorge foi o primeiro que supôs tê-lo descoberto. Miss Hope lia muito e era entusiasta dos grandes nomes literários da época. Quase se pode dizer que nenhum livro, mais ou menos falado, lhe era desconhecido. E não só lia, discutia, criticava, analisava, exceto as obras poéticas.

 

— A poesia, dizia ela, não se analisa, sente-se ou esquece-se.

 

Seria esse o ponto vulnerável da moça?

 

Jorge procurou sabê-lo e não esqueceu nenhum meio necessário para isso. Conversaram de literatura longas horas, e Jorge dava largas a um entusiasmo poético mais ou menos real. Notou Sara esse prurido literário do rapaz, mas sem indagar as causas dele, tratou de o aproveitar no sentido das suas preferências.

 

Sem nenhuma ofensa à pessoa de Jorge, posso dizer que ele não era grande conhecedor em matéria literária, pelo que não poucas vezes lhe acontecia tropeçar desastradamente. Por outro lado, sentia necessidade de alguma fórmula mais elevada para o seu entusiasmo e andou catando na memória aforismos deste jaez:

 

— A poesia é a linguagem dos anjos.

 

— O amor e as musas nasceram no mesmo dia.

 

— A poesia e o amor são os dois olhos de Deus.

 

E outras coisas mais que a moça ouvia sem admirar muito o espírito inventivo do jovem advogado.

 

Aconteceu que um domingo de tarde, andando os dois passeando no jardim, um pouco separados do resto da família, Sara pregou os olhos no céu tingido com as rubras cores do ocaso.

 

Esteve assim calada durante longo tempo.

 

— Contempla a sua pátria? perguntou-lhe com meiguice Jorge.

 

— A minha pátria? disse a moça sem perceber a idéia do rapaz.

 

— É a bela hora do poente, continuou este, a hora melancólica da saudade e do amor. O dia é mais alegre, a noite mais terrível; só a tarde é a verdadeira hora das almas melancólicas... Ah! tarde! Oh! poesia! oh! amor!

 

Sara conteve o riso que esteve a ponto de lhe rebentar dos lábios ao ouvir o tom e ao ver a atitude com que Jorge proferiu aquelas palavras.

 

— Gosta então muito da tarde? perguntou ela com um tom irônico que não escaparia a outro.

 

— Ah! muito! respondeu Jorge. A tarde é a hora em que a natureza parece convidar os homens ao amor, à meditação, à saudade, ao arroubo, aos suspiros, a cantar com os anjos, a conversar com Deus. Posso dizer com o grande poeta, mas variando um pouco a sua fórmula: tirai a tarde ao mundo, e o mundo será um ermo.

 

— Isto é sublime! exclamou a moça, batendo palmas.

 

Jorge parecia contente de si. Deitou à moça um olhar lânguido e amoroso e foi o único agradecimento que deu ao elogio de Sara.

 

A moça compreendeu que a conversa podia seguir um caminho menos agradável. Parecia-lhe ver já dançando nos lábios do rapaz uma confissão intempestiva.

 

— Creio que meu pai me chama, disse ela; vamos.

 

Jorge foi obrigado a acompanhar a moça, que se aproximou da família.

 

Os outros dois pretendentes viram o ar alegre de Jorge, e concluíram que ele estava no caminho da felicidade. Sara, entretanto, não mostrava a confusão própria de uma moça que acaba de ouvir uma confissão de amor. Olhava muitas vezes para Jorge, mas era com uns longes de ironia, e em todo caso perfeitamente tranqüila.

 

— Não tem que ver, dizia Jorge consigo, acertei-lhe com a corda; a rapariga é romanesca; tem vocação literária; gosta de exaltações poéticas...

 

Não se deteve o jovem advogado; a essa descoberta seguiu-se logo uma carta ardente, poética, nebulosa, carta que nem um filósofo alemão chegaria a entender.

 

Poupo aos leitores a íntegra desse documento; mas não resisto à intenção de lhes transcrever aqui um período, que bem o merece:

 

“... Sim, minha loura estrela da noite, a vida é uma aspiração constante para a região serena dos espíritos, um desejo, uma ambição, uma sede de poesia! Quando duas almas da mesma índole se encontram, como as nossas, já isto não é terra, é céu, céu puríssimo e diáfano, céu que os serafins povoam de encantadas estrofes!... Vem, meu anjo, passemos uma vida assim! Inspira-me, e eu serei maior que Petrarca e Dante, porque tu vales mais que Laura e Beatriz!...”

 

E cinco ou seis páginas neste gosto.

 

Esta carta foi entregue, num domingo, à saída do Rio Comprido, sem que a moça tivesse ocasião de perguntar o que aquilo era.

 

Digamos a verdade toda.

 

Jorge passou a noite sobressaltado.

 

Sonhou que entrava com Miss Hope em um riquíssimo castelo de ouro e esmeraldas, cuja porta era guardada por dois arcanjos de longas asas abertas; depois sonhou que o mundo inteiro, por meio de uma comissão, o coroava poeta, rival de Homero. Sonhou muitas coisas neste sentido, até que veio a sonhar com um chafariz, que deitava, em vez de água, espingardas de agulha, verdadeiro disparate que só Morfeu sabe criar.

 

Três dias depois foi procurado pelo irmão de Sara.

 

— Minha demora é pequena, disse o rapaz; venho por parte de minha mana.

 

— Ah!

 

— E peço-lhe que não veja nisto nada de ofensivo.

 

— Nisto quê?

 

— Minha mana quis por força que eu viesse restituir-lhe esta carta; e que lhe dissesse... Em suma, isto é bastante; aqui tem a carta. Ainda uma vez, não há ofensa, e a coisa fica entre nós...

 

Jorge não achava palavra para responder. Estava pálido e vexado. Carlos não poupou expressões nem carícias para provar ao rapaz que não desejava a menor alteração na amizade que se votavam um ao outro.

 

— Minha mana é caprichosa, dizia ele, é por isso...

 

— Concordo que foi um ato de loucura, disse enfim Jorge, animado pelas maneiras do irmão de Sara; mas o senhor compreenderá que um amor...

 

— Compreendo tudo, disse Carlos; e é por isso que lhe peço esqueça isto, e ao mesmo tempo posso afirmar-lhe que Sara não tem nenhum ressentimento disto... Portanto, amigos como dantes.

 

E saiu.

 

Jorge ficou só.

 

Estava acabrunhado, envergonhado, desesperado.

 

Não lamentava tanto a derrota como as circunstâncias dela. Entretanto, era preciso mostrar boa cara à sua fortuna, e o rapaz não hesitou em confessar a derrota aos dois adversários.

 

— Safa! disse Andrade, essa agora é pior! Se ela está disposta a devolver todas as cartas pelo irmão, é provável que o rapaz se não empregue em outra coisa.

 

— Não sei disto, respondeu Jorge; confesso-me vencido, eis tudo.

 

Durante esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não estavam ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto fraco na couraça de Sara.

 

Qual deles acertaria?

 

Vamos sabê-lo nas páginas que nos restam.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

Mais curta foi a campanha de Mateus; imaginara ele que a moça amaria loucamente a quem lhe desse sinais de bravura. Concluía isto da exclamação que lhe ouvira, quando James Hope disse que ela tinha medo do mar.

 

Tudo empregou Mateus para seduzir Miss Hope por esse lado. Em vão! a moça parecia cada vez mais recalcitrante.

 

Não houve proeza que o candidato não referisse como glória sua, e algumas fê-las ele mesmo com sobrescrito para ela.

 

Sara era uma rocha.

 

A nada cedia.

 

Arriscar uma carta seria loucura, depois do fiasco de Jorge; Mateus julgou prudente abater as armas.

 

Restava Andrade.

 

Teria ele descoberto alguma coisa? Parecia que não. Todavia, era dos três o mais atilado, e se a causa de isenção da moça fosse a que eles apontavam não havia dúvida de que Andrade atinaria com ela.

 

Durante esse tempo, ocorreu uma circunstância que vinha transtornar os planos do rapaz. Sara, acusada pelo pai de ter medo do mar, o induzira a uma viagem à Europa.

 

James Hope participou alegre esta notícia aos três moços.

 

— Mas vão já? perguntou Andrade quando o pai de Sara lhe disse isto na rua.

 

— Daqui a dois meses, respondeu o velho.

 

— Valha-nos isso! pensou Andrade.

 

Dois meses! Devia vencer ou morrer dentro daquele prazo.

 

Andrade auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com atenção religiosa, tudo examinava cuidadosamente.

 

Um domingo em que lá se achavam na chácara todos, em companhia de algumas moças da vizinhança, falava-se de modas e cada uma dava a sua opinião.

 

Andrade conversava alegremente e também discutia o assunto da conversa, mas o seu olhar, a sua atenção estavam voltados para a bela Sara.

 

A distração da moça era evidente.

 

Em que pensaria ela?

 

De repente, entra pelo jardim o filho de James, que ficara na cidade para aviar uns negócios do paquete.

 

— Sabem a novidade? disse ele.

 

— Que é? perguntaram todos.

 

— Caiu o ministério.

 

— Deveras? disse James.

 

— Que temos nós com o ministério? perguntou uma das moças.

 

— O mundo caminha bem sem o ministério, observou outra.

 

— Oremos pelo ministério, acrescentou piedosamente uma terceira.

 

Não se falou mais nisto. Aparentemente, era uma coisa insignificante, um incidente sem resultado, na vida aprazível daquela abençoada solidão.

 

Assim seria para os outros.

 

Para Andrade foi um raio de luz, — ou pelo menos um indício veemente.

 

Notou ele que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois ficara algum tanto pensativa.

 

Por quê?

 

Tomou nota do incidente.

 

Noutra ocasião foi surpreendê-la a ler um livro.

 

— Que livro será esse? perguntou ele sorrindo.

 

— Veja, respondeu ela apresentando-lhe o livro.

 

Era uma história de Catarina de Médicis.

 

Isto seria insignificante para outro; para o nosso candidato era um vestígio preciosíssimo.

 

Com os apontamentos que tinha, já Andrade podia conhecer a situação; mas, como era prudente, buscou esclarecê-la melhor.

 

Um dia mandou uma cartinha a James Hope, concebida nestes termos:

 

“Empurraram-me alguns bilhetes de teatro: é um espetáculo em benefício de um homem pobre. Sei como o senhor é caridoso, e por isso aí lhe remeto um camarote. A peça é excelente.”

 

A peça era o Pedro.

 

No dia aprazado, lá estava Andrade no Ginásio. Hope não faltou, com a família, ao espetáculo anunciado.

 

Nunca Andrade sentira tanto a beleza de Sara. Estava esplêndida, mas o que aumentava a beleza e o que lhe inspirava adoração maior, era o concerto de louvores que ele ouvia à roda de si. Se todos gostavam dela, não era natural que ela só lhe pertencesse a ele?

 

Pela razão de beleza, como por causa das observações que Andrade queria fazer, não tirou os olhos da moça durante a noite inteira.

 

Foi ao camarote dela no fim do segundo ato.

 

— Venha, disse-lhe Hope, deixe-me agradecer-lhe a ocasião que me proporcionou de ver Sara entusiasmada.

 

— Ah!

 

— É um excelente drama este Pedro, disse a moça apertando a mão de Andrade.

 

— Excelente só? perguntou ele.

 

— Diga-me, perguntou James, este Pedro sobe sempre até ao fim?

 

— Não o disse ele no primeiro ato? respondeu Andrade. Subir! subir! subir! Quando um homem sente em si uma grande ambição, não pode deixar de realizá-la, porque justamente nesse caso é que se deve aplicar o querer é poder.

 

— Tem razão, disse Sara.

 

— Pela minha parte, continuou Andrade, nunca deixei de admirar este caráter soberbo, natural, grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma! Que é a vida sem uma grande ambição?

 

Este arrojo de vaidade produziu o desejado efeito, eletrizou a moça, a cujos olhos parecia que Andrade se havia transfigurado.

 

Bem o percebeu Andrade, que coroava assim os seus esforços.

 

Adivinhara tudo.

 

Tudo o quê?

 

Adivinhara que Miss Hope era ambiciosa.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

Eram duas pessoas diferentes até aquele dia; daí a pouco pareciam entender-se, harmonizar-se, completar-se.

 

Tendo compreendido e sondado a situação, Andrade não deixou de prosseguir no ataque em regra. Sabia para onde iam as simpatias da moça; foi com elas, e tão cauteloso, e ao mesmo tempo tão audaz, que inspirou ao espírito de Sara pouco disfarçável entusiasmo.

 

Entusiasmo, digo, e era esse o sentimento que devia inspirar quem pretendesse o coração de Miss Hope.

 

Amor é bom para as almas angélicas.

 

Sara não era assim; a ambição não se contenta com flores e horizontes curtos. Não pelo amor, mas pelo entusiasmo, é que ela devia ser vencida.

 

Sara via Andrade com olhos de admiração. Ele soubera, a pouco e pouco, convencê-la de que era um homem essencialmente ambicioso, confiado na sua estrela, e seguro dos seus destinos.

 

Que mais queria a moça?

 

Ela era efetivamente ambiciosa e sedenta de honras e eminências. Se tivesse nascido nas imediações de um trono, poria esse trono em perigo.

 

Para que ela amasse alguém, era necessário que esse pudesse competir com ela no gênio, e lhe afiançasse a vinda de glórias futuras.

 

Andrade compreendera isso.

 

E tão hábil se houve que conseguira fascinar a moça.

 

Hábil, digo eu, e nada mais; porque, se houve jamais criatura desambiciosa neste mundo, espírito mais tímido, gênio menos desejoso de mando e poderio, esse foi sem dúvida o n osso Andrade.

 

A paz era para ele o ideal.

 

E a ambição não existe sem perpétua guerra.

 

Como conciliar, pois, este gênio natural com as esperanças que inspirara à ambiciosa Sara?

 

Deixava ao futuro?

 

Desenganá-la-ia, quando fosse conveniente?

 

A viagem à Europa foi ainda uma vez adiada, porque Andrade, competentemente autorizado pela moça, pediu-a em casamento ao honrado comerciante James Hope.

 

— Perco ainda uma vez a minha viagem, disse o velho, mas desta vez por um motivo legítimo e agradável; faço minha filha feliz.

 

— Parece-lhe que eu... murmurou Andrade.

 

— Ande lá, disse Hope batendo no ombro do futuro genro; minha filha morre pelo senhor.

 

O casamento foi celebrado dentro de um mês. Os noivos foram passar a lua-de-mel na Tijuca. Cinco meses depois estavam ambos na cidade, ocupando uma casa poética e romanesca em Andaraí.

 

Até então a vida foi um caminho semeado de flores. Mas o amor não podia tudo numa aliança iniciada pela ambição.

 

Andrade estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas, le naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do rapaz por uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.

 

Sara começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o marido. Lia alguns romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de casar, parecia destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de dormideira.

 

Tarde conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente este desengano.

 

Quis disfarçá-lo, mas não pôde.

 

E um dia disse a Andrade:

 

— Por que razão a águia perdeu as asas?

 

— Qual águia? perguntou ele.

 

Andrade compreendeu a intenção dela.

 

— A águia era apenas uma pomba, disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.

 

Sara recuou e foi encostar-se à janela.

 

Caía, então, a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.

 

— Suspiras? perguntou Andrade.

 

Não teve resposta.

 

Houve longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade que batia compassadamente no chão.

 

Afinal, levantou-se o rapaz.

 

— Olha, Sara, disse ele, vês este céu dourado e esta natureza tranqüila?

 

A moça não respondeu.

 

— Isto é a vida, isto é a verdadeira glória, continuou o marido. Tudo mais é manjar de almas doentias. Gozemos isto, que deste mundo é o melhor.

 

Deu-lhe um beijo na testa e saiu.

 

Sara ficou longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela vertesse alguma lágrima.

 

Verteu duas.

 

Uma pelas ambições abatidas e desfeitas.

 

Outra pelo erro em que estivera até então.

 

Porquanto, se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões, dizia-lhe o coração que a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica.

 

Que mais lhe direi para completar a narrativa?

 

Sara disse adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de desejos.

 

Quis Deus que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido poderá escrever-lhe na sepultura: Foi boa esposa e teve muitos filhos.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 10 de julho de 2022

O POMBO (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

O POMBO

Rubem Braga

 


Vinícius de Moraes contava ter ouvido de uma sua tia-avó, senhora idosa muito boazinha, que um dia ela estava na sala de jantar, em sua casa do interior, quando um lindo pombo pousou na janela. A senhora foi se aproximando devagar e conseguiu pegar a ave. Viu então que em uma das patas havia um anel metálico onde estavam escritas umas coisas.
— Era um pombo-correio, titia.

–  Pois é. Era muito bonitinho e mansinho mesmo. Eu gosto muito de pombo.
— E o que foi que a senhora fez?


A senhora olhou Vinícius com ar de surpresa, como se a pergunta lhe parecesse pueril:

— Comi, uai.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 09 de julho de 2022

A VELHA AMIGA (CRÔNICA DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)

A VELHA AMIGA

Rachel de Queiroz

 

A Velha Amiga

Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.

Nem mesmo de quem morreu. De quem morreu sinto é falta, o prejuízo da perda, a ausência. A vontade da presença, mas não no passado, e sim presença atual.

Saudade será isso? Queria tê-los aqui, agora. Voltar atrás? Acho que não, nem com eles.

A vida é uma coisa que tem de passar, uma obrigação de que é preciso dar conta. Uma dívida que se vai pagando todos os meses, todos os dias. Parece loucura lamentar o tempo em que se devia muito mais.

Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou expirimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito; feito uma cobra que se sentisse melhor na pele antiga, não se acomodasse nunca à pele nova. Mas nós, como é que vamos ter saudades de um trapo velho que não nos cabe mais?

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.

E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

Infância sem lágrimas, amada, protegida. Mocidade - mas a mocidade já é de si uma etapa infeliz. Coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais.

Qual será, nesta vida, o jovem satisfeito? Um jovem pode nos fazer confidências de exaltação, de embriaguez; de felicidade, nunca. Mocidade é a quadra dramática por excelência, o período dos conflitos, dos ajustamentos penosos, dos desajustamentos trágicos. A idade dos suicídios, dos desenganos e, por isso mesmo, dos grandes heroísmos. É o tempo em que a gente quer ser dono do mundo - e ao mesmo tempo sente que sobra nesse mesmo mundo. A idade em que se descobre a solidão irremediável de todos os viventes. Em que se pesam os valores do mundo por uma balança emocional, com medidas baralhadas; um quilo às vezes vale menos do que um grama; e por essas medida, pode-se descobrir a diferença metafísica que há entre uma arroba de chumbo e uma arroba de plumas.

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.

A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.

E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.

Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.

(Crônica publicada no jornal "O Estado de São Paulo" - 13/01/2001)


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 08 de julho de 2022

A CIVILIZAÇÃO (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A CIVILIZAÇÃO

Olavo Bilac

 

 

 

Uma noite, toda a família, reunida em torno da grande mesa da sala de jantar, passava calmamente o serão. Otávio, inclinado sobre as páginas de um livro, contemplava as gravuras, e lia com interesse as linhas, em que se narravam longas viagens arriscadas, por terras e mares, na África, na Ásia e nas regiões geladas dos polos.
De repente, o menino levantou os olhos do livro, e perguntou:
— Papai, que quer dizer “civilização”?
— Por que perguntas isso, Otávio?
— Por que está escrito neste livro que os exploradores da Ásia, da África e dos polos têm o propósito de levar a civilização a essas regiões… então os homens que lá vivem não são homens como nós?
— São homens como nós, meu filho, mas não são civilizados como nós somos…
E, com paciência e carinho, o pai de Otávio começou a explicar-lhe o que é a civilização:
— A civilização, que é a difusão das riquezas materiais, intelectuais e morais, não pode nunca, sem um longo trabalho de reforma paciente, tomar conta de um país. Para que um povo tenha civilização, é necessário que o moroso passar dos séculos vá aperfeiçoando o caráter desse povo. Assim se a terra brasileira é hoje próspera e forte, foi necessário para isso o esforço coletivo e anônimo das gerações que se tem sucedido. Tu, que nasceste em plena civilização, gozando os benefícios que o trabalho dos teus antepassados preparou, concentra o teu espírito, e, contemplando o presente e lembrando o passado, compara-os, admirando o que foi esse lento progresso. Lembra-te, primeiro, da antiga bruteza deste solo: as selvas espessas e impenetráveis sucediam-se, como enormes muralhas; os rios, largos e acachoeirados, opunham novas barreiras ao passo humano; toda a natureza se mostrava concertada para repelir outros habitantes que não fossem os que ela já possuía, rudes e selvagens como ela. Esses viviam vagando, sem pouso certo, em constantes guerras; quando entravam na vida sedentária, a sua habitação era um agrupamento informe de ocas[i] de barro e madeira tosca, cercadas de trincheiras de espiques de palmeiras. E o que era a vida social desses tempos, diziam-no claramente as caveiras dos inimigos mortos em combate, espetadas nas caiçaras. Compara esses tempos ao tempo de agora! Vê como a terra brasileira está coberta de uma população de dezoito milhões de homens; o esforço humano venceu a hostilidade da natureza. As florestas abriram-se; desvendou-se o mistério das serras; as pontes, arrojadas de margem a margem, dominaram os rios; as feras recuaram; e o arado rasgando vitoriosamente a terra, deixou-a submissa e amiga. Abre agora um mapa, e vê como as estradas de ferro serpeiam, transpondo as águas, furando os montes, servindo os centros rurais, parando de espaço a espaço, ao pé de uma cidade, para logo correr de novo pelos campos, em busca de outras… De extremo a extremo do país, a civilização estendeu essa rede prodigiosa, que é como a ramificação de uma árvore imensa: dos troncos centrais partem os galhos, dos galhos partem as ramadas, e de ano em ano troncos novos se fixam no solo, expandidos em linhas várias, que vão de quilômetro em quilômetro ocupando todas as zonas povoadas ou por povoar. É por essa imensa combinação de canais que circula a atividade do trabalho, como pelas artérias e pelas veias do corpo humano circula o sangue que mantém a nutrição do organismo. E repara agora como, acompanhando as locomotivas, que voam pelos trilhos, se estendem os fios telegráficos, constantemente vibrando, conduzindo a eletricidade invisível e poderosa, que transmite o pensamento, e que congrega num mesmo ideal de ordem, de disciplina, de submissão ao governo da lei todos os cérebros… E observa agora o conforto da gente que trabalha. A sua habitação já não é a rude taba do selvagem, nem a feia senzala dos escravos, onde em promiscuidade imunda os deserdados da fortuna penavam e morriam. A senzala desapareceu, como desapareceu a oca. Limpa e arejada, a habitação atual do lavrador, do trabalhador livre, sorri, como a morada da paz e da fartura. Quando, ao romper da clara manhã, o trabalhador deixa casa, para ir mourejar, sabe que deixa acomodada e feliz a família: e, voltando a cabeça, para com um olhar amigo abençoar os filhos que da porta o veem partir, ele sabe, avistando a fumaça que coroa a chaminé doméstica, que ali não falta o pão, como não falta sossego… agora, vê que multidão de cidades há espalhadas pela tua terra, meu filho!… Umas, postas à beira-mar, dominam as águas contidas pelos cais, vendo balançarem-se aos seus pés os navios, em cujos mastros as bandeiras de todos países da terra flutuam. Outras, emergem risonhas e barulhentas do seio fecundo das matas. Outras, agarradas aos flancos das serras, são as primeiras a receber a luz do sol, e parecem estar celebrando, com o clamor dos seus sinos, com o estrépito das máquinas das suas fábricas, a glória do homem! E, enquanto os homens vão para o trabalho, as crianças, logo às primeiras horas do dia, partem para a escola…
— A Escola também é fruto da civilização, papai? — perguntou Otávio, que ouvia tudo aquilo com uma atenção religiosa, fitando no pai os seus grandes olhos inteligentes e curiosos.
— Também, meu filho! E a Escola de hoje já não é o que era antigamente, no início da civilização. A Escola já não é um lugar de tristeza e martírio: é um prolongamento da casa da família. O mestre na apela para o castigo corporal, para a dor física, como para os únicos meios de formar a alma da criança: apela para o exemplo, para o carinho, para o afetuoso conselho que convence e comove. E, nas salas claras, diante dos mapas, diante dos livros, as crianças já não bocejam, acabrunhadas pelo tédio: sente-se bem, na atenção com que elas ouvem as lições, o desabrochar da sua inteligência na alegria, que é a saúde moral, e na vontade de saber, que é o elemento principal da educação. E aí tens o que é a vida de hoje em tua Pátria, meu filho! E aí tens o que é “civilização”! Lembra-te de novo do tempo em que as tribos viviam por aqui, nuas e sem leis, e do tempo em que somente os braços dos pobres cativos exploravam a terra, — e mede a extraordinária extensão do progresso que temos conquistado!
— E esse progresso é completo, papai?
— Não. O progresso humano é incessante e infindável. O trabalho do homem não para. No meio das imperfeições e das injustiças que ainda há nas sociedades civilizadas, esse trabalho é a garantia de um futuro cada vez melhor. O esforço coletivo, animado pelo amor e pela bondade, há de um dia nivelar todos os homens, e há de assentar no seio do planeta que habitamos a felicidade completa! Tu, que amas a terra em que nascestes, aprende, reconhecendo o valor do que os teus avós já fizeram, a sacrificar o teu próprio bem ao bem comum, para que os teus filhos e os teus netos possam abençoar a tua memória, como abençoas a memória dos que te deram a civilização!


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 07 de julho de 2022

èèèA AVENTURA DE ROZENDO MOURA (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A AVENTURA DE ROZENDO MOURA

João do Rio

(Grafia original)

 

Na rua era um fragor. As casas pareciam abaladas pelo barulho dos tambores, das cornetas, dos bombos, da vozearia infernal. Rozendo Moura, muito maldisposto, estava a vestir-se. No seu encantador gabinete de laca branca com estofo cor-de-rosa e uma infinidade de objetos de cristal e marfim por sobre os móveis, nós insistíamos.

- Não me deixarão vocês?

- Rozendo! Uma terça-feira de carnaval!

- Mas chove...

- Tanto melhor. A Berta Worms espera-nos!

- Essa mulher desagrada-me...

- Não há mulheres desagradáveis. As mulheres contentam-se com ser, como dizia o dramaturgo - a razão e o impedimento de todas as nossas obras...

- Pois eu julgo-as portadoras de fatalidade e nós, mesmo contra a vontade, as placas sensíveis dessas correntes de Mistério.

- A Berta dá então azar?

- A mim, pelo menos. Explico o meu caso. Pode dar sorte a outros. Comigo, há mulheres que, aproximadas, são motivo de prosperidade. Outras baralham-me a vida, por mais que me amem. Tenho de brigar a murros com desconhecidos, negócios quase realizados periclitam, a saúde fenece... Assim deve ser com vocês, com todos os homens. Infelizmente não sou excepcional. Há de resto uma espécie de mulheres pior - a que age sobre os homens como alucinação, fazendo-os participar da própria desgraça. Dessas, quem escapa uma vez, não toma...

- Fetiche!

- É que vocês nunca se lembram da mulher que os acompanha...

- A mulher fatal?

- Todas são fatais.

Houve uma pausa breve, enquanto Rozendo Moura dava o laço da gravata, diante do espelho.

- O Rozendo, já escapastes de alguma? indagou Jaques Ciro, um prodígio de ceticismo, porque tinha apenas vinte anos.

- Já. Olha. O carnaval faz-me lembrar a mais horrenda semana da minha vida, a semana em que eu participei integralmente da horrível fatalidade...

Nesse momento, o rumor vindo da rua tornou-se tão grande, que tivemos de ir à janela. Chovia a cântaros. Mas, embaixo, a multidão delirava. Eram gritos, uivos, gargalhadas, assobios, guinchos de cornetins, rufos de tambores, sacolejos de adufes, estalos de pratos. E os sons agoniantes dos bombos bombardeando as fachadas... Rozendo recolheu com desgosto, atirou-se no divã.

Não, positivamente não vou!...

- Recordaste a semana horrível? tornou Jaques Ciro.

- Sim. E tanto mais atroz, quanto até hoje não compreendo como e por que agi nesses oito dias. Foi há cinco anos e por mais que pense, não explico. Macabro. Misterioso. Assustador. Recorda-se você da Corina Gomes, uma rapariguita brasileira, que freqüentava os clubes?

- Há cinco anos, Rozendo? Não há memória que alcance uma rapariguita brasileira a cinco anos de distância. Depois eu estava na Europa...

- Felizardo!

- Infeliz, porque voltei...

- Pois a Corina era magra, lívida, tomava cocaína. Eu achava-a antipática. Nunca trocáramos senão monossílabas, o instinto dizia-me que essa mulher seria a desagradável aventura da minha vida. Como? Não sabia!

Ora, numa terça antes do carnaval, com a agitação da cidade, habitual em tais dias, sentia-me inquieto, indeciso, nervoso. Desejava voltar a casa e queria aborrecidamente beber champagne e ouvir gritos no clube - onde se anunciava uma ululante redoute. A porta do club ainda hesitei. Ia acontecer-me qualquer coisa de desagradável. Com certeza. Sem ter inimigos, apalpei o revólver no bolso da calça. Há desses instantes de polarização nervosa em que vagamente sentimos o que está no ar e vem... Veio. Veio como os ciclones. Ainda no vestiário senti uma voz de agonia:

- Leve-me daqui já ou estou perdida! Pela sua honra...

Voltei-me. Era um dominó.

- Que brincadeira é essa?

- Por piedade! Não posso falar aqui. Escute, venha cá...

Frágil, a sua força nervosa era tão intensa, que quase me arrastava para a rua.

- Você está doida, mulher?

- Pelo amor de Deus! Só a sua companhia até mais abaixo, Rozendo...

- Conhece-me?

- Sim, sim. Salve-me de morrer!

- Mas quer comprometer-me?

- Não. Quero a sua presença contra um covarde!

Na rua um táxi rodava vazio. Ela precipitou-se.

- Mande tocar já, já - para onde quiser...

Olhei em redor. Não havia ninguém suspeito. Tratava-se por conseqüência de uma aventura sem conseqüências.

Ela entregava-se, indo onde eu quisesse... Curvei-me para o motorista e, quase em segredo, dei-lhe uma direção vaga. Por quê? Até hoje não sei. Quando me voltei, o automóvel em marcha, o dominó levantou a máscara. Era Corina Gomes, os beiços trêmulos, lívida...

- Você? bradei colérico.

- A desgraça da minha vida! Não gosta de mim, bem sei. Mas não se trata de amor, Rozendo! Só o sr. poderá salvar-me.

- Eu?

- Há três anos suporto as torturas de um monstro. Tudo quanto ganho é dele. Quando vou ao club toma-me o dinheiro. Depois fecha o quarto todo, abre vários frascos de éter, põe-me inteiramente nua, prende-me os cabelos à gaveta da cômoda, e goza naquela atmosfera desvairante, gotejando sobre mim éter. Oh! não imagina! não imagina! Cada gota que cai dá-me um arrepio. Ao cabo de certo tempo é uma sensação de queimadura, queimadura de gelo até a insensibilidade... Ontem, não foi possível tolerá-lo mais. Protestei, gritei, contei tudo à gente da pensão. Dois homens que lá estavam puseram-no na rua a pontapés. Ele voltou. Não o recebi. Deu então para perseguir-me. Jurou que me matava. Ando a fugir. Vejo-o por todos os lados. É certo que me matará...

- E você incomoda-me por uma tolice dessas! Faça as pazes.

- É tarde. Não tenho coragem. Antes de ouvir-me, mata-me. Tenho a certeza. Os meus dias estão contados. Conheço-o.

Disse aquelas palavras com tal segurança que não hesitei um segundo. Também eu tinha a certeza da fatalidade que vence todos os obstáculos, também eu via aquela criatura morta...

- Mas que fazer?

- Se pudesse esconder-me uns dias, dar-me depois uma passagem? É inútil, porque ele acabará por encontrar-me. Mas eu tenho medo, muito medo. Falta-me a coragem de morrer, Rozendo!

Devia ter levado Corina à policia, denunciado o monstro. E, livre de responsabilidade, ir dormir em seguida. Assim faria um homem de bem no uso das suas faculdades.

- Sabe onde está ele?

- Por ai. Procura-me...

De repente senti que tinha ódio a Corina, com vontade de defendê-la. Perdera a noção do real, sabendo que a perdera. Era desejo de aniquilar o desconhecido e o medo vago desse enorme e vago desconhecido. Não disse que a defenderia. Levei-a para um quarto de hotel em rua escura com a resolução de embarcá-la no dia seguinte, ainda não sabia como. No hotel, Corina tremia tanto, quando tentei deixá-la, que fiquei. Dormimos um ao lado do outro, sem uma carícia - ela a delirar com medo; olhando a treva e maldizendo a aventura. E no dia seguinte verifiquei apenas o seguinte: perdera insensivelmente metade da energia. Como essas criaturas na iminência do desastre. Como os criminosos com medo à polícia. Andei dois dias assim, desconfiado, fraco, aterrado, sem agir. Corina não deixava o quarto, sem dizer palavra. Eu sentia que era preciso salvá-la, para salvar-me. Inexplicável estado da alma! Na sexta resolvi terminar, vendo os anúncios dos vapores.

- Embarcas amanhã para a Europa!

Corina despregou-se das persianas, onde passava o dia a espreitar a rua.

- Não é possível! Ele já descobriu.

- Como?

- Vi-o ainda há pouco ali em frente.

- Mas estás louca!

- Não me deixe só, Rozendo! Ele mata-me. Chamei o criado, com uma súbita intenção do perigo. Interroguei-o. Havia algum hóspede novo? Havia. Um homem louro, pálido, que alugara o quarto do outro corredor, e estivera a ler a lista dos hóspedes... Corina caíra sobre o leito. Os seus dentes batiam como se estivesse desabrigada, entre neves. Fiz um esforço:

- Esse homem já recolheu?

- Há pouco.

Era uma luta, devia ser uma luta, secreta e atroz, na sombra. Mandei buscar um automóvel. Consegui dominar o terror de Corina para que ela ao menos caminhasse. Saímos naturalmente, como quem vai a passeio. No meio do caminho trocamos de automóvel. Eu tremia de raiva.

- A culpa é tua! Tu é que o fazes vir, sempre a pensar nele!

- É sim, Rozendo. Sinto que ele vem e não posso, não posso, não posso...

- Acabo com isso eu! Vamos dormir em qualquer hospedaria e amanhã dou queixa à polícia...

Assim fiz. O delegado prometeu tomar providências, mandando dois agentes para o hotel onde estávamos. Mas, ao sair da policia, compreendi claramente que ele" sabia da minha resolução. "Ele" sim, o homem que eu desconhecia, com o qual a fatalidade me punha em conflito, o homem de que a Corina devia ser vítima. Essa criatura já decerto sabia, e ria com desprezo. Eu não precisava tê-lo visto para ter a certeza do seu conhecimento... Foi um pensador melancólico que escreveu: "não é só no céu e na terra, é principalmente em nós mesmos que há mais coisas do que podem conter todas as filosofias. "Não sei explicar o mistério daquelas correntes de sentimentos que chocavam. Tinha a certeza, porém. E era horrível, era angustioso! Tomei a mudar de hotel e não tive mais coragem de deixar só Corina. Fazia-me reflexo sensível daquela fatalidade feita mulher. Ela aos poucos desdobrava-se em mim. E como só pensava no seu algoz - naquele a quem o Destino lhe entregara a vida eu também só pensava nele. Passávamos horas a ouvir o rumor dos corredores. Onde estaria ele? Onde? Decerto perto. Talvez, à vossa porta, espreitando...

O meu delírio tinha entretanto intervalos de relativa lucidez. Domingo de carnaval perdi de súbito o medo.

- Corina, achei uma solução para o nosso caso.

- Qual? fez ela.

- Vamos aproveitar o carnaval! Não se pode contar com a policia. "Ele" ainda não apanhou a nossa pista. O essencial é pôr-te a andar, antes que de novo a descubra! E encontrei-me a planejar alto: Visto-me de qualquer coisa e saio. Vou até a casa, enfio o dominó e venho buscar-te. Sairemos pela porta dos fundos. Faço melhor. O meu criado tem uma rapariga mais ou menos com o teu corpo. Mando-os esperar em qualquer casa de máscaras. Lá eles enfiarão as nossas fantasias e virão para este quarto, enquanto nós estaremos livres para tomar o noturno de S. Paulo. Há quarta-feira em Santos um transatlântico para Buenos Aires e Valparaíso. Se o homem não estiver no vapor, estarás livre...

- Achas?

- É certo.

Saí a executar o plano. Executei-o exatamente. Na casa de máscaras, Corina pôs uma travesseirinha nas costas, armou uns seios muito grandes, amarrou com o lenço o rosto e colocou por cima uma espessa máscara de arame. Eu fiz um grande ventre sob o dominó e saí claudicando. Tudo isso, notem vocês, fazíamos sem ver nada anormal, sem a certeza senão vaga de que ele nos estivesse acompanhando...

Após, conseguimos um táxi. Estávamos prestes a dizer:

- Enfim, logrado!

Mas, curioso. Durante as duas horas em que rolamos por avenidas desertas nesse automóvel fechado a fazer horas para apanhar o comboio, não trocamos uma palavra. Era o grande momento decisivo. Corina apertava a minha mão, de vez em quando, tremendo. Apenas. Eu sentia que o seu medo voltava aos poucos a desequilibrar-me. Passávamos pela cidade em delírio, sem dar por isso. O nosso delírio era maior.

Quando chegamos à Central a confusão urbana tocava o auge. O grande hall da estação cheio de luz elétrica, a turba, os "cordões" com archotes a zambumbar, as danças, os gritos, as lutas de lança-perfumes e dos confet, o risco colorido das serpentinas... Metemo-nos por ali dentro para tomar o vagão. E de repente, os dois, no mesmo instante, vimos que estávamos perdidos.

Como explicar essa impressão extralúcida?

Fora caía um temporal desabrido. A estação estava atulhada. Homens suados, bandos alagados, máscaras passavam numa alucinação como galvanizados pela luz elétrica. Ninguém reparava em nós, ninguém decerto, ninguém, ninguém. E entretanto sentíamos que o perigo se aproximava seguro, com o passo firme. Onde estava ele? Era o homem do éter, o homem cuja fisionomia eu nem mesmo conhecia, ele com a sua cara, ou com uma máscara. E olhava-nos, e estava ali, e reconhecera-nos. Sim.

Devia estar, devia ter reconhecido. Que fazer? Que fazer? A vertigem apoderava-se de nós. Aquela mulher era decerto o pólo negativo a chamar misteriosamente, a atrair o horrendo ser. Ele adivinhava por uma revelação telepática. Sei lá! Sei lá! O fato é que Corina apoiou o corpo no meu braço:

- É o fim!

- Anda para frente, estafermo! rouquejei furioso.

- Não partimos mais, Rozendo.

- Partimos sim!

- Ele está no apeadeiro, sinto-o!

- Prendemo-lo.

- Ele vai tomar o trem conosco. Ele mata-me em viagem!

- Miserável, caminha ou largo-te!

- Voltemos, Rozendo. Ainda é possível escapar, se apanhamos ai um automóvel...

- Agora?

- Sim! Sim!

- Agora? repetia eu correndo, como diante do inexorável Destino. E não havia máscara ou cara suspeita!

Na praça deserta - faltavam as conduções. Só, ao longe, rebrilhavam as lanternas de um carro. Ela deitou a correr. Segui-a, olhando para trás. Ao chegarmos à beira do carro, um landau fechado, estávamos completamente alagados. A chuva redobrava.

- Para onde?

- Ande!

- É vinte mil-réis a corrida.

- Seja cem! Depressa!

- Para onde quiser!

O trem tomou o caminho do lado da Casa da Moeda.

- Vamos à delegacia, Rozendo?

- Queres?

- Se ainda for tempo!

Convencido de que não seria possível lutar só contra o horror invisível, gritei ao cocheiro:

- Polícia Central! A toda...

O carro, porém, parara.

- Que há?

- Raios o partam! Rebentaram as correias das bestas.

- Hem?

- Dos dois lados. Caiporismo!

- E agora?

- E esperar aqui, até que passe outro carro. Não posso guiar assim.

- Meu Deus!

Era no pedaço mais deserto da rua. Saltei para ver. As correias gastas tinham arrebentado naturalmente. Estávamos nas mãos do Destino. Só havia um alvitre: correr até a esquina, onde passavam bondes, onde havia movimento... Era o meio de escapar, e eu escaparia para sempre, porque no dia seguinte não me meteria mais à guarda daquela criatura.

- Vamos?

- Rozendo...

- Anda...

- Se tem de ser? fez ela. Tens razão.

Desceu, corremos os dois sob o temporal pelo meio da rua escura uns cinco metros, uns dez metros. Sei que ouvi um psiu e voltei-me, enquanto ela estacava. Sei que vi um sujeito que vinha para nós, talvez o cocheiro. Sei que o sujeito avançou para Corina com uma pequena máscara de chorão, ergueu o braço, e passou a mão pelos seios falsos da rapariga. Ia gritar. Deu-me um pescoção. Rolei na lama. Ele segurava-a, riscando-lhe o dominó com uma navalha.

De súbito ela deu um grito agudo. O único. Pareceu-me que desmaiara. Nas mãos do máscara lembrava um manequim. O homem em fúria continuava a brandir a navalha contra os enchimentos dos seios. Afinal atirou-se à máscara. Era de arame. O fio da arma rompeu-se no tecido espesso. Ouvi os triços gaspeados da lâmina no tecido de arame. Ergui-me de um pulo, saquei do revólver, detonei aos berros:

- Assassino! Assassino!

O tipo arrancava as roupas, a máscara da desgraçada. Eu continuava a detonar e a gritar. Gente corria. Vi cair o capuz à Corina, o assassino agarrá-la pelos cabelos, afundar-lhe a navalha no pescoço e deixá-la tombar num jato de sangue. A cena talvez tivesse durado dois minutos. Para mim foi longa como um século, rápida como um raio. De revólver em punho, fantasiado, meio estrangulado pelos cordões da máscara, eu delirava, presa de uma febre cerebral... Estive entre a vida e a morte, dois meses... E quando os médicos me declararam fora de perigo, tive a sensação absoluta do desastre de que escapara. Ela agira como os ciclones, que embora destinados a um certo sitio, desarvoram, matam, estragam o que se agita no limite da sua ação destruidora. Aquela criatura fora o ciclone. Longe dela ainda lhe sofrera a força fatal. Não morrera, mas estava desarvorado, como os barcos apanhados pela tromba terrível. E desde então, respeito muito essas coisas inexplicáveis que as mulheres representam. A semana de Corina fez-me compreender o horror do enigma dramático da vida...

Rozendo Moura reclinou-se inteiramente no divã. Tinha a fronte banhada em suor. Amigos desse excelente rapaz, nós ouvíamos a anedota e os comentários com paciência e sem prestar muita atenção. Jaques Ciro, o jovem cético, estava ainda na idade em que se toma interesse pelas histórias alheias. Às divagações de Rozendo, insistiu:

- E a Corina, morreu?

- É verdade, a Fatalidade desapareceu? sorriu outro.

- Não, fez Rozendo. Não estaria no meu princípio de que as mulheres são agentes do Destino contra ou a favor de certos indivíduos. Ela parecia a vítima do tal assassino. No fundo a vítima foi ele. Ele é que devia desaparecer para libertar-se...

- Rozendo!

- A própria opinião inconsciente dessa rapariga. Nem ele nem ela morreram. Ele foi condenado a vinte anos de prisão. O advogado tem apelado. Ela, com o pescoço costurado, a cara cheia de talhos, mais magra, mais lívida, vive numa hospedaria das proximidades da Detenção. Todo o dinheiro que arranja é para ele, para o seu antigo, para o seu assassino. Amam-se profundamente. Ela, porque sendo a expressão viva da fatalidade do pobre homem, não o deixará enquanto for possível fazer-lhe mal. Ele, porque ninguém foge à sua mulher, isto é, ao seu Destino... Outro dia encontrei Corina. Não a vira desde a noite trágica. Foi ela quem me falou. E, contando-me o seu amor, a sinceridade do "pobrezinho", exclamou: "Tudo por sua causa, Rozendo. Se não fosse o seu medo e a mania de meter-se na vida dos outros, o meu Roberto não estaria desgraçado".

- Decididamente, meus amigos, as mulheres!... Não valem o tempo que aqui perdemos, sentenciou grave Jaques Ciro.

- Vão vocês pois ao divertimento. Eu fico com medo à chuva e às rajadas do Destino, que são as inexoráveis mulheres...

- E Rozendo Moura ergueu-se, foi até o espelho desmanchar o laço da gravata. Estava só. Todos nós já descíamos as escadas. Corríamos às aventuras prováveis do baile de máscaras. O carnaval, sob a chuva, sacudia as urtigas dos desejos. Não era por conseqüência momento de refletir sobre as filosofias talvez verdadeiras de Rozendo. O mundo não seria o mundo, se fosse possível a qualquer humano evitar o que tem de ser...


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 06 de julho de 2022

A MINA (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A MINA

Humberto de Campos

(Grafia original)

 

A notícia daquela descoberta correra célere por toda a comarca, por toda a província, por todo o país. Há muito tempo se suspeitava a existência de uma opulenta jazida de ouro ali mesmo, na encosta da serra, entre a linha de córregos, que desabava da montanha; ninguém se havia aventurado, todavia, a uma pesquisa mais demorada, mais completa, mais eficiente, até que chegou da África do Sul, via Londres, especialmente contratado para estudar o terreno, aquele engenheiro tostado do e de chapéu de cortiça, que espantara logo a vila com a excentricidade das suas roupas e a bizarria das suas maneiras.

Informado da exploração feita pelo inglês, ordenou o coronel Jesuíno Botelho que se iniciassem logo as escavações, para não perder tempo. Os maquinismos aperfeiçoados e modernos estavam, já, em viagem, pedidos por telegrama; enquanto, porém, não chegavam, iriam os homens perfurando o grande poço, em busca do veeiro, que ficava, na opinião do técnico, a oitenta metros da superfície.

O coronel Botelho não era, como a generalidade dos fazendeiros de Itaobara, um espírito refratário ao progresso, ao aperfeiçoamento do homem, aos empreendimentos suavizadores da vida. Educado em um seminário de Ouro-Preto, adquirira, com alguns professores leigos, uma noção positiva do mundo, e dos seus fenômenos; a disciplina religiosa ficara-lhe, porém, como lastro do espírito, e era assim que ele se conduzia pela terra, entre os ímpetos de conquistas e recuos de superstição. Por mais de uma vez havia tomado iniciativas atrevidas, importando arados, cultivando o melhor solo da fazenda; chegada, entretanto, a época da colheita, detinha-se em casa, no seu quarto, dias inteiros, mandando, daí, despachar os trabalhadores, e entregando o milho, o arroz, o feijão, as batatas, à fome das cotias, das pacas, das capivaras, dos tatus e dos papagaios irrequietos.

A alegria com que o coronel via, naquele ano, cavar a terra, no lugar da mina de ouro era, por isso, motivo de surpresa para toda a gente que o conhecia.

- É a tal coisa, - dizia um, perverso - para o milho, o feijão, o arroz, ele é religioso, e acha que se deve cuidar só da alma; fala-se, porém, em ouro, e esquece tudo. Agora só pensa na mina!

- E o buraco já está fundo! - informava outro.

E estava, de fato. Não obstante os aparelhos primitivos empregados na obra atrevida, o poço media, já, setenta metros de profundidade, faltando apenas dez para o ponto em que devia começar a galeria. E o coronel não desanimava, não se arrependia, demonstrava, timorato, o menor propósito de recuo.

- Agora, vai mesmo! - diziam os trabalhadores, fazendo subir, nas caçambas vagarosas, o barro, a areia, a pedra arrancada às entranhas virgens da terra.

- O homem está doido! - observavam outros com ironia, assinalando, admirados, o progresso dos trabalhos.

Certo dia, achava-se o coronel à mesa do almoço com a família, quando um operário lhe foi dizer, ansiado pela rapidez da marcha, que haviam dado com a mina. As primeiras estrias de ouro tinham aparecido, estando começada, já, a abertura da galeria. Boca escancarada, de que o bigode ralo era simples reposteiro, o fazendeiro deu um pulo, desamarrou o guardanapo, e saiu, correndo, no rumo do poço. E foi na mesma carreira que se atirou para o elevador primitivo e tosco, descendo, aos solavancos, os oitenta e quatro metros daquela perfuração audaciosa.

A emoção havia sido, porém, forte demais para os seus nervos abalados. Surpreendido pela notícia no momento da refeição, correra quase um quilômetro, sem parar. E era o efeito dessa temeridade que o coronel ia sentindo à medida que o aparelho descia, e que atingiu proporções assustadoras, antes, mesmo, de chegar ao fundo da escavação.

- Levem-me para cima! Levem-me! - pediu Botelho, metendo a mão no colarinho da camisa, rompendo-a com violência. - Levem-me daqui. Quero morrer lá em cima. Eu sufoco! Eu morro!

Vagaroso, como sempre, o elevador pôs-se, de novo, a subir. E tal era a morosidade da sua marcha, que, ao chegar no alto, o coronel jazia sem sentidos, agarrado por baixo dos braços pelos dois homens que o acompanhavam.

Dois dias e duas noites esteve o velho fazendeiro completamente desacordado. E no seu sono, entre a morte e a vida, teve um sonho sinistro, horrendo, desvairado, que o agitava, como num pesadelo.

A princípio, a sua fazenda era um grande navio, que navegava na noite e no silêncio, dirigido por um comandante alto e magro, que andava sempre embuçado, passeando, soturno, no tombadilho, de um lado para outro. Passageiro da embarcação-fantasma, ele, Botelho, tentara, por várias vezes, travar palestra com o capitão. Este afastara-se, porém, no mesmo passo, sem uma palavra, sem um gesto, sem um olhar. De uma das vezes, indignado, resolveu pedir-lhe explicações daquela descortesia: foi ao seu encontro, tomou-lhe o caminho, e intimou-o:

- Olhe para mim, ou eu o esbofeteio!

Pala em cima dos olhos, o comandante quedou-se, calmo. E, como não atendesse à segunda intimação, avançou Botelho no seu rumo, e, de um safanão, arrancou-lhe violentamente o boné. E recuou, com um grito: diante dele estava, crânio calvo, órbitas vazias, dentes à mostra num sorriso sinistro, um esqueleto, cujas mãos apareciam sob as mangas do capote, chocalhando todos os ossos!

- Quem és tu? - gemera o coronel, recuando, espavorido, até à amurada.

- Não me conheces? - respondeu, fanhoso, o espetro apavorante, movendo o queixo sem carnes. - Eu sou a Morte. E tu, que tanto me temes, um simples passageiro do meu navio!

E irônico:

- Já viste os teus companheiros de viagem? Desce; vai vê-los.

À imposição das falanges nuas, que lhe indicavam uma escada, ele descera um buraco semelhante àquele da mina, mas cortado, lá em baixo, por uma grande galeria, na qual se abriam, de um lado e de outro, numerosos camarotes, divididos em beliches. Diante de cada beliche havia, porém, uma cortina de veludo preto, com unia cruz de galão dourado. Suspendeu a primeira cortina, e recuou: o beliche era um caixão funerário, no qual repousava, estirado, um esqueleto. Ergueu outra cortina, e apresentou-se-lhe aos olhos o mesmo esquife, com o mesmo passageiro. Foi a outro camarote, a outro mais, e ainda a outro, e em cada um deles, quatro beliches, isto é, quatro caixões, e em cada caixão uma ossada. Cansado da peregrinação, queria, já, um beliche desocupado, quando despertou.

De salto, pôs-se de pé.

- E a mina? - indagou, pálido, mãos trêmulas, olhos arregalados.

- Está sendo aberta a galeria, - informou, alguém, da família.

- Tapem-na! Soterrem-na! Obstruam-na! - gritou, apavorado, as mãos na cabeça.

Nesta mesma noite, à luz de quarenta archotes, começava a ser enterrada, como uma enorme sepultura ao clarão de quarenta círios, a grande, a riquíssima, a famosa mina de Itaobara.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 05 de julho de 2022

ANGÚSTIA DO VIÚVO (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

ANGÚSTIA DO VIÚVO

Dalton Trevisan

 

Ele acorda tosse e resmunga: “Essa bronquite”. Ainda na cama, dedo trêmulo, acende o primeiro cigarro e o segundo enquanto faz a barba. Espirra com o chuveiro frio. Bebe o café preto servido por dona Angelina, sai sem ver os filhos adormecidos. São sete horas e entra no emprego às oito. A rotina de preencher fichas e calcular percentagens.

 

Volta para o almoço, os filhos já estão no colégio. De tarde, a copiar faturas. Engole cafezinho bem quente — uma de suas predas — sem queimar a língua. Sanduíche e copo de leite. Esconde-se da chuva na biblioteca pública ou vai ao cinema. Às dez horas, sobe no ônibus, o jornal dobrado no bolso. Caminha três quarteirões até a casa silenciosa, apenas uma luz na varanda.

 

Dona Angelina dorme em sossego; não precisa vir tirar-lhe o sapato e deitá-lo vestido. Já não é s o bêbedo que rola na valeta. No escuro, atravessa o corredor e a sala, acende a luz da cozinha. Pendura o paletó na cadeira. Prende a gravata na cinta para não respingá-la.

 

O jantar está no armário com tela: um prato fundo coberto por outro raso. Coloca-o na mesa nua e, antes de sentar-se, guarda de volta no armário o prato raso umedecido pelo vapor. Come tudo, não acha gosto e abusada pimenta. Deita o café na caneca. Engole-o frio, um resto de pó no fundo. Dispõe na pia o prato e a caneca, abre a torneira e enche-os de água.

 

Mais um cigarro e, com a lima no chaveiro, limpa as unhas amarelas: consome duas carteiras por dia. Encaminha-se ao banheiro, escova os dentes e bate com a escova três vezes na beira da pia. Observa-se no espelho, rancoroso. Exibe a língua, os dentes manchados de nicotina:

 

— Dia de ficar bêbedo.

 

Já não bebe, mas repete em voz alta o desafio. Com a morte da esposa, entregou os filhos à dona Angelina e, por cinco meses, morou só na casa, sem acender o fogo nem arrumar a cama. Abandonou o emprego, não visitava as crianças. Dona Angelina ignorava se ainda estava vivo. Dormia embriagado todas as noites, não no quarto de casal, mas no paiol da lenha. Trazia um embrulho de pastéis, que mastigava entre goles de cachaça; estavam frios e úmidos de gordura, o que era indiferente, pois não lhes encontrava sabor.

 

— Hoje é dia de ficar bêbedo — anunciava a si mesmo. — Vou olhar para as telhas...

 

E olhava: as velhas telhas encardidas e cobertas de teias. Quando chovia, despregavam-se as aranhas de ventres peludos. A cabeça debaixo do lençol, mordendo os dedos, ele tremia de pavor. Certa vez a caixa d’água transbordou, inundando a casa, e os vizinhos deram o alarma.

 

Dona Angelina veio providenciar o conserto e, ao ver no colchão os buracos de brasa de cigarro, arrastou com ela o filho, que se deixou ir, cansado demais para discutir. Fechou-se no antigo quarto de solteiro, olhou- se muito tempo ao espelho, a princípio curioso, depois aborrecido e, enfim, com náusea. Naquela hora, sem ao menos pensar que era uma decisão, deixou de beber.

 

Agora, passado um ano, apagada a luz do banheiro, dirige-se no escuro ao seu quarto. Detém-se um instante na sala e escuta: o ronco estertoroso da velha encobre a respiração dos filhos. O menor dorme com dona Angelina, a menina na cama de grades. Bem que ela o preveniu:

 

— Está perdendo a festa da vida. Os filhos é que...

 

Embora a porta aberta, ele se afasta sem voltar o rosto: uma gaiola o amor dos filhos, dourada quem sabe. Você não fura o olho do passarinho para que ele cante mais doce? Outro cigarro enquanto se despe. Dispõe a roupa na cadeira; bem cedo a mãe vem apanhá-la, escova e passa a ferro — o único temo. Ninguém diria que é o mesmo, não fora um buraco de cigarro na manga. Domingo ele próprio capricha no vinco da calça preta.

 

Afofa os dois travesseiros para ler o jornal, nunca mais abriu um livro. Uma vez por semana, com repugnância e método, entrega-se ao prazer solitário — o mísero consolo do viúvo. Afinal vem o sono, aninha-se nas cobertas e dorme, o eterno grilo debaixo da janela. Ali na sala, ao pé do caixão, espanta a mosca no rosto da falecida. Os outros dão-lhe as costas:

 

— Olhe bem para a sua vítima. Você que a matou.

 

Finou-se de leucemia, que a família atribuiu aos beijos do vampiro sem alma. As lágrimas secando na face, espera a manhã. Encolhido, tosse e resmunga: “essa bronquite...” Dedo trêmulo, acende o primeiro cigarro ainda na cama e o segundo enquanto faz a barba. Chuveiro frio. Sai sem ver os filhos. Na rotina de preencher fichas e calcular percentagem, debaixo das telhas, espiam-no as aranhas de ventre cabeludo.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 04 de julho de 2022

A MORTE (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

A MORTE

Coelho Neto

 

Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.

Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.

Silêncio trágico continha a todos, suspensos.

Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?

Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.

De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:

— Que horas são?

Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina metálica: “Sete!”

Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.

Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura da luz.

O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para oratório buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.

E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.

Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.

Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.

Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo se apagar.

Alguém chamou por ele, em pranto.

Ai! de nós...

Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.

É um caixão que se fecha. Nada mais.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 03 de julho de 2022

ATENÇÃO AO SÁBADO (CRÔNICA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

ATENÇÃO AO SÁBADO

Clarice Lispector

 

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.

No sábado é que as formigas subiam pela pedra. Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho. De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana. Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?

No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde. Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais. Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.  Domingo de manhã também é a rosa da semana. Não é propriamente rosa que eu quero dizer.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 02 de julho de 2022

DENTRO DA NOITE (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

DENTRO DA NOITE

João do Rio

 

— Então causou sensação?

 

— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela, coitadita! Parecia louca por ti, e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente, havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.

 

— Contra mim?

 

Podia ser contra a pureza da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar desvairado...

 

— Eu tenho o ar desvairado?

 

— Absolutamente desvairado.

 

— Vê-se?

 

— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queiroz, o mais elegante artista desta terra, nem trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?

 

O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados d'água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima -o que falava mais- dizia para o outro:

 

— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?

 

O outro sorriu desanimado.

 

— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise. E como o gordo esperasse:

 

— Oh! Meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.

 

— Mas que é isto, Rodolfo?

 

— Que é isto! E' o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.

 

— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto...

 

O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais -a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.

 

— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher - a beleza dos braços das Oréadas pintadas por Botticeli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beija-los, de acaricia-los, mas principalmente de faze-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, aperta-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei -uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraigou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espeta-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de coze-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.

 

— Que horror!

 

— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauteríe da viscondessa de Lages, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços - oh! Que braços, Justino, que braços! - Estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me -«Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?». Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. -«Oh! Não! Fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço». Sabes como é pura a Clotilde. A pobresita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: -«Se não quer que eu mostre os braços porque não me disse a mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?». -«É, é isso, Clotilde». E rindo -como esse riso devia parecer idiota! - Continuei «É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete». -«Está louco, Rodolfo?». -«Que tem?». -«Vai fazer-me doer». -«Não dói». -«E o sangue?». -«Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento». E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah! Meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro «Bem, Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!». E os seus dois braços tremiam.

 

Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente -«Mau!».

 

Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o pensamento a dizer nunca mais farei essa infâmia! Todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror...

 

Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.

 

— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marques de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper-civilisado, contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.

 

O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.

 

— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. É lúgubre.

 

— Então continuaste?

 

— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: -«Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa».

 

Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei.

 

Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?...

 

Então depois, Justino, sabes? Foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: -«Fez sangue, ontem?». E ela pálida e triste, num suspiro de rola: «Fez...». Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, á noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza!...

 

De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado, e indagou:

 

— Mas então como te saíste?

 

— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. «Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te». E lá de dentro: «Já vou, mãe». Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho pai desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.

 

— E fugiste?

 

— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras ideias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o sossobramento total. Para esquece-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.

 

A pedir, a rogar um instante de calma eu corria ás vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.

 

A voz do desvairado tornara-se metálica, outra vez. De novo, porém a envolveu um tremor assustado.

 

— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...

 

De repente, num entrechocar de todos os vagões, o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loura com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.

 

— Adeus.

 

— Saltas aqui?

 

— Salto.

 

— Mas que vais fazer?

 

— Não posso, deixa-me! Adeus!

 

Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loura. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, em que estava a menina loura. Mas o comboio rasgara a treva com outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d'água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 01 de julho de 2022

A CARTEIRA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A CARTEIRA

Machado de Assis

 

...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:

 

- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.

 

- É verdade, concordou Honório envergonhado.

 

Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.

 

- Tu agora vais bem, não? Dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.

 

- Agora vou, mentiu o Honório.

 

A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.

 

  1. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.

 

Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.

 

- Nada, nada.

 

Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.

 

A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. Da Assembleia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.

 

Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, - enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.

 

Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.

 

Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? Era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.

 

"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele.

 

Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.

 

A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu.

 

"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."

 

Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.

 

- Nada.

 

- Nada?

 

- Por quê?

 

- Mete a mão no bolso; não te falta nada?

 

- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?

 

- Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.

 

Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.

 

- Mas conheceste-a?

 

- Não; achei os teus bilhetes de visita.

 

Honório deu duas voltas, e foi mudar de toalete para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 30 de junho de 2022

A BIBLIOTECA (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

A BIBLIOTECA

Lima Barreto

 

À proporção que avançava em anos, mais nítidas lhe vinham as reminiscências das cousas da casa paterna. Ficava ela lá pelas bandas da Rua do Conde, por onde passavam então as estrondosas e fagulhentas "maxambombas" da Tijuca. Era um casarão grande, de dois andares, rés-do-chão, chácara cheia de fruteiras, rico de salas, quartos, alcovas, povoado de parentes, contraparentes, fâmulos, escravos; e a escada que servia os dois pavimentos, situada um pouco além da fachada, a desdobrar-se em toda a largura do prédio, era iluminada por uma grande e larga claraboia de vidros multicores. Todo ele era assoalhado de peroba de Campos, com vastas tábuas largas, quase da largura da tora de que nasceram; e as esquadrias, portas, janelas, eram de madeira de lei. Mesmo a cocheira e o albergue da sege eram de boa madeira e tudo coberto de excelentes e pesadas telhas. Que cousas curiosas havia entre os seus móveis e alfaias? Aquela mobília de jacarandá-cabiúna com o seu vasto canapé, de três espaldares, ovalados e vastos, que mais parecia uma cama que mesmo um móvel de sala; aqueles imensos consolos, pesados, e ainda mais com aqueles enormes jarrões de porcelana da Índia que não vemos mais; aqueles desmedidos retratos dos seus antepassados, a ocupar as paredes de alto abaixo - onde andava tudo aquilo? Não sabia... Vendera ele, aqueles objetos? Alguns; e dera muitos.

 

Umas cousas, porém, ficaram com o irmão que morrera cônsul na Inglaterra e lá deixara a prole; outras, com a irmã que se casara para o Pará... Tudo, enfim, desaparecera. O que ele estranhava ter desaparecido eram as alfaias de prata, as colheres, as facas, o coador de chá... E o espevitador de velas? Como ele se lembrava desse utensílio obsoleto, de prata!

 

Era com ternura que se recordava dele, nas mãos de sua mãe, quando, nos longos serões, na sala de jantar, à espera do chá - que chá! - Ele o via aparar os morrões das velas do candelabro, enquanto ela, sua mãe, não interrompia a história do Príncipe Tatu, que estava contando...

 

A tia Maria Benedita, muito velha, ao lado, sentada na estreita cadeira de jacarandá, tendo o busto ereto, encostado ao alto espaldar, ficava do lado, com os braços estendidos sobre os da cadeira, o tamborete aos pés, olhando atenta aquela sessão familiar, com o seu agudo olhar de velha e a sua hierática pose de estátua tebana tumular. Eram os nhonhôs e nhanhãs, nas cadeiras; e as crias e molecotes acocorados no assoalho, a ouvir... Era menino...

 

O aparelho de chá, o usual, o de todo o dia, como era lindo! Feito de uma louça negra, com ornatos em relevo, e um discreto esmalte muito igual de brilho - donde viera aquilo? Da China, da Índia?

 

E a gamela de bacurubu em que a Inácia, a sua ama, lhe dava banho - onde estava? Ah! As mudanças! Antes nunca tivesse vendido a casa paterna...

 

A casa é que conserva todas as recordações de família. Perdida que seja, como que ela se vinga fazendo dispersar as relíquias familiares que, de algum modo, conservavam a alma e a essência das pessoas queridas e mortas... Ele não podia, entretanto, manter o casarão... Foi o tempo, as leis, o progresso...

 

Todos aqueles trastes, todos aqueles objetos, no seu tempo de menino, sem grande valia, hoje valeriam muito... Tinha ainda o bule do aparelho de chá, um escumador, um guéridon com trabalho de embutido... Se ele tivesse (insistia) conservado a casa, tê-los-ia todos hoje, para poder rever o perfil aquilino, duro e severo do seu pai, tal qual estava ali, no retrato de Agostinho da Mota, professor de academia; e também a figurinha de Sèvres que era a sua mãe em moça, mas que os retratistas da terra nunca souberam pôr na tela. Mas não pôde conservar a casa... A constituição da família carioca foi insensivelmente se modificando; e ela era grande demais para a sua. De resto, o inventário, as partilhas, a diminuição de rendas, tudo isso tirou-a dele. A culpa não era sua, dele, era da marcha da sociedade em que vivia...

 

Essas recordações lhe vinham sempre e cada vez mais fortes, desde os quarenta e cinco anos; estivesse triste ou alegre, elas lhe acudiam. Seu pai, o Conselheiro Fernandes Carregal, tenente-coronel do Corpo de Engenheiros e lente da Escola Central, era filho do sargento-mor de engenharia e também lente da Academia Real Militar que o Conde de Linhares, ministro de Dom João VI, fundou em 1810, no Rio de Janeiro, com o fim de se desenvolverem entre nós os estudos de ciências matemáticas, físicas e naturais, como lá diz o ato oficial que a instituiu. Desta academia todos sabem como vieram a surgir a atual Escola Politécnica e a extinta Escola Militar da Praia Vermelha. O filho de Carregal, porém, não passara por nenhuma delas; e, apesar de farmacêutico, nunca se sentira atraído pela especialidade dos estudos do pai. Este dedicara-se, a seu modo e ao nosso jeito, à Química. Tinha por ela uma grande mania... bibliográfica. A sua biblioteca a esse respeito era completa e valiosa. Possuía verdadeiros "incunábulos", se assim se pode dizer, da química moderna. No original ou em tradução, lá havia preciosidades. De Lavoisier, encontravam-se quase todas as memórias, além do seu extraordinário e sagacíssimo Traité Élémentaire de Chimie, présenté dans un ordre et d'après les découvertes modernes.

 

O velho lente, no dizer do filho, não podia pegar nesse respeitável livro que não fosse tomado de uma grande emoção.

 

— Veja só meu filho, como os homens são maus! Lavoisier publicou esta maravilhosa obra no início da Revolução, a qual ele sinceramente aplaudiu... Ela o mandou para o cadafalso—sabe você por quê?

 

— Não, papai.

 

— Porque Lavoisier tinha sido uma espécie de coletor ou cousa parecida no tempo do rei. Ele o foi, meu filho, para ter dinheiro com que custeasse as suas experiências. Veja você como são as cousas e como é preciso ser mais do que homem para bem servir aos homens...

 

Além desta gema que era a sua menina dos olhos, o Conselheiro Carregal tinha também o Proust, Novo Sistema de Filosofia Química; o Priestley, Expériences sur les différentes espèces d'air; as obras de Guyton de Morveau; o Traité de Berzelius, tradução de Hoefer e Esslinger; a Statique Chimique do grande Berthollet; a Química Orgânica de Liebig, tradução de Gerhardt - todos livros antigos e sólidos, sendo dentre eles o mais moderno as Lições de Filosofia Química, de Würtz, que são de 1864; mas, o estado do livro dava a entender que nunca tinham sido consultadas. Havia mesmo algumas obras de alquimia, edições dos primeiros tempos da tipografia, enormes, que exigem ser lidas em altas escrivaninhas, o leitor de pé, com um burel de monge ou nigromante; e, entre os desta natureza, lá estava um exemplar do - Le Livre des Figures Hiéroglyphiques que a tradição atribui ao alquimista francês Nicolau Flamel.

 

Sobravam, porém, além destes, muitos outros livros de diferente natureza, mas também preciosos e estimáveis: um exemplar da Geometria de Euclides, em latim, impresso em Upsal, na Suécia, nos fins do século XVI; os Principia de Newton, não a primeira edição, mas uma de Cambridge muito apreciada; e as edições princeps da Méchanique Analytique, de Lagrange, e da Géométrie Descriptive, de Monge.

 

Era uma biblioteca rica assim de obras de ciências físicas e matemáticas que o filho do Conselheiro Carregal, há quarenta anos para cinquenta, piedosamente carregava de casa em casa, aos azares das mudanças desde que perdera o pai e vendera o casarão em que ela quietamente tinha vivido durante dezena de anos, a gosto e à vontade.

 

Poderão supor que ela só tivesse obras dessa especialidade; mas tal não acontecia. Havia as de outros feitios de espírito. Encontravam-se lá os clássicos latinos; a Voyage autour du Monde de Bougainville; uma Nouvelle Héloise, de Rousseau, com gravuras abertas em aço; uma linda edição dos Lusíadas, em caracteres elzevirianos; e um exemplar do Brasil e a Oceania, de Gonçalves Dias, com uma dedicatória, do próprio punho do autor, ao Conselheiro Carregal.

 

Fausto Carregal, assim era o nome do filho, até ali nunca se separara da biblioteca que lhe coubera como herança. Do mais que herdara, tudo dissipara, bem ou mal; mas os livros do conselheiro, ele os guardara intatos e conservados religiosamente, apesar de não os entender. Estudara alguma cousa, era até farmacêutico, mas sempre vivera alheado do que é verdadeiramente a substância dos livros— o pensamento e a absorção da pessoa humana neles.

 

Logo que pôde, arranjou um emprego público que nada tinha a ver com o seu diploma, afogou-se no seu ofício burocrático, esqueceu-se do pouco que estudara, chegou a chefe de seção, mas não abandonou jamais os livros do pai que sempre o acompanharam, e as suas velhas estantes de vinhático com incrustação de madrepérola.

 

A sua esperança era que um dos seus filhos os viesse a entender um dia; e todo o seu esforço de pai sempre se encaminhou para isso. O mais velho dos filhos, o Álvaro, conseguiu ele matriculá-lo no Pedro II; mas logo, no segundo ano, o pequeno meteu-se em calaçarias de namoros, deu em noivo e, mal fez dezoito anos, empregou-se nos correios, praticante pro-rata, casando-se daí em pouco. Arrastava agora uma vida triste de casal pobre, moço, cheio de filhos, mais triste era ele ainda porquanto, não havendo alegria naquele lar, nem por isso havia desarmonia. Marido e mulher puxavam o carro igualmente...

 

O segundo filho não quisera ir além do curso primário. Empregara-se logo em um escritório comercial, fizera-se remador de um clube de regatas, ganhava bem e andava pelas tolas festas domingueiras de sport, com umas calças sungadas pelas canelas e um canotier muito limpo, tendo na fita uma bandeirinha idiota.

 

A filha casara-se com um empregado da Câmara Municipal de Niterói e lá vivia.

 

Restava-lhe o filho mais moço, o Jaime, tão bom. tão meigo e tão seu amigo, que lhe pareceu, quando veio ao mundo, ser aquele que estava destinado a ser o inteligente, o intelectual da família, o digno herdeiro do avô e do bisavô.

 

Mas não foi; e ele se lembrava agora como recomendava sempre à mulher, nos primeiros anos de vida do caçula, ao ir para a repartição:

 

— Irene, cuida bem do Jaime! Ele é que vai ler os papéis do meu pai.

 

Porque o pequeno, em criança, era tão doentinho, tão mirrado, apesar dos seus olhos muito claros e vivos, que o pai temia fosse com ele a sua última esperança de um herdeiro capaz da biblioteca do conselheiro.

 

Jaime tinha nascido quando o mais velho entrava nos doze anos; e o inesperado daquela concepção alegrava-lhe muito, mas inquietara a mãe.

 

Pelos seus quatro anos de idade, Fausto Carregal já tinha podido ver o desenvolvimento dos dois outros seus filhos varões e havia desesperado de ver qualquer um deles entender, quer hoje ou amanhã, os livros do avô e do bisavô, que jaziam limpos, tratados, embalsamados, nos jazigos das prateleiras das estantes de vinhático, à espera de uma inteligência, na descendência dos seus primeiros proprietários, para de novo fazê-los voltar à completa e total vida do pensamento e da atividade mental fecunda.

 

Certo dia, lembrando-se de seu pai em face das esperanças que depositava no seu filho temporão, Fausto Carregal considerou que, apesar do amor de seu progenitor à Química, nunca ele o vira com éprourettes, com copos graduados, com retortas. Eram só livros que ele procurava. Como os velhos sábios brasileiros, seu pai tinha horror ao laboratório, à experiência feita com as suas mãos, ele mesmo...

 

O seu filho, porém, o Jaime, não seria assim. Ele o queria com o maçarico, com o bico de Bunsen, com a baqueta de vidro, com o copo de laboratório...

 

— Irene tu vais ver como o Jaime vai além do avô! Fará descobertas.

 

Sua mulher, entretanto, filha de um clínico que tivera fama quando moço, não tinha nenhum entusiasmo por essas cousas. A vida, para ela, se resumia em viver o mais simplesmente possível. Nada de grandes esforços, ou mesmo de pequenos, para se ir além do comum de todos; nada de escaladas, de ascensões; tudo terra-a-terra, muito cá embaixo... Viver, e só! Para que sabedorias? Para que nomeadas? Quase nunca davam dinheiro e quase sempre desgostos. Por isso, jamais se esforçou para que os seus filhos fossem além do ler, escrever e contar; e isso mesmo a fim de arranjarem um emprego que não fosse braçal, pesado ou senil.

 

O Jaime cresceu sempre muito meigo, muito dócil, muito bom; mas com venetas estranhas. Implicava com uma vela acesa em cima de um móvel porque lhe pareciam os círios que vira em torno de um defunto, na vizinhança; quando trovejava ficava a um canto calado, temeroso; o relâmpago fazia-o estremecer de medo, e logo após, ria-se de um modo estranho... Não era, contudo, doente; com o crescimento, até adquirira certa robustez. Havia noites, porém, em que tinha uma espécie de ataque, seguido de um choro convulso, uma cousa inexplicável que passava e voltava sem causa, nem motivo. Quando chegou aos sete anos, logo o pai quis pôr-lhe na mão a cartilha, porquanto vinha notando com singular satisfação a curiosidade do filho pelos livros, pelos desenhos e figuras, que os jornais e revistas traziam. Ele os contemplava horas e horas, absorvido, fixando nas gravuras os seus olhos castanhos, bons, leais...

 

Pôs-lhe a cartilha na mão:

 

— "A-e-i-o-u" - diga: "a".

 

O pequeno dizia: "a"; o pai seguia: "e"; Jaime repetia: "e"; mas quando chegava a "o", parecia que lhe invadia um cansaço mental, enfarava-se subitamente, não queria mais atender, não obedecia mais ao pai e, se este insistia e ralhava, o filho desatava a chorar:

 

— Não quero mais, papaizinho! Não quero mais!

 

Consultou médicos amigos. Aconselharam-no esperar que a criança tivesse mais idade. Aguardou mais um ano, durante o qual, para estimular o filho, não cessava de recomendar:

 

—Jaime, você precisa aprender a ler. Quem não sabe ler, não arranja nada na vida.

 

Foi em vão. As cousas se vieram a passar como da primeira vez. Aos doze anos, contratou um professor paciente, um velho empregado público aposentado, no intuito de ver se instilava inteligência do filho o mínimo de saber ler e escrever. O professor começou com toda a paciência e tenacidade; mas, a criança que era incapaz de ódio até ali, perdeu a doçura, a meiguice para com o professor.

 

Era falar-lhe no nome, a menos que o pai estivesse presente, ele desandava em descomposturas, em doestes, em sarcasmos ao físico e às maneiras do bom velho. Cansado, o antigo burocrata, ao fim de dois anos, despediu-se tendo conseguido que Jaime soletrasse e contasse alguma cousa.

 

Carregal meditou ainda um remédio, mas não encontrou. Consultou médicos, amigos, conhecidos. Era um caso excepcional; era um caso mórbido esse de seu filho. Remédio, se um houvesse, não existia aqui; só na Europa... Não podia, o pequeno, aprender bem, nem mesmo ler, escrever, contar!... Oh! Meu Deus!

 

A conclusão lhe chegou sem choque, sem nenhuma brusca violência; chegou sorrateiramente, mansamente, pé ante pé, devagar, como uma conclusão fatal que era.

 

Tinha o velho Carregal, por hábito, ficar na sala em que estavam os livros e as estantes do pai, a ler, pela manhã, os jornais do dia. Ã proporção que os anos se passavam e os desgostos aumentavam-lhe n'alma, mais religiosamente ele cumpria essa devoção à memória do pai. Chorava às vezes de arrependimento, vendo aquele pensamento todo, ali sepultado, mas ainda vivo, sem que, entretanto, pudesse fecundar outros pensamentos... Por que não estudara?

 

Dava-se assim, com aquela devoção diária, a ele mesmo, a ilusão de que, se não compreendia aqueles livros profundos e antigos, os respeitava e amava como a seu pai, esquecido de que para amá-los sinceramente era preciso compreendê-los primeiro. São deuses os livros, que precisam ser analisados, para depois serem adorados; e eles não aceitam a adoração senão dessa forma...

 

Naquela manhã, como de costume, fora para a sala dos livros, ler os jornais; mas não os pôde ler logo.

 

Pôs-se a contemplar os volumes nas suas molduras de vinhático. Viu o pai, o casarão, os moleques, as mucamas, as crias, o fardão do seu avô, os retratos... Lembrou-se mais fortemente de seu pai e viu-o lendo, entre aquelas obras, sentado a uma grande mesa, tomando de quando em quando rapé, que ele tirava às pitadas de uma boceta de tartaruga, espirrar depois, assoar-se num grande lenço de Alcobaça, sempre lendo, com o cenho carregado, os seus grandes e estimados livros.

 

As lágrimas vieram aos olhos daquele velho e avô. Teve de sustê-las logo. O filho mais novo entrava na dependência da casa em que ele se havia recolhido. Não tinha Jaime, porém, por esse tempo, um olhar de mais curiosidade para aqueles veneráveis volumes avoengos. Cheio dos seus dezesseis anos, muito robusto, não havia nele nem angústias, nem dúvidas. Não era corroído pelas ideias e era bem nutrido pela limitação e estreiteza de sua inteligência. Foi logo falando, sem mais detença, ao pai:

 

— Papai, você me dá cinco mil-réis, para eu ir hoje ao football.

 

O velho olhou o filho. Olhou a sua adolescência estúpida e forte, olhou seu mau feitio de cabeça; olhou bem aquele último fruto direto de sua carne e de seu sangue; e não se lembrou do pai. Respondeu:

 

— Dou, meu filho. Dentro em pouco, você terá.

 

E em seguida como se acudisse alguma cousa deslembrada que aquelas palavras lhe fizeram surgir à tona do pensamento, acrescentou com pausa:

 

— Diga a sua mãe que me mande buscar na venda uma lata de querosene, antes que feche. Não se esqueça, está ouvindo!

 

Era domingo. Almoçaram. O filho foi para o football; a mulher foi visitar a filha e os netos, em Niterói; e o velho Fausto Carregal ficou só em casa, pois a cozinheira teve também folga.

 

Com os seus ainda robustos setenta anos, o velho Fausto Fernandes Carregal, filho do tenente-coronel de engenharia, Conselheiro Fernandes Carregal, lente da Escola Central, tendo concertado mais uma vez o seu antigo covaignac inteiramente branco e pontiagudo, sem tropeço, sem desfalecimento, aos dois aos quatro, aos seis, ele só, sacerdotalmente, ritualmente, foi carregando os livros que tinham sido do pai e do avô para o quintal da casa. Amontoou-os em vários grupos, aqui e ali, untou de petróleo cada um, muito cuidadosamente, e ateou-lhes fogo sucessivamente.

 

No começo a espessa fumaça negra do querosene não deixava ver bem as chamas brilharem; mas logo que ele se evolou, o clarão delas, muito amarelo, brilhou vitoriosamente com a cor que o povo diz ser a do desespero…


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 29 de junho de 2022

A ROSA AZUL (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A ROSA AZUL

Humberto de Campos

 

 

O Comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha marquesa de São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a notícia alvissareira e mentirosa da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e confessou-me, em viagem:

 

— A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora, para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa para alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco.

 

Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com admiração:

 

— Não conhece, então, a lenda da rosa azul?

 

À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o Comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro da bengala, e contou:

 

— No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silêncio da nave, aos pés de um Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das roseiras, que ele próprio plantava e regava.

 

O Comendador interrompeu um momento a narrativa, recostou-se na almofada, e continuou:

 

A sua paciência de jardineiro era absorvida, entretanto, por uma ideia, que era um sonho: encontrar a rosa azul das legendas do Oriente, de que tivera notícia, uma noite, ao ler os poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de experiências e sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua rosa azul.

 

Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou:

 

— Em volta do santo velhinho, no catre do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada de boca em boca, foi a notícia ter a um convento das proximidades, onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e, além de formosa e moça, — fidalga e portuguesa, compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria, por ter nas mãos trêmulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!

 

O "taxi" parava no meio-fio da calçada, o Comendador acrescentou, estendendo-me a mão agradecida:

 

— Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a vida.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 27 de junho de 2022

O TOURO NEGRO (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)

O TOURO NEGRO

Aluísio Azevedo

 

 

A notícia de uma estrondosa corrida de touros, que se ia dar na velha cidade da Galiza, onde nessa época me achava, assanhou o povo como por encanto, pondo-lhe o ânimo num estado de alegria do qual estava eu bem longe de o supor capaz. Viria como primeiro Espada e chefe da "cuadrilla" o guapo Torbellino, dono então por alguns instantes da cruenta alma espanhola, sem conseguir, está claro, com esse passageiro namoro, distrai-la completamente da sua sádica paixão por Lagartijo e Frascuello.

À boa nova começou logo a chamar gente de todas as cidades e povoações vizinhas. Ninguém por ali em volta resistia ao sôfrego desejo de vir buscar o seu quinhão de sensações violentas, que tão grata tourada prometia, e gozar o seu bocado de sangue fresco, que havia tanto tempo já se não gozava por aquelas alturas. Dir-se-ia que os restos da sacrossanta Espanha de Torquemada e de Filipe II, não se podendo saciar como dantes, nos bons tempos como o capitoso sangue dos heréticos e dos ímpios, se contentava agora, em falta de melhor, com o inócuo sangue de bois e de cavalos, Sempre na esperança, todavia, de qualquer acaso feliz que viesse enriquecer a festa com o apreciável sangue de algum toureiro desastrado.

E já não havia meio de conter a sofreguidão pública pelo prometido regabofe, quando chegara afinal o grande dia, deslumbrante ao vivo sol de Agosto e aclamado ardentemente pelo povo como um dia de glória nacional. Houve salvas e toques de corneta ao romper d’alva. Das duas da tarde em diante, as principais ruas da cidade, no meio de uma poeirada de cegar, transformaram-se em estrepitosas torrentes de carruagens, carroças, ginetes, e peões de toda espécie, que lá iam, em ansioso alarido, desaguar na praça de touros..

À entrada do circo, donde vinha um quente. rumor de caldeira a ferver, homens de má catadura, com grandes tabuleiros amparados ao ventre e suspensos do pescoço por grossa correia do couro cru, ofereciam aos circunstantes, não refrescos, frutas e flores, mas navalhas e facas de todos os feitios e tamanhos. Mais adiante, viam-se outros a vender, em vez de doces e confeitos, chouriços, paios e lingüiças, e ouviam-se ainda outros, cercados de barris e garrafões, apregoar vinho, azeitonas e aguardente. Em volta dos felizes que entravam para assistir ao espetáculo, rilhava invejosa a matilha dos que ficavam cá de fora sem poder fazer outro tanto, e um enxame de mulheres, de laço de cor à cabeça, doidejava em redor dos sujeitos que se dirigiam aos corretores de bilhetes, suplicando-lhes, a sorrir ansiosas, uma senha de entrada em troca de tudo que elas lhes pudessem dar com o corpo, e mendigos berravam por outro lado, lanceando o espaço com os dedos hirtos, a reclamar esmolas como quem reclama justiça no meio de caifases, e atiravam para o ar o nome de Deus e das virgens num intenso diapasão de pragas; ao passo que os guardas civis, sombrios debaixo do seu reluzente chapéu de oleado em forma napoleônica e da sua enorme capa, rondavam de um lado para outro, cruzando-se com os chulos de facha encarnada e as manolas de trunfa alta, que também rondavam, mas com fins inteiramente opostos.

O corredor do anfiteatro estava ensalsichado de espectadores até a boca, e lá dentro, tanto do lado da sombra como do sol, não havia lugar vazio. Meu banco felizmente era à sombra, e eu via palpitar no lado contrário, em plena luz, os leques de milhares de espectadores de ambos os sexos, lembrando borboletas presas pelos pés e doidas por voar; as sombrinhas de todas as cores, as vistosas mantilhas e as roupas claras tinham, nessa vasta e iluminada banda do circo, um aspecto tão alucinador, que parecia ser a expressão palpável daquela infernal algazarra, feita da rixa e riso, e da qual os palavrões obscenos se destacavam, iguais a esses estalos mais fortes que rebentam por entre a constante crepitação de um incêndio na floresta virgem. Ouviam-se de todos os lados sonoras pragas e alegres exclamações de arrancar couro e cabelo; à minha esquerda, uma família em que havia meninas menores de quinze anos, manifestava o seu entusiasmo pelo mesmo depilatório sistema, e aqueles castos ouvidos recolhiam palavras capazes de fazer tremer a um soldado, que não fosse espanhol; à minha direita o chefe de outra família, sem dúvida não menos honesta que a da esquerda, empinava de vez em quando uma formidável borracha de vinho, a que ele chamava "bota", e fazia também beber aos seus por igual sorte, entremeando os sucessivos tragos com tarascadas de chouriço, partidas rente da boca por uma navalha, de inquietadoras proporções.

Cinco minutos antes das quatro horas, momento marcado a rigor para começar a função, a berraria recrudesceu, preparando-se já para protestar, mas o alcaide da cidade, pomposo nas suas insígnias, assomou logo no camarote de honra, acompanhado pelo presidente da corrida, cumprimentou cerimoniosamente o público, e uma vibrante cometa militar, acolhida com tumultuosos regozijos, deu o sinal de abertura. Rompeu então a banda de música a tanger uma marcha dobrada, escancararam-se as grades de um portão no lado oposto ao da entrada de espectadores; e entre aplausos gerais a "cuadrilla" fez a sua solene aparição na liça.

Vinha na frente, a cavalo, o Primeiro Espada, o guapo Torbellino, todo agaloado, com chapéu de plumas e botas de canhão empunhando senhorilmente o seu bastão de chefe; seguiam-se os bandarilheiros e capinhas, a dois e dois, numa vistosa ala de cinco pares, todos a gingar, brilhantes nos seus bordados trajos de jaqueta curta e calção justo, o braço esquerdo dobrado por debaixo da capa vermelha e o direito solto, acompanhando os requebros do corpo; fechavam o séquito os picadores, em número proporcional, formados de três a três, com brutais perneiras de chumbo e lanças formidáveis, cavalgando velhas alimárias, tristes e alquebradas, que ali vinham, depois de uma dura vida de trabalhos no campo ou nas cidades, para ser, em recompensa dos seus bons serviços, escorneados por companheiros de martírio.

Feita a apresentação, separados da "cuadrilla" os toureiros que tinham de ficar na praça e correr o primeiro touro, fechado de novo o portão por onde vieram, bem vendados os olhos aos cavalos dos picadores, para que não fugissem espavoridos ao perigo, a cometa deu novo sinal, abriu-se daquele mesmo lado uma cancela, e a vítima designada surgiu a galope, estacando logo, porém, em pleno circo, fascinada e aturdida no meio de toda aquela estrondosa berraria, a olhar perplexa para todos os lados, até que, como se só então desse pela presença dos capinhas, investiu contra um deles.

Estava travada a pugna.

E começaram a repetir-se defronte daqueles milhares de olhos ávidos as estafadas sortes e passes, que há séculos a Espanha vê e revê sempre com o mesmo entusiasmo, e que sempre aplaude com a mesma convicção patriótica. Os capinhas, como há cem anos, atormentavam a pobre besta, negaceando defronte dela com as suas irritantes e traiçoeiras capas vermelhas, ou os bandari1heiros lhe espetavam na espádua e no pescoço farpas carregadas de enfeites e às vezes também de fogo, ou então os picadores lhe apresentavam as ilhargas das suas deploráveis cavalgaduras para que o enfurecido animal as destripasse ferozmente e também como há cem anos, se o mísero cavalo não morresse logo à primeira agressão e ainda se pudesse equilibrar sobre as patas, recolham-lhe de novo ao ventre os intestinos, cosiam-lhe o couro com alguns pontos apressados, e de novo o ofereciam sempre com a venda nos olhos aos truculentos Cornos, e afinal, ainda como há cem anos, quando o touro se achasse já bem cansado e exausto, o matador se apresentava defronte dele com a sua gloriosa espada e lha enterrava na cerviz até matá-lo. Fidalgo, gesto que sempre teve o condão de arrancar do público espanhol delirantes manifestações de aplauso, traduzidas não só em brados de louvor e em flores, ali mesmo arrebatadas do próprio colo ou do próprio toucado pelas mulheres, mas muitas vezes também em ricos lenços de renda, finos leques e até jóias preciosas, que lá iam cair aos pés do triunfador de envolta com charutos, cigarros e moedas de prata arremessadas pelos homens.

Só a quinta e última corrida da tourada, graças ao imprevisto das circunstâncias que se deram nela, discrepou daquele venerável ramerrão, e por isso mesmo foi a única digna de ser contada.

O touro então a correr era um belo animal negro e reluzente, com os cornos curtos e afilados como os de um búfalo.

Ao abrirem-lhe a cancela, ele invadiu a praça num formidável e insólito galope, centrípeto e cerrado, e a circulou repetidas vezes, com tal velocidade e tamanha fúria, atropelando tudo por tal modo, que foi logo uma debandada geral em toda a arena; os capinhas e bandarilheiros voaram por cima da trincheira, sem quase lhe tocar com a mão, e os picadores, chumbados aos seus pretensos corcéis, abeiravam-se dela e eram às pressas colhidos lá de dentro e carregados no ar, a pulso, como manequins de pernas tesas, entretanto que os expiatórios rocinantes, abandonados e às cegas, iam recebendo cornadas por conta própria e pela de todos os lidadores que desertavam o campo. Eram três os míseros, e os três pouco tardaram a cair mortos, enchendo de sangue o chão já coalhado de restos das capas, sombreiros, lanças bandarilhas e outros despojos, que o touro espezinhava com raiva rugindo de cabeça erguida.

público, a patear e a trapejar com as bengalas, protestava em delírio contra a ausência dos toureadores no lugar do perigo, e reclamava, a berros loucos, novos cavalos na praça como estabelecia o regulamento das corridas E essa feroz reclamação de "chair-au-taureau" encheu muitos minutos, que foram até aí os mais estrepitosos da tourada.

Era tal o fragor, que o touro pela primeira vez se mostrou atordoado e se pôs a correr à toda, procurando instintivamente uma aberta qualquer, por onde fugir àquela diabólica tempestade que bramia em redor dele e parecia querer tragá-lo.

A tempestade se acalmou quando de novo se abriu o portão, para dar passagem a outra turma de três picadores, desta vez precedidos por todos os toureiros da "cuadrilla", que foram entrando de cambulhada e dispostos para tudo. Torbellino, agora vestido de seda cor de esmeralda recamada de galões de ouro, trazia consigo uma cadeira, cuja magistral sorte figurava no programa da corrida em letras garrafais.

Mas o tremendo adversário não lhes deu tempo para negaças, e de roldão foi investindo sobre um dos picadores, que logo desabou da sela como um S. Jorge, e ao qual era preciso acudir antes de mais nada e carregar prontamente dali, se o não queriam ver num ápice acabar nas pontas do touro. E para este distrair e arredar daquela zona durante a subtração do picador em apuros, armou-se em volta dele uma agitada tropelia, enquanto os outros dois cavaleiros, bem cientes do que os esperava, tratavam de chegar-se à salvadora trincheira, contra a qual de fato eram em poucos segundos arrojados impetuosamente com as suas cavalgaduras, apesar de receberem a ponta de lança o cornígero agressor.

Derreados os cavalos e eclipsados os picadores o touro fez-se de todo para os capinhas, que, aliás, não conseguiram capear uma só vez e quando muito só lograram enraivecê-lo ainda mais. De cada feita que o quadrúpede arremetia sobre um deles saíram-lhe os outros pelos lados, agitando as capas, sem lhe dar tempo a marear alvo para o assalto. Todo o empenho dos toureiros era fatigá-lo, a ver se desse modo alcançavam equilibrar as forças em ação e obtinham, para decoro profissional, realizar algumas sortes, embora das mais simples, como o passe da Verônica ou da Navarra.

O touro, com efeito, apesar de sempre árdego e rebelde, já dava mostras de cansaço e parecia já não acometer com a mesma veemência, tanto assim que Torbellino, sem se poder conformar com aquela vergonhosa corrida composta só de correrias de um para outro lado da praça e repetidas escaladas à trincheira resolveu salvar a situação com um golpe da. audácia e declarou que ia executar imediatamente a sua famosa sorte da cadeira.

O público aclamou-o de novo mas desde que ele, com um par de farpas na mão direita e a cadeira na outra se pôs a bater com aquelas, chamando o touro à cita., este, em vez de partir de cara, como era de esperar, torceu de banda, antecipando-se assim no ardiloso requebro que o toureiro contava fazer, e repontou-lhe pela esquerda, sem lhe dar tempo senão para fugir. De sorte que os papéis singularmente se trocaram, o toureiro não toureou e o touro toureara, e Torbellino lhe teria sentido o gosto dos cornos se não se livra tão depressa, abandonando ao adversário as farpas e a cadeira, que voou logo em estilhas pelos ares.

O pior, porém, é que o demônio do animal se lhe ferrou no encalço, e começou a persegui-lo a galope cerrado por toda a volta em redondo da praça, sem fazer caso dos capinhas que tentavam desviá-lo da porfia. Torbellíno, afinal, com inaudita destreza, agarrou-se na carreira que levava à borda da trincheira e a transpôs de um salto; o touro, porém, não menos destro, galgou-a atrás dele, rastejando-lhe a pista.

E então é que foram elas! No interior da trincheira havia como sempre refúgios e defesas, mas a tudo levava o touro de vencida, ameaçando até as primeiras filas de espectadores. O pavor não podia ser maior. Na inversão dos pontos de perigo, via-se agora encher-se a arena com os que a invadiam, saltando a trincheira falsa em busca de segurança, e era lá para dentro que acorriam os capinhas em perseguição do intourejável boi.

Ah! não havia dúvida que a quinta corrida, se, pelo seu imprevisto, ia bem para grande parte do público, ia positivamente muito mal para os toureiros. Das farpas e bandarilhas destinadas ao feroz bicho, nenhuma lhe chegara a picar o couro; das lanças dos picadores que o atingiram, a nenhuma foi dado conservar-se inteira, e dos últimos três cava]os sobrevindos, só um vivia ainda, e esse mesmo já ferido nas costelas e mal se podendo ter nas pernas.

Agora, o que os espectadores reclamavam nos seus implacáveis berros, era a presença do touro na praça; felizmente, porém, já lá dentro tinham conseguido encurralá-lo, e não tardou a que o restituíssem no público.

Vinha cansado e vinha colérico. ~ surgiu, entretanto, na liça, encapotou logo, assestando para frente, cornos afilados, e desembestou, tal qual ao iniciar a corrida, no seu centrípeto galope a que nada resistia.

A praça esvaziou-se inda uma vez, e o touro, bem senhor dela, como para completar a sua vitória. arremeteu contra cavalo já ferido de morte, único sopro de vida que ali respirava. A pobre cavalgadura jazia encostada à trincheira, com os olhos sempre vendados, e com o sangue a desfilar-lhe por entre as costelas partidas. Ao primeiro assalto caiu logo, mais de costa que de flanco, agitando as patas no ar. O touro acometeu-o de novo, engolfando-lhe no ventre os cornos por inteiro e revolvendo-lhe as entranhas que arrancou afinal de todo para fora.

O desviscerado escorjava-se, ululando, num tremor de todo o corpo, e o touro, a saciar nele a sua tremenda cólera, só recolhia as armas para as cravar de novo com mais fúria. Depois, não conseguindo nelas levantar a vítima e arrojá-la, como um despojo vil, por cima da trincheira, se desforrava em mergulhar de todo a cabeça no arrombado ventre do agonizante, esfocinhado lá dentro na sangrenta lameira dos intestinos.

O público, empolgado por tão cruenta ferocidade, esqueceu-se dos toureadores, para dar todo o seu entusiasmo ao touro. Os aplausos rebentaram do anfiteatro em peso mais delirantes do que nunca, e o inconsciente herói como se os compreendera, sacou a cabeça das entranhas do cavalo para encarar orgulhoso a multidão, apresentando-lhe uma hedionda máscara vermelha e verde, feita de estrabo e de sangue.

Redobrou o entusiasmo, e uma ânsia febril apoderou-se dos espectadores.

- Que lo maten! Que lo maten!

E a nuvem dos toureiros acudiu de novo à praça. O touro, na sua imediata investida, viu-se logo cercado por todos os lados, e, arquejante de cansaço, já sem força para os repelir, escamava a terra com as patas dianteiras.

- Que lo maten! Que lo maten!

Um lúgubre toque de cometa deu o sinal de morte. Pela primeira vez, fez-se no circo um pouco de calma quase silente na qual se sentia resfolegar a velha alma espanhola

E o guapo Torbellino na sua linda roupa cor de esmeralda, perfilou-se defronte do touro expondo-lhe a capa vermelha, debaixo da qual se escondia a lâmina fatal. O adversário, de cabeça baixa, a arfar com o corpo todo, recuava defronte dele, negando-se à provocação; mas os capinhas tanto o instigaram e tanto o enredaram nos seus mil ardis, que o condenado foi afinal colocar-se diante do Matador, em posição favorável para receber o supremo golpe.

Torbellino não deixou fugir a vez. Aprumou-se, mediu o bote e, com um gracioso salto de mestre, enterrou-lhe até os punhos a espada na raiz do pescoço, por entre os cornos.

A arma ficou no corpo do ferido, e este estacou, como surpreso do que se passava por dentro dele. O Matador aproximou-se então da sua vitima, puxou-lhe da cerviz à ensangüentada espada e bateu-lhe com ela desdenhosamente na cara.

O touro deu ainda um arranco, que era já de moribundo, a cambalear, cruzando as pernas da frente, e foi cair ao lado do último cavalo morto.

Levantou então a cabeça e abriu os seus olhos de animal vindo ao mundo para ser bom e forte. Da boca escorria-lhe sangue, mugiu soturnamente, e nesse mugido ia toda a lamentação de sua alma simples pelos campos verdes e amigos, que ele tivera de deixar para vir morrer ali tão cruamente nas mãos de bárbaros.

E por fim, deixando pender a cabeça sobre o flanco do companheiro de sorte, suspirou muito repousadamente como um ente humano quando adormece.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 26 de junho de 2022

A PIEDOSA TERESA (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)

A PIEDOSA TERESA

Alcântara Machado

 

Atmosfera de cauda de procissão. Bodum.

Os homens formam duas filas diante do altar de São Gonçalo. São Gonçalo está enfaixado como um recém-nascido. Azul e branco. Entre palmas-de-são-josé. Estrelas prateadas no céu de papel de seda.

Os violeiros puxando a reza e encabeçando as filas fazem reverências. Viram-se para os outros. E os outros dançam com eles. Bate-pé no chão de terra socada. Pan-pan~pan-pan! Pan-pan! Pan Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Param de repente.

Para bater palmas. Pla-pla-pla-plá! Pla-plá Plá! Pla-pla-pla-plá! Pla-plá! Param de repente.

Para os violeiros cantarem, viola no queixo:

É este o primero velso
Qu'eu canto pra São Gonçalo

- Senta ai mesmo no chão, Benedito. Tu não é mió que os outro, diabo!

É este o primero velso
Qu'eu canto pra São Gonçalo

E o coro começa grosso, grosso. Rola subindo. Desce fino, fino. Mistura-se. Prolonga-se. Ôooôh! Aaaah! ôaaôh! Ôaiiiih! Um guincho!

O violeiro de olhos apertados cumprimenta o companheiro. E marcha seguido pela fila. Dá uma volta. Reverências para a direita. Reverências para a esquerda. Ninguém pisca. Volta para seu lugar.

- Entra, Seu Casimiro!

O japonês Kashamira entra com a mulher e o filhinho brasileiros de roupa de brim. Inclina-se diante de São Gonçalo. Acocora-se.

O acompanhamento das violas feito de três compassos não cansa. Nos cantos sombreados os assistentes têm rosário nas mãos. No centro da sala de cinco por quatro a lâmpada de azeite dança também.

Minha boca está cantando
Meu coração lhe adorando

Cabeças mulatas espiam nas janelas. A porta é um monte de gente. Dona Teresa, desdentada, recebe os convidados.

- Não vê que meu defunto Seu Vieira tá enterrado já há dois ano... Faiz mesmo dois ano agora no Natar.

Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan!

- A arma dele tá penando aí por esse mundo de Deus sem podê entrá no céu.

Pla-pla-pla-plá! Pla-plá!

- Eu antão quis fazê esta oração pra São Gonçalo deixá ele entrá.

Vou mandá fazê um barquinho
Da raiz do alecrim

O menino de oito anos aumenta a fila da direita. A folhinha da parede é uma paisagem de neve. Mas tem um sol. E o guerreiro com uma bandeirinha auriverde no peito espeta o sol com a espada. EMPÓRIO TUIUTI.

Pra embarcá meu São Gonçalo
Do promá pro seu jardim

Desafinação sublime do coro. Os rezadores sacodem o corpo. Trocam de posição. Enfrentam-se. Dois a dois avançam, cumprimento aqui, cumprimento ali, tocam-se ombro contra ombro, voltam para os seus lugares. O negro de pala é o melhor dançarino da quadrilha religiosa.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 25 de junho de 2022

ADÃO E EVA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ADÃO E EVA

Machado de Assis

 

Uma senhora de engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas, grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva, menos o juiz-de-fora, que não dizia nada, e Frei Bento, carmelita, que interrogado pela dona da casa, D. Leonor:

- Eu, senhora minha, toco viola, respondeu sorrindo; e não mentia, porque era insigne na viola e na harpa, não menos que na teologia.

Consultado, o juiz-de-fora respondeu que não havia matéria para opinião; porque as coisas no paraíso terrestre passaram-se de modo diferente do que está contado no primeiro livro do Pentateuco, que é apócrifo. Espanto geral, riso do carmelita que conhecia o juiz-de-fora como um dos mais piedosos sujeitos da cidade, e sabia que era também jovial e inventivo, e até amigo da pulha, uma vez que fosse curial e delicada; nas coisas graves, era gravíssimo.

- Frei Bento, disse-lhe D. Leonor, faça calar o Sr. Veloso.

- Não o faço calar, acudiu o frade, porque sei que de sua boca há de sair tudo com boa significação.

- Mas a Escritura... ia dizendo o mestre-de-campo João Barbosa.

- Deixemos em paz a Escritura, interrompeu o carmelita. Naturalmente, o Sr. Veloso conhece outros livros...

- Conheço o autêntico, insistiu o juiz-de-fora, recebendo o prato de doce que D. Leonor lhe oferecia, e estou pronto a dizer o que sei, se não mandam o contrário.

- Vá lá, diga.

- Aqui está como as coisas se passaram. Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo...

- Cruz! exclamaram as senhoras.

- Não diga esse nome, pediu D. Leonor.

- Sim, parece que... ia intervindo frei Bento.

- Seja o Tinhoso. Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais, mas só os vegetais sem fruto nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém, criou as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de atenção.

Não era preciso pedi-lo; toda a mesa olhava para ele, curiosa.

Veloso continuou dizendo que no sexto dia foi criado o homem, e logo depois a mulher; ambos belos, mas sem alma, que o Tinhoso não podia dar, e só com ruins instintos. Deus infundiu-lhes a alma, com um sopro, e com outro os sentimentos nobres, puros e grandes. Nem parou nisso a misericórdia divina; fez brotar um jardim de delícias, e para ali os conduziu, investindo-os na posse de tudo. Um e outro caíram aos pés do Senhor, derramando lágrimas de gratidão. "Vivereis aqui", disse-lhe o Senhor, "e comereis de todos os frutos, menos o desta árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal."

Adão e Eva ouviram submissos; e ficando sós, olharam um para o outro, admirados; não pareciam os mesmos. Eva, antes que Deus lhe infundisse os bons sentimentos, cogitava de armar um laço a Adão, e Adão tinha ímpetos de espancá-la. Agora, porém, embebiam-se na contemplação um do outro, ou na vista da natureza, que era esplêndida. Nunca até então viram ares tão puros, nem águas tão frescas, nem flores tão lindas e cheirosas, nem o sol tinha para nenhuma outra parte as mesmas torrentes de claridade. E dando as mãos percorreram tudo, a rir muito, nos primeiros dias, porque até então não sabiam rir. Não tinham a sensação do tempo. Não sentiam o peso da ociosidade; viviam da contemplação. De tarde iam ver morrer o sol e nascer a lua, e contar as estrelas, e raramente chegavam a mil, dava-lhes o sono e dormiam como dois anjos.

Naturalmente, o Tinhoso ficou danado quando soube do caso. Não podia ir ao paraíso, onde tudo lhe era avesso, nem chegaria a lutar com o Senhor; mas ouvindo um rumor no chão entre folhas secas, olhou e viu que era a serpente. Chamou-a alvoroçado.

- Vem cá, serpe, fel rasteiro, peçonha das peçonhas, queres tu ser a embaixatriz de teu pai, para reaver as obras de teu pai?

A serpente fez com a cauda um gesto vago, que parecia afirmativo; mas o Tinhoso deu-lhe a fala, e ela respondeu que sim, que iria onde ele a mandasse, - às estrelas, se lhe desse as asas da águia - ao mar, se lhe confiasse o segredo de respirar na água - ao fundo da terra, se lhe ensinasse o talento da formiga. E falava a maligna, falava à toa, sem parar, contente e pródiga da língua; mas o diabo interrompeu-a:

- Nada disso, nem ao ar, nem ao mar, nem à terra, mas tão-somente ao jardim de delícias, onde estão vivendo Adão e Eva.

- Adão e Eva?

- Sim, Adão e Eva.

- Duas belas criaturas que vimos andar há tempos, altas e direitas como palmeiras?

- Justamente.

- Oh! detesto-os. Adão e Eva? Não, não, manda-me a outro lugar. Detesto-os! Só a vista deles faz-me padecer muito. Não hás de querer que lhes faça mal...

- É justamente para isso.

- Deveras? Então vou; farei tudo o que quiseres, meu senhor e pai. Anda, dize depressa o que queres que faça. Que morda o calcanhar de Eva? Morderei...

- Não, interrompeu o Tinhoso. Quero justamente o contrário. Há no jardim uma árvore, que é a da ciência do Bem e do Mal; eles não devem tocar nela, nem comer-lhe os frutos. Vai, entra, enrosca-te na árvore, e quando um deles ali passar, chama-o de mansinho, tira uma fruta e oferece-lhe, dizendo que é a mais saborosa fruta do mundo; se te responder que não, tu insistirás, dizendo que é bastante comê-la para conhecer o próprio segredo da vida. Vai, vai...

- Vou; mas não falarei a Adão, falarei a Eva. Vou, vou. Que é o próprio segredo da vida, não?

- Sim, o próprio segredo da vida. Vai, serpe das minhas entranhas, flor do mal, e se te saíres bem, juro que terás a melhor parte na criação, que é a parte humana, porque terás muito calcanhar de Eva que morder, muito sangue de Adão em que deitar o vírus do mal... Vai, vai, não te esqueças...

Esquecer? Já levava tudo de cor. Foi, penetrou no paraíso, rastejou até a árvore do Bem e do Mal, enroscou-se e esperou. Eva apareceu daí a pouco, caminhando sozinha, esbelta, com a segurança de uma rainha que sabe que ninguém lhe arrancará a coroa. A serpente, mordida de inveja, ia chamar a peçonha à língua, mas advertiu que estava ali às ordens do Tinhoso, e, com a voz de mel, chamou-a. Eva estremeceu.

- Quem me chama?

- Sou eu, estou comendo desta fruta...

- Desgraçada, é a árvore do Bem e do Mal!

- Justamente. Conheço agora tudo, a origem das coisas e o enigma da vida. Anda, come e terás um grande poder na terra.

- Não, pérfida!

- Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores das folhas verdes, cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus olhos. A mesma noite, de porfia com o sol, virá brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra as suas flores, tudo, tudo, tudo...

Eva escutava impassível; Adão chegou, ouviu-os e confirmou a resposta de Eva; nada valia a perda do paraíso, nem a ciência, nem o poder, nenhuma outra ilusão da terra. Dizendo isto, deram as mãos um ao outro, e deixaram a serpente, que saiu pressurosa para dar conta ao Tinhoso.

Deus, que ouvira tudo, disse a Gabriel:

- Vai, arcanjo meu, desce ao paraíso terrestre, onde vivem Adão e Eva, e traze-os para a eterna bem-aventurança, que mereceram pela repulsa às instigações do Tinhoso.

E logo o arcanjo, pondo na cabeça o elmo de diamante, que rutila como um milhar de sóis, rasgou instantaneamente os ares, chegou a Adão e Eva, e disse-lhes:

- Salve, Adão e Eva. Vinde comigo para o paraíso, que merecestes pela repulsa às instigações do Tinhoso.

Um e outro, atônitos e confusos, curvaram o colo em sinal de obediência; então Gabriel deu as mãos a ambos, e os três subiram até à estância eterna, onde miríades de anjos os esperavam, cantando:

- Entrai, entrai. A terra que deixastes, fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e da piedade.

E foi assim que Adão e Eva entraram no céu, ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dois egressos da criação...

... Tendo acabado de falar, o juiz-de-fora estendeu o prato a D. Leonor para que lhe desse mais doce, enquanto os outros convivas olhavam uns para os outros, embasbacados; em vez de explicação, ouviam uma narração enigmática, ou, pelo menos, sem sentido aparente. D. Leonor foi a primeira que falou:

- Bem dizia eu que o Sr. Veloso estava logrando a gente. Não foi isso que lhe pedimos, nem nada disso aconteceu, não é, frei Bento?

- Lá o saberá o Sr. juiz, respondeu o carmelita sorrindo.

E o juiz-de-fora, levando à boca uma colher de doce:

- Pensando bem, creio que nada disso aconteceu; mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce, que está, na verdade, uma coisa primorosa. É ainda aquela sua antiga doceira de Itapagipe?


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 24 de junho de 2022

MEU IDEAL SERIA ESCREVER (CRÔNICA DO CAPIXABA RUBEM BRAGA)

MEU IDEAL SERIA ESCREVER

Rubem Braga

 

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse – “ai meu Deus, que história mais engraçada!” E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa (que não sai de casa), enlutada (profundamente triste), doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria – “mas essa história é mesmo muito engraçada!”

 

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada como o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má-vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

 

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera, a minha história chegasse – e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário ((autoridade policial) do distrito (divisão territorial em que se exerce autoridade administrativa, judicial, fiscal ou policial), depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – “por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!” E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

 

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa (habitante da antiga Pérsia, atual Irã), na Nigéria (país da África), a um australiano, em Dublin (capital da Irlanda), a um japonês, em Chicago – mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou (introduziu-se lentamente em) por acaso até nosso conhecimento; é divina.”

 

E quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” – Eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história...”

 

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 23 de junho de 2022

A ARTE DE SER AVÓ (CRÔNICA DA CEARENSE RACHEL DE QUEIROZ)
 

A ARTE DE SER AVÓ

Rachel de Queiroz

 

Netos são como herança. Você ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu…É como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem as penas de amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto. O neto é, realmente, o sangue do seu sangue, filho do filho, mais filho que o filho mesmo…

 

Cinquenta anos, cinquenta e cinco…Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que se esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as suas compensações: todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha descoberto, mas acredita. Todavia, também, obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade. Não de amores com suas paixões: a doçura da meia idade não lhe exige essa efervescência. A saudade é de alguma coisa que você tinha e que lhe fugiu, sutilmente, junto com a mocidade. Bracinhos de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças?

 

Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você recorda. E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe coloca nos braços um bebê. Completamente grátis. Nisso é que está a maravilha.

 

Sem dores, sem choro, aquela criancinha da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um filho seu que lhe é devolvido. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância. Ao contrário, lhe causaria espanto, decepção se você não o acolhesse com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava desenhado no seu coração.

 

Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá netos para nos compensar de todas as perdas trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis. E, quando você vai embalar o menino ao som de “passarinho como vai” ele, tonto abre os olhinhos e diz:

 

“Vovó”, seu coração estala de felicidade, como pão no forno.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 22 de junho de 2022

A BORBOLETA NEGRA (CONTO DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A BORBOLETA NEGRA

Olavo Bilac

 

Madrugada de domingo no campo, longe da cidade. Logo à primeira claridade do dia, saem os dois de casa, com o Leão, seu companheiro inseparável.

 

O Leão é quase tão alto como eles. É um enorme cão da Terra Nova, todo negro, de pelo espesso, de goela imensa. É o terror do lugar. Quando ele passa na estrada, acompanhando as duas crianças, rosnando ameaçadoramente, todos se afastam com respeito. E, assim seguidos de perto pelo Leão, Henrique e Leonor estão mais livres de qualquer perigo do que se estivessem guardados por todo um exército.

 

Amanhecer de domingo. Longe, repica o sino da capela, anunciando a segunda missa. Ainda não saiu o sol.

 

O vento da manhã sacode as árvores molhadas de orvalho. Nos galhos altos, trilam os pássaros. O ar está cheio do aroma forte dos matos. Passam homens cantando.

 

E o sino da capelinha, cujo repique tem a alegria ruidosa de uma risada de criança, continua a anunciar a missa.

 

Mas, Henrique e Leonor já foram à primeira missa. As duas crianças agitam no ar os seus grandes sacos de caçar borboletas. Henrique, que é quem carrega a tiracolo a bolsa em que vai o pão da merenda, sabe de um lugar em que há flores de toda espécie. Fica para lá da igreja: é uma pequena clareira dentro do mato, atapetada de uma relva fresca. Aí, onde o sol entra livremente, as borboletas voam, todo o dia, sugando o mel das flores, vibrando as asas rutilantes, azuis, vermelhas, douradas. É para lá que vão os três. Leão trota na frente, pesado e enorme, sacudindo a grossa cauda negra. Às vezes, volta, vem lamber as mãos das crianças, e trota de novo, alegre, com a língua pendente e as orelhas abanando.

 

Lá vão eles... o sol ainda não saiu. Mas, já entre as nuvens cor de fogo, no nascente, aponta uma claridade viva, que ofusca. Das árvores, caem ainda, como diamantes soltos, os pingos do sereno. E Henrique diz, tiritando:

 

— Como fez frio esta noite, Leonor!

 

E tiritando, diz Leonor:

 

— Coitado, coitado de quem, sendo pobre e não tendo casa, teve de passar esta noite ao relento!...

 

E lá vão os três.

 

Já passaram a igreja, muito branca, muito pobre, posta, no alto de uma ladeira íngreme. Viram, na pequenina janela, rodar o sino, cantando, cantando sempre. Viram muita gente, à porta, esperando o padre... e seguiram. De repente, Henrique para:

 

— É aqui! — Diz ele, e aponta uma picada aberta no mato — Olha, Leonor, olha! Já uma borboleta!

 

Uma borboleta grande, azul, riscada de ouro, saía, dançando no ar. Leonor bate palmas:

 

— Que linda! Que linda!

 

E Henrique exclama:

 

— Vais ver que porção de borboletas há lá dentro, Leonor!

 

E vão entrar. E Leão adianta-se, e dá dois passos no caminho estreito e escuro, rasgado no seio da folhagem.

 

 Mas o cão estaca. E começa a ladrar, a ladrar, a ladrar, furiosamente, perto de um embrulho que está no chão. As crianças aproximam-se, abaixam-se. É um embrulho de panos e flanelas. Alguma coisa agita-se dentro dele. E, quando o Leão deixa de ladrar, as crianças ouvem um gemido muito fraco, muito fraco, que sai da trouxa, toda ensopada de orvalho. Trazem-na para o meio da estrada, com cautela. Abrem-na.

 

O sol já saiu. Que sol! O céu, todo azul, está inundado de luz. O sino continua a repicar. Nos galhos altos os pássaros cantam.

 

— Jesus! É uma criança! — Exclama Leonor.

 

É uma criança recém-nascida que está dentro do embrulho de flanela; é uma criancinha preta, vagindo de manso, de manso, com os olhinhos fechados. Leonor, sentada no chão, põe no colo a criaturinha de pele preta, e começa a embalá-la, já com a seriedade de uma mulher feita: — Coitadinha! Coitadinha!

 

Henrique, muito sério, está de pé. Henrique é um homem... só tem 9 anos, mas é um homem! E um homem não deve chorar... mas Henrique está chorando, olha a criancinha preta que vage de manso, no colo da irmã. O Leão, curvado, sem ladrar, sacudindo a cauda, com a língua pendente, está também olhando a recém-nascida, com seus grandes olhos inteligentes e carinhosos.

 

— Coitadinha! Coitadinha! — Repete Leonor.

 

— Que maldade! Que maldade! — Murmura Henrique.

 

Então Leonor tem uma ideia:

 

— Henrique, vamos fazer uma surpresa à mamãe! Vamos levar-lhe esta pretinha!

 

Henrique dá um salto de alegria:

 

— Vamos Leonor!

 

E Leonor levanta-se, acomoda no colo o embrulho de panos e flanelas. Henrique apanha os dois grandes sacos de caçar borboletas. O Leão solta um latido de júbilo. E lá vão os três, correndo, pela estrada inundada de sol.

 

Adeus, borboletas azuis, vermelhas e douradas! Adeus borboletas de todas as cores, que estão bailando no ar, sobre as flores cheirosas e doces! Podeis bailar em sossego! Aqueles dois grandes sacos de gaze, que vinham buscar-vos, voltam para a casa vazios! Deixam-vos em paz, os caçadores! Não pensa em vós Leonor, que vai correndo, correndo, segurando com cautela aquele embrulho, dentro do qual há uma criancinha preta que chora... não pensa em vós Henrique, que corre atrás dela, calado e ofegante... não pensa em vós o Leão, que trota na frente, rosnando, enorme e pesado, com a língua pendente e as orelhas abandando... Podeis bailar em sossego! Hoje, Henrique não subirá, como um macaco, aos galhos altos das árvores, para apanhar os frutos e os ninhos. Hoje, Leonor, cansada de apanhar borboletas, não merendará sobre a relva. Hoje, Leão não dormirá a sua sesta, ao sol, nessa clareira aberta no mato...

 

Lá vão os três. Ainda passa muita gente que vai à missa. O sino ainda está lá, num repique festivo, chamando o povo. Passa muita gente... Mas os três não dão bom dia a ninguém. Vão correndo, vão correndo, porque querem fazer quanto antes uma surpresa à mamãe. E quando chegam à casa, diz Leonor:

 

— Devagarinho! Devagarinho!

 

Entram, como três ladrões. A casa está calada e quieta. A mamãe está com certeza na cozinha. Na varanda, Leonor senta-se, ajeita nos braços a criancinha, e fica a embalá-la, com a seriedade de uma mulher feita. E Henrique e o Leão correm para a cozinha. E, enquanto o cão salta e late, Henrique exclama:

 

— Mamãe! Mamãe! Venha ver uma borboleta negra que caçamos no mato!

 

Quando a mãe chega à varanda, para à porta, espantada. E Leonor, com a voz trêmula, pergunta:

 

— Não é verdade, mamãe, que não podíamos deixar morrer de fome esta coitadinha? Que mãe malvada, mamãe! Que mãe malvada, que preta malvada a que abandonou assim esta filhinha! Não é verdade que mamãe também vai ser mãe dela?

 

— É verdade, minha filha! — Diz a mãe. — Foi Deus quem conduziu vocês... Fizeram bem! Fizeram bem! O pão da nossa pobreza há de chegar para mais um filho.

 

E tomou nos braços a criancinha negra, única borboleta que Henrique, Leonor e o Leão caçaram nesse dia.


Literatura - Contos e Crônicas terça, 21 de junho de 2022

A AMANTE IDEAL (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

A AMANTE IDEAL

João do Rio

 

Esses cavalheiros haviam mostrado um certo apetite. Era, após o jantar, na residência de Ernesto Pereira, assaz feliz para ter, antes dos quarenta anos, um palacete discreto e muito mais de cem mil contos.

 

Com tão confortável fortuna, Ernesto estava quase branco, não bebia senão águas minerais e mantinha as mulheres como simples companheiras para distrair. Após um negócio - ceia com elas e champagne bebido pelos outros. Enriquecer quando não custa a vida e uma fortuna, custa, pelo menos, o melhor bem humano, porque transitório - a mocidade. Ernesto aliás tratava o doloroso e delicado assunto com cinismo amável. - Que querem vocês? Aos vinte anos, afastei as mulheres para conquistar a Fortuna. A Fortuna vingou-se desabituando-me do amor...

 

Mas era gentil, muito gentil, como diziam essas damas. Fazia as despesas de uma italiana, montara casa a uma espanhola, comia com as figuras mais impressionantes do armorial da galanteria, e protegia, às ocultas, algumas costureiras e modistas. O desprezo, ou antes, a integral indiferença de Ernesto pelas mulheres, só poderia ser notada porque esse homem jamais tinha uma história de mulher a contar. Quando narrava um fato era dos outros e referia-o sempre com o riso ingênuo da completa incompreensão. Parecia contar pilhérias de bonecos.

 

Os amigos julgavam-no feliz. Era-o. O homem feliz é aquele que não conhece o amor.

 

Nesse momento, porém, acesos os charutos no terraço sobre o mar a roda se fazia de homens, como é a maioria dos homens, tendo a vida com dois fins: dinheiro e mulher. Estavam Otaviano Rodrigues, que se arruinara por uma princesa austríaca, e André Figueiredo, com quem a princesa enganava Otaviano, mas que por sua vez tinha várias paixões, menos a princesa. Estava Clodomiro Viegas, que nunca pagara o amor e andava sempre a arranjar dinheiro para ser gentil com as generosas criaturas. Estava o comendador Andrade, que em trinta anos de francesas ainda não aprendera a falar francês. Estava Teodoro Gomes, o bolsista que enriquecia a bailarina russa de uma companhia italiana, em companhia de Godofredo de Alencar, o único literato com dinheiro.

 

E também palestrava Júlio Bento, lindo e excelente rapaz de trinta e cinco anos, casado, pai de cinco filhos, mas cuja lista de conquistas não deixava de ser profusa.

 

A conversa, precisamente, generalizava-se a propósito da última paixão de Júlio, senhora alta, com enorme boca vermelha e dois braços de tragédia, admiráveis e brancos, "as duas velas de seda da trirreme do amor", como dizia, com exagero, Godofredo de Alencar. Essa mulher agoniava Júlio Bento. Eram cartas, telegramas, chamadas ao telefone, imprevistas aparições, cenas de ciúme, ataques, tentativas de suicídio, recriminações, inquéritos minuciosos.

 

- Um inferno, meus caros! E eu tenho receio que minha esposa venha a saber.

 

- Mas deixa-a. Nada mais simples! Insinuou Ernesto com o seu ingênuo e feliz desconhecimento do complicado desespero das ligações amorosas.

 

- É bom dizer. Ela mata-se...

 

- Ora!

 

- E para que deixar esta, se são todas assim? Indagou ironicamente Alencar. Amar é sofrer, mas ser amado é o cataclismo. Não se pode fazer mais nada. Elas caem sobre a gente como os andaimes. Um gnóstico dizia que é preciso passar pela mulher como pelo fogo. Nós imbecilmente ficamos a assar. Ao demais o Elifas Levi já teve uma frase lapidar - "Queres possuir? Não ames! Nós, sem inteligência, em vez de possuir, somos possuídos. A inteligência é um perigo no amor."

 

- Paradoxal!

 

- Conforme. Qual de nós não almeja, não sonha com o tipo da amante ideal? Qual de nós, porém não sofreria se amasse o tipo da amante ideal?

 

- A questão é saber qual a amante ideal, após três meses...

 

- A amante ideal! Suspirou Júlio Bento.

 

- É a esposa, sentenciou o velho solteirão Andrade.

 

- A esposa, meu caro amigo, desde a Grécia, é a mãe dos nossos filhos. Não a sobrecarreguemos... Moisés, segundo a legenda, forjou o anel do Amor. E tais foram as complicações, que logo teve de forjar com pressa um outro: o anel do Esquecimento. Nenhum dos dois é a aliança matrimonial...

 

Júlio Bento ficara pensativo. E de repente:

 

- Como o Alencar fala a verdade. Eu já tive a amante ideal.

 

Houve na roda um alegre sobressalto.

 

- Tu?

 

- Como era ela?

 

- E deixaste-a fugir?

 

Júlio Bento, sem tristeza, suspirou.

 

- Sim. Apenas só depois é que soube... E até agora, francamente, não compreendo, não atino, não sinto bem... Que aventura! Imaginem vocês...

 

Acendeu outro charuto e, impaciente, continuou:

 

- Há uns cinco anos encontrei no teatro uma encantadora mulher. Pálida, da cor dos jasmins, dois olhos verdes, pestanudos, uma longa cabeleira de ébano, alta, magra. Estava no camarote pegado ao meu, só, vestida de preto. Olhou-me duas vezes. Da segunda havia muitas intenções. Fiquei desejoso de a conhecer, de falar-lhe. Mas, evidentemente, não era uma qualquer mulher. Saiu em meio de um ato e eu fiquei com a família, não sei por que, raivoso. Quatro dias depois ia pela rua do Ouvidor, quando a vi que vinha a sorrir. Tinha uma linda boca. Cumprimentei-a. Continuou a andar. Segui-a. Voltou-se uma só vez e logo meteu-se pela rua Gonçalves Dias. Continuei a acompanhá-la. Ela ia pelo meandro de ruas estreitas e comerciais. Enfim, num beco deserto, entrou por uma porta. Quando passei pela porta, ela estava no corredor. Timidamente disse-lhe:

 

- Desculpe se a acompanhei...

 

- Entre, fez ela com a voz calma. Não podíamos falar em ruas de movimento. Não seria conveniente nem para mim nem para você.

 

Fez uma pausa, murmurou: Simpatizei muito com a sua pessoa.

 

- E eu, então!

 

Ela riu:

 

- Sempre que as mulheres querem, os homens simpatizam ao menos uma vez.

 

Agarrei-a, ela ofereceu-me a boca, que cheirava a rosa, e gulosamente mordeu-me. Depois, desprendendo-se:

 

- Agora vá embora!

 

- Mas isso não pode ficar assim. Onde a posso encontrar?

 

- Na minha casa é impossível neste momento...

 

- Como se chama?

 

- Adelina. Até outro dia...

 

- Há outras casas. Por aqui mesmo...

 

- Hoje não.

 

- Por quê?

 

- Ninguém tem mais vontade do que eu... Amanhã, se quiser. Serve-lhe às duas horas da tarde, num automóvel defronte do terraço do Passeio Público?

 

Concordei. No dia seguinte rolávamos, às duas da tarde, para a Quinta da Boa Vista e essa mulher era de um ardor, de uma paixão alucinantes. Apenas não saiu do automóvel e no automóvel estivemos até às seis horas. Ao deixá-la, Adelina disse-me apenas:

 

- Moro numa pensão da rua da Piedade. Quando quiser, escreva-me.

 

- E não posso lá ir?

 

- Se quiser, durante o dia.

 

A minha curiosidade conseguiu saber aquilo que ela não dizia, mas de que não fazia mistério. Chamava-se Adelina Roxo. Era casada, separada do marido. Vivia mantida por um velho diretor de banco, que lhe dava larga vida. O seu modo era tão esquisito, tão diverso das outras mulheres quando desejavam, que me abstive de a procurar oito dias. Quando as mulheres são sinceras, os homens são "cocottes".

 

O "chiquet" é a essência do amor. Apenas verifiquei a inutilidade do processo e apertou-me o desejo. Queria aquela volúpia e queria também conhecer a mulher. Escrevi, pela manhã, uma carta sem assinatura, e lá fui. Recebeu-me deliciosamente. Tinha três salas admiráveis. O gabinete de vestir era mobiliado de sândalo com incrustações de marfim. Os tapetes altos de seda turca contavam em azul sobre fundo rosa suratas do Korão. Um cheiro de rosas errava no ar, e ela despindo um "chartcha" de seda pesada apareceu-me através de um tecido de Brussa com a pulcra delicadeza de um lírio à sombra. Amei-a furiosamente. Ela era das que, entregando-se, infiltram nos mortais ainda mais desejo. E se eu a amei, ela teve todas as etapas do delírio desde o frenesi ao desmaio. Ao sair esperei alguma frase, um pedido, uma súplica. Nada. Não me demorou, beijou-me com a alma. E não disse uma palavra.

 

Era diversa, integralmente diversa das outras. Certo gostava de mim, gostava com um calor que eu não sentira em nenhum outro corpo. Mas todas as mulheres querem saber coisas, perguntam onde vamos, indagam se as amamos muito, se será para sempre, e não deixam de reter mais alguns momentos a criatura... Ela não teve um só gesto nem uma das frases banais, mas que estamos acostumados a ouvir.

 

Claro que voltei. Conversávamos. Ela, sem pedantismos, sabia muito mais do que eu. Viajara a Europa inteira, falava várias línguas, conhecia os poetas de diversos países, que lia em encadernações de antílope com fechos de ouro lavrado. Mas, rindo com infinita alegria, prendendo com a sua clara voz, o seu olhar de brasa verde, o seu corpo de jasmim, jamais perguntou pela minha vida. E também não me disse uma palavra a respeito da sua, e também não me pediu nada. Sabem vocês como as mulheres gostam de contar a própria vida aos amantes. É um duplo exercício de mentira e de tortura. Sabem vocês, como ao cabo de uma semana não se pode dar um passo sem ter a senhora apaixonada a perguntar-nos os detalhes mínimos do dia. Ela abstinha-se desses atos, naturalmente. E, talvez por isso, se o meu desejo aumentava, a minha desconfiança irritada crescia. Nem o meu nome ela perguntara - nome que, de resto, devia saber. Tratava-me de "Meu pequeno", meu "guru". Um dia disse-lhe:

 

- Não sabes o meu nome?

 

- Não.

 

- Mas eu assino as cartas...

 

- Ah! Sim, as cartas... Mas não quero o teu nome, quero-te a ti. Que me importa que te chames João, Antônio ou mesmo Júlio?...

 

- O tratamento de "guru", entretanto...

 

Ela deu uma grande risada.

 

- Ah! Essa palavra é de um grande poema de amor, o "Ramayana". É uma palavra de carinho, de afeição que não tem tradução. Achei-a simpática. Só a ti no mundo eu chamo assim. Porque só a ti no mundo eu amo, meu pequeno...

 

- Enfim, um homem casado transformado em "guru"...

 

Eu dizia para forçá-la a perguntar-me as coisas. Foi em vão. Em virtude de tanta liberdade, como sou humano entre os lamentáveis humanos, aproveitei-a para traí-la. Traí-la? Pode-se trair uma mulher que não nos toma contas? Tive várias intrigas amorosas, que me deram enormes incômodos e fizeram-me enormes despesas. Todas essas mulheres amavam-me como loucas e eu as deixei sem que elas mudassem. Alguns negócios forçaram-me a ausentar da cidade.

 

- É uma aventura mortal! Dizia a mim mesmo para convencer-me.

 

E ao chegar das viagens, lá ia entre desejoso daquele amor impossível de pôr em dúvida e um vago mal-estar, uma inquietação. Afinal, teria ou não interesse por mim? Tinha, era evidente que tinha. Mas não era bem esse alheamento da vida comum. Talvez forçasse a indiferença para não contar os mistérios da sua existência. Mas, respondia sempre com franqueza a tudo quanto lhe perguntava! Talvez tivesse outro amante. Inquiri, observei. Não. Além do velho banqueiro, só a mim...

 

Os nossos encontros faziam-se intermitentes. Semanas havia que estávamos juntos todos os dias. Depois passávamos semanas sem nos vermos. Era natural que essa mulher, diante de uma ausência prolongada, procurasse falar-me, escrevesse, passasse um telegrama ao menos. Pois nada. E recebia-me com a mesma ternura, o mesmo sincero amor, sem uma pergunta. Às vezes resolvia não a procurar mais. Encontrava-a, porém, na rua, e a irradiação do desejo era tão forte, que tivesse eu o mais urgente negócio, largava tudo para segui-la. Ela também ficava trêmula, com as mãos frias. Tomávamos o primeiro automóvel e era um verdadeiro frenesi.

 

Diante da sua absoluta discrição, era forçado a ser discreto. Nunca trocamos uma palavra a propósito do velho diretor do banco. E a necessidade de contar a minha vida se fazia nula com o acanhamento que produzia o seu ar de não querer saber. Uma vez gabei-lhe os olhos. Eram macios e ardentes.

 

- Herança, meu pequeno.

 

- Como?

 

- Eu sou descendente de armênios. Minha avó devia tapar os olhos. Eles ficaram com mais luz e mais doçura. São olhos de serralho...

 

- Curioso. Por que não me contas a tua vida?

 

- Porque não vale a pena.

 

- Mas não perguntas pela minha?

 

- Para não te aborrecer. Eu sou a tua escrava. Dei-te o meu desejo e o meu coração. Não tenho o direito de perguntar. Estamos assim tão bem...

 

Ela falava com tanta brandura, as suas mãos de jasmim pousavam tão docemente sobre os meus olhos, que senti uma infinita pena de mim mesmo, e calei-me... Sim, de fato, para que falar, para que mentir, quando não mentíamos ao nosso desejo? Vivemos assim largo tempo. Se não ia à sua casa e a via na rua - era fatal, soçobrávamos na volúpia. Às vezes o desejo era tão forte e imediato, que ela entrava em qualquer porta e ali mesmo as nossas bocas se ligavam vorazes - antes de seguirmos para a luxúria ardente dos seus aposentos.

 

Possuía-me e entregava-se como jamais pensara que fosse possível!

 

Conservara durante anos a mesma chama, a mesma maravilhosa chama. Sem uma intimidade, sem detalhes da vida comum, sem me interrogar, sem chegar a esse momento habitual em que dois amantes são iguais a duas criaturas comuns. Eu a consideraria exasperante, se, talvez por isso - o meu desejo nunca tivesse força de resistir.

 

Enfim, há três meses tive de ir à Bahia. Ia demorar, pelo menos, trinta dias. Podia dizer-lho. Mas o meu orgulho resistiu. Passei a tarde com ela, aliás, e quando consultei o relógio, ainda esperava uma pergunta, que não veio. Parti. Não escrevi. Não escrevi, posto que pensasse nela. Era o que eu julgava uma vingança. Ao chegar, não resisti e fui vê-la. Recebeu-me a dona da pensão, uma velha francesa.

 

- Bem dizia madame que o senhor tornaria...

 

- Onde está ela?

 

- Oito dias depois daquela tarde, ela caiu doente, muito mal. Esteve assim três dias. Afinal, os médicos acharam necessário uma operação. Era apendicite. Saiu daqui para ser operada no Hospital dos Ingleses. Mas antes de sair, chamou-me. Lembro-me bem das suas palavras, 'la pauvre"!

 

"Madame Angéle, eu vou morrer, sinto que vou morrer. Quando o meu pequeno aparecer, diga-lhe que não fique triste, mas que eu morrerei pensando nele como o meu único bem..."

 

- Então?

 

- "Pauvre petite!". Morreu na mesa de operações...

 

- Mas onde a enterraram?

 

- Não sei, não acompanhei. Talvez perguntando ao Sr. Herbrath...

 

Desci, quase a correr, para não mostrar à velha francesa as minhas lágrimas. Todo esse longo, o único longo amor da minha vida, surgia aos olhos do meu desejo como um sonho. Tinha sido uma ilusão, a imensa ilusão. E desaparecera, de modo que nem mesmo lhe sentira o amargor, nem mesmo lhe compreendia o fim, pensando na última tarde que fora a primeira, sempre primeira, sempre nova, sempre a que afasta para depois a tristeza...

 

Na rua, eu era como o homem que; tendo tido uma entrevista de amor em que amou com fúria - procura encontrar de novo aquela que não teve tempo de conhecer bem, com a ânsia dos vinte anos.

 

O criado de Ernesto entrou nesse momento com o café e largos copos de cristal, onde gotejou uma famosa "fine" de 1840. Júlio recebeu o copo, virou-o. Se estivéssemos em tempo de emoções, a sua história poderia ter comovido. Mas não estamos. Otaviano é que disse com indiferença:

 

- Curioso!

 

- Nunca me pediu nada, nunca lhe dei nada, nunca me perguntou nada, continuou Júlio Bento, com a voz surda. O sentimento que conservo por ela é o mesmo: um louco desejo e uma certa humilhação...

 

- Porque tu és da vida comum e ela era o amor, respondeu Alencar. O amor é o desejo acima da vida. Talvez nunca tivesse dito sem o sentir uma tão profunda frase. Nenhum de nós nascidos e vividos na mentira e na tortura da mulher, compreenderia essa amante que existiu, como todas as coisas irreais. Mas, se nos fosse dado compreender - aos homens como às mulheres, todos nós invejaríamos a tua sorte e o prazer superior dessa suave perfeição. Para conservar o desejo é preciso não mentir, não pedir e não saber. Ela foi a amante ideal, a única sincera.

 

Nesse momento o criado voltou a prevenir Bento de que uma senhora estava à sua espera num automóvel, a chorar.

 

- É, a Hortência! Bradou Bento. Nem aqui me deixa! Por Deus, não lhe contem essa aventura. Teria ciúmes da morta. É insuportável!

 

E como todos os homens neste mundo, precipitou-se ansioso para a amante, igual às outras.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 20 de junho de 2022

A LUA DOS MORTOS (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

A LUZ DOS MORTOS

Humberto de Campos

 

Madrugada ainda, com os pássaros adormecidos nos ramos, a escolta abandonou a vila e pôs-se a caminho. Eram quinze homens, apenas, sob o comando de um sargento, conhecedores, todos, dos menores recantos daquelas paragens. Antigos sertanejos, arrastados um a um para a cidade pelo desejo de vestir farda, voltavam agora reunidos aos campos natais, com a missão de bater, no tabuleiro das campinas ou na garganta das serras, um forte agrupamento de bandoleiros.

 

Carabina ao ombro, fardados à vontade - uns de calça vermelha e camisa de riscado, outros de blusa de policial e calça arregaçada até o joelho, e todos, ou quase todos, descalços, - a escolta dirigiu-se, sem ordem de marcha, para a várzea das Pedras, onde os bandidos haviam aparecido na véspera. Das matas quietas subia, e espalhava-se, um cheiro forte de folhas machucadas, natureza virgem se martirizasse em um grande sonho voluptuoso. As sarças rasteiras, abrindo os cálices roxos em que a Noite se embebedara de orvalho, acordavam, úmidas, emergindo do labirinto das próprias ramas, polvilhadas de terra e de sereno.

 

Manuel Albino, o sargento que comandava a pequena força policial, era um desses tipos de sertanejo habituado às longas peregrinações pelo interior. Estatura mediana, cobreado pelo sol, pela vida ao ar livre, orçava pelos quarenta anos. O bigode, alourado e sem trato, fechava-lhe a boca forte, como se quisesse opor às palavras uma cortina de silêncio. Não se distinguia dos companheiros senão pela fita do braço, e naquelas marchas penosas, tão cheias de perigos a cada passo, era menos um chefe que um camarada.

 

Ao amanhecer, os soldados já haviam andado três léguas. Das margens da estrada arenosa voavam, rápidos, trilando, pequenos pássaros assustados. Aqui e ali, na mata ressuscitada, uma árvore morta sonhava com os encantos da vida, oferecendo ao sol, em cima, no espetro do último galho, o óbolo de uma flor humilde, cujo cipó se lhe agarrara ao tronco para ir dar, no alto, ao astro namorado, a cheirosa esmola daquele beijo. Insetos trilavam nas touceiras, e em tal quantidade, que, invisíveis, eram como se todas as folhas fossem de metal, e se friccionassem numa grande carícia dolorosa.

 

Em meio da várzea enorme, onde o dorso das pedras alvas, semeadas na campina verde, recordavam rebanhos pastando, os soldados acamparam.

 

- É preciso olho vivo, - aconselhou o sargento. - Eles devem andar de perto, e é bom que não nos apanhem de surpresa.

 

- Quer que eu vá reconhecer o terreno? - Ofereceu-se uma das praças, o João Simeão, caboclo baixo e entroncado, que havia feito estágio no Exército e gostava de empregar, em serviço, os termos de técnica militar.

 

Meia hora depois, escondendo-se de pedra em pedra, arrastando-se, coleando, o caboclo regressava. Os bandoleiros, em número superior a vinte, haviam dormido na Pedra Grande, na outra extremidade da várzea, de onde, àquela hora, se preparavam para a retirada. Partindo imediatamente e levando boa marcha, a tropa ainda os apanharia em campo aberto, antes que penetrassem na caatinga, escondendo-se nas moitas, ou alcançassem o Serrote Preto, de onde ninguém os desalojaria.

 

Ao meio-dia, quando o sol, no meio do céu, devorava com os seus dentes dourados a sombra dos troncos, dos penedos e dos homens, a campina foi alarmada, de súbito, pelos primeiros tiros da escolta. Predispostos à morte, a lutar até o último alento de vida, os cangaceiros puseram-se em defesa, entrincheirando-se nas pedras. A tropa fez o mesmo, e começou a fuzilaria intensa, viva, desesperada, em que as balas dos soldados se cruzavam, rápidas, zunindo, com as cargas de chumbo dos cangaceiros.

 

A luta, em tais circunstâncias, dependia mais de Deus do que da habilidade dos homens. Cada pedra plantada no campo, era o escudo gigantesco de um combatente. E as balas, e os punhados de chumbo, achatavam-se estalando, nesses escudos, arrancando-lhes estilhaços ou fazendo voar, leves, pequenas nuvens de poeira.

 

O grupo dos bandoleiros era o de João Severino, antigo feitor da fazenda Água-Viva, nas fronteiras da Paraíba com o Ceará. Menino ainda, vivia João Severino com pai, no sítio dos Cajueiros, herança dos seus antepassados, quando o coronel Cazuza Rocha, fazendeiro vizinho, propôs a compra da pequena propriedade. O pai recusara o negócio, mas, como o coronel era poderoso, tomou-lhe a casa, a terra, a plantação e o gado miúdo que lá existia. Levado para a cadeia, o agricultor esbulhado morreu. A mulher morreu de mágoa, pouco depois. Com o ódio rugindo no coração, João Severino fizera-se homem, na Água-Viva. E era, já, feitor, homem de confiança da fazenda, quando uma noite, montou a cavalo e desapareceu. No dia seguinte, pela manhã, era o coronel Cazuza encontrado morto, no alpendre, tendo no peito, enterrada em toda extensão da lâmina, uma faca de ponta, cujo cabo, de prata lavrada, se viam as iniciais do antigo menino dos Cajueiros. Perseguido pelas autoridades, o rapaz reuniu uma dezena de homens decididos, depois outra, e ali estava, agora, no seu oitavo encontro com a polícia, depois de haver saqueado, durante dois anos e meio, várias coletorias do interior.

 

Escolhido pouco a pouco, O pessoal do bandoleiro era, todo, de primeira ordem. Dos vinte e dois homens que o compunham, nenhum deles, ali, pensava na morte. Atacar, matar, a tiro ou a faca, era a sua profissão natural. Não se tivesse a escolta abrigado nas pedras, e não teriam perdido uma bala de rifle ou um caroço de chumbo grosso. Descalços, ceroula amarrada na perna, camisa de algodão ordinário por cima da ceroula, chapéu de couro, ou de carnaúba, com barbicacho, era esse o fardamento da maioria. Batiam-se como leões, e morriam como cães. Para eles, só havia uma coisa vergonhosa no mundo: morrer em casa, na rede, sem deixar uma nódoa de sangue no chão. E era disputando um fim heroico, buscando, em uma bala, a morte gloriosa e invejada, que ali estavam, o joelho direito na terra, a cartucheira ou o polvarilho a tiracolo, a arma à altura do rosto, à espera de um ponto vulnerável do inimigo para atingi-lo na pontaria certeira.

 

Do lado oposto, não era menos vivo o interesse pela vitória. De rojo, com o queixo no chão e a carabina à altura do solo, o sargento disparava seguidamente contra os bandoleiros, que se dissimulavam a uns cinquenta metros, por trás do seu grupo de rochas. E disparava, atento, o dedo no gatilho, quando uma bala, dirigida transversalmente, o apanhou de lado, varando-lhe o pulmão. Ferido de morte, a arma tombou-lhe das mãos com a última bala na agulha. Uma palidez repentina cobriu-lhe o rosto, acompanhada de estremecimentos leves, por todo o corpo.

 

Do esconderijo próximo, a dez metros, um soldado humilde, o Marciano, que defendia heroicamente o seu rochedo, assistia, aflito, ao epílogo daquela bravura. O seu coração de sertanejo, encostado ao da terra, palpitava contra ela. Seria possível que, a dez passos de distância, o seu companheiro, o seu comandante, o seu chefe, morresse naquela agonia, como um bicho, sem que alguém lhe pusesse na mão a luz de uma vela com que descobrisse, entre as trevas eternas, o misterioso caminho do céu? A arma esquecida na mão, olhos ansiosos, procurava em torno, na nudez gloriosa das coisas, solução para aquele desespero da sua alma. E, em torno, era a várzea deserta, verde, em que pedras, agora, lhe pareciam sepulcros abandonados. Perto, longe, adiante, em toda extensão da campina, apenas os cardos, de folhas chatas, lhe estendiam as mãos cobertas de espinhos. E, na rocha, por trás da qual se abrigava, o chumbo e as balas do inimigo, assobiando, zunindo, estalando.

 

De repente, esquecendo o inimigo, a vi da, tudo, para lembrar-se unicamente da salvação de uma alma, o soldado cingiu-se ainda mais estreitamente à terra, e começou a vencer, coleando, rasgando o peito no pedregulho, a cabeça encostada no solo, o espaço que o separava da outra pedra. Descoberto pelo inimigo, a fuzilaria aumentou na sua direção. Era, porém, já, tarde, pois que o espaço havia sido vencido.

 

A boca ensopada de sangue, o sargento agonizava. Marciano olhou em roda, e, diante da majestade da natureza piedosa, teve um gesto que redimia a miséria dos homens; ajoelhou-se ao lado do moribundo, arrancou do bolso uma caixa de fósforos, riscou um, e colocando-lhe nos dedos, ajudou-o, rezando, a morrer. Os olhos erguidos para o céu azul e imenso, todo ele voltado para Deus, as suas mãos sustinham entre os dedos ásperos do moribundo a pequenina chama vacilante. E, a voz angustiosa, todo possuído pela emoção, murmurava, lento, com todo ardor de sua fé, aquela oração que ouvira, tantas vezes, gemer à cabeceira dos agonizantes:

 

- Parte... alma cristã... deste mundo... em nome de Deus Padre Onipotente... que padeceu por ti... em nome do Espírito Santo... que sobre ti foi derramado... em nome dos Anjos e Arcanjos... em nome...

 

Na sua comoção religiosa o soldado esquecera-se, porém, de si mesmo. E não estava, ainda, no meio daquela oração de morte, em que se misturam a piedade e o terror, ao entregar a Deus, com os olhos na altura, a alma do companheiro, uma bala o apanhou também, certeira, atravessando-lhe a cabeça.

 

Duas horas depois a luta estava terminada com a fuga dos bandoleiros. E quando a pequena tropa legal se arregimentou para partir, os soldados encontraram, atrás de uma pedra, dois cadáveres, que seguravam, com os dedos hirtos, os restos do mesmo fósforo...


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 19 de junho de 2022

ANGÚSTIA DO VIÚVO (CONTO DO PARAENSE DALTON TREVISAN)

ANGÚSTIA DO VIÚVO

Dalton Trevisan

 

Ele acorda tosse e resmunga: “Essa bronquite”. Ainda na cama, dedo trêmulo, acende o primeiro cigarro e o segundo enquanto faz a barba. Espirra com o chuveiro frio. Bebe o café preto servido por dona Angelina, sai sem ver os filhos adormecidos. São sete horas e entra no emprego às oito. A rotina de preencher fichas e calcular percentagens.

 

Volta para o almoço, os filhos já estão no colégio. De tarde, a copiar faturas. Engole cafezinho bem quente — uma de suas predas — sem queimar a língua. Sanduíche e copo de leite. Esconde-se da chuva na biblioteca pública ou vai ao cinema. Às dez horas, sobe no ônibus, o jornal dobrado no bolso. Caminha três quarteirões até a casa silenciosa, apenas uma luz na varanda.

 

Dona Angelina dorme em sossego; não precisa vir tirar-lhe o sapato e deitá-lo vestido. Já não é s o bêbedo que rola na valeta. No escuro, atravessa o corredor e a sala, acende a luz da cozinha. Pendura o paletó na cadeira. Prende a gravata na cinta para não respingá-la.

 

O jantar está no armário com tela: um prato fundo coberto por outro raso. Coloca-o na mesa nua e, antes de sentar-se, guarda de volta no armário o prato raso umedecido pelo vapor. Come tudo, não acha gosto e abusada pimenta. Deita o café na caneca. Engole-o frio, um resto de pó no fundo. Dispõe na pia o prato e a caneca, abre a torneira e enche-os de água.

 

Mais um cigarro e, com a lima no chaveiro, limpa as unhas amarelas: consome duas carteiras por dia. Encaminha-se ao banheiro, escova os dentes e bate com a escova três vezes na beira da pia. Observa-se no espelho, rancoroso. Exibe a língua, os dentes manchados de nicotina:

 

— Dia de ficar bêbedo.

 

Já não bebe, mas repete em voz alta o desafio. Com a morte da esposa, entregou os filhos à dona Angelina e, por cinco meses, morou só na casa, sem acender o fogo nem arrumar a cama. Abandonou o emprego, não visitava as crianças. Dona Angelina ignorava se ainda estava vivo. Dormia embriagado todas as noites, não no quarto de casal, mas no paiol da lenha. Trazia um embrulho de pastéis, que mastigava entre goles de cachaça; estavam frios e úmidos de gordura, o que era indiferente, pois não lhes encontrava sabor.

 

— Hoje é dia de ficar bêbedo — anunciava a si mesmo. — Vou olhar para as telhas...

 

E olhava: as velhas telhas encardidas e cobertas de teias. Quando chovia, despregavam-se as aranhas de ventres peludos. A cabeça debaixo do lençol, mordendo os dedos, ele tremia de pavor. Certa vez a caixa d’água transbordou, inundando a casa, e os vizinhos deram o alarma.

 

Dona Angelina veio providenciar o conserto e, ao ver no colchão os buracos de brasa de cigarro, arrastou com ela o filho, que se deixou ir, cansado demais para discutir. Fechou-se no antigo quarto de solteiro, olhou- se muito tempo ao espelho, a princípio curioso, depois aborrecido e, enfim, com náusea. Naquela hora, sem ao menos pensar que era uma decisão, deixou de beber.

 

Agora, passado um ano, apagada a luz do banheiro, dirige-se no escuro ao seu quarto. Detém-se um instante na sala e escuta: o ronco estertoroso da velha encobre a respiração dos filhos. O menor dorme com dona Angelina, a menina na cama de grades. Bem que ela o preveniu:

 

— Está perdendo a festa da vida. Os filhos é que...

 

Embora a porta aberta, ele se afasta sem voltar o rosto: uma gaiola o amor dos filhos, dourada quem sabe. Você não fura o olho do passarinho para que ele cante mais doce? Outro cigarro enquanto se despe. Dispõe a roupa na cadeira; bem cedo a mãe vem apanhá-la, escova e passa a ferro — o único temo. Ninguém diria que é o mesmo, não fora um buraco de cigarro na manga. Domingo ele próprio capricha no vinco da calça preta.

 

Afofa os dois travesseiros para ler o jornal, nunca mais abriu um livro. Uma vez por semana, com repugnância e método, entrega-se ao prazer solitário — o mísero consolo do viúvo. Afinal vem o sono, aninha-se nas cobertas e dorme, o eterno grilo debaixo da janela. Ali na sala, ao pé do caixão, espanta a mosca no rosto da falecida. Os outros dão-lhe as costas:

 

— Olhe bem para a sua vítima. Você que a matou.

 

Finou-se de leucemia, que a família atribuiu aos beijos do vampiro sem alma. As lágrimas secando na face, espera a manhã. Encolhido, tosse e resmunga: “essa bronquite...” Dedo trêmulo, acende o primeiro cigarro ainda na cama e o segundo enquanto faz a barba. Chuveiro frio. Sai sem ver os filhos. Na rotina de preencher fichas e calcular percentagem, debaixo das telhas, espiam-no as aranhas de ventre cabeludo.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 18 de junho de 2022

A FRONTEIRA (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

A FRONTEIRA

Coelho Neto

 

Noite alta e morna: o rio rolava vagarosamente as suas grandes águas, e a veneranda seiva, de troncos virgens, enchia a solidão com o seu murmúrio solene, quando chegou ao povoado um cavaleiro. O animal, que ele cavalgava, humilde e arquejante, denunciava um longo e desabrido galope: e a pressa com que saltou da cela á porta da primeira cabana, fechada e silenciosa, fazia suspeitar que algum acontecimento grave o levava a empreender tão arriscada viagem, através da floresta percorrida pelos animais bravios.

Bateu com força e, como não lhe respondessem, bateu de novo: falaram. — Abre!— bradou imperativamente. Logo rangeu o ferrolho, e num raio de luz apareceu no limiar da porta a valida figura de um sertanejo trazendo apenas sobre o corpo uma camisola ampla que lhe chegava aos pés.

— As nossas terras vão ser tomadas: — disse o recém-chegado, antes mesmo de saudar o sertanejo. — Vim por essas matas a todo galope para ver se ainda chegava a tempo de prevenir-vos.

— Vão ser tomadas! — exclamou o outro, pasmado.

— Sim. Estrangeiros efetuaram um desembarque e vêm pela floresta, armados.

— E então? Que havemos de fazer?

— Armemo-nos.

— Quantos são eles?

— Não sei: o número pouco importa, o necessário é que nos defendamos.

— E se eles forem muito superiores em numero?

— Não importa. Se eu aqui vivesse isolado, da porta da minha cabana faria fogo sobre os invasores até cair atravessado por uma bala. Somos ao todo vinte e três homens, eles são talvez duzentos... mas vamos! Arma-te e vem: acorda tua mulher e teu filho, eu vou prevenir os mais.

O sertanejo esteve algum tempo hesitante. O murmúrio da floresta crescia com o vento, dando, por vezes, a ilusão de tambores rufados, ao longe.

— Eles aí vêm...

— Eles aí vêm: não há tempo a perder! Se morrermos, todos os nossos corpos ficarão marcando a fronteira da Pátria. Pelas nossas ossadas e pelas cinzas das nossas cabanas, os que vierem mais tarde conhecerão o limite do Brasil. Vamos! Falta-nos uma bandeira; temos, porém, o céu, o grande céu; e o choro assustado de nossos filhos excita-nos mais do que os clarins de guerra. Vamos!

— Vamos! — bradou o sertanejo, correndo a buscar a sua arma de caça.

Quando luziu a madrugada formosa, todos os homens do povoado estavam de pé, de arma em punho, entrincheirados, esperando o invasor.

As mulheres intrépidas, que não haviam querido deixar os maridos, apertavam ao colo os filhos que dormiam, e todos os olhos estavam cravados no caminho onde deviam aparecer os estrangeiros.

Era quase meio dia, o sol abrasava, quando os primeiros soldados surgiram tranqüilamente, pisando com orgulho a terra que julgavam abandonada: á frente caminhava o oficial garboso, fazendo brilhar ao sol a espada nua. Mas um grito atroou: — “Viva o Brasil!” — e logo uma descarga retumbou no silencio. Os invasores, surpreendidos, recuaram: eram em numero muito superior ao dos que defendiam a terra natal, posto que cinco d’eles já escabujassem no solo alcançados pelas balas certeiras dos sertanejos.

 Ressoaram clarins, e, em fila cerrada, os invasores avançavam: nova descarga, porém, fez que retrocedessem, deixando no campo novos mortos. 

 E não viam o inimigo; davam tiros ao acaso, aterrados, como se se batessem com o sobrenatural, até que uma nova descarga os colheu, sendo atingido o oficial, que rolou por terra moribundo. Desanimados, os invasores recuavam, sempre atirando ao acaso, sempre perseguidos pelas balas dos que defendiam a terra da pátria, até que alcançaram os barcos e precipitadamente passaram á outra margem. De longe, então, atravessando as águas, viram aparecer os heróis que se haviam batido entrincheirados nas próprias cabanas, tendo ao lado as mulheres, os filhos, os velhos pais que os animavam. E a selva grande e veneranda parecia aplaudir os seus filhos valentes com a sua grande voz murmurosa e constante. E até alta noite, enquanto abriam covas para enterrar os inimigos mortos, bradavam delirantemente, vitoriosamente: — Viva o Brasil! — contentes por haverem defendido a fronteira, da qual eram os guardas fieis, contras as mãos rapazes do estrangeiro.

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 17 de junho de 2022

A SOLUÇÃO (CONTO DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

A SOLUÇÃO

Clarice Lispector

 

Chamava-se Almira e engordara demais. Alice era a sua maior amiga. Pelo menos era o que dizia a todos com aflição, querendo compensar com a própria veemência a falta de amizade que a outra lhe dedicava.

 

Alice era pensativa e sorria sem ouvi-la, continuando a bater a máquina. À medida que a amizade de Alice não existia, a amizade de Almira mais crescia.

 

Alice era de rosto oval e aveludado. O nariz de Almira brilhava sempre. Havia no rosto de Almira uma avidez que nunca lhe ocorrera disfarçar: a mesma que tinha por comida, seu contato mais direto com o mundo.

 

Por que Alice tolerava Almira, ninguém entendia. Ambas eram datilógrafas e colegas, o que não explicava. Ambas lanchavam juntas, o que não explicava. Saíam do escritório à mesma hora e esperavam condução na mesma fila. Almira sempre pajeando Alice. Esta, distante e sonhadora, deixando-se adorar. Alice era pequena e delicada. Almira tinha o rosto muito largo, amarelado e brilhante: com ela o batom não durava nos lábios, ela era das que comem o batom sem querer.

 

Gostei tanto do programa da Rádio Ministério da Educação, dizia Almira procurando de algum modo agradar. Mas Alice recebia tudo como se lhe fosse devido, inclusive a ópera do Ministério da Educação.

 

Só a natureza de Almira era delicada. Com todo aquele corpanzil, podia perder uma noite de sono por ter dito uma palavra menos bem-dita. E um pedaço de chocolate podia de repente ficar-lhe amargo na boca ao pensamento de que fora injusta. O que nunca lhe faltava era chocolate na bolsa, e sustos pelo que pudesse ter feito. Não por bondade. Eram talvez nervos frouxos num corpo frouxo.

 

Na manhã do dia em que aconteceu, Almira saiu para o trabalho correndo, ainda mastigando um pedaço de pão. Quando chegou ao escritório, olhou para a mesa de Alice e não a viu. Uma hora depois esta aparecia de olhos vermelhos. Não quis explicar nem respondeu às perguntas nervosas de Almira. Almira quase chorava sobre a máquina.

 

Afinal, na hora do almoço, implorou a Alice que aceitasse almoçarem juntas, ela pagaria. Foi exatamente durante o almoço que se deu o fato.

 

Almira continuava a querer saber por que Alice viera atrasada e de olhos vermelhos. Abatida, Alice mal respondia. Almira comia com avidez e insistia com os olhos cheios de lágrimas.

 

— Sua gorda! Disse Alice de repente, branca de raiva. Você não pode me deixarem paz?!

 

Almira engasgou-se com a comida, quis falar, começou a gaguejar. Dos lábios macios de Alice haviam saído palavras que não conseguiam descer com a comida pela garganta de Almira G. de Almeida.

 

— Você é uma chata e uma intrometida, rebentou de novo Alice. Quer saber o que houve, não é? Pois vou lhe contar, sua chata: é que Zequinha foi embora para Porto Alegre e não vai mais voltar! Agora está contente, sua gorda?

 

Na verdade Almira parecia ter engordado mais nos últimos momentos, e com comida ainda parada na boca.

 

Foi então que Almira começou a despertar. E, como se fosse uma magra, pegou o garfo e enfiou-o no pescoço de Alice. O restaurante, ao que se disse no jornal, levantou-se como uma só pessoa. Mas a gorda, mesmo depois de feito o gesto, continuou sentada olhando para o chão, sem ao menos olhar o sangue da outra.

 

Alice foi ao Pronto-Socorro, de onde saiu com curativos e os olhos ainda arregalados de espanto. Almira foi presa em flagrante.

 

Algumas pessoas observadoras disseram que naquela amizade bem que havia dente-de-coelho. Outras, amigas da família, contaram que a avó de Almira, dona Altamiranda, fora mulher muito esquisita. Ninguém se lembrou de que os elefantes, de acordo com os estudiosos do assunto, são criaturas extremamente sensíveis, mesmo nas grossas patas.

 

Na prisão Almira comportou-se com docilidade e alegria, talvez melancólica, mas alegria mesmo. Fazia graças para as companheiras. Finalmente tinha companheiras. Ficou encarregada da roupa suja, e dava-se muito bem com as guardiãs, que vez por outra lhe arranjavam uma barra de chocolate. Exatamente como para um elefante no circo.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 16 de junho de 2022

14 DE JULHO NA ROÇA (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

14 DE JULHO NA ROÇA

Raul Pompeia

 

 

14 de julho é a grande data. Ecoa na história com as mesmas vibrações que deve proferir sobre o mundo a trombeta de Josafá, em plena consumação dos séculos.

 

A Marselhesa é o gemido humano chamado às armas.

 

A queda da Bastilha é o pavoroso esboroamento do passado, batido pelo futuro.

 

A pirâmide da opressão tinha por base o grande cárcere e por vértice a coroa do rei; o povo devasta a pirâmide de alto a baixo; arrasa o alicerce, aniquila o píncaro.

 

Cai a Bastilha, morre Luís XVI.

 

Do cataclisma ergueu-se sangrenta a grande mão do direito humano saciado, e abriu os dedos sobre aquele caos, como as irradiações de uma estrela grandiosa e serena.

 

À luz deste sol, começou a desfilar a procissão dos séculos...

 

Curvado um dia sobre essas páginas épicas da lenda das gerações, inclinado à beira vertiginosa do báratro onde revoluteiam os fantasmas indistintos e medonhos daquele terremoto social, refletindo na humanidade e nos seus destinos, foi assim que o Dr. Salustiano da Cunha descobriu que era republicano.

 

Muito republicano; republicano de coração. De coração e de cérebro.

 

Um homem da época.

 

Na qualidade de Campineiro abastado e farto, tinha por si a força do ouro: o elemento moderno do poderio. No século XIX, mais do que nunca, o ouro é o metal dos cetros e das alavancas: só existe para o mando e para a força...

 

Ia-lhe próspera a fazenda. As suas vastíssimas terras sumiam-se, sob as ramas escuras dos cafezais, plantados em linha, através de infinitas colinas.

 

As canas formavam-se por milheiros ao longo das várzeas, imitando tudo respeitáveis fileiras de incógnita milícia. As folhas do canavial refletiam o sol, como se fosse o aço de cem mil baionetas; as plantações de milho sacudiam belicosamente os penachos roxos, como as insígnias gloriosas de um imenso estado-maior

 

Tudo ali estava perfilado e firme, como se faltasse apenas o grito de marcha, para os batalhões precipitarem-se...

 

O Dr. Salustiano, com as mãos nas cadeiras, por baixo do pala de brim, contemplava, ufano, aquele exército fantástico que tinha sob o seu comando absoluto e despótico.

 

O próprio céu parecia fugir para cima, com o seu azul e com as suas estrelas, amedrontado por aquelas hostes, mais arrogantes, sem dúvida, que as dos bárbaros do Norte, que tinham lanças para escorar o próprio firmamento.

 

Era um homem forte, portanto, o nosso doutor.

 

Podia soltar gargalhadas às barbas da prepotência corruptora do rei; podia rebelar-se, como Lúcifer, e rir do paraíso perdido; podia gritar que viesse abaixo a tirania, e recusar um arqueamento da espinha à majestade sagrada do direito divino.

 

Viva a República!

 

A santa causa encontrava nele um pulso valente para o combate.

 

Cada golpe da sua durindana democrática e demolátrica seria uma vitória para o grande partido dos direitos do homem canonizados!

 

O Dr. Salustiano era entusiasta. Estava disposto a declarar guerra a tudo que não fosse democracia republicana. Só curvaria a fronte ante a aristocracia do talento.

 

Para isso verdejavam-lhe os cafezais pingues; para isso, o canavial afiava as folhas umas nas outras, como espadas, e o milho cabeceava empenachado como um marechal.

 

Daí vinha-lhe a força.

 

Não havia, pois, motivo para espanto, quando, por uma bela manhã, saindo o doutor a passeio, montado, como um príncipe, no soberbo alazão, foi impressionado por um fenômeno estranho.

 

Lembrava-se que a aurora fora mais rubra naquela madrugada; o sol nascera vitorioso no meio de uma explosão de sangue e de fogo; as nuvens se lhe haviam figurado momentos desmoronando-se. Todo o oriente parecera vibrar, abalado por uma tragédia titânica...

 

Agora, fato interessante, prescrutando os cantares do bosque, parecia-lhe que, das folhas frementes, choviam as notas aclarinadas da Marselhesa.

 

Ora o sabiá entoava heroicamente o solo do

 

Allons enfants...

 

Ora o coro da passarinhada replicava em tom de guerra:

 

Aux armes citoyens!...

 

Recomeçava o solo pungente do sabiá.

 

As árvores estremeciam.

 

As nuvens paravam para escutar.

 

Recomeçava o coro imponente. Parece que então a natureza inteira abria a boca para cantar. As notas graves vinham do horizonte, nascidas nas grotas ao longe, e vazadas sonoramente através de gargantas de pedra.

 

Que solenidade naquele conjunto! O alazão marchava como se cadenciasse o passo pela vasta orquestração da natureza.

 

O doutor extasiava-se.

 

Caminhava para diante, sorrindo e surpreso. A grande música seguia-o como um préstito invisível de sons guerreiros e formidáveis.

 

O Dr. Salustiano quase erguia-se sobre os estribos, para descobrir-se e urrar:

 

- Viva a República!

 

O coração pulava-lhe! O homem sentia que uma força, esquisita levantava-o acima da cavalgadura...

 

Vinte vezes quis soltar o brado; mas tinha medo.

 

Podia não ser entendido pela natureza e ficar sem resposta.

 

Quis entrar no coro. Já não se continha mais.

 

No primeiro aux armes citoyens!... Ele meteu-se, e fez coro com os estranhos cantores daquela maravilhosa manhã.

 

Ainda estava pedindo, com voz atroadora, o sangue impuro dos tiranos, quando sentiu estacar o alazão, forçando o cavaleiro a debruçar-se-lhe sobre as crinas.

 

Um grupo de pessoas aparecera na estrada. Três escravos e um feitor mal-encarado.

 

Tinham a cara espantada, e pareciam perguntar se o matutino passeador endoudecera.

 

- O que temos? Indagou bruscamente o doutor, engolindo um resto de Marselhesa.

 

- Venho comunicar ao senhor, respondeu o feitor, que o Emídio fugiu...

 

- Terceira vez!... O cão... Há de pagar! Hum!... Desta vez eu o ensino, se o pego.

 

- Havemos de pegá-lo hoje mesmo, garantiu resolutamente o feitor.

 

- Peguem-no... peguem-no, que havemos de ver para que se inventou o viramundo...

 

E o alazão continuou a marchar pela estrada adiante, deixando ficar o grupo que interrompera-lhe os passos.

 

Com o sacudir da andadura, acomodaram-se no espírito do doutor as ideias momentaneamente desarranjadas pela brusca notícia da fuga do Emídio. Tendo o espirito mais calmo, observou que a orquestração da natureza, subitamente suspensa, recomeçava em surdina, e zunia-lhe ao ouvido como se longínquas fanfarras eólicas começassem a ressoar.

 

Recomeçava a canção de Marselha. O doutor tornava a achar tudo vermelho e belicoso. Volviam-lhe à imaginação os seus ardores republicanos.

 

Nessa ocasião um grito chamou-o à distância:

 

- Cidadão!...

 

O doutor não voltou-se. Era incrível! Reconhecia a voz de Danton...

 

- Cidadão! Repetiam.

 

Não! Era talvez Desmoulins, Robespierre, Marat... com os diabos!... Seria sonho?...

 

- Cidadão!

 

Segui-lo-ia porventura a coorte dos homens fantásticos do Terror?...

 

- Cidadão Salustiano! Doutor!

 

Ah! O doutor logo vira... Era o compadre... vizinho ali de algumas léguas, um companheiro fazendeiro, apatacado e gordo, e, mais que tudo, republicano.

 

Vinha a cavalo, em busca de Salustiano. Havia uma grande festa em casa dele. Um aniversário. Celebrava-se pomposamente a queda da Bastilha, a hecatombe das tiranias. Em vez de reis e tiranos, degolara-se para a solenidade uma infinidade de leitões e patos. Lucullo ia festejar a trucidação da realeza!...

 

Um banquete digno de servir-se através das páginas da Ilíada.

 

14 de julho!

 

Estava explicado o sonho harmonioso do Dr. Salustiano: esplêndida miragem acústica, que pintara-lhe aos ouvidos todo o panorama canoro de oitenta e nove!

 

Aquela manhã era a gloriosa manhã do grande dia.

 

À noite, a fazenda do compadre estava em festa.

 

Todos os republicanos de vinte léguas em roda concorreram entusiasmados.

 

Chamou-se de Campinas uma filarmônia particular, muito ensaiada em sonoridades rubras e gargalhadas de Offenbach.

 

Quando apareceu na estrada o Dr. Salustiano, a banda de música saudou-o com um Roger de l'Isle mais real que o da manhã e não menos ardente.

 

Os foguetes crepitavam no espaço, como a fuzilaria dos assaltantes da Bastilha.

 

A massa estúpida dos escravos alinhava-se em dois renques, ao longo da estrada, sustentando archotes na mão. Tinham a expressão besta de quem nada compreende do que vê. A luz dos archotes clareava-lhes os peitos hercúleos, onde, sobre o branco do algodão das camisas, brilhava o desenho encarnado de pequenos barretes frígidos sobrepostos ao número de cada um.

 

Salustiano pasmava diante daquele aparato.

 

Quando entrou no salão do festim, chegou mesmo a sentir no íntimo uma picada de inveja. Porque não se lembrara primeiro de levar a cabo aquela solenidade?... Ficaria para o ano...

 

Para o ano o 14 de julho seria dele.

 

O salão estava imponente. Uma extensa mesa, coberta de iguarias custosas e abundantes, desenrolava-se luxuosamente, com a carta geral da gastronomia. Por cima, cristais e flores, luzes e inações. Ao fundo do salão, quase à cabeceira da mesa, uma grande figura da Liberdade, em gesso, alçava, garbosa, uma lâmpada sobre o banquete.

 

Dir-se-ia o Anfitrião daquilo tudo.

 

Foram chegando os convidados, e abancando-se. Só homens.

 

Em pouco, a mesa regurgitava. Ao doutor coube um lugar aos pés da estátua.

 

O assalto aos manjares foi medonho. Os trinchantes desapareciam no bojo dos assados, como se fossem punhaladas raivosas. As garrafas estouravam, como fogo nutrido de atiradores destros.

 

Comia-se, como se ali só houvesse guisados bofes de monarcas; bebia-se, como se houvesse engarrafado o sangue das dinastias.

 

Pantagruel e Gargantua esgaçavam os lábios, como sansculottes embriagados.

 

Os garfos eram chuços, as facas eram espadas. A demagogia do ventre arremessava-se doudamente contra a imponência régia dos acepipes.

 

Enquanto a comida abarrotava as bocas, ia a música abarrotando os ouvidos.

 

Tudo em grosso, abundantemente, desvairadamente.

 

Em certa ocasião começaram os brindes.

 

Brindou-se a este, que era um dos mais puros advogados da causa republicana; a aquele, que defendera no parlamento provincial os sagrados direitos do povo (povo era com P grande); a aquel'outro, que constituía uma das mais legítimas esperanças do partido regenerador...

 

Houve uma pausa solene, no meio da qual uma voz trêmula e vibrante levantou-se:

 

- Cidadãos!

 

Uma agitação moveu o auditório, e o silêncio caiu cem graus abaixo de zero.

 

- Concidadãos!...

 

Falava um jovem ex-deputado, famoso pela violência com que usava agredir os tronos.

 

... É hoje o dia em que o mundo comemora um dos grandes acontecimentos da sua história...

 

(Alguns apoiados surdos.)

 

- ... Na grande era revolucionária, foi no dia de hoje que o povo, compreendendo a grandeza da sua soberania, alçou alteroso o colo das suas iras, e resolveu afogar em sangue a tirania infame da torpe realeza!

 

(Muito bem, muito bem!)

 

- ... Já era demais!... Por tantos séculos havia a pata da injustiça calcado o livro dos direitos do homem... a exploração dos fracos pelos potentados... o roubo iníquo do salário ao proletariado... a realeza usufruindo desaforadamente o suor do povo e sugando sofregamente, para a manutenção das suas orgias, o generoso sangue dos pobres, o sangue daqueles mesmos que sustentavam-lhe as indústrias do seu estado, daqueles mesmos que lavravam os campos da sua nação...

 

(Bravos! Bravos!)

 

- ... Já era demais... Tudo preparou o terrível desabamento social que se chama queda da Bastilha!...

 

"A onda popular rodeou espumante, etc., etc...

 

O eloquente tribuno orou por longo tempo, e concluiu em tom religioso, no meio das aclamações dos circunstantes:

 

- ... Mas ainda não estão por terra todas as Bastilhas; ainda existem muitas realezas, e cada realeza é uma Bastilha temerosa...

 

"Abaixo pois as realezas!...

 

"Por terra as Bastilhas!...

 

"Plante-se a bandeira republicana por todo o mundo!... Que o orbe terráqueo apareça aos olhos dos outros planetas com a forma cintilante de um barrete frígio!...

 

(Bravôh! Bravôh!...)

 

... Expulsemos, pois, da nossa pátria o velho chaveco da monarquia, ainda que tenhamos de oferecer, para a sua retirada, um rio do nosso sangue rubro!...

 

(Bravôôôh!)

 

E saudemos agora, neste brinde, como a síntese dos nossos votos, das nossas aspirações, a próxima fundação da república brasileira!...

 

E um brinde estrondoso como um furacão, subiu daquela tempestade de aplausos e garrafas, para sujar de vinho a cara impassível das instituições...

 

Naquele momento mesmo, quem se afastasse da fazenda em festa, até meia distância da fazenda do Dr. Salustiano, ver-se-ia apertado num contraste pavoroso.

 

Atrás da escuridão dantesca de uma noite tempestuosa e feia, ouviam-se perfeitamente, de uma banda, rumores orgíacos, inextinguíveis, como os risos de Homero; de outra banda, lastimosos gritos cruciantes, que pareciam pedir socorro às feras da mata...

 

De um lado, 14 de julho; do outro, a punição de Emídio, o negro fugido...

 

Uma coruja passou... Se estivesse presente, o Dr. Salustiano perceberia que a coruja ia cantando a Marselhesa.

 

Sentia-se realmente nas trevas do ar o grande anjo da igualdade roçando com a ponta das asas brancas os dois extremos do horizonte.

 

Depois, do discurso, a festa do compadre continuou; o delírio do prazer recrudesceu.

 

As libações caíam em cascata sobre a toalha da mesa. As imaginações catavam estrelas para o símiles dos brindes, a retórica já não tinha mais tropos.

 

Quando ia falar o Dr. Salustiano, que, por uma especial consideração, fora encarregado de pôr o fecho de ouro ao banquete com o grande brinde à Liberdade, acercou-se dele um sujeito que entrara, havia pouco, e por trás da cadeira disse-lhe ao ouvido:

 

- O Emídio bateu a bota... não resistiu ao viramundo...

 

Era o feitor que conhecemos.

 

O doutor atirou-lhe enfadado as cinco letras de Cambrone, e tomou uma garrafa do melhor champagne.

 

Todos os convidados tinham o olhar sobre ele, e gritavam todos:

 

- O brinde à Liberdade! O brinde!

 

O doutor ergueu-se vagaroso, solene; segurou corretamente o fuste de cristal de uma taça finíssima que enchera.

 

A estátua de gesso. Acima dele, com a cabeça inclinada e a lâmpada ao alto, fitava-o, parecendo esperar o brinde, espantada...

 

- Cidadãos!... O futuro... pertence à ideia republicana...

 

(Falava um profeta)

 

- ... Nós somos os sagrados preparadores do futuro. A pátria de amanhã é a concretização da nossa ideia.

 

"A nossa missão não é a simples propaganda de um partido: é o desempenho heroico de um sacerdócio.

 

"Às armas! A nossa existência de cidadãos deve ter este programa: Às armas!...

 

"E neste momento, que nos reunimos todos para solenizar o grande dia republicano, neste momento, mais do que nunca, os nossos entusiasmos de pontífices da liberdade devem fundir-se em uma saudação que seja mais um pacto de aliança para as nossas lutas!...

 

"Um brinde à liberdade!..."

 

O salão estourou, como se uma vasta explosão de picrato o tivesse arremessado às nuvens; estourou ao brado de duzentas goelas de bronze, aclamando a Liberdade...

 

Circunstância mínima:

 

O doutor, arroubado de entusiasmo, levara tão alto o seu brinde, que partira o cristal nas faces da estátua.

 

O vinho caíra-lhe pelos seios abaixo, prostituindo a casta brancura impoluta do gesso.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 15 de junho de 2022

O DEFUNTO (CONTO DO CEARENSE THOMAZ LOPES)

O DEFUNTO

Thomaz Lopes

 

Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e parece-lhe então que estava morto.

 

Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! Que dolorosa e lenta agonia

 

De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.

 

E sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!

 

Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do "cadáver" que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?

 

E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! Que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.

 

- Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão! - Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos; - oh! Essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja

 

E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado' numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo, - e sente uma a uma ensanguentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!

 

Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria..

 

Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.

 

Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se, - assim como uma cidade que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.

 

Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.

 

Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. - E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha, mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos, - nem viv'alma! Apenas sombras. Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: - Marcha! Marcha! - As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão. Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva - o defunto caminhava.

 

De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma ideia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. - Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo - e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contato, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam. No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. - Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se "ele" ali estava oculto contemplando a felicidade do outro "ele"! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! Se ele pudesse, também seguir-lhes o voo!... Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra - e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... - Mas ele era cadáver e na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos... Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! Que deliciosa alegria! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo - coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte...

 

Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.

 

* * *

 

Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.

 

Pensou, então, no seu sonho - e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.

 

Longas horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia infinita! Ah! Como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...

 

* * *

 

Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol - único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.

 

Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! Quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro - longo como um deserto; a noite inteira - vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber

 

Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!

 

O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! Mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentara! A fome que ela fizera crescer! - E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as - e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago crispado pela fome.

 

Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.

 

Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita - e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 14 de junho de 2022

O LOBISOMEM (CONTO DO CEARENSE RAYMUNDO MAGALHÃES)

O LOBISOMEM

Raymundo Magalhães

 

A primeira bodega que se abria, na feira do Jacaré, era a de seu Bento. Logo muito cedo, mal o dia começava a raiar, ele saía de casa, embrulhado num cobertor de lã, por causa do frio cortante, escancarava as duas portas da frente, ia à ancoreta de cachaça pousada em cima do balcão, tomava um tronco, para esquentar o corpo e ficava, por algum tempo, passeando dentro do quarto, à espera dos primeiros fregueses. Estes não demoravam a chegar. Eram, de ordinário, os mesmos: seu Valdivino, marchante, dono do açougue vizinho, conversador inesgotável e cacete, depois da terceira golada; o capitão Mosqueiro, espírito alegre e vivo, grande contador de anedotas picantes, que, apesar de muito repetidas, arrancavam formidáveis gargalhadas; seu Doca, o mais moço de todos, prosador e poeta, que assombrava a terra com os seus violentos artigos políticos nos jornais da capital e já era uma celebridade consagrada pelo Almanaque de Lembranças... Tivera estudos. Toda a gente o considerava um moço preparado. Fazia graça de um grosseiro materialismo e, de vez em quando, atracava-se em polêmica com o vigário da freguesia, um santo homem, que tomava a peito converter o herege... Só mais tarde chegavam o Baé, o Januário, o Zé Preto, o velho Macedo, o Caboquim, e outros negociantes das imediações, que formavam uma grande roda, aplicada, toda a manhã, até à hora do almoço, a beber copinhos de cachaça e a falar da vida alheia...

 

Quando seu Bento abria a porta, vinha de dentro do quarto um bafo morno, nauseante complexo, em que se misturava o cheiro de mil coisas heterogêneas: sardinhas secas, jacas, rapaduras, fumo de corda, álcool, drogas, plantas medicinais, queijos, alhos e cebolas brancas, bananas, atas, avoantes. . . Além de negociante de gêneros alimentícios, seu Bento era também muito entendido em assuntos de medicina caseira. Como na terra não havia médico nem boticário, ele desempenhava o papel de curioso: com o auxílio do seu bojudo Chernoviz, aconselhava remédios a quantos recorriam à sua experiência, e dizia-se que estava só para tratar das doenças do mundo... Jalapa para estes, batata para aqueles outros, eram os seus remédios prediletos. Se não fizessem bem, não podiam fazer mal. Custavam pouco, mas esse pouco lhe bastava para ir vivendo folgadamente, em meio à sua vasta clientela.

 

Seu Bento era um belo tipo de homem, muito branco, de nariz aquilino, com uma barba cerrada e longa, cujas pontas tinha o hábito de retorcer, com arrogância. Andava pelos setenta anos, mas estava forte, esperando viver, pelo menos, o dobro... Extremamente desasseado, sempre de corrimboque em punho, a fungar pitadas de tabaco, com um enorme lenço de ganga sobre um dos ombros, era uma figura pitoresca pelo seu modo de vestir. Quer de verão, quer de inverno, calçava tamancos e o seu traje compunha-se de uma calça de riscado e de uma camisa de madapolão com as fraldas soltas que lhe alcançavam os joelhos. Nada neste mundo o obrigaria a passar os panos ou a enfiar um paletó. Ia assim a toda parte, à igreja como ao mercado, e, mesmo quando se faziam eleições, era em fralda de camisa que dava o seu voto ao governo.

 

Certa manhã, ainda com escuro, estava a rodinha formada, uns sentados no balcão, outros em caixas vazias de gás. Era em junho. Fazia um frio de bater o queixo. A cachaça corria com mais abundância e a palestra aumentava de animação, à medida que os copinhos se repetiam. A neve, como lá se chama a cerração, era tão espessa que não deixava ver nada a vinte metros de distância. Por isso, ninguém reparou na chegada do Zé Vicente, um lavrador de Pavuna, senão quando ele, depois de ter amarrado o cavalo à gameleira da porta, entrou na bodega, muito maneiroso, dando os bons dias e apertando a mão de cada um.

 

Seu Bento quis saber logo que novidade era aquela, porque aparecia ele assim de madrugada. Haveria doença em casa?

 

- Foi a mulher que quebrou o resguardo - explicou o Zé Vicente. Teve criança há três dias e estava passando muito bem, quando, ontem de noite, aconteceu uma desgraça...

 

- Que foi? Que foi? - Perguntaram todos ao mesmo tempo.

 

- Acho que foi um lobisomem. Pela meia-noite, ouvimos um bicho rosnar e arranhar a porta do quintal com muita força. A cachorrinha, parida de novo, deu logo sinal do lado de dentro e o bicho largou um grunhido que nos encheu de pavor. Talvez seja um guaxinim, disse eu à mulher. Quis-me levantar, sair fora, para ver que marmota era aquela, mas a Maria não deixou. Depois, mais nada. A Baleia calou-se. Pegamos no sono e, hoje de manhã, ao despertar, verificamos que à porta dos fundos estava aberta e o bicho havia comido a ninhada de cachorrinhos que estava na cozinha. A Maria jura que foi um lobisomem. Eu também acho que sim. O certo é que a pobrezinha tomou um susto medonho, quebrou o resguardo e, agora, está para morrer.

 

Seu Bento consolou o pobre homem sobre cujo lar desabava uma tamanha calamidade:

 

- Isso não é nada, Zé Vicente. Dá-se um jeito. Tenha coragem e fé em Deus.

 

Consultou demoradamente o Chernoviz:

 

- O remédio é um purgante de Leroy ou então Água Inglesa. Leve o laruá (era assim que ele pronunciava) leve o laruá e venha me dizer, amanhã, se a mulher melhorou.

 

Ninguém se atrevia a interromper seu Bento, quando ele tratava de medicina. Quem o fizesse, imprudentemente, podia ter a certeza de que o velho curioso esmagá-lo-ia com um olhar colérico e com esta simples apóstrofe - Filho!... Filho, apenas. Não dizia de quem, mas todos sabiam o verdadeiro sentido daquele palavrão...

 

Zé Vicente guardou o remédio, pagou-o, despediu-se dos circunstantes e partiu a galope. Tomou-se mais uma rodada e os comentários, então, esfuziaram.

 

- Santa simplicidade! - Observou seu Doca. - Quanta gente estúpida existe ainda por este mundo! Crer em lobisomem e almas penadas, em pleno século XX, no Século da Eletricidade, só mesmo nesta infeliz terra! Mas, não pode ser de outro modo, porque o governo e a nossa Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, em vez de instruírem o povo, tratam de embrutecê-lo, cada vez mais, para que ele permaneça eternamente, a mesma besta, fácil de governar com um freio - quer esse freio seja o terror do inferno, quer o terror da lei!

 

Calou-se, desolado, com aquele desabafo, certo de que ninguém compreendia a beleza do seu pensamento. Bebeu mais um copinho. Zangou-se por se julgar um incompreendido, no meio daqueles matutos broncos e passivos. E, de zangado, engoliu, logo em seguida, outro copinho. Irra!

 

- Esta mocidade de hoje - disse o velho Macedo. - Esta mocidade de hoje não crê mais em nada. Por isso é que o mundo está perdido e acontece tanta desgraça feia... Se até os meninos como você, Doca, já são ateus, maçons, dizem que Deus não existe... Pois fique sabendo, moço, que Deus está lá em cima e que há muita coisa, muita coisa... Almas do outro mundo, lobisomem, tudo isso é verdade. Eu nunca vi alma, mas lobisomem já topei um...

 

Explodiu uma gargalhada na roda. Seu Macedo, um velhinho pequenino, melgaço, de olhos azuis, cabeça enorme, era conhecido como o maior mentiroso das redondezas. Não abria a boca que não fosse para contar histórias de onça, cada qual mais estapafúrdia, e ficava furioso, quando punham em dúvida a sua palavra. Como, de resto, as suas mentiras não faziam mal a ninguém, não passando de arrojadas fantasias, todos gostavam de ouvi-lo e muitos o estimulavam a contar casos maravilhosos.

 

- Pois conte, lá seu Macedo, conte lá a história do lobisomem. Vamos.

 

- Foi em Santa Quitéria, meninos. Vocês sabem que eu sou daquele sertão, de onde vim para aqui na seca dos três sete. Eu era rapaz moço, dos meus dezoito anos, e nesse tempo não tinha medo de nada. Corria atrás de boi no mato fechado, matava onça de faca, pegava cascavel pelo pescoço e quando ela abria a boca para morder, cuspia-lhe dentro mel de fumo. Depois soltava a cobra. Ela estrebuchava, estrebuchava, e morria. Eu era doido varrido... E se havia coisa que eu tivesse vontade de ver de perto era um lobisomem. Se fosse possível, até pagava para me encontrar, frente a frente, com um bicho desses. Queria tirar-lhe o encanto. Como vocês sabem, o lobisomem é perigoso, mas basta que a gente o fira, mesmo de leve, com uma faca, de ponta, para ele desencantar. Pois bem. Parece que foi mesmo um castigo. Uma noite, escura como breu, eu vagueava sozinho, pelas ruas da vila, levando como única arma uma faquinha de cortar fumo, um quicé à toa...

 

Fui andando, fui andando, perfeitamente calmo, sem encontrar nada no caminho, a não ser uma ou outra rês deitada na rua e que se levantava à minha passagem. Cheguei assim até perto do patamar da matriz, quando um bicho medonho, quase do tamanho de um jumento, com os olhos de fogo e dentes enormes, se botou a mim, como se me quisesse devorar. Tomei um susto pavoroso. Pulei para trás como um gato. Só tive tempo de gritar pelo nome de Nossa Senhora e arrancar o quicé. O bicho estava em cima de mim, danado. Mandei-lhe o ferro de rijo. As primeiras facadas perderam-se e o maldito, de um tapa, arrancou-me o peito da camisa. Fugi o corpo de banda e toquei-lhe a faca mesmo com vontade. Nisto ouvi um grito horroroso, que me fez arrepiar os cabelos.

 

- Não me mate, seu Macedo! Não me mate que eu sou a Joana do padre Francisco.

 

Era a Joana mesmo, minha gente. Estava diante de mim nua em pelo, suja de terra, com o sangue a escorrer de uma facada do lado esquerdo. Eu tinha desencantado a bicha...

 

- E depois?

 

- Depois a Joana confessou-me tudo. Era castigada, por ser amiga do vigário, há muitos anos. Todas as sextas-feiras, houvesse o que houvesse, tinha de cumprir aquela penitência: saía de casa, à meia-noite, e quando chegava a uma encruzilhada, tirava a roupa e espojava-se no chão como uma besta. Imediatamente, virava um bicho feroz e partia a galope para correr as cinco partes do mundo, até o dia clarear. Só de manhãzinha voltava a ser gente. Mas, agora, ficara livre de tudo, porque eu havia quebrado o encanto...

 

- Isso não foi sonho, seu Macedo? - Perguntou um gracioso.

 

- Sonho? Eu também pensei que fosse sonho quando acordei no dia seguinte. Mas, logo me convenci de que tudo era a pura realidade. Fui à casa da Joana e encontrei-a muito doente, estirada numa rede. Dizia ela às mulheres que lá estavam que lhe tinha dado uma dor, de repente, numa costela, do lado esquerdo.

 

Mas, a mim, quando ficamos sós, pediu-me pelo amor de Deus, por alma de minha mãe, que não dissesse nada a ninguém. Jurei. E só agora, depois que ela e o padre já estão com os ossos brancos, é que eu me atrevo a contar a história.

 

Acabou, triunfante. Tomou o seu copinho de cachaça e saiu trôpego, apoiando-se à bengala.

 

- Cabra velho mentiroso! - Disseram os outros em coro, mal o viram pelas costas.

 

- Mentiroso, sim, lá isso é - sentenciou seu Bento gravemente. - Mas, ninguém me tira da cabeça que, desta vez, o Macedo se esqueceu de mentir. - . Se essa história não é verdadeira, já vi coisa parecida.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 13 de junho de 2022

DENTRO DA NOITE (CONTO DO CARIOCA JOÃO DO RIO)

DENTRO DA NOITE

João do Rio

 

— Então causou sensação?

 

— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela, coitadita! Parecia louca por ti, e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente, havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.

 

— Contra mim?

 

Podia ser contra a pureza da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar desvairado...

 

— Eu tenho o ar desvairado?

 

— Absolutamente desvairado.

 

— Vê-se?

 

— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queiroz, o mais elegante artista desta terra, nem trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?

 

O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados d'água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima -o que falava mais- dizia para o outro:

 

— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?

 

O outro sorriu desanimado.

 

— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise. E como o gordo esperasse:

 

— Oh! Meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.

 

— Mas que é isto, Rodolfo?

 

— Que é isto! E' o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.

 

— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto...

 

O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais -a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.

 

— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher - a beleza dos braços das Oréadas pintadas por Botticeli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beija-los, de acaricia-los, mas principalmente de faze-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, aperta-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei -uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraigou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espeta-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de coze-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.

 

— Que horror!

 

— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauteríe da viscondessa de Lages, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços - oh! Que braços, Justino, que braços! - Estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me -«Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?». Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. -«Oh! Não! Fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço». Sabes como é pura a Clotilde. A pobresita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: -«Se não quer que eu mostre os braços porque não me disse a mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?». -«É, é isso, Clotilde». E rindo -como esse riso devia parecer idiota! - Continuei «É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete». -«Está louco, Rodolfo?». -«Que tem?». -«Vai fazer-me doer». -«Não dói». -«E o sangue?». -«Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento». E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah! Meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro «Bem, Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!». E os seus dois braços tremiam.

 

Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente -«Mau!».

 

Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o pensamento a dizer nunca mais farei essa infâmia! Todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror...

 

Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.

 

— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marques de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper-civilisado, contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.

 

O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.

 

— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. É lúgubre.

 

— Então continuaste?

 

— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: -«Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa».

 

Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei.

 

Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?...

 

Então depois, Justino, sabes? Foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: -«Fez sangue, ontem?». E ela pálida e triste, num suspiro de rola: «Fez...». Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, á noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza!...

 

De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado, e indagou:

 

— Mas então como te saíste?

 

— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. «Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te». E lá de dentro: «Já vou, mãe». Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho pai desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.

 

— E fugiste?

 

— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras ideias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o sossobramento total. Para esquece-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.

 

A pedir, a rogar um instante de calma eu corria ás vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.

 

A voz do desvairado tornara-se metálica, outra vez. De novo, porém a envolveu um tremor assustado.

 

— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...

 

De repente, num entrechocar de todos os vagões, o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loura com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.

 

— Adeus.

 

— Saltas aqui?

 

— Salto.

 

— Mas que vais fazer?

 

— Não posso, deixa-me! Adeus!

 

Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loura. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, em que estava a menina loura. Mas o comboio rasgara a treva com outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d'água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 12 de junho de 2022

A CARTEIRA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A CARTEIRA

Machado de Assis

 

...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:

 

- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.

 

- É verdade, concordou Honório envergonhado.

 

Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.

 

- Tu agora vais bem, não? Dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.

 

- Agora vou, mentiu o Honório.

 

A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.

 

  1. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.

 

Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.

 

- Nada, nada.

 

Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.

 

A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. Da Assembleia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.

 

Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, - enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.

 

Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.

 

Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? Era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.

 

"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele.

 

Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.

 

A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu.

 

"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."

 

Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.

 

- Nada.

 

- Nada?

 

- Por quê?

 

- Mete a mão no bolso; não te falta nada?

 

- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?

 

- Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.

 

Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.

 

- Mas conheceste-a?

 

- Não; achei os teus bilhetes de visita.

 

Honório deu duas voltas, e foi mudar de toalete para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 11 de junho de 2022

O SOLDADO JACOB (CONTO DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

O SOLDADO JACOB

Medeiros e Albuquerque

 

Não lhes farei uma crônica de Paris, porque, enfastiado de rumor e movimento, tranquei-me no meu simples aposento de estudante e lá fiquei durante duas semanas. É verdade que esse tempo foi bastante para cair um ministério e subir outro. Mas, quer a queda, quer a subida, nada têm de interessante. Assim, limito-me a contar-lhes uma visita que fiz ao Hospital da "Charité", da qual me ficou pungente recordação.

 

O Hospital da "Charité" é dirigido pelo célebre psiquiatra Dr. Luys, cujos estudos recentes sobre o magnetismo, tanta discussão têm provocado. De fato, o ilustre médico tem ressuscitado, com o patrocínio do seu alto valor científico, teorias que pareciam definitivamente sepultadas. Não é delas, porém, que lhes quero falar.

 

Havia no hospital, há vinte e três anos, um velho soldado maníaco, que eu, como todos os médicos que frequentam o estabelecimento, conhecia bastante. Era um tipo alto, moreno, anguloso, de longos cabelos brancos. O que tornava extraordinária a sua fisionomia era o contraste entre a tez carregada, os dentes e os cabelos alvíssimos, de um branco de neve imaculada, e os indescritíveis olhos em fogo, ardentes, e profundos. A neve daqueles fios alvos derramados sobre os ombros e o calor daqueles olhos que porejavam brasas atraíam, invencíveis, a atenção para o rosto do velho.

 

Havia, porém, outra cousa para prendê-la mais. Constantemente, um gesto brusco e mecânico, andando ou parado, os seus braços encolhiam-se e estendiam-se, nervosos, repetindo alguma cousa que parecia constantemente querer cair para cima dele. Era um movimento de máquina, um solavanco rítmico de pistão, contraindo-se e distendendo-se, regular e automaticamente. Sentia-se bem, à mais simples inspeção, que o velho tinha diante de si um fantasma qualquer, qualquer, alucinação do seu cérebro demente - e forcejava por afastá-la. Às vezes quando os seus gestos eram mais bruscos, o rosto assumia um paroxismo tal de pavor, que ninguém se furtava à impressão terrificante de tal cena. Os cabelos ouriçavam-se sobre a sua cabeça (era um fenômeno tão francamente visível, que nós o seguíamos com os olhos) e de todas as rugas daquele rosto amorenado desprendia-se um tal influxo de pavor e a face lhe tremia de tal sorte, que, na sua passagem, bruscamente, fazia-se um silêncio de morte.

 

Os que entram pela primeira vez em uma clínica de moléstias mentais têm a pergunta fácil. Vendo fisionomias estranhas e curiosas, tiques e manias que julgam raras, multiplicam as interrogações, querendo tudo saber, tudo indagar. Geralmente as explicações são simples e parecem desarrazoadas. Uma mulher que se expande em longas frases de paixão e arrulha e geme soluços de amor, com grandes atitudes dramáticas, - todos calculam, ao vê-la, que houve talvez, como causa de sua loucura, algum drama pungentíssimo.

 

Indagado, vem-se a saber que o motivo da sua demência foi alguma queda que interessou o cérebro. E esse simples traumatismo teve a faculdade de desarranjar de um modo tão estranho a máquina intelectual, imprimindo-lhe a mais bizarra das direções.

 

Assim, os que frequentam clínicas psiquiátricas por simples necessidade de ofício, esquecem frequentemente este lado pitoresco das cenas a que assistem e, desde que o doente não lhes toca em estudo, desinteressam-se de multiplicar interrogações a seu respeito. Era isto o que me tinha sucedido, acerca do velho maníaco.

 

Ele tinha livre trânsito em todo o edifício; era visto a todo instante, ora aqui, ora ali, e ninguém lhe prestava grande atenção. Da sua história nunca me ocorrera indagar cousa alguma.

 

Uma vez, porém, eu vim a sabê-la involuntariamente.

 

Nós estávamos no curso. O professor Luys dissertava sobre a conveniência das intervenções cirúrgicas na idiotia e na epilepsia. Na sala estavam três idiotas: dois homens e uma mulher e cinco casos femininos de epilepsia. O ilustre médico discorria com a sua clareza e elevação habituais, prendendo-nos todos à sua palavra.

 

Nisto, entretanto, o velho maníaco, conseguindo iludir a atenção do porteiro, entrou. No seu gesto habitual de repulsa, cruzou a aula, afastando sempre o imaginário vulto do espectro, que a cada passo lhe parecia embargar o caminho. Houve, porém, um momento em que a sua fisionomia revelou um horror tão profundo, tão medonho, tão pavoroso, que de um arranco as cinco epiléticas ergueram-se do banco, uivando de terror, uivando lugubremente como cães, e logo após atiraram-se por terra, babando, escabujando, entremordendo-se com as bocas brancas de espuma, enquanto os membros, em espasmos, agitavam-se furiosamente.

 

Foi de uma dificuldade extrema separar aquele grupo demoníaco, de que, sem tê-lo visto, ninguém poderá fazer uma ideia exata.

 

Só, entretanto, os idiotas, de olhos serenos, acompanhavam tudo, fitando sem expressão o que se passava diante deles.

 

Um companheiro, ao sairmos nesse dia do curso, contou-me a história do maníaco, chamado em todo o hospital o "soldado Jacob". A história era simplíssima.

 

Em 1870, por ocasião da guerra franco-prussiana, sucedera-lhe, em uma das pelejas em que entrara, rolar, gravemente ferido, no fundo de um barranco. Caiu sem sentidos, com as pernas dilaceradas e todo o corpo chagado da queda. Caiu, deitado de costas, de frente para o alto, sem poder mover-se. Ao voltar a si, viu, porém, que tinha sobre si um cadáver, que, pela pior das circunstâncias, estava deitado justamente sobre seu corpo, rosto a rosto, frente a frente.

 

Era a vinte metros ou mais abaixo do nível da estrada. O barranco constituía um extremo afunilado, do qual não havia meio de fugir. Não se podia afastar o defunto. Por força ele havia de descansar ali. Demais, o soldado Jacob, semimorto, não conservava senão o movimento dos braços e esse mesmo muito fraco. O corpo - uma chaga imensa - não lhe obedecia à vontade: jazia inerte.

 

Como deve ter sido medonha aquela irremissível situação!

 

Ao princípio, cobrando um pouco de esperança, ele procurou ver se o outro não estaria apenas desmaiado; e sacudiu-o vigorosamente - com o fraco vigor dos seus pobres braços tão feridos. Depois, cansado, não os podendo mais mover, tentou ainda novo esforço, mordendo o soldado caído em plena face. Sentiu, com uma repugnância de nojo sem nome, a carne fria e viscosa do morto - e ficou com a boca cheia de fios grossos da barba do defunto, que se haviam desprendido. Um pânico enorme gelou-lhe então o corpo, ao passo que uma náusea terrível revolvia-lhe o estômago...

 

Desde esse instante, foi um suplício que não se escreve - nem mesmo, seja qual for a capacidade da imaginação, - se chega a compreender bem! O morto parecia enlaçar-se a ele; parecia abafá-lo com o peso, esmagá-lo debaixo de si, com uma crueldade deliberada. Os olhos vítreos abriam-se sobre os seus olhos, arregalados em uma expressão sem nome. A boca assentava-se sobre a sua boca, num beijo fétido, asqueroso...

 

Para lutar, ele só tinha um recurso: estender os braços, suspendendo a alguma distância o defunto. Mas os membros cediam ao cansaço e vinham, aos poucos, descendo, descendo, até que de novo as duas caras se tocavam. E o horrível era a duração dessa descida, o tempo que os braços vinham vergando de manso, sem que ele, cada vez sentindo mais a aproximação, pudesse evitá-la! Os olhos do cadáver pareciam ter uma expressão de mofa. Na boca, via-se a língua empastada, entre coalhos negros de sangue, e a boca parecia ter um sorriso hediondo de ironia...

 

* * *

 

Quanto durou esta peleja? Poucas horas talvez, para quem as pudesse contar friamente, longe dali. Para ele, foram eternidades.

 

O cadáver teve, entretanto, tempo de começar a sua decomposição. Da boca, primeiro às gotas e depois em fio, começou a escorrer uma baba esquálida, um líquido infecto e sufocante que molhava a barba, a face e os olhos do soldado, deitado sempre, e cada vez mais forçosamente imóvel, não só pelas feridas, como também pelo terror, de instante em instante mais profundo.

 

Como o salvaram? Por acaso. A cova em que ele estava era sombria e profunda. Soldados que passavam, suspeitosos de que houvesse ao fundo algum rio, atiraram uma vasilha amarrada a uma corda. Ele sentiu o objeto, puxou-o repetidas vezes, dando sinal da sua presença, e foi salvo.

 

Nos primeiros dias, durante o tratamento das feridas, pôde contar o suplício horroroso por que passara. Depois, a lembrança persistente da cena encheu-lhe todo o cérebro. Vivia a afastar diante de si o cadáver recalcitrante, que procurava sempre abafá-lo de novo sob o seu peso asqueroso...

 

* * *

 

Anteontem, porém, ao entrar no hospital achei o soldado Jacob preso num leito, com a camisola de força, procurando em vão agitar-se, mas com os olhos mais acesos do que nunca - e mais que nunca com a fisionomia contorcida por um terror inominado e louco.

 

Acabava de estrangular um velho guarda, apertando-o contra uma parede, com o seu gesto habitual de repulsa. Arrancaram-lhe a vítima das mãos assassinas, inteiramente inerte - morta sem que tivesse podido proferir uma só palavra.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 10 de junho de 2022

A BIBLIOTECA (CONTO DO CARIOCA LIMA BARRETO)

A BIBLIOTECA

Lima Barreto

 

À proporção que avançava em anos, mais nítidas lhe vinham as reminiscências das cousas da casa paterna. Ficava ela lá pelas bandas da Rua do Conde, por onde passavam então as estrondosas e fagulhentas "maxambombas" da Tijuca. Era um casarão grande, de dois andares, rés-do-chão, chácara cheia de fruteiras, rico de salas, quartos, alcovas, povoado de parentes, contraparentes, fâmulos, escravos; e a escada que servia os dois pavimentos, situada um pouco além da fachada, a desdobrar-se em toda a largura do prédio, era iluminada por uma grande e larga claraboia de vidros multicores. Todo ele era assoalhado de peroba de Campos, com vastas tábuas largas, quase da largura da tora de que nasceram; e as esquadrias, portas, janelas, eram de madeira de lei. Mesmo a cocheira e o albergue da sege eram de boa madeira e tudo coberto de excelentes e pesadas telhas. Que cousas curiosas havia entre os seus móveis e alfaias? Aquela mobília de jacarandá-cabiúna com o seu vasto canapé, de três espaldares, ovalados e vastos, que mais parecia uma cama que mesmo um móvel de sala; aqueles imensos consolos, pesados, e ainda mais com aqueles enormes jarrões de porcelana da Índia que não vemos mais; aqueles desmedidos retratos dos seus antepassados, a ocupar as paredes de alto abaixo - onde andava tudo aquilo? Não sabia... Vendera ele, aqueles objetos? Alguns; e dera muitos.

 

Umas cousas, porém, ficaram com o irmão que morrera cônsul na Inglaterra e lá deixara a prole; outras, com a irmã que se casara para o Pará... Tudo, enfim, desaparecera. O que ele estranhava ter desaparecido eram as alfaias de prata, as colheres, as facas, o coador de chá... E o espevitador de velas? Como ele se lembrava desse utensílio obsoleto, de prata!

 

Era com ternura que se recordava dele, nas mãos de sua mãe, quando, nos longos serões, na sala de jantar, à espera do chá - que chá! - Ele o via aparar os morrões das velas do candelabro, enquanto ela, sua mãe, não interrompia a história do Príncipe Tatu, que estava contando...

 

A tia Maria Benedita, muito velha, ao lado, sentada na estreita cadeira de jacarandá, tendo o busto ereto, encostado ao alto espaldar, ficava do lado, com os braços estendidos sobre os da cadeira, o tamborete aos pés, olhando atenta aquela sessão familiar, com o seu agudo olhar de velha e a sua hierática pose de estátua tebana tumular. Eram os nhonhôs e nhanhãs, nas cadeiras; e as crias e molecotes acocorados no assoalho, a ouvir... Era menino...

 

O aparelho de chá, o usual, o de todo o dia, como era lindo! Feito de uma louça negra, com ornatos em relevo, e um discreto esmalte muito igual de brilho - donde viera aquilo? Da China, da Índia?

 

E a gamela de bacurubu em que a Inácia, a sua ama, lhe dava banho - onde estava? Ah! As mudanças! Antes nunca tivesse vendido a casa paterna...

 

A casa é que conserva todas as recordações de família. Perdida que seja, como que ela se vinga fazendo dispersar as relíquias familiares que, de algum modo, conservavam a alma e a essência das pessoas queridas e mortas... Ele não podia, entretanto, manter o casarão... Foi o tempo, as leis, o progresso...

 

Todos aqueles trastes, todos aqueles objetos, no seu tempo de menino, sem grande valia, hoje valeriam muito... Tinha ainda o bule do aparelho de chá, um escumador, um guéridon com trabalho de embutido... Se ele tivesse (insistia) conservado a casa, tê-los-ia todos hoje, para poder rever o perfil aquilino, duro e severo do seu pai, tal qual estava ali, no retrato de Agostinho da Mota, professor de academia; e também a figurinha de Sèvres que era a sua mãe em moça, mas que os retratistas da terra nunca souberam pôr na tela. Mas não pôde conservar a casa... A constituição da família carioca foi insensivelmente se modificando; e ela era grande demais para a sua. De resto, o inventário, as partilhas, a diminuição de rendas, tudo isso tirou-a dele. A culpa não era sua, dele, era da marcha da sociedade em que vivia...

 

Essas recordações lhe vinham sempre e cada vez mais fortes, desde os quarenta e cinco anos; estivesse triste ou alegre, elas lhe acudiam. Seu pai, o Conselheiro Fernandes Carregal, tenente-coronel do Corpo de Engenheiros e lente da Escola Central, era filho do sargento-mor de engenharia e também lente da Academia Real Militar que o Conde de Linhares, ministro de Dom João VI, fundou em 1810, no Rio de Janeiro, com o fim de se desenvolverem entre nós os estudos de ciências matemáticas, físicas e naturais, como lá diz o ato oficial que a instituiu. Desta academia todos sabem como vieram a surgir a atual Escola Politécnica e a extinta Escola Militar da Praia Vermelha. O filho de Carregal, porém, não passara por nenhuma delas; e, apesar de farmacêutico, nunca se sentira atraído pela especialidade dos estudos do pai. Este dedicara-se, a seu modo e ao nosso jeito, à Química. Tinha por ela uma grande mania... bibliográfica. A sua biblioteca a esse respeito era completa e valiosa. Possuía verdadeiros "incunábulos", se assim se pode dizer, da química moderna. No original ou em tradução, lá havia preciosidades. De Lavoisier, encontravam-se quase todas as memórias, além do seu extraordinário e sagacíssimo Traité Élémentaire de Chimie, présenté dans un ordre et d'après les découvertes modernes.

 

O velho lente, no dizer do filho, não podia pegar nesse respeitável livro que não fosse tomado de uma grande emoção.

 

— Veja só meu filho, como os homens são maus! Lavoisier publicou esta maravilhosa obra no início da Revolução, a qual ele sinceramente aplaudiu... Ela o mandou para o cadafalso—sabe você por quê?

 

— Não, papai.

 

— Porque Lavoisier tinha sido uma espécie de coletor ou cousa parecida no tempo do rei. Ele o foi, meu filho, para ter dinheiro com que custeasse as suas experiências. Veja você como são as cousas e como é preciso ser mais do que homem para bem servir aos homens...

 

Além desta gema que era a sua menina dos olhos, o Conselheiro Carregal tinha também o Proust, Novo Sistema de Filosofia Química; o Priestley, Expériences sur les différentes espèces d'air; as obras de Guyton de Morveau; o Traité de Berzelius, tradução de Hoefer e Esslinger; a Statique Chimique do grande Berthollet; a Química Orgânica de Liebig, tradução de Gerhardt - todos livros antigos e sólidos, sendo dentre eles o mais moderno as Lições de Filosofia Química, de Würtz, que são de 1864; mas, o estado do livro dava a entender que nunca tinham sido consultadas. Havia mesmo algumas obras de alquimia, edições dos primeiros tempos da tipografia, enormes, que exigem ser lidas em altas escrivaninhas, o leitor de pé, com um burel de monge ou nigromante; e, entre os desta natureza, lá estava um exemplar do - Le Livre des Figures Hiéroglyphiques que a tradição atribui ao alquimista francês Nicolau Flamel.

 

Sobravam, porém, além destes, muitos outros livros de diferente natureza, mas também preciosos e estimáveis: um exemplar da Geometria de Euclides, em latim, impresso em Upsal, na Suécia, nos fins do século XVI; os Principia de Newton, não a primeira edição, mas uma de Cambridge muito apreciada; e as edições princeps da Méchanique Analytique, de Lagrange, e da Géométrie Descriptive, de Monge.

 

Era uma biblioteca rica assim de obras de ciências físicas e matemáticas que o filho do Conselheiro Carregal, há quarenta anos para cinquenta, piedosamente carregava de casa em casa, aos azares das mudanças desde que perdera o pai e vendera o casarão em que ela quietamente tinha vivido durante dezena de anos, a gosto e à vontade.

 

Poderão supor que ela só tivesse obras dessa especialidade; mas tal não acontecia. Havia as de outros feitios de espírito. Encontravam-se lá os clássicos latinos; a Voyage autour du Monde de Bougainville; uma Nouvelle Héloise, de Rousseau, com gravuras abertas em aço; uma linda edição dos Lusíadas, em caracteres elzevirianos; e um exemplar do Brasil e a Oceania, de Gonçalves Dias, com uma dedicatória, do próprio punho do autor, ao Conselheiro Carregal.

 

Fausto Carregal, assim era o nome do filho, até ali nunca se separara da biblioteca que lhe coubera como herança. Do mais que herdara, tudo dissipara, bem ou mal; mas os livros do conselheiro, ele os guardara intatos e conservados religiosamente, apesar de não os entender. Estudara alguma cousa, era até farmacêutico, mas sempre vivera alheado do que é verdadeiramente a substância dos livros— o pensamento e a absorção da pessoa humana neles.

 

Logo que pôde, arranjou um emprego público que nada tinha a ver com o seu diploma, afogou-se no seu ofício burocrático, esqueceu-se do pouco que estudara, chegou a chefe de seção, mas não abandonou jamais os livros do pai que sempre o acompanharam, e as suas velhas estantes de vinhático com incrustação de madrepérola.

 

A sua esperança era que um dos seus filhos os viesse a entender um dia; e todo o seu esforço de pai sempre se encaminhou para isso. O mais velho dos filhos, o Álvaro, conseguiu ele matriculá-lo no Pedro II; mas logo, no segundo ano, o pequeno meteu-se em calaçarias de namoros, deu em noivo e, mal fez dezoito anos, empregou-se nos correios, praticante pro-rata, casando-se daí em pouco. Arrastava agora uma vida triste de casal pobre, moço, cheio de filhos, mais triste era ele ainda porquanto, não havendo alegria naquele lar, nem por isso havia desarmonia. Marido e mulher puxavam o carro igualmente...

 

O segundo filho não quisera ir além do curso primário. Empregara-se logo em um escritório comercial, fizera-se remador de um clube de regatas, ganhava bem e andava pelas tolas festas domingueiras de sport, com umas calças sungadas pelas canelas e um canotier muito limpo, tendo na fita uma bandeirinha idiota.

 

A filha casara-se com um empregado da Câmara Municipal de Niterói e lá vivia.

 

Restava-lhe o filho mais moço, o Jaime, tão bom. tão meigo e tão seu amigo, que lhe pareceu, quando veio ao mundo, ser aquele que estava destinado a ser o inteligente, o intelectual da família, o digno herdeiro do avô e do bisavô.

 

Mas não foi; e ele se lembrava agora como recomendava sempre à mulher, nos primeiros anos de vida do caçula, ao ir para a repartição:

 

— Irene, cuida bem do Jaime! Ele é que vai ler os papéis do meu pai.

 

Porque o pequeno, em criança, era tão doentinho, tão mirrado, apesar dos seus olhos muito claros e vivos, que o pai temia fosse com ele a sua última esperança de um herdeiro capaz da biblioteca do conselheiro.

 

Jaime tinha nascido quando o mais velho entrava nos doze anos; e o inesperado daquela concepção alegrava-lhe muito, mas inquietara a mãe.

 

Pelos seus quatro anos de idade, Fausto Carregal já tinha podido ver o desenvolvimento dos dois outros seus filhos varões e havia desesperado de ver qualquer um deles entender, quer hoje ou amanhã, os livros do avô e do bisavô, que jaziam limpos, tratados, embalsamados, nos jazigos das prateleiras das estantes de vinhático, à espera de uma inteligência, na descendência dos seus primeiros proprietários, para de novo fazê-los voltar à completa e total vida do pensamento e da atividade mental fecunda.

 

Certo dia, lembrando-se de seu pai em face das esperanças que depositava no seu filho temporão, Fausto Carregal considerou que, apesar do amor de seu progenitor à Química, nunca ele o vira com éprourettes, com copos graduados, com retortas. Eram só livros que ele procurava. Como os velhos sábios brasileiros, seu pai tinha horror ao laboratório, à experiência feita com as suas mãos, ele mesmo...

 

O seu filho, porém, o Jaime, não seria assim. Ele o queria com o maçarico, com o bico de Bunsen, com a baqueta de vidro, com o copo de laboratório...

 

— Irene tu vais ver como o Jaime vai além do avô! Fará descobertas.

 

Sua mulher, entretanto, filha de um clínico que tivera fama quando moço, não tinha nenhum entusiasmo por essas cousas. A vida, para ela, se resumia em viver o mais simplesmente possível. Nada de grandes esforços, ou mesmo de pequenos, para se ir além do comum de todos; nada de escaladas, de ascensões; tudo terra-a-terra, muito cá embaixo... Viver, e só! Para que sabedorias? Para que nomeadas? Quase nunca davam dinheiro e quase sempre desgostos. Por isso, jamais se esforçou para que os seus filhos fossem além do ler, escrever e contar; e isso mesmo a fim de arranjarem um emprego que não fosse braçal, pesado ou senil.

 

O Jaime cresceu sempre muito meigo, muito dócil, muito bom; mas com venetas estranhas. Implicava com uma vela acesa em cima de um móvel porque lhe pareciam os círios que vira em torno de um defunto, na vizinhança; quando trovejava ficava a um canto calado, temeroso; o relâmpago fazia-o estremecer de medo, e logo após, ria-se de um modo estranho... Não era, contudo, doente; com o crescimento, até adquirira certa robustez. Havia noites, porém, em que tinha uma espécie de ataque, seguido de um choro convulso, uma cousa inexplicável que passava e voltava sem causa, nem motivo. Quando chegou aos sete anos, logo o pai quis pôr-lhe na mão a cartilha, porquanto vinha notando com singular satisfação a curiosidade do filho pelos livros, pelos desenhos e figuras, que os jornais e revistas traziam. Ele os contemplava horas e horas, absorvido, fixando nas gravuras os seus olhos castanhos, bons, leais...

 

Pôs-lhe a cartilha na mão:

 

— "A-e-i-o-u" - diga: "a".

 

O pequeno dizia: "a"; o pai seguia: "e"; Jaime repetia: "e"; mas quando chegava a "o", parecia que lhe invadia um cansaço mental, enfarava-se subitamente, não queria mais atender, não obedecia mais ao pai e, se este insistia e ralhava, o filho desatava a chorar:

 

— Não quero mais, papaizinho! Não quero mais!

 

Consultou médicos amigos. Aconselharam-no esperar que a criança tivesse mais idade. Aguardou mais um ano, durante o qual, para estimular o filho, não cessava de recomendar:

 

—Jaime, você precisa aprender a ler. Quem não sabe ler, não arranja nada na vida.

 

Foi em vão. As cousas se vieram a passar como da primeira vez. Aos doze anos, contratou um professor paciente, um velho empregado público aposentado, no intuito de ver se instilava inteligência do filho o mínimo de saber ler e escrever. O professor começou com toda a paciência e tenacidade; mas, a criança que era incapaz de ódio até ali, perdeu a doçura, a meiguice para com o professor.

 

Era falar-lhe no nome, a menos que o pai estivesse presente, ele desandava em descomposturas, em doestes, em sarcasmos ao físico e às maneiras do bom velho. Cansado, o antigo burocrata, ao fim de dois anos, despediu-se tendo conseguido que Jaime soletrasse e contasse alguma cousa.

 

Carregal meditou ainda um remédio, mas não encontrou. Consultou médicos, amigos, conhecidos. Era um caso excepcional; era um caso mórbido esse de seu filho. Remédio, se um houvesse, não existia aqui; só na Europa... Não podia, o pequeno, aprender bem, nem mesmo ler, escrever, contar!... Oh! Meu Deus!

 

A conclusão lhe chegou sem choque, sem nenhuma brusca violência; chegou sorrateiramente, mansamente, pé ante pé, devagar, como uma conclusão fatal que era.

 

Tinha o velho Carregal, por hábito, ficar na sala em que estavam os livros e as estantes do pai, a ler, pela manhã, os jornais do dia. Ã proporção que os anos se passavam e os desgostos aumentavam-lhe n'alma, mais religiosamente ele cumpria essa devoção à memória do pai. Chorava às vezes de arrependimento, vendo aquele pensamento todo, ali sepultado, mas ainda vivo, sem que, entretanto, pudesse fecundar outros pensamentos... Por que não estudara?

 

Dava-se assim, com aquela devoção diária, a ele mesmo, a ilusão de que, se não compreendia aqueles livros profundos e antigos, os respeitava e amava como a seu pai, esquecido de que para amá-los sinceramente era preciso compreendê-los primeiro. São deuses os livros, que precisam ser analisados, para depois serem adorados; e eles não aceitam a adoração senão dessa forma...

 

Naquela manhã, como de costume, fora para a sala dos livros, ler os jornais; mas não os pôde ler logo.

 

Pôs-se a contemplar os volumes nas suas molduras de vinhático. Viu o pai, o casarão, os moleques, as mucamas, as crias, o fardão do seu avô, os retratos... Lembrou-se mais fortemente de seu pai e viu-o lendo, entre aquelas obras, sentado a uma grande mesa, tomando de quando em quando rapé, que ele tirava às pitadas de uma boceta de tartaruga, espirrar depois, assoar-se num grande lenço de Alcobaça, sempre lendo, com o cenho carregado, os seus grandes e estimados livros.

 

As lágrimas vieram aos olhos daquele velho e avô. Teve de sustê-las logo. O filho mais novo entrava na dependência da casa em que ele se havia recolhido. Não tinha Jaime, porém, por esse tempo, um olhar de mais curiosidade para aqueles veneráveis volumes avoengos. Cheio dos seus dezesseis anos, muito robusto, não havia nele nem angústias, nem dúvidas. Não era corroído pelas ideias e era bem nutrido pela limitação e estreiteza de sua inteligência. Foi logo falando, sem mais detença, ao pai:

 

— Papai, você me dá cinco mil-réis, para eu ir hoje ao football.

 

O velho olhou o filho. Olhou a sua adolescência estúpida e forte, olhou seu mau feitio de cabeça; olhou bem aquele último fruto direto de sua carne e de seu sangue; e não se lembrou do pai. Respondeu:

 

— Dou, meu filho. Dentro em pouco, você terá.

 

E em seguida como se acudisse alguma cousa deslembrada que aquelas palavras lhe fizeram surgir à tona do pensamento, acrescentou com pausa:

 

— Diga a sua mãe que me mande buscar na venda uma lata de querosene, antes que feche. Não se esqueça, está ouvindo!

 

Era domingo. Almoçaram. O filho foi para o football; a mulher foi visitar a filha e os netos, em Niterói; e o velho Fausto Carregal ficou só em casa, pois a cozinheira teve também folga.

 

Com os seus ainda robustos setenta anos, o velho Fausto Fernandes Carregal, filho do tenente-coronel de engenharia, Conselheiro Fernandes Carregal, lente da Escola Central, tendo concertado mais uma vez o seu antigo covaignac inteiramente branco e pontiagudo, sem tropeço, sem desfalecimento, aos dois aos quatro, aos seis, ele só, sacerdotalmente, ritualmente, foi carregando os livros que tinham sido do pai e do avô para o quintal da casa. Amontoou-os em vários grupos, aqui e ali, untou de petróleo cada um, muito cuidadosamente, e ateou-lhes fogo sucessivamente.

 

No começo a espessa fumaça negra do querosene não deixava ver bem as chamas brilharem; mas logo que ele se evolou, o clarão delas, muito amarelo, brilhou vitoriosamente com a cor que o povo diz ser a do desespero…


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 09 de junho de 2022

O BAILE DO JUDEU (CONTO DO PARAENSE INGLÊS DE SOUZA)

O BAILE DO JUDEU

Inglês de Souza

 

Ora, um dia, lembrou-se o Judeu de dar um baile e atreveu-se a convidar a gente da terra, a modo de escárnio pela verdadeira religião de Deus Crucificado, não esquecendo, no convite, família alguma das mais importantes de toda a redondeza da vila. Só não convidou o vigário, o sacristão, nem o andador das almas, e menos ainda o Juiz de Direito; a este, por medo de se meter com a Justiça, e aqueles, pela certeza de que o mandariam pentear macacos.

 

Era de supor que ninguém acudisse ao convite do homem que havia pregado as bentas mãos e os pés de Nosso Senhor Jesus-Cristo numa cruz, mas, às oito horas da noite daquele famoso dia, a casa do Judeu, que fica na rua da frente, a umas dez braças, quando muito, da barranca do rio, já não podia conter o povo que lhe entrava pela porta adentro; coisa digna de admirar-se, hoje que se prendem bispos e por toda parte se desmascaram lojas maçônicas, mas muito de assombrar naqueles tempos em que havia sempre algum temor de Deus e dos mandamentos de sua Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Lá estavam, em plena judiaria, pois assim se pode chamar a casa de um malvado Judeu, o tenente-coronel Bento de Arruda, comandante da guarda nacional, o capitão Coutinho, comissário das terras, o dr. Filgueiras, o delegado de polícia, o coletor, o agente da companhia do Amazonas; toda a gente grada, enfim, pretextando uma curiosidade desesperada de saber se, de fato, o Judeu adorava uma cabeça de cavalo mas, na realidade, movida da notícia da excelente cerveja Bass e dos sequilhos que o Isaac arranjara para aquela noite, entrava alegremente no covil de um inimigo da Igreja, com a mesma frescura com que iria visitar um bom cristão.

 

Era em junho, num dos anos de maior enchente do Amazonas. As águas do rio, tendo crescido muito, haviam engolido a praia e iam pela ribanceira acima, parecendo querer inundar a rua da frente e ameaçando com um abismo de vinte pés de profundidade os incautos transeuntes que se aproximavam do barranco.

 

O povo que não obtivera convite, isto é, a gente de pouco mais ou menos, apinhava-se em frente à casa do Judeu, brilhante de luzes, graças aos lampiões de querosene tirados da sua loja, que é bem sortida. De torcidas e óleo é que ele devia ter gasto suas patacas nessa noite, pois quantos lampiões bem lavadinhos, esfregados com cinza, hão de ter voltado para as prateleiras da bodega.

 

Começou o baile às oito horas, logo que chegou a orquestra composta do Chico Carapana, que tocava violão; do Pedro Rabequinha e do Raimundo Penaforte, um tocador de flauta de que o Amazonas se orgulha. Muito pode o amor ao dinheiro, pois que esses pobres homens não duvidaram tocar na festa do Judeu com os mesmos instrumentos com que acompanhavam a missa aos domingos na Matriz. Por isso dois deles já foram severamente castigados, tendo o Chico Carapana morrido afogado um ano depois do baile e o Pedro Rabequinha sofrido quatro meses de cadeia por uma descompostura que passou ao capitão Coutinho a propósito de uma questão de terras. O Penaforte, que se acautele!

 

Muito se dançou naquela noite e, a falar a verdade, muito se bebeu também, porque em todos os intervalos da dança lá corriam pela sala os copos da tal cerveja Bass, que fizera muita gente boa esquecer os seus deveres. O contentamento era geral e alguns tolos chegavam mesmo a dizer que na vila nunca se vira um baile igual!

 

A rainha do baile era, incontestavelmente, a D. Mariquinhas, a mulher do tenente-coronel Bento de Arruda, casadinha de três semanas, alta, gorda, tão rosada que parecia uma portuguesa. A D. Mariquinhas tinha uns olhos pretos que tinham transtornado a cabeça de muita gente; o que mais nela encantava era a faceirice com que sorria a todos, parecendo não conhecer maior prazer do que ser agradável a quem lhe falava. O seu casamento fora por muitos lastimado, embora o tenente-coronel não fosse propriamente um velho, pois não passava ainda dos cinquenta; diziam todos que uma moça nas condições daquela tinha onde escolher melhor e falava-se muito de um certo Lulu Valente, rapaz dado a caçoadas de bom gosto, que morrera pela moça e ficara fora de si com o casamento do tenente-coronel; mas a mãe era pobre, uma simples professora régia!

 

O tenente-coronel era rico, viúvo e sem filhos e tantos foram os conselhos, os rogos e agrados e, segundo outros, ameaças da velha, que D. Mariquinhas não teve outro remédio que mandar o Lulu às favas e casar com o Bento de Arruda. Mas, nem por isso, perdeu a alegria e amabilidade e, na noite do baile do Judeu, estava deslumbrante de formosura. Com seu vestido de nobreza azul-celeste, as suas pulseiras de esmeraldas e rubis, os seus belos braços brancos e roliços de uma carnadura rija; e alegre como um passarinho em manhã de verão. Se havia, porém, nesse baile, alguém alegre e satisfeito de sua sorte, era o tenente-coronel Bento de Arruda que, sem dançar, encostado aos umbrais de uma porta, seguia com o olhar apaixonado todos os movimentos da mulher, cujo vestido, às vezes, no rodopiar da valsa, vinha roçar-lhe as calças brancas, causando-lhe calafrios de contentamento e de amor.

 

Às onze horas da noite, quando mais animado ia o baile, entrou um sujeito baixo, feio, de casacão comprido e chapéu desabado, que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do casaco. Foi direto a D. Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para uma contradança que ia começar.

 

Foi muito grande a surpresa de todos, vendo aquele sujeito de chapéu na cabeça e mal-amanhado, atrever-se a tirar uma senhora para dançar, mas logo cuidaram que aquilo era uma troça e puseram-se a rir, com vontade, acercando-se do recém-chegado para ver o que faria. A própria mulher do Bento de Arruda ria-se a bandeiras despregadas e, ao começar a música, lá se pôs o sujeito a dançar, fazendo muitas macaquices, segurando a dama pela mão, pela cintura, pelas espáduas, nos quase abraços lascivos, parecendo muito entusiasmado. Toda a gente ria, inclusive o tenente-coronel, que achava uma graça imensa naquele desconhecido a dar-se ao desfrute com sua mulher, cujos encantos, no pensar dele, mais se mostravam naquelas circunstâncias.

 

- Já viram que tipo? Já viram que gaiatice? É mesmo muito engraçado, pois não é? Mas quem será o diacho do homem? E essa de não tirar o chapéu? Ele parece ter medo de mostrar a cara.... Isto é alguma troça do Manduca Alfaiate ou do Lulu Valente! Ora, não é! Pois não se está vendo que é o imediato do vapor que chegou hoje! E um moço muito engraçado, apesar de português! Eu, outro dia, o vi fazer uma em Óbidos, que foi de fazer rir as pedras! Aguente, dona Mariquinhas, o seu par é um decidido! Toque para diante, seu Rabequinha, não deixe parar a música no melhor da história!

 

No meio de estas e outras exclamações semelhantes, o original cavalheiro saltava, fazia trejeitos sinistros, dava guinchos estúrdios, dançava desordenadamente, agarrando a dona Mariquinhas, que já começava a perder o fôlego e parara de rir. O Rabequinha friccionava com força o instrumento e sacudia nervosamente a cabeça. O Carapana dobrava-se sobre o violão e calejava os dedos para tirar sons mais fortes que dominassem o vozerio; o Pena-forte, mal contendo o riso, perdera a embocadura e só conseguia tirar da flauta uns estrídulos sons desafinados, que aumentavam o burlesco do episódio. Os três músicos, eletrizados pelos aplausos dos circunstantes e pela originalidade do caso, faziam um supremo esforço, enchendo o ar de uma confusão de notas agudas, roucas e estridentes, que dilaceravam os ouvidos, irritavam os nervos e aumentavam a excitação cerebral de que eles mesmos e os convidados estavam possuídos.

 

As risadas e exclamações ruidosas dos convidados, o tropel dos novos espectadores, que chegavam em chusma do interior da casa e da rua, acotovelando-se para ver por sobre a cabeça dos outros; sonatas discordantes do violão, da rabeca e da flauta e, sobretudo, os grunhidos sinistramente burlescos do sujeito de chapéu desabado, abafavam os gemidos surdos da esposa de Bento de Arruda, que começava a desfalecer de cansaço e parecia já não experimentar prazer algum naquela dança desenfreada que alegrava tanta gente.

 

Farto de repetir pela sexta vez o motivo da quinta parte da quadrilha, o Rabequinha fez aos companheiros um sinal de convenção e, bruscamente, a orquestra passou, sem transição, a tocar a dança da moda.

 

Um bravo geral aplaudiu a melodia cadenciada e monótona da "varsoviana", a cujos primeiros compassos correspondeu um viva prolongado. Os pares que ainda dançavam retiraram-se, para melhor poder apreciar o engraçado cavalheiro de chapéu desabado que, estreitando então a dama contra o côncavo peito, rompeu numa valsa vertiginosa, num verdadeiro turbilhão, a ponto de se não distinguirem quase os dois vultos que rodopiavam entrelaçados, espalhando toda a gente e derrubando tudo quanto encontravam. A moça não sentiu mais o soalho sob os pés, milhares de luzes ofuscavam-lhe a vista, tudo rodava em torno dela; o seu rosto exprimia uma angústia suprema, em que alguns maliciosos sonharam ver um êxtase de amor.

 

No meio dessa estupenda valsa, o homem deixa cair o chapéu e o tenente-coronel, que o seguiu assustado, para pedir que parassem, viu, com horror, que o tal sujeito tinha a cabeça furada. Em vez de ser homem, era um boto, sim, um grande boto, ou o demônio por ele, mas um senhor boto que afetava, por um maior escárnio, uma vaga semelhança com o Lulu Valente. O monstro, arrastando a desgraçada dama pela porta fora, espavorido com o sinal da cruz feito pelo Bento de Arruda, atravessou a rua, sempre valsando ao som da 'varsoviana" e, chegando à ribanceira do rio, atirou-se lá de cima com a moça imprudente e com ela se atufou nas águas.

 

Desde essa vez, ninguém quis voltar aos bailes do Judeu.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 08 de junho de 2022

O FILÓSOFO (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

O FILÓSOFO

Humberto de Campos

 

 
Educado no Colégio Caraça, o coronel Venâncio Figueira, fazendeiro em Uberaba, havia se contaminado, pouco a pouco, de filosofia e de latim, de modo a preocupar-se, mais do que o necessário, com os graves problemas da vida. Manuseador quotidiano de certos autores profanos, ele se punha, às vezes, a pensar, no alpendre da sua casa de fazenda:

- Sim, senhor! Esses filósofos têm razão! Este mundo é tão desigual, tão cheio de injustiças, de irregularidades clamorosas, que qualquer mortal, encarregado de fazê-lo, o teria feito melhor!

E acentuava, melancólico:

- Este mundo está muito mal feito!...

À noite, porém, reunida a família na sala de jantar, o velho fazendeiro arreganhava os óculos no nariz, tomava a "Bíblia", chegava para mais perto o lampião de querosene, e punha-se a ler, pausado, o "Livro de Jó". E começava, de novo, a meditar, diante destas palavras do capitulo 38:

"4. Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência.

"25 - Quem abriu para a inundação um leito, e um caminho para os relâmpagos e trovões?

"41 - Quem prepara aos corvos o seu alimento, quando os seus filhotes implumes gritam a Deus, e andam vagueando por não terem de comer?"

Certo dia, dominado pelas idéias reacionárias bebidas em autores modernos, passeava o coronel pelo pátio da fazenda, quando, ao ver as andorinhas que voejavam por cima do gado, voltou novamente a raciocinar:

- É isso mesmo, não há duvida! O mundo é muito mal arranjado. Aqui está, por exemplo; este boi. Porque, tendo ele chifres, patas, orelhas, e sendo tão forte, há de viver sempre na terra, a arrastar-se pelo solo, quando aquela andorinha, que não tem nada disso, se locomove, rápida, ligeira, dominando os ares?

Nesse momento, porém, uma andorinha que lhe passava por cima, deixou escapar alguma cousa que lhe fazia sobrecarga, e que foi cair, certeira, na cabeça descoberta do coronel. Este levou a mão instintivamente à calva, e, olhando os dedos brancos daquela indignidade, caiu de joelhos, clamando, arrependido:

- Perdoai-me, Senhor, perdoai-me! O mundo está muito bem organizado! O que nele há, o que nele vive, o que nele existe, foi feito com perfeição, com acerto, com sabedoria!

E levantando-se, limpando a mão:

- Imagine-se que fosse um boi....

Literatura - Contos e Crônicas terça, 07 de junho de 2022

O DUPLO (CONTO DO MARANHENSE COELHO NETO)

O DUPLO

Coelho Neto

 

- Temos, então, um caso de desdobramento da personalidade do meu querido amigo?

- Quem te disse?

- Laura.

Benito Soares ficou um momento encarado no coronel. Por fim, meneando com a cabeça, desabafou contrariando:

- Laura... Laura faz mal em andar contando essa história por aí.

- Que tem?

- Ora! Que tem... Há dias, em casa do Leivas, pouco faltou para que eu rompesse com o Malveiro, a propósito do que se deu comigo, e que lhe contaram não sei onde, entendeu que me devia tomar à sua conta, expondo-me à risota de uns petimetres ridículos que o cercam. Fiz-lhe sentir que não me agradavam os seus remoques e deixei-o com os tais mocinhos, que lhe aplaudem os versos quando ele lhes paga a cerveja ou o chá, aí por essas casas.

Não ando a pregar doutrinas: não sou sectário, não frequento sessões nem leio, sequer, as tais obras de propaganda que pretendem revelar o que se passa no Além da morte. Sou religioso à velha moda, observando a doutrina que aprendi, ainda que não ande beatamente pelas igrejas de círio e ripanço. Cumpro rigorosamente os Mandamentos e os marcos que limitam a minha Crença são os quatro evangelistas; fora de tais "termos" não dou um passo - nem para diante, seguindo os reformadores, que pregam o novo Credo, nem para trás acercando-me de altares pagãos ou adorando ídolos grosseiros. Onde me deixaram meus pais, que foram os meus iniciadores, aí ficarei até morrer.

Contei a Laura a tal história como contaria um acidente qualquer de rua, sem cuidar que ela fizesse do caso assunto de palestra nos salões que frequenta.

O resultado disso é o que se está dando comigo, aborrecendo-me, irritando-me, porque desconfio de todos os olhares e, se alguém sorri à minha passagem, imaginando que comenta o meu caso, fico logo pelos cabelos.

- Mas, afinal, como foi? Comigo podes abrir-te sem receio. Sabes que, além de discreto, não sou dos que zombam do sobrenatural. Os fatos aí estão: produzem-se, reproduzem-se e, se ninguém os explica, muitos dão deles testemunho e provas e eles, efetivamente, manifestam-se visível, sensivelmente.

Os cépticos encolhem os ombros sorrindo, os adversários, à falta de argumentos com que os destruam, bradam contra os que os apregoam. A verdade, porém, é que nos achamos diante de uma porta de bronze que nos veda um grande mistério, ou melhor - Mistério.

Mas já é muito havermos chegado à porta. Sente-se que além dos túmulos, que são limiares de outro mundo, há alguma coisa que... ninguém sabe o que é.

A porta mantém-se fechada, deixando apenas passar um rastinho de luz no qual flutuam indícios, revelações vagas, como átomos nos raios de sol. Mas deixemos as dissertações para mais tarde. Vamos ao teu caso. Foi, então, um desdobramento da tua personalidade...?

- Não sei que foi. Digo-te apenas que passei os minutos mais angustiosos da minha vida.

Saindo do Alvear, subi vagarosamente a Avenida até a Tabacaria Londres, onde comprei charutos e estive um instante a conversar com o Borges sobre coisas da vida.

O Borges anda com a mania dos Marcos; possuí não sei quantos milhões, e espera que a Alemanha recomponha as finanças para aturdir-nos, a nós e ao mundo, com a vida maravilhosa que tem toda em plano. O que me está parecendo é que o pobre está com o juízo em pior estado de que as finanças germânicas. Enfim, deixando o Borges, dirigi-me, sem mais empeços, para a Galeria, onde comprei os jornais.

O meu bonde apareceu logo e logo foi assaltado. Não consegui uma ponta e fiquei entalado no banco da frente, entre um obeso cavalheiro ruivo e uma matrona anafada, dessas que se esparralham.

O bonde partiu e, oprimido pelas duas enxúndias, dificilmente consegui abrir um dos jornais. Pus-me a ler, ou antes: a olhar a página porque, em verdade, a minha atenção vagueava, aí por longe. Os olhos passeavam pelas palavras, sem que o espírito lhe colhesse o sentido, como deve acontecer com os aviadores que veem, de muito alto, todo o panorama de uma cidade em mancha, sem distinguir os bairros, as ruas, os edifícios, apenas o alvejamento das casas, a placa cintilante do mar, o relevo dos montes. Sentia-me atraído por alguma coisa. Voltei página do jornal - a mesma confusão, o mesmo empastamento. Foi então, que levantei a cabeça, olhando em frente e vi, meu amigo, vi...!

- Viste...?

- A mim mesmo, a mim! Eu, eu em pessoa sentado defronte de mim, no banco da frente, que dá costas à plataforma. Era eu, eu! Como refletido em um espelho, e certo estremeci vivamente, incomodando os meus companheiros laterais, porque ambos voltaram-se encarando-se de má sombra.

Pasmado, sem poder desfitar os olhos daquele reflexo, que era, em tudo, eu: nas feições, na atitude, no trajo, não parecido, mas reproduzido em exteriorização, pensei de mim comigo:

"Se tal se dá é que o meu espírito, alma, ou lá o que seja, exalou-se de mim, deixando-me apenas o corpo, como a borboleta deixa o casulo em que se opera a metamorfose. Assim, pois, o que ali se achava, no bonde, era uma massa inerte, sustida pelos dois corpanzis que ladeavam. E, em menos de um segundo, vi todo o horror da cena, que seria cômica, se não fosse trágica, que se daria com a retirada de um daqueles gordos.

Desamparado, o meu corpo vazio tombaria. Dar-se-ia, então, o alarma: todos os passageiros de pé, a verificação da minha morte, o reconhecimento do meu cadáver pelo condutor e a minha entrada fúnebre em casa".

Que angústia, meu amigo! E o outro lá estava em frente a olhar-me, como se gozasse com o meu sofrimento. Lembrei-me, então, de fazer um movimento com os braços, com as mãos; o receio, porém, de ser a minha vontade atendida pelos nervos fez-me hesitar. Mas eu pensava, raciocinava. Sim, mas o corpo não esfria de repente e tais pensamentos e tais raciocínios podiam ser ainda restos de energia d'alma que me houvessem ficado nas células, como fica nas polias o movimento ainda depois do motor parado.

Sentia-me rígido, petrificado e tinha a sensação de frio, como se me fosse congelando, a começar pelos pés. E o outro sempre encarado em mim.

Fiz um esforço supremo como se quisesse levantar o bonde com todos os passageiros que ele continha e, arremessando os braços, pus-me de pé.

A matrona levantou a cabeça com atrevimento e olhou-me com tal carranca que eu pensei que me fosse agatafunhar ou, com a força dos braços, que eram duas coxas, atirar-me do bonde abaixo e o ruivo roncou ameaçadoramente, aprumando a cabeçorra quadrada de ulano com entono de desafio.

Mas que me importavam ameaças A minha alegria era grande e tornou-se maior quando, ao procurar com os olhos o meu outro "eu", não o vi mais.

Teria descido? Não! Não descera. Tornara a mim, atraído pela vontade, na ânsia de viver, no desespero em que me vi, só comparável ao de alguém que, indo ao fundo, sem saber nadar, debate-se agoniadamente conseguindo elevar-se à tona e gritar a socorro.

E tudo isso, meu amigo, não durou, talvez, um minuto e eu guardo de tais instantes a impressão penosa de um século de sofrimento.

Eis o meu caso, o caso que tantos aborrecimentos me tem trazido pela tagarelice de Laura, a quem o contei, e que o repete por aí, a todo o mundo.

E crença que D. Juan de Maraña, encontrando-se, certa noite, com um saimento, perguntou a um dos que conduziam o esquife: – Quem era o morto?" E logo lhe foi respondido:

- É D. Juan de Maraña. Querendo o fidalgo verificar o que lhe dizia o farricoco e outros sinistramente repetiam, afastou o sudário e viu. Efetivamente: o defunto era ele. E tal visão foi que o levou ao arrependimento. Pois comigo a coisa foi num bonde. Eu vi-me, como te estou vendo; a mim, entendes? A mim! Como explicas tal coisa?

- Essas coisas, meu amigo, não se explicam: registam-se, são observações, fatos, elementos para a Ciência do Futuro, que será, talvez, Ciência da Verdade.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 05 de junho de 2022

SOLFIERI (CONTO DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
 

 

SOLFIERI

Álvares de Azevedo

 

Sabeis-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia; no leito da vendida se pendura o crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da crença

Era em Roma. Uma noite, a lua ia bela como vai ela no verão por aquele céu morno. O fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de ***. As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas e a lua de sonolenta, se escondia no leito das nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. - A face daquela mulher era como de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.

Eu me encostei à aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.

Depois, o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu ninguém: saiu. Eu segui-a.

A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no céu e a chuva caía às gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos do órfão.

Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim, ela parou; estávamos num campo.

Aqui, ali, além, eram cruzes que se erguiam entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.

Não sei se adormeci: sei, apenas, que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo, a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.

O frio da noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...

Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres, nada me saciava; no sono da saciedade me vinha aquela visão...

Uma noite e após uma orgia, eu deixara dormida no leito a bela condessa Barbora. Dei um último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera até à última gota do vinho do deleite...

Quando dei acordo de mim, estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o. Era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos mal-apertados... Era uma defunta! E aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida... Era o anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja que, ignoro porque, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...

Sabeis a história de Maria Stuart degolada e do algoz, "do cadáver sem cabeça e do homem sem coração", como a conta Brantôme? - Foi uma idéia singular, a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim. Rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela, como o noivo os despe à noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. O gozo foi fervoroso - cevei-lhe em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito, abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia, contudo, alguma coisa de horrível. O leito de lajes, onde eu passara uma hora de embriaguez, me resfriava. Pude, a custo, soltar-me naquele aperto do peito dela... Nesse instante, ela acordou...

Nunca ouvistes falar de catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos e as faces banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!

A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar, desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário, como uma criança. Ao aproximar-me da porta, topei num corpo. Abaixei-me e olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja, que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta...

Saí. Ao passar a praça encontrei uma patrulha.

- Que levas aí?

A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrão.

- É minha mulher, que vai desmaiada...

- Uma mulher? Mas, essa roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador de cadáveres?

Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.

- É uma defunta

Cheguei meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. - Era a vida, ainda.

- Vede - disse eu.

O guarda chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo... o punhal já estava nu em minhas mãos frias...

- Boa-noite, moço. Podes seguir - disse ele.

Caminhei. - Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço...

Quando eu passei a porta, ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo...

Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos, meus companheiros, que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.

Fechei a moça no meu quarto e abri.

Meia hora depois eu os deixava na sala, bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que não notassem a minha ausência.

Quando entrei no quarto da moça, vi-a erguida. Ria de um rir convulso, como a insânia, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor ouvi-la.

Dois dias e duas noites levou ela de febre, assim.

Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.

À noite, saí. Fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera e paguei-lhe uma estátua dessa virgem.

Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto e, com as mãos, cavei aí um túmulo. Tomei-a, então, pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito, muda e fria, beijei-a e cobri-a, adormecida no sono eterno, com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele,

Um ano, - noite a noite - dormi sobre as lajes que a cobriam... Um dia, o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...

- Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te disse que era uma virgem que dormia?

- E quem era essa mulher, Solfieri?

- Quem era? Seu nome?

- Quem se importa com uma palavra quando sente

que o vinho queima assaz os lábios? Quem pergunta o nome da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?

Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa, quando um dos convivas tomou-o pelo braço.

- Solfieri, não é um conto, isso tudo?

- Pelo inferno, que não! Por meu pai, que era conde e bandido! Por minha mãe que era a bela Messalina das ruas! Pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! - guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Ei-la!

Abriu a camisa e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.

- Vedes-la? Murcha e seca, como o crânio dela.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 03 de junho de 2022

O IMPENITENTE (CONTO DO MARANHENSE ALUÍSIO AZEVEDO)
 

O IMPENITENTE

Aluísio Azevedo

 

Conto-vos o caso como mo contaram.

Frei Álvaro era um bom homem e um mau frade. Capaz de todas as virtudes e de todos os atos de devoção, não tinha, todavia, a heróica ciência domar os impulsos de seu voluptuoso temperamento de mestiço e, a despeito dos constantes protestos que fazia para não pecar, pecava sempre. Como extremo recurso, condenara-se, nos últimos tempos, a não arredar pé do convento. À noite fechava-se na cela, procurando penitenciar-se dos passados desvarios; mas, só reprimir o irresistível desejo de recomeçá-los, era já o maior dos sacrifícios que ele podia impor à sua carne rebelde.

Chorava.

Chorava ardendo de remorsos por não poder levar de vencida os inimigos da sua alma envergonhada; chorava por não ter forças para fazer calar os endemoniados hóspedes do seu corpo, que, dia e noite, lhe amotinavam o sangue. Quanto mais violentamente procurava combate-los, tanto mais viva lhe acometia o espírito a incendiária memória dos seus amores pecaminosos.

E no palpitante cordão de mulheres que, em vertigem, lhe perpassavam cantando diante dos desejos torturados, era Leonília, com seus formosos cabelos pretos, a de imagem mais nítida, mais persistente e mais perturbadora.

Em que dia a vira pela primeira vez e como se fizera amar por ela, não o sei, porque esses monásticos amores só chegam a ser percebidos pelos leigos como eu, quando o fogo já minou de todo e abriu em labareda a lançar fumo até cá fora. À primeira faísca e às primeiras brasas, nunca ninguém, que eu saiba, os pressentiu nem deles suspeitou.

Certo é que, durante belos anos, Frei Álvaro, meia-noite dada, fugia aos muros do seu convento, e, escolhendo escuras ruas, cosendo-se à própria sombra, ia pedir à alcova de Leonília o que não lhe podia dar a solidão da cela.

Pertenceria só ao frade a bela moça? Não o creio.

E ele? seria só dela? Também não, pois reza a lenda donde me vem o caso que, em vários outros pontos da cidade Frei Álvaro era igualmente visto fora de horas, embuçado e suspeito, correndo sem dúvida em busca de profanas consolações daquele mesmo gênero.

Mas, no martírio da reclusão a que por último se votara, era seguro a lembrança de Leonília o seu maior tormento. E assim, aconteceu que, certa noite, à força de pensar nela, foi tal o seu desassossego de corpo e alma, que o frade não pôde rezar, nem pôde dormir, nem pôde ler, nem pôde fazer nada. Com os olhos fechados ou abertos, tinha-a defronte deles, linda de amor, a enlouquecê-lo de saudade e de desejo.

Então, desistindo da cama e dos livros, pôs-se à janela, muito triste, e ficou longo tempo a consultar a noite silenciosa. Lá fora a lua, inda mais triste, iluminava a cidade adormecida e no alto as estrelas pareciam que pestanejavam de tédio. Nada lhe mandava um ar de consolação para aquela infindável tortura de desejar o proibido.

De repente, porém, estremeceu, sem poder acreditar no que viam seus olhos.

Seria verdade ou seria ilusão dos seus atormentados desejos?... La embaixo, no pátio, dentro dos muros do convento, um vulto de mulher passeava sobre o lajedo.

Não podia haver dúvida!... Era uma mulher, uma mulher toda de branco, com a cabeça nua e os longos cabelos negros derramados.

Céus ! E era Leonília!... sim, sim, era ela, nem podiam ser de outra mulher aqueles cabelos tão formosos aquele airoso menear de corpo! Sim! era ela... Mas, como entrara ali?... Como se animara a tanto?

E o frade, sem mais ter mão em si, correu a tomar o chapéu e a capa e lançou-se como um doido para fora da cela.

Atravessou fremente os longos corredores, desgalgou escadaria de pedra e ganhou o pátio.

Mas o vulto já lá não estava.

O monge procurou-o, aflito, por todos os cantos. Não o encontrou.

Correu ao parapeito que dava do alto para a rua, sobre o qual se debruçou ansioso e, com assombro, desde novo o misterioso vulto, agora, lá fora, a passear embaixo, à luz do lampião de gás.

Já impressionado de todo, Frei Álvaro desceu de um relance as escadas do átrio, escalou as grades do mosteiro e saltou à rua.

O vulto já não se achava no mesmo ponto; tinha-se afastado para mais longe. Frei Álvaro atirou-se para lá em disparada, mas o vulto deitou a correr, fugindo na frente dele.

Leonília ! Leonília! Espera! Não me fujas!

O vulto corria sempre, sem responder.

Olha que sou eu! Atende!

Leonília parou um instante, voltou o rosto para trás, sorriu e fugiu de novo quando o monge se aproximava.

Afinal, já não corria, deslizava, como se fora levada pelas frescas virações da noite velha, que lhe desfraldavam as saias e os cabelos flutuantes.

E o monge a persegui-la, ardendo por alcançá-la.

Atende! Atende, flor de minha alma! - suplicava já com a voz quebrada pelo cansaço. - Atende, pelo amor de Deus, que deste modo me matas, criminosa!

Ela, ao escutar-lhe as sentidas vozes, parecia atender, suspendendo o vôo, não por comovida, mas por feminil negaça, a rir, provocadora, braços no ar e o calcanhar suspenso, pronta, mal o frade se chegasse, a desferir nova carreira.

E assim venceram ambos ruas e becos, quebrando esquinas, cortando largos e praças. O frade já tinha perdido a noção do tempo e do lugar e estava prestes a cair exausto quando, vendo a moça tomar certa ladeira muito conhecida deles dois, criou novo ânimo e prosseguiu na empresa, sem afrouxar o passo.

- Vai recolher-se a casa! - concluiu de si para si. Não me quis falar na rua... Ainda bem!

Leonília, com efeito, ao chegar à porta da casa onde outrora o religioso fruía as consolações que o seu mosteiro lhe negava, enfiou por ela e sumiu-se sem ruído.

O frade acompanhou-a de carreira, mas já não a viu no corredor e foi galgando a escada. Encontrou em cima a porta aberta, mas a sala tenebrosa e solitária. Penetrou nela, tateando, e seguiu adiante, sem topar nenhum móvel pelo caminho.

Leonília! chamou ele.

Ninguém lhe respondeu.

O quarto imediato estava também franqueado, também deserto e vazio, mas não tão escuro, graças à luz que vinha da sala do fundo. O religioso não hesitou em precipitar-se para esta; mas, ao chegar à entrada, estacou, soltando um grito de terror.

Gelara-lhe o sangue o que se lhe ofereceu aos olhos. Eriçaram-se-lhe os cabelos; invencível tremor apoderou-se do seu corpo inteiro.

A sala de jantar onde, tantas vezes feliz, ceara a sós com Leonília, estava transformada em câmara mortuária, toda funebremente paramentada de cortinas de veludo negro, que pendiam do teto, consteladas de lantejoulas e guarnecidas de caveiras de prata. Só faltava o altar. No centro, sobre uma grande mesa, também negra e enfeitada de galões dourados, havia um caixão de defunto. Dentro do caixão um cadáver todo de branco, cabelos soltos. Em volta, círios ardiam, altos, em solenes tocheiros, cuspindo a cera quente e o fumo cor de crepe.

O monge, lívido e trêmulo, aproximara-se do catafalco. Olhou para dentro do caixão e recuou aterrado.

Reconheceu o cadáver. Era da própria mulher que, pouco antes, o fora buscar ao convento e o viera arrastando até aí pelas ruas da cidade.

Sem ânimo de formular um pensamento, o frade deixou-se cair de joelhos sobre o negro tapete do chão e, arrancando do seio o seu crucifixo, abraçou-se com ele começou a rezar fervorosamente.

Rezou muito, de cabeça baixa, o rosto afogado em rimas. Depois ergueu-se, foi ter à essa, pôs-se nas pontas pés para poder alcançar com os lábios o rosto do cadáver e pousou nas faces enregeladas um extremo beijo amor.

Em seguida, olhou em derredor de si, desconfiado e tímido e, como não houvesse na sala uma só imagem sagrada em companhia da morta, desprendeu do pescoço o crucifixo e foi piedosamente dependurá-lo na parede, à cabeceira dela.

Mas, nesse mesmo instante, as tochas apagaram-se de súbito e fez-se completa escuridão em torno do impenitente. Foi às apalpadelas que ele conseguiu chegar até à porta de saída e ganhar a rua.

Lá fora, a noite se tinha feito também negra e os ventos se tinham desencadeado em fúria, ameaçando tempestade. O monge deitou a fugir para o mosteiro, sem ânimo de voltar o rosto para trás, como temeroso de que Leonília por sua vez o perseguisse agora até ao domicílio.

Quando alcançou a cela, tiritava de febre.

Acharam-no pela manhã, sem sentido, defronte do seu oratório, joelhos em terra, braços pendidos, cabeça de borco sobre um degrau do altar.

Só muitos dias depois, um dia de sol, conseguiu sair à rua, ainda pálido e desfeito. Seu primeiro cuidado foi correr aonde morava Leonília e rondar a casa em que a vira morta.

Encontrou-a fechada e com letreiro anunciando o aluguel.

- Está vazia, depois que nela morreu o último inquilino - explicou um vizinho.

- Há muitos dias? - quis saber o frade, e estremeceu quando ouviu dizer que havia uns oito ou dez.

- E o morador, quem era? - perguntou ainda.

- Era uma mulher. Chamava-se Leonília. Morreu de repente.

Ah!

Se quer alugar a casa, encontra a chave ali na esquina...

Frei Álvaro agradeceu, despediu-se do informante, foi buscar a chave, abriu a porta, entrou e percorreu toda a casa.

Só ele, além de Deus, soube a impressão que sentiu ao contemplar aquelas salas e aqueles quartos.

- Estranho caso! - disse consigo, sem ânimo de olhar de rosto para o temeroso abismo da dúvida. - Fui vítima de uma alucinação que coincidiu com a morte desta querida cúmplice dos meus pecados de amor...

E, enxugando os olhos, ia retirar-se, conformado com a dupla dor da saudade e do remorso, quando, ao passar rente de certa parede, estremeceu de novo.

Tinha dado com os olhos no seu crucifixo, do qual já nem se lembrava. Permanecia pendurado no mesmo ponto em que o monge o deixara na terrível noite.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 02 de junho de 2022

A APAIXONADA ELENA (CONTO DO PAULISTA ALCÂNTARA MACHADO)
 

A APAIXOANDA ELENA

Alcântara Machado

 


(Senhorinha Elena Benedita de Faria)

 

– Quem é que me leva hoje no Literário?

Ficou esperando a resposta.

Dona Maria da Glória fazia uns desenhos na toalha com a ponta do garfo. Achando muita graça na história do Dico. Esses meninos. Mas o melhor ainda não tinha sido contado: a negra perdeu a paciência e meteu a mão na cara do gerente. A rapaziada por pândega fez uma subscrição e deu uns dois mil e tanto para a negra. E a polícia? Que polícia? Negra decidida está ali.

– Quem é que me leva hoje no Literário, mamãe?

Ficou esperando a resposta.

Dona Maria da Glória falou:

– Vamos para outra sala que aqui está calor demais.

Dico pôs no Panatrope o Franchie and Johnny. E diante do aparelho ensaiava uns passos complicados. Pé direito atrás. Batida de calcanhares. Pé direito na frente. Batida de calcanhares. Saiu andando que nem cavalo de circo.

Elena sentou-se, abriu a revista diante do rosto pôs uma perna em cima da outra.

– Tenha modos. menina!

Suspirou, descruzou as pernas. Dico foi se chegando. Deu um tabefe na revista, fugiu de banda deslizando.

– Chorando! Que é que ela tem, mamãe?

– Sei lá. Bobagens. Pare com essa dança que me estraga o encerado.

Elena levantou-se e as lágrimas caíram.

– Onde é que vai? Sente-se ai!

Dico parou a musica. Foi ficar diante da irmã de beiço caído.

– As lágrimas da mártir.

Dona Maria mandou que o Dico ficasse quieto, não amolasse nem fosse moleque. E mandou Elena enxugar as lágrimas que já estavam incomodando. Dico jogou o lenço no colo da irmã. Elena jogou o lenço no chão por desaforo. Enxugou com a gola da blusa.

– Sou mesmo uma mártir, pronto!

Os olhares da mãe e do irmão encontraram-se bem em cima do vaso de flores de vidro. Despediram-se e se foram encontrar de novo nos olhos molhados da mártir Elena. O Doutor Zósimo veio lá de dentro escovando os dentes. Sacudiu a cabeça para a mulher:

– Que é que há? A mulher esticou o queixo e abriu os braços: Não sei não!

– Malvados! Não querem me levar no Literário!

– Quem é que não quer?

– Vocês!

Então o Doutor Zósimo voltou lá para dentro babando espuma. O Dico pegou o chapéu, beijou o rosto da mãe, curvou-se diante da irmã, fez umas piruetas e saiu cantando o Pinião. Dona Maria da Glória tirou o cachorro do colo. Depois deu uma mirada vaga assim em torno. Depois penteou o cabelo com os dedos. Finalmente bocejou e disse:

– Não seja boba, menina!

E foi embora.

O ruído da rua. O sol entrando pela porta aberta que dava para o terraço. Batiam pratos na copa. O cachorro latindo para o Doutor Zósimo. Esta mesa seria mais bonita se fosse mais baixa.

Elena espreguiçou-se e pôs no Panatrope um disco bem chorado dos Turunas da Mauricéia.

– Que vestido eu visto, mamãe?

– O azul.

Foi. Demorou um pouco. Voltou.

– Está todo amassado, mamãe.

– Então o verde.

– Com aqueles babados?

E repetiu:

– Com aqueles babados indecentes?

E tornou a repetir:

– Com aqueles babados indecentes, horrorosos, imorais?

Dona Maria da Glória estava na página dos anúncios.

– Em que vapor partiu a Dulce mesmo?

– Como é que a senhora quer que eu me lembre?

– Não seja insolente!

Fechou-se no quarto. Cinco minutos se tanto. Abriu a porta. Disse da porta:

– Eu vou pôr o novo futurista.

– Ponha o verde já disse!

– Oh desgraça, meu Deus!

Se o Zósimo continuasse a não fazer caso ela como mãe estava decidida: curaria aquele nervosismo a chinelo.

A toda hora olhava o ponteiro dos minutos. Já querendo ir embora. Vinte para as oito. Às oito acaba com o hino nacional. No fundo dança não passa de uma sem-vergonhice muito grande. A gente conta na certa com uma coisa: vai a cousa não acontece. As primas não paravam sentadas. Há moças que tiram seus pares de longe: é um jeito de olhar.

Voltar para casa, ler na cama a revista de Hollywood, procurar dormir. Com aquele calorão. E amanhã bem cedo: dentista. A vida é pau. Dez para as oito.

Dez para as oito Firmianinho apareceu. Começou a inspeção pelo lado esquerdo. Foi indo. No canto direito parou. Veio vindo. Chegou. Enfim chegou.

– Boa noite.

– Boa noite.

Tanta aflição antes e agora este silêncio. Dançavam empurrados. Não valeu de nada ter preparado a conversa. Tinha uma pergunta para fazer. Não era bem uma pergunta. Endireitando o busto parecia que se dominava. Felizmente repetiram o maxixe.

– Sabe que comprei um Reo? 22.222.

– Bonitinho?

– Assim assim. Dezoito contos.

Para que dizer o preço? Matou a conversa no princípio. Não tendo coragem de ver precisava perguntar. Então imaginava um modo, imaginava outro cada vez mais nervosa. E dançavam. O maxixe está com jeito de estar acabando. Perguntava agora. Daqui a pouco. No finzinho. Não perguntaria: olharia e pronto. O hino nacional continuou o maxixe.

– Tirou as costeletinhas?

– Ainda não viu?

Ora que resposta.

Quando pararam junto das primas dela ele virou bem o rosto de propósito. Tirou sim. Agora sim. Isso sim.

Despediram-se com muita alegria.

Chegou em casa foi direitinho para o quarto. Tirou o chapéu em frente do espelho. Guardou a bolsa. Ia tirar o vestido de bordados indecentes, horrorosos, imorais. Mas se jogou na cama com os olhos cheios de lágrimas.


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 01 de junho de 2022

O ASSOMBRAMENTO (CONTO DO MINEIRO AFONSO ARINOS)

O ASSOMBAMENTO

Afonso Arinos

 

À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d'ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu. Naquele escampado onde não ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos.

E quem não fosse vaqueano naqueles sítios iria, sem dúvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tão esquiva que nem ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando à frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho a fora.

Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e mourões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedra com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, no terreno acamado e liso, esponjadouros de animais vagabundos.

Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.

Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, não pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitência, cantassem com voz fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava por essas abusões e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada.

Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome "Fidalgo" - dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até onde chegavam os receios do povo.

Dito e feito.

Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas; e os tocadores, acudindo de cá e de lá, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pé, recostado a um mourão de braúna, chapéu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.

Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume, não proferiram uma jura, uma exclamação; só, às vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.

As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos montes; o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, denunciaram ao arneiro que a descarga fora feita com a ordem do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.

Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capão onde costumam crescer as ervas venenosas.

Dos camaradas, o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de língua às vezes, nos serões de pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma cantilena saudosa.

Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando ai, tramava alguma das dele.

- O macho lionanco está meio sentido da viagem, só Manuel.

- Nem por isso. Aquele é couro n'água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa.

- Pois olhe, não dou muito para ele urrar na subida do morro.

- Este? Não fale!

Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, então é que ele se entrega de todo.

Ora!

Vossemecê bem sabe: por aqui não há boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece desbarrigada que é um Deus nos acuda.

- Deixe de poetagens, Venâncio! Eu sei cá.

- Vossemecê pode saber, eu não duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão e Venâncio p'r'aqui, Venâncio p'r'acolá.

Manuel deu um muxoxo. Em seguida levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse:

- Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.

- Hum, hum! Está aí! Eia, eia, eia!

– Não temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede.

- Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.

E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes.

- Que é que vossemecê determina agora?

- Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui também se vai cuidando do jantar...

O caldeirão preso à rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava à vasilha olhares ávidos e cheios de angústias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de água fresca; qual corria a lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.

Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes:

- Arre! Tem tempo, gente! Parece que vocês nunca viram feijão. Cuidem de seu que fazer, se não querem sair daqui a poder de tição de fogo!

Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com cozinheiro em momento assim melindroso.

Pouco depois chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.

Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam valentemente.

- Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.

- Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente!

- Uai! É estúrdio!

- E vossemecê pousa lá mesmo?

- Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.

- Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas... é o diabo!

- Ora! Pelo buraco da fechadura não entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não levanta da cova. Você há de saber amanhã.

- Sua alma, sua palma, eu já disse, meu patrão; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negócio com assombração. Isso de coisa do outro mundo p'r'aqui mais p'r'ali - terminou o Venâncio, sublinhando a última frase com um gesto de quem se benze.

Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos.... A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola e outro - namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do céu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, co'a voz tremente, à sua amada distante...

II

Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, há pouco aceso e pregado ao pé direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro que latia lá num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensão erma.

As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho às miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.

Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples, tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irmã gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tormentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada.

E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistório das almas penadas - outro, o Joaquim Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes:

- Ché, povo! Tá chegando a hora!

O último estribilho:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:

Deixa estar o jacaré:
A lagoa há de secar

O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:

Rio Preto há de dar vau
Té pra cachorro passar!

Tá chegando a hora!

Hora de que, Joaquim?

De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho.

Nisto apareceu o Venâncio, cortando-lhes a conversa.

Gente! O patrão já está na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas vocês sabem: ninguém gosta deste pouso mal-assombrado.

Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve também vigiar a tapera. Pois nós havemos de deixar o patrão sozinho?

Que se há de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir só, porque assombração não aparece senão a uma pessoa só que mostre coragem.

O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem lá, não escapa nenhum.

Qual, homem! Isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu cá não vou me fiando muito na boca do povo, por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.

A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silêncio e a solidão da noite, realçando as cenas fantásticas das narrações de há pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.

E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto.

- Cá por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida - e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.

Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte.

Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.

Mas o Venâncio acudiu logo, dizendo:

- Até aí vou eu, gente! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.

E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capão adentro.

III

Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente.

Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também enfiada no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arneiro partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no pátio pela grande porteira escancarada.

Era noite.

Tateando com o pé, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tábua de peças em ruína, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o arneiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paióis, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.

- Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato.

E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado!

- Senhor! Por que seria? - inquiriu de si para si o cuiabano e parou à porta de uma senzala, olhando para o meio do pátio onde uma caveira alvadia de boi-espáceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaçá-lo com a grande armação aberta.

Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre, seu vértice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pés desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo.

Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.

Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratório com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.

- Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a virgem Maria...

O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapés torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.

O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha de telhado. Por aí corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um montículo de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva.

Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe.

- É o vento, talvez, no sino da capela.

E penetrou num salão enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.

Acaba aqui - murmurou.

Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.

Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver...

Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, às vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato.

Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrão violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruído de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chão.

A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva.

Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então, o cuiabano deu uns passos para trás, apalpando até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevão das janelas. Aí, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a princípio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido; tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.

Meteu a binga no bolso e disse:

Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.

Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então o cuiabano pôs-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.

No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arneiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a pólvora aos ouvidos e esperou. O ruído cessara; só a zoada do sino continuava, intermitentemente.

Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um quadrúpede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal.

Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a ventania - alcateia de lbos rafados - investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saindo por aí, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos salões vazios.

Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu... e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.

Manuel foi impelido para a frente à corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arneiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.

E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito que fazia o velho casarão falar ou gemer, ameaçá-lo ou repeti-lo, num conluio demoníaco com o vento, os morcegos e a treva.

Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno. De vez em quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de um lado e de outro.

- Ah! vocês não me hão de levar assim-assim, não - exclamava o arrieiro para o invisível. - Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro!

E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.

Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma janela próxima, fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora.

Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiração curta. A boca semiaberta deixou cair a faca: o fôlego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um barrão acuado pela cachorrada. Correu a mão pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traía. A escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco:

Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!

De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com ímpeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.

A queda assanhou-lhe a fúria e o arneiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo.

Pouco a pouco foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venâncio armara na sala da frente.

Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam lá dentro Manuel, Manuel, Manuel - em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam.

Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgão do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.

O arneiro não pensava mais. A respiração se lhe tornara estertorosa; horríveis contrações musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:

Traiçoeiras! Eu queria carne para rasgar com este ferro! Eu queria osso para esmigalhar num murro!

As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d'acolá, açulando-o como a um cão de rua.

O arneiro dava saltos de ugre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coreia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles círculos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.

Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mão esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate.

O arneiro rugiu:

- Eu mato! Eu mato! Mato! - e acometeu com de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes, fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roído de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro.

Manuel lá no fundo, ferido, ensanguentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispação de luta; sua boca proferiu ainda: - "Eu mato! Mato! Ma..." - e um silêncio trágico pesou sobre a tapera.

IV

O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirão cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.

Venâncio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada cangalha, o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos freqüentes, por impedir que o demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos, guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora, ecavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujão. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.

Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capões, solfejavam à aurora que principiava a tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.

Eh, gente! o orvalho 'stá cortando, êta! Que tempão tive briquitando co'aquele macho "pelintra". Diabo o leve! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura as trilhas, por não deixar rastro.

E a "Andorinha"? Isso é que é mula desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.

A rapaziada chegava à beira do rancho, tangendo a tropa.

Que é da giribita? Um trago é bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo.

Uma hora é frio, outra é calor, e vocês vão virando, cambada do diabo! - gritou o Venâncio.

Largue da vida dos outros e vá cuidar da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo: enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estávamos atolados no capinzal molhado, vossemecê tava aí na beira do fogo, feito um cachorro velho.

Tá bom, tá bom, não quero muita conversa comigo não. Vão tratando de chegar os burros às estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco e o patrão chega de uma hora para a outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande! Mas eu não pude fechar os olhos esta noite! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha à mente alguma que pudesse suceder a sô Manuel. Deus é grande!

Logo-logo o Venâncio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.

- Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.

Nesse instante, um molecote chegou com o café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus companheiros, depois de terem emborcado os cuités, partiram para a tapera.

Logo à saída, o velho tropeiro refletiu um pouco alto:

- É bom ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica você, Aleixo.

Seguiram os três, calados, pelo campo a fora, na luz

Suave de antemanhã. Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arneiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno, andando lépido e de rosto tranquilo; cada qual, escondia do outro a angústia do coração e a fealdade do prognóstico.

José Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho:

A barra do dia ai vem!

A barra do sol também,Ai!

E lá foram, cantando todos três, por espantar as mágoas. Ao entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito na véspera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e não cedeu.

Forcejaram os três e ela resistiu ainda. Então, José Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao ombro um cambão, no qual os três pegaram e, servindo-se dele como de um aríete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos cujo fragor se foi evolumando pelo casarão adentro em roncos profundos.

Em alguns instantes o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do solho. A caliça que caía encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros - e a porta escancarou-se.

Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada.

- Mau, mau, mau! - exclamou Venâncio não podendo mais conter-se. Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas do outro mundo.

Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando orações contra malefícios.

- Gente, onde estará sô Manuel? Vocês não me dirão pelo amor de Deus? - exclamou o Venâncio.

Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se perdidos em conjeturas sinistras.

Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um conciliábulo em que somente se lhes comunicassem os espíritos. Mas, de repente, creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venâncio debruçou-se, sondando o porão da casa.

A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu um vulto estendido.

- Nossa Senhora! Corre, gente, que sô Manuel está lá embaixo, estirado!

Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetáculo estranho deparou-se-lhes:

O arneiro, ensanguentado, jazia no chão estirado; junto de seu corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia.

- Meu patrão! Sô Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?!

Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lâmina se enterrara no chão; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na pele.

- Sô Manuelzinho! Ai meu Deus! P'ra que caçar histórias do outro mundo! Isso é mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me livre!

- Qual, tio Venâncio - disse por fim José Paulista. - Eu já sei a coisa. Já ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada para o terreiro. Aí é que está. Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto não topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condição de cumprir, por intenção delas, alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo! Na hora de ver a assombração, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p'r'amor de não perder a fala. Não tem nada, Deus é grande!

E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam ê que quer que fosse - "para as ondas do mar" ou "para as profundas, onde não canta galo nem galinha".

Enquanto conversavam iam procurando levantar do chão o corpo do arneiro, que continuava a tremer. Às vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da garganta.

- Ah! Patrão, patrão! Vossemecê, homem tão duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! São Bom Jesus do Cuiabá! Olha sô Manuel, tão devoto seu! - gemia o Venâncio.

O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chão o corpo do arneiro sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venâncio disse ao José Paulista:

- Eu não pego nessas moedas do capeta. Se você não tem medo, ajunta isso e traz.

Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno o buraco do assoalho por onde caíra o Manuel.

- É alto deveras! Que tombo! - disse de si para si. - Que há de ser do patrão? Quem viu sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro há de ser de pouca serventia. Para mim, eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar!

O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De cá se via a fila dos barrotes estendendo-se para a direita até ao fundo escuro.

José Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chão o foi enchendo também; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo vagarosamente o arneiro.

As névoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manhã; sós, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das árvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.

Houve um instante em que um pé-de-vento arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno: "apanhasse-lhe o chapéu".

Aí chegando, José Paulista arreou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora.

À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais.

Às vezes ouvia-se um grito: - Toma, diabo! - e um animal espirrava para o campo à tacada de um tropeiro.

Quando lá do rancho se avistou o grupo onde vinha o arneiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha do olho-d'água com o odre às costas, atirou com ele ao chão e disparou também. Os animais já amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.

O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.

Foram chegando e José Paulista chegou por último. Tropeiros olharam com estranheza a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogações mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para que saber mais? Não estava naquele estado o pobre do patrão?

O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. Dos tropeiros chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venâncio, com pano embebido, banhava as feridas do arneiro cujo corpo vibrava, então, fortemente.

Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho, afilando as orelhas.

Então Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de lágrimas, exclamou aos parceiros:

Minha gente! Aqui, neste deserto, só Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! - E ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um - "Senhor Deus, ouvi a minha oração e chegue a vós o meu clamor!" - E trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa, afloram-lhe à boca.

Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atrás do velho parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguém compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensão de almas, um apelo fremente "in excelsis", na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a própria voz do deserto mal ferido com as feridas seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.

De feito, não pareciam mais homens que cantavam: era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que do seio largo do deserto às alturas infinitas: - "Meu coração está ferido e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões!... Atendei propicio à oração do desamparado e não desprezeis a sua súplica..."

E assim, em frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam dirigir uma oração humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senão erguer um hino de glorificação ao "Agios Ischiros", ao formidável "Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth".

Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele.

Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capa-o, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma ema, abrindo as asas, galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio de uma inundação de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.

Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos de delírio. A mão direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta... e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça suprema:

Eu mato!... Mato!... Ma...

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 31 de maio de 2022

AS ACADEMIAS DE SIÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

AS ACADEMIAS DE SIÃO

Machado de Assis

 

Conhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias: mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.

 I

 As estrelas, quando viam subir, através da noite, muitos vaga-lumes cor de leite, costumavam dizer que eram os suspiros do rei de Sião, que se divertia com as suas trezentas concubinas. E, piscando o olho umas as outras, perguntavam:

- Reais suspiros, em que é que se ocupa esta noite o lindo Kalafangko?

Ao que os vaga-lumes respondiam com gravidade:

- Nós somos os pensamentos sublimes das quatro academias de Sião; trazemos conosco toda a sabedoria do universo.

Uma noite, foram em tal quantidade os vaga-lumes, que as estrelas, de medrosas, refugiaram-se nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço, onde se fixaram para sempre com o nome de Via-Láctea.

Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro academias de Sião resolver este singular problema: - por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem rei. Kalafangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que não cuidava de outra coisa. Daí a ilusão das estrelas.

Vai senão quando, uma das academias achou esta solução ao problema:

- Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados.

- Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste exterior.

Não foi preciso mais para que as vielas e águas de Bangkok se tingissem de sangue acadêmico. Veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e finalmente a pancada. No princípio da descompostura tudo andou menos mal; nenhuma das rivais arremessou um impropério que não fosse escrupulosamente derivado do sânscrito, que era a língua acadêmica, o latim de Sião. Mas dali em diante perderam a vergonha. A rivalidade desgrenhou-se, pôs as mãos na cintura, baixou à lama, à pedrada, ao murro, ao gesto vil, até que a academia sexual, exasperada, resolveu dar cabo das outras, e organizou um plano sinistro... Ventos que passais, se quisésseis levar convosco estas folhas de papel, para que eu não contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim), custa-me escrever a singular desforra. Os acadêmicos armaram-se em segredo, e foram ter com os outros, justamente quando estes, curvados sobre o famoso problema, faziam subir ao céu uma nuvem de vaga-lumes. Nem preâmbulo, nem piedade. Caíram-lhes em cima, espumando de raiva. Os que puderam fugir, não fugiram por muitas horas; perseguidos e atacados, morreram na beira do rio, a bordo das lanchas, ou nas vielas escusas. Ao todo, trinta e oito cadáveres. Cortaram uma orelha aos principais, e fizeram delas colares e braceletes para o presidente vencedor, o sublime U-Tong. Ébrios da vitória, celebraram o feito com um grande festim, no qual cantaram este hino magnífico: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a luminária do universo".

A cidade acordou estupefata. O terror apoderou-se da multidão. Ninguém podia absolver uma ação tão crua e feia; alguns chegavam mesmo a duvidar do que viam... Uma só pessoa aprovou tudo: foi a bela Kinnara, a flor das concubinas régias.

 II

 Molemente deitado aos pés da bela Kinnara, o jovem rei pedia-lhe uma cantiga.

 - Não dou outra cantiga que não seja esta: creio na alma sexual.

- Crês no absurdo, Kinnara.

- Vossa Majestade crê então na alma neutra?

- Outro absurdo, Kinnara. Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual.

 - Mas então em que é que Vossa Majestade  crê, se não crê em nenhuma delas?

 - Creio nos teus olhos Kinnara, que são o  sol e a luz do universo.

 - Mas cumpre-lhe escolher: - ou crer na alma neutra, e punir a academia viva, ou crer na alma sexual, e absolvê-la.

 - Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a fonte da sabedoria.

 Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher máscula, - um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual  foi declarada legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia, foi o decreto mandado à academia triunfante, aos pagodes, mandarins, a todo o reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a paz pública.

 III

 Entretanto, a bela Kinnara tinha um plano engenhoso e secreto. Uma noite, como o rei examinasse alguns papéis do Estado, perguntou-lhe ela se os impostos eram pagos com pontualidade.

- Ohimé! exclamou ele, repetindo essa palavra que lhe ficara de um missionário italiano. Poucos impostos têm sido pagos. Eu não quisera mandar cortar a cabeça aos contribuintes... Não, isso nunca... Sangue? sangue? não, não quero sangue...

- E se eu lhe der um remédio a tudo?

- Qual?

- Vossa Majestade decretou que as almas eram femininas e masculinas, disse Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos corpos estão trocados. Basta restituir cada alma ao corpo que lhe pertence. Troquemos os nossos...

Kalafangko riu muito da idéia, e perguntou-lhe como é que fariam a troca. Ela respondeu que pelo método Mukunda, rei dos hindus, que se meteu no cadáver de um brâmane, enquanto um truão se metia no dele Mukunda, - velha lenda passada aos turcos, persas e cristãos. Sim, mas a fórmula da invocação? Kinnara declarou que a possuía; um velho bonzo achara cópia dela nas ruínas de um templo.

- Valeu?

- Não creio no meu próprio decreto, redarguiu ele rindo; mas vá lá, se for verdade, troquemos... mas por um semestre, não mais. No fim do semestre destrocaremos os corpos.

Ajustaram que seria nessa mesma noite. Quando toda a cidade dormia, eles mandaram vir a piroga real, meteram-se dentro e deixaram-se ir à toa. Nenhum dos remadores os via. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra no tapete.

- Pronto? disse Kalafangko.

- Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade da minha pessoa...

Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três. Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez trocados continuam a falar e a viver juntos - coisa evidentemente mais dantesca, em que me pese à modéstia.

- Realmente, disse Kalafangko, isto de olhar para mim mesmo e dar-me majestade é esquisito. Vossa Majestade não sente a mesma coisa?

Um e outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa adequada. Kalafangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara. Esta inteiriçava-se no tronco rijo de Kalafangko. Sião tinha, finalmente, um rei.

 IV

 A primeira ação de Kalafangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do Kalafangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual. Não elevou os seus membros ao mandarinato, pois eram mais homens de pensamento que de ação e administração, dados à filosofia e à literatura, mas decretou que todos se prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins. Além disso, fez-lhes grandes presentes, coisas raras ou de valia, crocodilos empalhados, cadeiras de marfim, aparelhos de esmeralda para almoço, diamantes, relíquias. A academia, grata a tantos benefícios, pediu mais o direito de usar oficialmente o título de Claridade do Mundo, que lhe foi outorgado.

Feito isso, cuidou Kalafangko da fazenda pública, da justiça, do culto e do cerimonial. A nação começou de sentir o peso grosso, para falar como o excelso Camões, pois nada menos de onze contribuintes remissos foram logo decapitados. Naturalmente os outros, preferindo a cabeça ao dinheiro, correram a pagar as taxas, e tudo se regularizou. A justiça e a legislação tiveram grandes melhoras. Construíram-se novos Pagodes; e a religião pareceu até ganhar outro impulso, desde que Kalafangko, copiando as antigas artes espanholas, mandou queimar uma dúzia de pobres missionários cristãos que por lá andavam; ação que os bonzos da terra chamaram a pérola do reinado.

Faltava uma guerra. Kalafangko, com um pretexto mais ou menos diplomático, atacou a outro reino, e fez a campanha mais breve e gloriosa do século. Na volta a Bangkok, achou grandes festas esplêndidas. Trezentos barcos, forrados de seda escarlate e azul, foram recebe-lo. Cada um destes tinha na proa um cisne ou um dragão de ouro, e era tripulado pela mais fina gente da cidade; músicas e aclamações atroaram os ares. De noite, acabadas as festas, sussurrou-lhe ao ouvido à bela concubina:

- Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades que curti na ausência; dize-me que a melhor das festas é a tua meiga Kinnara.

Kalafangko respondeu com um beijo.

- Os teus beiços têm o frio da morte ou do desdém, suspirou ela.

Era verdade, o rei estava distraído e preocupado; meditava uma tragédia. Ia-se aproximando o termo do prazo em que deviam destrocar os corpos, e ele cuidava em iludir a cláusula, matando a linda siamesa. Hesitava por não saber se padeceria com a morte dela visto que o corpo era seu, ou mesmo se teria de sucumbir também. Era esta a dúvida de Kalafangko; mas a idéia da morte sombreava-lhe a fronte, enquanto ele afagava ao peito um frasquinho com veneno, imitado dos Bórgias.

De repente, pensou na douta academia; podia consultá-la, não claramente, mas por hipótese. Mandou chamar os acadêmicos; vieram todos menos o presidente, o ilustre U-Tong, que estava enfermo. Eram treze; prosternaram-se e disseram ao modo de Sião:

- Nós, desprezíveis palhas, corremos ao chamado de Kalafangko.

- Erguei-vos, disse benevolamente o rei.

- O lugar da poeira é o chão, teimaram eles com os cotovelos e joelhos em terra.

- Pois serei o vento que subleva a poeira, redargüiu Kalafangko; e, com um gesto cheio de graça e tolerância, estendeu-lhes as mãos.

Em seguida, começou a falar de coisas diversas, para que o principal assunto viesse de si mesmo; falou nas últimas notícias do ocidente e nas leis de Manu. Referindo-se U-Tong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como parecia; mas, vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era um dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo e incapaz de aprender nada. Kalafangko estava pasmado. Um estúpido?

- Custa-nos dizê-lo, mas não é outra coisa; é um espírito raso e chocho. O coração é excelente, caráter puro, elevado...

Kalafangko, quando voltou a si do espanto, mandou embora os acadêmicos, sem lhes perguntar o que queria. Um estúpido? Era mister tirá-lo da cadeira sem molestá-lo. Três dias depois, U-Tong compareceu ao chamado do rei. Este perguntou-lhe carinhosamente pela saúde; depois disse que queria mandar alguém ao Japão estudar uns documentos, negócio que só podia ser confiado a pessoa esclarecida. Qual dos seus colegas da academia lhe parecia idôneo para tal mister? Compreende-se o plano artificioso do rei: era ouvir dois ou três nomes, e concluir que a todos preferia o do próprio U-Tong; mas eis aqui o que este lhe respondeu:

- Real Senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a diferença que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao Sol e à Lua. Mas, na verdade, nunca a Lua nem o Sol cobriram mais singulares pulhas do que esses treze... Compreendo o assombro de Vossa Majestade; mas eu não seria digno de mim se não dissesse isto com lealdade, embora confidencialmente...

Kalafangko tinha a boca aberta. Treze camelos? Treze, treze. U-Tong ressalvou tão-somente o coração de todos, que declarou excelente; nada superior a eles pelo lado do caráter. Kalafangko, com um fino gesto de complacência, despediu o sublime U-Tong, e ficou pensativo. Quais fossem as suas reflexões, não o soube ninguém. Sabe-se que ele mandou chamar os outros acadêmicos, mas desta vez separadamente, a fim de não dar na vista, e para obter maior expansão. O primeiro que chegou, ignorando aliás a opinião de U-Tong, confirmou-a integralmente com a única emenda de serem doze os camelos, Ou treze, contando o próprio U-Tong. O segundo não teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam camelos, outros usavam circunlóquios e metáforas, que vinham a dar na mesma coisa. E, entretanto, nenhuma injúria ao caráter moral das pessoas. Kalafangko estava atônito.

Mas não foi esse o último espanto do rei. Não podendo consultar a academia, tratou de deliberar por si, no que gastou dois dias, até que a linda Kinnara lhe segredou que era mãe. Esta notícia fê-lo recuar do crime. Como destruir o vaso eleito da flor que tinha de vir com a primavera próxima? Jurou ao Céu e à Terra que o filho havia de nascer e viver. Chegou ao fim do semestre; chegou o momento de destrocar os corpos.

Como da primeira vez, meteram-se no barco real, à noite, e deixaram-se ir águas abaixo, ambos de má vontade, saudosos do corpo que iam restituir um ao outro. Quando as vacas cintilantes da madrugada começaram de pisar vagarosamente o céu, proferiram eles a fórmula misteriosa, e cada alma foi devolvida ao corpo anterior. Kinnara, tornando ao seu, teve a comoção materna, como tivera a paterna, quando ocupava o corpo de Kalafangko. Parecia-lhe até que era ao mesmo tempo mãe e pai da criança.

- Pai e mãe? repetiu o príncipe restituído à forma anterior.

Foram interrompidos por uma deleitosa música, ao longe. Era algum junco ou piroga que subia o rio, pois a música aproximava-se rapidamente. Já então o Sol alagava de luz as águas e as margens verdes, dando ao quadro um tom de vida e renascença, que de algum modo fazia esquecer aos dois amantes a restituição física. E a música vinha chegando, agora mais distinta, até que numa curva do rio, apareceu aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e flâmulas. Vinham dentro os quatorze membros da academia (contando U-Tong) e todos em coro mandavam aos ares o velho hino:

"Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!"

A bela. Kinnara (antigo Kalafangko) tinha os olhos esbugalhados de assombro. Não podia entender como é que quatorze varões reunidos em academia eram a claridade do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalafangko, consultado por ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode obsequiar uma das mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta fechada, e, para maior segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China.

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 30 de maio de 2022

VIVER! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VIVER!

Machado de Assis

 

 

 

Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o horizonte, onde passam duas águias cruzando-se. Medita, depois sonha. Vai declinando o dia.

 

AHASVERUS. - Chego à cláusula dos tempos; este é o limiar da eternidade. A terra está deserta; nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o último; posso morrer. Morrer! Deliciosa idéia! Séculos de séculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me. Aquela montanha é áspera como a minha dor; aquelas águias, que ali passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis também, águias divinas?

 

PROMETEU. - Certo que os homens acabaram; a terra está nua deles.

 

AHASVERUS. - Ouço ainda uma voz... Voz de homem? Céus implacáveis, não sou então o último? Ei-lo que se aproxima... Quem és tu? Há em teus grandes olhos alguma coisa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos de Israel; não és homem...

 

PROMETEU. - Não.

 

AHASVERUS. - Raça divina?

 

PROMETEU. - Tu o disseste.

 

AHASVERUS. - Não te conheço; mas que importa que te não conheça? Não és homem; posso então morrer; pois sou o último, e fecho a porta da vida.

 

PROMETEU. - A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma, outras se abrirão. És o último da tua espécie? Virá outra espécie melhor, não feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem derradeiro, toda a plebe dos espíritos perecerá para sempre; a flor deles é que voltará à terra para reger as coisas. Os tempos serão retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça...

 

AHASVERUS. - Que importa à espécie que vai morrer comigo toda essa delícia póstuma? Crê-me, tu que és imortal, para os ossos que apodrecem na terra as púrpuras de Sidônia não valem nada. O que tu me contas é ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade deste havia delitos e enfermidades; a tua exclui todas as lesões morais e físicas. O Senhor te ouça! Mas deixa-me ir morrer.

 

PROMETEU. - Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias?

 

AHASVERUS. - A pressa de um homem que tem vivido milheiros de anos. Sim, milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as gerações e todas as ruínas, para experimentar esse profundo fastio da existência.

 

PROMETEU. - Milheiros de anos?

 

AHASVERUS. - Meu nome é Ahasverus: vivia em Jerusalém, ao tempo em que iam crucificar Jesus Cristo. Quando ele passou pela minha porta, afrouxou ao peso do madeiro que levava aos ombros, e eu empurrei-o, bradando-lhe que não parasse, que não descansasse, que fosse andando até à colina, onde tinha de ser crucificado... Então uma voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre, continuamente, até o fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para com aquele que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os fariseus diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matá-lo; eu, pobre ignorante, quis realçar o meu zelo e daí a ação daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa irremissível.

 

PROMETEU. - Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benévola. Os outros homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capítulo de outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. Há páginas melancólicas? Há outras joviais e felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-lo inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, não dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a aflição da alma, e a alegria da alma suprindo à desolação das coisas; dança alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo.

 

AHASVERUS. - Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana.

 

PROMETEU. - Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perpétuo, explica-te. Conta-me tudo; saíste de Jerusalém...

 

AHASVERUS. - Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem aí respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava comigo a moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em capítulo? Os que se foram, à nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes tu o que é ver as mesmas coisas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre ocasos?

 

PROMETEU. - Mas não padeceste, creio; é alguma coisa não padecer nada.

 

AHASVERUS. - Sim, mas vi padecer os outros homens, e para o fim o espetáculo da alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doido. Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada.

 

PROMETEU. - Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos inúmeros o efeito da cólera divina?

 

AHASVERUS. - Tu?

 

PROMETEU. - Prometeu é o meu nome.

 

AHASVERUS. - Tu Prometeu?

 

PROMETEU. - E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e água os primeiros homens, e depois, compadecido, roubei para eles o fogo do céu. Tal foi o meu crime. Júpiter, que então regia o Olimpo, condenou-me ao mais cruel suplício. Anda, sobe comigo a este rochedo.

 

AHASVERUS. - Contas-me uma fábula. Conheço esse sonho helênico.

 

PROMETEU. - Velho incrédulo! Anda ver as próprias correntes que me agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindade orgulhosa e terrível... Chegamos, olha, aqui estão elas...

 

AHASVERUS. - O tempo que tudo rói não as quis então?

 

PROMETEU. - Eram de mão divina; fabricou-as Vulcano. Dois emissários do céu vieram atar-me ao rochedo, e uma águia, como aquela que lá corta o horizonte, comia-me o fígado, sem consumi-lo nunca. Durou isto tempos que não contei. Não, não podes imaginar este suplício...

 

AHASVERUS. - Não me iludes? Tu Prometeu? Não foi então um sonho da imaginação antiga?

 

PROMETEU. - Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo.

 

AHASVERUS. - Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens?

 

PROMETEU. - Foi o meu crime.

 

AHASVERUS. - Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime inexpiável. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, é certo; mas tu, que me trouxeste à existência, divindade perversa, foste a causa original de tudo.

 

PROMETEU. - A morte próxima obscurece-te a razão.

 

AHASVERUS. - Sim, és tu mesmo, tens a fronte olímpica, forte e belo titão: és tu mesmo... São estas as cadeias? Não vejo o sinal das tuas lágrimas.

 

PROMETEU. - Chorei-as pela tua raça.

 

AHASVERUS. - Ela chorou muito mais por tua culpa.

 

PROMETEU. - Ouve, último homem, último ingrato!

 

AHASVERUS. - Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade perversa. Aqui estão as cadeias. Vê como as levanto nas mãos; ouve o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outrora?

 

PROMETEU. - Hércules.

 

AHASVERUS. - Hércules... Vê se ele te presta igual serviço, agora que vais ser novamente agrilhoado.

 

PROMETEU. - Deliras.

 

AHASVERUS. - O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitáfio de um mundo. Chamarei a águia, e ela virá; dir-lhe-ei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses.

 

PROMETEU. - Pobre ignorante, que rejeitas um trono! Não, não podes mesmo rejeitá-lo.

 

AHASVERUS. - És tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os braços. Assim, bem, não resistirás mais; arqueja para aí. Agora as pernas...

 

PROMETEU. - Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contra mim; mas eu, que não sou homem, não conheço a ingratidão. Não arrancarás uma letra ao teu destino, ele se cumprirá inteiro. Tu mesmo serás o novo Hércules. Eu, que anunciei a glória do outro, anuncio a tua; e não serás menos generoso que ele.

 

AHASVERUS. - Deliras tu?

 

PROMETEU. - A verdade ignota aos homens é o delírio de quem a anuncia. Anda, acaba.

 

AHASVERUS. - A glória não paga nada,

e extingue-se.

 

PROMETEU. - Esta não se extinguirá. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da águia como me há de devorar a entranha; mas escuta... Não, não escutes nada; não podes entender-me.

 

AHASVERUS. - Fala, fala.

 

PROMETEU. - O mundo passageiro não pode entender o mundo eterno; mas tu serás o elo entre ambos.

 

AHASVERUS. - Dize tudo.

 

PROMETEU. - Não digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu não fuja, para que me aches aqui à tua volta. Que te diga tudo? Já te disse que uma raça nova povoará a terra, feita dos melhores espíritos da raça extinta; a multidão dos outros perecerá. Nobre família, lúcida e poderosa, será perfeita comunhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo é preciso, e esse elo és tu.

 

AHASVERUS. - Eu?

 

PROMETEU. - Tu mesmo, tu eleito, tu, rei. Sim, Ahasverus, tu serás rei. O errante pousará. O desprezado dos homens governará os homens.

 

AHASVERUS. - Titão artificioso, iludes-me... Rei, eu?

 

PROMETEU. - Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradição do mundo velho, e ninguém pode falar de um a outro como tu. Assim não haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito procederá do imperfeito, e a tua boca dir-lhe-á as suas origens. Contarás aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Reviverás assim como a árvore a que cortaram as folhas secas, e conserva tão-somente as viçosas; mas aqui o viço é eterno.

 

AHASVERUS. - Visão luminosa! Eu mesmo?

 

PROMETEU. - Tu mesmo.

 

AHASVERUS. - Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é a remissão gloriosa do meu pecado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e melhor? Não, tu mofas de mim.

 

PROMETEU. - Bem, deixa-me, voltarás um dia, quando este imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova. Aqui me acharás tranqüilo. Vai.

 

AHASVERUS. - Saudarei outra vez o sol?

 

PROMETEU. - Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca mais se fechará a tua pálpebra. Fita-o, se podes.

 

AHASVERUS. - Não posso.

 

PROMETEU. - Podê-lo-ás depois quando as condições da vida houverem mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem futuro ficará concentrado tudo o que há melhor na natureza, enérgico ou sutil, cintilante ou puro.

 

AHASVERUS. - Jura que me não mentes.

 

PROMETEU. - Verás se minto.

 

AHASVERUS. - Fala, fala mais, conta-me tudo.

 

PROMETEU. - A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás prodigiosa. O seio de Abraão das tuas velhas Escrituras não é senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os profetas. Lá contarás à gente estupefata não só as grandes ações do mundo extinto, como também os males que ela não há de conhecer, lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinável toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma túnica incorruptível.

 

AHASVERUS. - Verei ainda este imenso céu azul!

 

PROMETEU. - Olha como é belo.

 

AHASVERUS. - Belo e sereno como a eterna justiça. Céu magnífico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meus pensamentos, como outrora; tu me darás os dias claros e as noites amigas...

 

PROMETEU. - Auroras sobre auroras.

 

AHASVERUS. - Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias...

 

PROMETEU. - Desata-as, Hércules novo, homem derradeiro de um mundo, que vás ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguém poderá mudá-lo. És mais ainda que o teu Moisés. Do alto do Nebo, viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jericó, que ia pertencer à sua posteridade; e o Senhor lhe disse: "Tu a viste com teus olhos, e não passarás a ela." Tu passarás a ela, Ahasverus; tu habitarás Jericó.

 

AHASVERUS. - Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena... Rei disseste?

 

PROMETEU. - Rei eleito de uma raça eleita.

 

AHASVERUS. - Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas águias aproximam-se.)

 

UMA ÁGUIA. - Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.

 

A OUTRA. - Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 29 de maio de 2022

A VIÚVA DE SOBRAL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A VIÚVA DE SOBRAL

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 28 de maio de 2022

UMA VISITA DE ALCIBÍADES (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

UMA VISITA DE ALCIBíADES

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 27 de maio de 2022

VIRGINIUS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VIRGINIUS

Machado de Assis

 

 

 

(NARRATIVA DE UM ADVOGADO)

 

Não me correu tranqüilo o S. João de 185...

 

Duas semanas antes do dia em que a Igreja celebra o evangelista, recebi pelo correio o seguinte bilhete, sem assinatura e de letra desconhecida:

 

O Dr. *** é convidado a ir à vila de... tomar conta de um processo. O objeto é digno do talento e das habilitações do advogado. Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos antecipadamente, mal puser pé no estribo. O réu está na cadeia da mesma vila e chama-se Julião. Note que o Dr. é convidado a ir defender o réu.

 

Li e reli este bilhete; voltei-o em todos os sentidos; comparei a letra com todas as letras dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir.

 

Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e anônimo bilhete. Tomei uma resolução definitiva. Ultimei uns negócios, dei de mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada das despesas e dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a cavalo e parti.

 

Só depois de ter feito algumas léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu ia morava um amigo meu, antigo companheiro da academia, que se votara, oito anos antes, ao culto da deusa Ceres como se diz em linguagem poética.

 

Poucos dias depois apeava eu à porta do referido amigo. Depois de entregar o cavalo aos cuidados do camarada, entrei para abraçar o meu antigo companheiro de estudos, que me recebeu alvoroçado e admirado.

 

Depois da primeira expansão, apresentou-me ele à sua família, composta de mulher e uma filhinha, esta retrato daquela, e aquela retrato dos anjos.

 

Quanto ao fim da minha viagem, só lho expliquei depois que me levou para a sala mais quente da casa, onde foi ter comigo uma chávena de excelente café. O tempo estava frio; lembro que estávamos em junho. Envolvi-me no meu capote, e a cada gota de café que tomava fazia uma revelação.

 

— A que vens? a que vens? perguntava-me ele.

 

— Vais sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. Há quinze dias recebi no meu escritório, na corte, um bilhete anônimo em que se me convidava com instância a vir a esta vila para tomar conta de uma defesa. Não pude conhecer a letra; era desigual e trêmula, como escrita por mão cansada...

 

— Tens o bilhete contigo?

 

— Tenho.

 

Tirei do bolso o misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu amigo. Ele, depois de lê-lo, disse:

 

— É a letra de Pai de todos.

 

— Quem é Pai de todos?

 

— É um fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o nome de Pai de todos, porque o velho Pio o é na verdade.

 

— Bem dizia eu que há romance no fundo!... Que faz esse velho para que lhe dêem semelhante título?

 

— Pouca coisa. Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em uma só pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades judiciárias, policiais ou municipais; mas tudo o que não sai de certa ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro submetem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dois contendores saem da fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento de Pai de todos.

 

— Isso é como juiz. O que é ele como homem caridoso?

 

— A fazenda de Pio é o asilo dos órfãos e dos pobres. Ali se encontra o que é necessário à vida: leite e instrução às crianças, pão e sossego aos adultos. Muitos lavradores nestas seis léguas cresceram e tiveram princípio de vida na fazenda de Pio. É a um tempo Salomão e S. Vicente de Paulo.

 

Engoli a última gota de café, e fitei no meu amigo olhos incrédulos.

 

— Isto é verdade? perguntei.

 

— Pois duvidas?

 

— É que me dói sair tantas léguas da Corte, onde esta história encontraria incrédulos, para vir achar neste recanto do mundo aquilo que devia ser comum em toda a parte.

 

— Põe de parte essas reflexões filosóficas. Pio não é um mito: é uma criatura de carne e osso; vive como vivemos; tem dois olhos, como tu e eu...

 

— Então esta carta é dele?

 

— A letra é.

 

— A fazenda fica perto?

 

O meu amigo levou-me à janela.

 

— Fica daqui a um quarto de légua, disse. Olha, é por detrás daquele morro.

 

Nisto passava por baixo da janela um preto montado em uma mula, sobre cujas ancas saltavam duas canastras. O meu amigo debruçou-se e perguntou ao negro:

 

— Teu senhor está em casa?

 

— Está, sim, Sr.; mas vai sair.

 

O negro foi caminho, e nós saímos da janela.

 

— É escravo de Pio?

 

— Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos. Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte alguma houve nunca mais brando e cordial tratamento a homens escravizados. Nenhum dos instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém comete entre os negros da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio aplica apenas uma repreensão tão cordial e tão amiga, que acaba por fazer chorar o delinqüente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus escravos uma espécie de concurso que permite a um certo número libertar-se todos os anos. Acreditarás tu que lhes é indiferente viver livres ou escravos na fazenda, e que esse estímulo não decide nenhum deles, sendo que, por natural impulso, todos se portam dignos de elogios?

 

O meu amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar em um romance. Finalmente o meu amigo dispunha-se a contar-me a história do crime em cujo conhecimento devia eu entrar daí a poucas horas. Detive-o.

 

— Não, disse-lhe, deixa-me saber de tudo por boca do próprio réu. Depois compararei com o que me contarás.

 

— É melhor. Julião é inocente...

 

— Inocente?

 

— Quase.

 

Minha curiosidade estava excitada ao último ponto. Os autos não me tinham tirado o gosto pelas novelas, e eu achava-me feliz por encontrar no meio da prosa judiciária, de que andava cercado, um assunto digno da pena de um escritor.

 

— Onde é a cadeia? perguntei.

 

— É perto, respondeu-me; mas agora é quase noite; melhor é que descanses; amanhã é tempo.

 

Atendi a este conselho. Entrou nova porção de café. Tomamo-lo entre recordações do passado, que muitas eram. Juntos vimos florescer as primeiras ilusões, e juntos vimos dissiparem-se as últimas. Havia de que encher, não uma, mas cem noites. Aquela passou-se rápida, e mais ainda depois que a família toda veio tomar parte em nossa íntima confabulação. Por uma exceção, de que fui causa, a hora de recolher foi a meia-noite.

 

— Como é doce ter um amigo! dizia eu pensando no Conde de Maistre, e retirando-me para o quarto que me foi destinado.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

No dia seguinte, ainda vinha rompendo a manhã, já eu me achava de pé. Entrou no meu quarto um escravo com um grande copo de leite tirado minutos antes. Em poucos goles o devorei. Perguntei pelo amigo; disse-me o escravo que já se achava de pé. Mandei-o chamar.

 

— Será cedo para ir à cadeia? perguntei mal o vi assomar à porta do quarto.

 

— Muito cedo. Que pressa tamanha! É melhor aproveitarmos a manhã, que está fresca, e irmos dar um passeio. Passaremos pela fazenda de Pio.

 

Não me desagradou a proposta. Acabei de vestir-me e saímos ambos. Duas mulas nos esperavam à cancela, espertas e desejosas de trotar. Montamos e partimos.

 

Três horas depois, já quando o sol dissipara as nuvens de neblina que cobriam os morros como grandes lençóis, estávamos de volta, tendo eu visto a bela casa e as esplêndidas plantações da fazenda do velho Pio. Foi este o assunto do almoço.

 

Enfim, dado ao corpo o preciso descanso, e alcançada a necessária licença, dirigi-me à cadeia para falar ao réu Julião.

 

Sentado em uma sala onde a luz entrava escassamente, esperei que chegasse o misterioso delinqüente. Não se demorou muito. No fim de um quarto de hora estava diante de mim. Dois soldados ficaram à porta.

 

Mandei sentar o preso, e, antes de entrar em interrogatório, empreguei uns cinco minutos em examiná-lo.

 

Era um homem trigueiro, de mediana estatura, magro, débil de forças físicas, mas com uma cabeça e um olhar indicativos de muita energia moral e alentado ânimo.

 

Tinha um ar de inocência, mas não da inocência abatida e receosa; parecia antes que se glorificava com a prisão, e afrontava a justiça humana, não com a impavidez do malfeitor, mas com a daquele que confia na justiça divina.

 

Passei a interrogá-lo, começando pela declaração de que eu ia para defendê-lo. Disse-lhe que nada ocultasse dos acontecimentos que o levaram à prisão; e ele, com uma rara placidez de ânimo, contou-me toda a história do seu crime.

 

Julião fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e trabalho. Suas boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com que falava e adorava o protetor não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim de certo tempo, deu a Julião um sítio que ficava pouco distante da fazenda, para lá fora morar Julião com uma filha menor, cuja mãe morrera em conseqüência dos acontecimentos que levaram Julião a recorrer à proteção do fazendeiro.

 

Tinha a pequena sete anos. Era, dizia Julião, a mulatinha mais formosa daquelas dez léguas em redor. Elisa, era o nome da pequena, completava a trindade do culto de Julião, ao lado de Pio e da memória da mãe finada.

 

Laborioso por necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu frutificar o seu trabalho. Ainda assim não descansava. Queria, quando morresse, deixar um pecúlio à filha. Morrer sem deixá-la amparada era o sombrio receio que o perseguia. Podia acaso contar com a vida do fazendeiro esmoler?

 

Este tinha um filho, mais velho três anos que Elisa. Era um bom menino, educado sob a vigilância de seu pai, que desde os tenros anos inspirava-lhe aqueles sentimentos a que devia a sua imensa popularidade.

 

Carlos e Elisa viviam quase sempre juntos, naquela comunhão da infância que não conhece desigualdades nem condições. Estimavam-se deveras, a ponto de sentirem profundamente quando foi necessário a Carlos ir cursar as primeiras aulas.

 

Trouxe o tempo as divisões, e anos depois, quando Carlos apeou à porta da fazenda com uma carta de bacharel na algibeira, uma esponja se passara sobre a vida anterior. Elisa, já mulher, podia avaliar os nobres esforços de seu pai, e concentrara todos os afetos de sua alma no mais respeitoso amor filial. Carlos era homem. Conhecia as condições da vida social, e desde os primeiros gestos mostrou que abismo separava o filho do protetor da filha do protegido.

 

O dia da volta de Carlos foi dia de festa na fazenda do velho Pio. Julião tomou parte na alegria geral, como toda a gente, pobre ou remediada, dos arredores. E a alegria não foi menos pura em nenhum: todos sentiam que a presença do filho do fazendeiro era a felicidade comum.

 

Passaram-se os dias. Pio não se animava a separar-se de seu filho para que este seguisse uma carreira política, administrativa ou judiciária. Entretanto, notava-lhe muitas diferenças em comparação com o rapaz que, anos antes, lhe saíra de casa. Nem idéias, nem sentimentos, nem hábitos eram os mesmos. Cuidou que fosse um resto da vida escolástica, e esperou que a diferença da atmosfera que voltava a respirar e o espetáculo da vida simples e chã da fazenda o restabelecessem.

 

O que o magoava sobretudo, é que o filho bacharel não buscasse os livros, onde pudesse, procurando novos conhecimentos, entreter uma necessidade indispensável para o gênero de vida que ia encetar. Carlos não tinha mais que uma ocupação e uma distração: a caça. Levava dias e dias a correr o mato em busca de animais para matar, e nisso fazia consistir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos os estudos.

 

Ao meio-dia era certo vê-lo chegar ao sítio de Julião, e aí descansar um bocado, conversando sobranceiro com a filha do infatigável lavrador. Este chegava, trocava algumas palavras de respeitosa estima com o filho de Pio, oferecia-lhe parte do seu modesto jantar, que o moço não aceitava, e discorria, durante a refeição, sobre os objetos relativos à caça.

 

Passavam as coisas assim sem alteração de natureza alguma.

 

Um dia, ao entrar em casa para jantar, Julião notou que sua filha parecia triste. Reparou, e viu-lhe os olhos vermelhos de lágrimas. Perguntou o que era. Elisa respondeu que lhe doía a cabeça; mas durante o jantar, que foi silencioso, Julião observou que sua filha enxugava furtivamente algumas lágrimas. Nada disse; mas, terminado o jantar, chamou-a para junto de si, e com palavras brandas e amigas exigiu-lhe que dissesse o que tinha. Depois de muita relutância, Elisa falou:

 

— Meu pai, o que eu tenho é simples. O Sr. Carlos, em quem comecei a notar mais amizade que ao princípio, declarou-me hoje que gostava de mim, que eu devia ser dele, que só ele me poderia dar tudo quanto eu desejasse, e muitas outras coisas que eu nem pude ouvir, tal foi o espanto com que ouvi as suas primeiras palavras. Declarei-lhe que não pensasse coisas tais. Insistiu; repeli-o... Então tomando um ar carrancudo, saiu, dizendo-me:

 

— Hás de ser minha!

 

Julião estava atônito. Inquiriu sua filha sobre todas as particularidades da conversa referida. Não lhe restava dúvida acerca dos maus intentos de Carlos. Mas como de um tão bom pai pudera sair tão mau filho? perguntava ele. E esse próprio filho não era bom antes de ir para fora? Como exprobrar-lhe a sua má ação? E poderia fazê-lo? Como evitar a ameaça? Fugir do lugar em que morava o pai não era mostrar-se ingrato? Todas estas reflexões passaram pelo espírito de Julião. Via o abismo a cuja borda estava, e não sabia como escapar-lhe.

 

Finalmente, depois de animar e tranqüilizar sua filha, Julião saiu, de plano feito, na direção da fazenda, em busca de Carlos.

 

Este, rodeado por alguns escravos, fazia limpar várias espingardas de caça. Julião, depois de cumprimentá-lo alegremente, disse que lhe queria falar em particular. Carlos estremeceu; mas não podia deixar de ceder.

 

— Que me queres, Julião? disse depois de se afastar um pouco do grupo.

 

Julião respondeu:

 

— Sr. Carlos, venho pedir-lhe uma coisa, por alma de sua mãe!... Deixe minha filha sossegada.

 

— Mas que lhe fiz eu? titubeou Carlos.

 

— Oh! não negue, porque eu sei.

 

— Sabe o quê?

 

— Sei da sua conversa de hoje. Mas o que passou, passou. Fico sendo seu amigo, mais ainda, se me não perseguir a pobre filha que Deus me deu... Promete?

 

Carlos esteve calado alguns instantes. Depois:

 

— Basta, disse; confesso-te, Julião, que era uma loucura minha de que me arrependo. Vai tranqüilo: respeitarei tua filha como se fosse morta.

 

Julião, na sua alegria, quase beijou as mãos de Carlos. Correu à casa e referiu a sua filha a conversa que tivera com o filho de Pai de todos. Elisa não só por si como por seu pai, estimou o pacífico desenlace.

 

Tudo parecia ter voltado à primeira situação. As visitas de Carlos eram feitas nas horas em que Julião se achava em casa, e além disso, a presença de uma parenta velha, convidada por Julião, parecia tornar impossível nova tentativa de parte de Carlos.

 

Uma tarde, quinze dias depois do incidente que narrei acima, voltava Julião da fazenda do velho Pio. Era já perto da noite. Julião caminhava vagarosamente, pensando no que lhe faltaria ainda para completar o pecúlio de sua filha. Nessas divagações, não reparou que anoitecera. Quando deu por si, ainda se achava umas boas braças distante de casa. Apressou o passo. Quando se achava mais perto, ouviu uns gritos sufocados. Deitou a correr e penetrou no terreiro que circundava a casa. Todas as janelas estavam fechadas; mas os gritos continuavam cada vez mais angustiosos. Um vulto passou-lhe pela frente e dirigiu-se para os fundos. Julião quis segui-lo; mas os gritos eram muitos, e de sua filha. Com uma força difícil de crer em corpo tão pouco robusto, conseguiu abrir uma das janelas. Saltou, e eis o que viu:

 

A parenta que convidara a tomar conta da casa estava no chão, atada, amordaçada, exausta. Uma cadeira quebrada, outras em desordem.

 

— Minha filha! exclamou ele.

 

E atirou-se para o interior.

 

Elisa debatia-se nos braços de Carlos, mas já sem forças nem esperanças de obter misericórdia.

 

No momento em que Julião entrava por uma porta, entrava por outra um indivíduo mal conceituado no lugar, e até conhecido por assalariado nato de todas as violências. Era o vulto que Julião vira no terreiro. E outros haviam ainda, que apareceram a um sinal dado pelo primeiro, mal Julião entrou no lugar em que se dava o triste conflito da inocência com a perversidade.

 

Julião teve tempo de arrancar Elisa dos braços de Carlos. Cego de raiva, travou de uma cadeira e ia atirar-lha, quando os capangas, entrados a este tempo, o detiveram.

 

Carlos voltara a si da surpresa que lhe causara a presença de Julião. Recobrando o sangue frio, cravou os olhos odiendos no desventurado pai, e disse-lhe com voz sumida:

 

— Hás de pagar-me!

 

Depois, voltando-se para os ajudantes das suas façanhas, bradou:

 

— Amarrem-no!

 

Em cinco minutos foi obedecido. Julião não podia lutar contra cinco.

 

Carlos e quatro capangas saíram. Ficou um de vigia.

 

Uma chuva de lágrimas rebentou dos olhos de Elisa. Doía-lhe na alma ver seu pai atado daquele modo. Não era já o perigo a que escapara o que a comovia; era não poder abraçar seu pai livre e feliz. E por que estaria atado? Que intentava Carlos fazer? Matá-lo? Estas lúgubres e aterradoras idéias passaram rapidamente pela cabeça de Elisa. Entre lágrimas comunicou-as a Julião.

 

Este, calmo, frio, impávido, tranqüilizou o espírito de sua filha, dizendo-lhe que Carlos poderia ser tudo, menos um assassino.

 

Seguiram-se alguns minutos de angustiosa espera. Julião olhava para sua filha e parecia refletir. Depois de algum tempo, disse:

 

— Elisa, tens realmente a tua desonra por uma grande desgraça?

 

— Oh! meu pai! exclamou ela.

 

— Responde: se te faltasse a pureza que recebeste do céu, considerar-te-ias a mais infeliz de todas as mulheres?

 

— Sim, sim, meu pai!

 

Julião calou-se.

 

Elisa chorou ainda. Depois voltou-se para a sentinela deixada por Carlos e quis implorar-lhe misericórdia. Foi atalhada por Julião.

 

— Não peças nada, disse este. Só há um protetor para os infelizes: é Deus. Há outro depois dele; mas esse está longe... Ó Pai de todos, que filho te deu o Senhor!...

 

Elisa voltou para junto de seu pai.

 

— Chega-te para mais perto, disse este.

 

Elisa obedeceu.

 

Julião tinha os braços atados; mas podia mover, ainda que pouco, as mãos. Procurou afagar Elisa, tocando-lhe as faces e beijando-lhe a cabeça. Ela inclinou-se e escondeu o rosto no peito de seu pai.

 

A sentinela não dava fé do que se passava. Depois de alguns minutos do abraço de Elisa e Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A sentinela correu aos dois. Elisa caíra completamente, banhada em sangue.

 

Julião tinha procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça deixada por Carlos sobre uma cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a no peito de Elisa. Quando a sentinela correu para ele, não teve tempo de evitar o segundo golpe, com que Julião tornou mais profunda e mortal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas convulsões.

 

— Assassino! clamou a sentinela.

 

— Salvador!... salvei minha filha da desonra!

 

— Meu pai!... murmurava a pobre pequena expirando.

 

Julião, voltando-se para o cadáver, disse, derramando duas lágrimas, duas só, mas duas lavas rebentadas do vulcão de sua alma:

 

— Dize a Deus, minha filha, que te mandei mais cedo para junto dele para salvar-te da desonra.

 

Depois fechou os olhos e esperou.

 

Não tardou que entrasse Carlos, acompanhado de uma autoridade policial e vários soldados.

 

Saindo da casa de Julião, teve a idéia danada de ir declarar à autoridade que o velho lavrador tentara contra a vida dele, razão por que teve de lutar, o conseguira deixá-lo amarrado.

 

A surpresa de Carlos e dos policiais foi grande. Não cuidavam encontrar o espetáculo que a seus olhos se ofereceu. Julião foi preso. Não negou o crime. Somente reservou-se para contar as circunstâncias dele na ocasião competente.

 

A velha parenta foi desatada, desamordaçada e conduzida à fazenda de Pio.

 

Julião, depois de contar-me toda a história cujo resumo acabo de fazer, perguntou-me:

 

— Diga-me, Sr. doutor, pode ser meu advogado? Não sou criminoso?

 

— Serei seu advogado. Descanse, estou certo de que os juízes reconhecerão as circunstâncias atenuantes do delito.

 

— Oh! não é isso que me aterroriza. Seja ou não condenado pelos homens, é coisa que nada monta para mim. Se os juízes não forem pais, não me compreenderão, e então é natural que sigam os ditames da lei. Não matarás, é dos mandamentos eu bem sei...

 

Não quis magoar a alma do pobre pai continuando naquele diálogo. Despedi-me dele e disse que voltaria depois.

 

Saí da cadeia alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu acabava de ouvir. No caminho as idéias se me clarearam. Meu espírito voltou-se vinte e três séculos atrás, e pude ver, no seio da sociedade romana, um caso idêntico ao que se dava na vila de ***.

 

Todos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de Sicília e outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi essa tragédia a precursora da queda dos decênviros. Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível de tomá-la por simples simpatia, determinou o decênviro empregar um meio violento. O meio foi escravizá-la. Peitou um sicofanta, que apresentou-se aos tribunais reclamando a entrega de Virgínia, sua escrava. O desventurado pai, não conseguindo comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de açougue e cravou-a no peito de Virgínia.

 

Pouco depois caíam os decênviros e restabelecia-se o consulado.

 

No caso de Julião não haviam decênviros para abater nem cônsules para levantar; mas havia a moral ultrajada e a malvadez triunfante. Infelizmente estão ainda longe, esta da geral repulsão, aquela do respeito universal.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Fazendo todas estas reflexões, encaminhava-me eu para a casa do amigo em que estava hospedado. Ocorreu-me uma idéia, a de ir à fazenda de Pio, autor do bilhete que me chamara da corte, e de quem eu podia saber muita coisa mais.

 

Não insisto em observar a circunstância de ser o velho fazendeiro quem se interessava pelo réu e pagava as despesas da defesa nos tribunais. Já o leitor terá feito essa observação, realmente honrosa para aquele deus da terra.

 

O sol, apesar da estação, queimava suficientemente o viandante. Ir a pé à fazenda, quando podia ir a cavalo, era ganhar fadiga e perder tempo sem proveito. Fui à casa e mandei aprontar o cavalo. O meu hóspede não estava em casa. Não quis esperá-lo, e sem mais companhia dirigi-me para a fazenda.

 

Pio estava em casa. Mandei-lhe dizer que uma pessoa da corte desejava falar-lhe. Fui recebido incontinente.

 

Achei o velho fazendeiro em conversa com um velho padre. Pareciam, tanto o secular como o eclesiástico, dois verdadeiros soldados do Evangelho combinando-se para a mais extensa prática do bem. Tinham ambos a cabeça branca, o olhar sereno, a postura grave e o gesto despretensioso. Transluzia-lhes nos olhos a bondade do coração. Levantaram-se quando apareci e vieram cumprimentar-me.

 

O fazendeiro era quem chamava mais a minha atenção, pelo que ouvira dizer dele ao meu amigo e ao pai de Elisa. Pude observá-lo durante alguns minutos. Era impossível ver aquele homem e não adivinhar o que ele era. Com uma palavra branda e insinuante disse-me que diante do capelão não tinha segredos, e que eu dissesse o que tinha para dizer. E começou por me perguntar quem era eu. Disse-lho; mostrei-lhe o bilhete, declarando que sabia ser dele, razão por que o procurara.

 

Depois de algum silêncio disse-me:

 

— Já falou ao Julião?

 

— Já.

 

— Conhece então toda a história?

 

— Sei do que ele me contou.

 

— O que ele lhe contou é o que se passou. Foi uma triste história que me envelheceu ainda mais em poucos dias. Reservou-me o céu aquela tortura para o último quartel da vida. Soube o que fez. É sofrendo que se aprende. Foi melhor. Se meu filho havia de esperar que eu morresse para praticar atos tais com impunidade, bom foi que o fizesse antes, seguindo-se assim ao delito o castigo que mereceu.

 

A palavra castigo impressionou-me. Não me pude ter e disse-lhe:

 

— Fala em castigo. Pois castigou seu filho?

 

— Pois então? Quem é o autor da morte de Elisa?

 

— Oh!... isso não, disse eu.

 

— Não foi autor, foi causa. Mas quem foi o autor da violência à pobre pequena? Foi decerto meu filho.

 

— Mas esse castigo?...

 

— Descanse, disse o velho adivinhando a minha indiscreta inquietação. Carlos recebeu um castigo honroso, ou, por outra, sofre como castigo aquilo que devia receber como honra. Eu o conheço. Os cômodos da vida que teve, a carta que alcançou pelo estudo, e certa dose de vaidade que todos nós recebemos do berço, e que o berço lhe deu a ele em grande dose, tudo isso é que o castiga neste momento, porque tudo foi desfeito pelo gênero de vida que lhe fiz adotar. Carlos é agora soldado.

 

— Soldado! exclamei eu.

 

— É verdade. Objetou-me que era doutor. Disse-lhe que devia lembrar-se de que o era quando penetrou na casa de Julião. A muito pedido, mandei-o para o Sul, com promessa jurada, e avisos particulares e reiterados, de que, mal chegasse ali, assentasse praça em um batalhão de linha. Não é um castigo honroso? Sirva a sua pátria, e guarde a fazenda e a honra dos seus concidadãos: é o melhor meio de aprender a guardar a honra própria.

 

Continuamos em nossa conversa durante duas horas quase. O velho fazendeiro mostrava-se magoadíssimo sempre que volvíamos a falar do caso de Julião. Depois que lhe declarei que tomava conta da causa em defesa do réu, instou comigo para que nada poupasse a fim de alcançar a diminuição da pena de Julião. Se for preciso, dizia ele, apreciar com as considerações devidas o ato de meu filho, não se acanhe: esqueça-se de mim, porque eu também me esqueço de meu filho.

 

Cumprimentei aquela virtude romana, despedi-me do padre, e saí, depois de prometer tudo o que me foi pedido.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

— Então, falaste a Julião? perguntou o meu amigo quando me viu entrar em casa.

 

— Falei, e falei também ao Pai de todos... Que história, meu amigo!... Parece um sonho.

 

— Não te disse?... E defendes o réu?

 

— Com toda a certeza.

 

Fui jantar, e passei o resto da tarde conversando acerca do ato de Julião e das virtudes do fazendeiro.

 

Poucos dias depois instalou-se o júri onde tinha de comparecer Julião.

 

De todas as causas, era aquela a que mais medo me fazia; não que eu duvidasse das atenuantes do crime, mas porque receava não estar na altura da causa.

 

Toda a noite da véspera foi para mim de verdadeira insônia. Enfim raiou o dia marcado para o julgamento de Julião. Levantei-me, comi pouco e distraído, e vesti-me. Entrou-me no quarto o meu amigo.

 

— Lá te vou ouvir, disse-me ele abraçando.

 

Confessei-lhe os meus receios; mas ele, para animar-me, entreteceu uma grinalda de elogios que eu mal pude ouvir, no meio das minhas preocupações.

 

Saímos.

 

Dispenso os leitores da narração do que se passou no júri. O crime foi provado pelo depoimento das testemunhas; nem Julião o negou nunca. Mas apesar de tudo, da confissão e da prova testemunhal, auditório, jurados, juiz e promotor, todos tinham pregados no réu olhos de simpatia, admiração e compaixão.

 

A acusação limitou-se a referir o depoimento das testemunhas, e quando, terminando o seu discurso, teve de pedir a pena para o réu, o promotor mostrava-se envergonhado de estar trêmulo e comovido.

 

Tocou-me a vez de falar. Não sei o que disse. Sei que as mais ruidosas provas de adesão surgiam no meio do silêncio geral. Quando terminei, dois homens invadiram a sala e abraçaram-me comovidos: o fazendeiro e o meu amigo.

 

Julião foi condenado a dez anos de prisão. Os jurados tinham ouvido a lei, e igualmente, talvez, o coração.

 

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CAPÍTULO V

 

No momento em que escrevo estas páginas, Julião, tendo já cumprido a sentença, vive na fazenda de Pio. Pio não quis que ele voltasse ao lugar em que se dera a catástrofe, e fá-lo residir ao pé de si.

 

O velho fazendeiro tinha feito recolher as cinzas de Elisa em uma urna, ao pé da qual vão ambos orar todas as semanas.

 

Aqueles dois pais, que assistiram ao funeral das suas esperanças, acham-se ligados intimamente pelos laços do infortúnio.

 

Na fazenda fala-se sempre de Elisa, mas nunca de Carlos. Pio é o primeiro a não magoar o coração de Julião com a lembrança daquele que o levou a matar sua filha.

 

Quanto a Carlos, vai resgatando como pode o crime com que atentou contra a honra de uma donzela e contra a felicidade de dois pais.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 26 de maio de 2022

VINTE ANOS! VINTE ANOS! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VINTE ANOS! VINTE ANOS!
Machado de Assis

 

 

 

Gonçalves, despeitado, amarrotou o papel, e mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama, de barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez ou doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua detrás da Lapa.

 

Não há leitor, menos ainda leitora, que não imagine logo que o papel é uma carta, e que a carta é de amores, alguma zanga de moça, ou notícia de que o pai os ameaçava, que a intimou a ir para fora, para a roça, por exemplo. Vão conjecturas! Não se trata de amores, não é mesmo carta, posto que haja embaixo algumas palavras assinadas e datadas, com endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos primeiros bancos do mundo, e Gonçalves não dá pela falta. Por outro lado, os vinte anos são também confiados e cegos; Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai em desmandos. Ultimamente, viu um sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha dinheiro, mas comprou-os fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o animou. Lá se vão quatro meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves lembrou-se de escrever uma carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais maneiras de estilo, que enterneceriam a mais dura pedra do mundo.

 

O correspondente não era pedra, mas também não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e possuía cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande queda para gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era preciso pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente? Mandou dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia primeiro escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que pagara outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas embaixo da conta, que devolveu.

 

Compreende-se o pesar do rapaz. Não só ficava a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se fosse outra coisa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma coisa que realmente ele achou depois que era um trambolho, pesado, enorme e quente... Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que necessidade era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de escrever! que carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a primeira: a última ameaçava-o com a miséria.

 

Depois de dizer o diabo do correspondente, de fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma coisa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos.

 

— Deixa estar, patife! quebro-te a cara.

 

E, trêmulo, agitado, vestiu-se às carreiras, chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na escada, voltou ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver se estava boa; estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no chão — o que lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal saiu.

 

— Não, patife! não me pregas outra.

 

Eram os vinte anos que irrompiam cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes de chegar à Rua de Uruguaiana, alguém chamou por ele.

 

— Gonçalves! Gonçalves!

 

Não ouviu e foi andando. A voz era de dentro de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à rua, e pegou-o pelo ombro.

 

— Onde vais?

 

— Já volto...

 

— Vem cá primeiro.

 

E tomando-lhe o braço, voltou para o café, onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, — todos da mesma idade. Perguntaram-lhe onde ia; Gonçalves respondeu que ia castigar um pelintra, donde os quatro colegas concluíram que não se tratava de nenhum crime público, inconfidência ou sacrilégio, — mas de algum credor ou rival. Um deles chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em paz.

 

— Que Brito? perguntou o Gonçalves.

 

— Que Brito? O preferido, o tal, o dos bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho?

 

Gonçalves deu de ombros, e pediu uma xícara de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há coisa muito séria. Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a tal Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara. Gonçalves não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e demorados. Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras, cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo, análise das belezas.

 

— Mais café, disse Gonçalves.

 

— Não quer cognac?

 

— Traga... não... está bom, traga.

 

Vieram ambas as coisas. Uma das belezas citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui um prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a ser ministro.

 

— E o Gonçalves genro do ministro!

 

— Deixa de graças, redargüiu rindo o Gonçalves.

 

— Que tinha?

 

— Não gosto de graças. Eu genro? Demais, vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou radical...

 

— Sim, mas os radicais também se casam, observou um.

 

— Com as radicais, emendou outro.

 

— Justo. Com as radicais...

 

— Mas você não sabe se ela é radical.

 

— Ora bolas, o café está frio! exclamou Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a vocês que eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram Aristóteles?

 

— Não.

 

— Nem eu.

 

— Deve ser um bom autor.

 

— Excelente, insistiu Gonçalves. Ó Lamego, tu lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós lhe pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles?

 

E contou a anedota, que na verdade era alegre e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas gargalhadas sacudidas e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas pouco; pediu terceira xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como falasse de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciência moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Büchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas.

 

— Cinco horas! exclamaram dois ou três.

 

— No meu estômago são sete, ponderou um dos outros.

 

— Onde jantam vocês?

 

Resolveram fazer uma revista de fundos e ir jantar juntos. Reuniram seis mil-réis; foram a um hotel modesto, e comeram bem, sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando saíram. Caía a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de S. Francisco. De caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças retardatárias; viram outras no ponto dos bonds de S. Cristóvão. Uma delas desafiou mesmo a curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou que era muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida ou não, Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bond em que ela fosse; os outros ouviram rindo.

 

Nisto a noite foi chegando; eles tornaram à Rua do Ouvidor. Às sete e meia caminharam para um teatro, não para ver o espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver entrar as senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas, trocadilhos, pachuchadas; muita alegria em todos, mas principalmente no Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada. Às nove horas tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma caixa por vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 25 de maio de 2022

VIDROS QUEBRADOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VIDROS QUEBRADOS

Machado de Assis

 

 

 

— Homem, cá para mim isto de casamentos são coisas talhadas no céu. É o que diz o povo, e diz bem. Não há acordo nem conveniência nem nada que faça um casamento, quando Deus não quer...

 

— Um casamento bom, emendou um dos interlocutores.

 

— Bom ou mau, insistiu o orador. Desde que é casamento é obra de Deus. Tenho em mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes... Ainda é cedo para o voltarete. Eu estou abarrotado...

 

Venâncio é o nome deste cavalheiro. Está abarrotado, porque ele e três amigos acabavam de jantar. As senhoras foram para a sala conversar do casamento de uma vizinha, moça teimosa como trinta diabos, que recusou todos os noivos que o pai lhe deu, e acabou desposando um namorado de cinco anos, escriturário no Tesouro. Foi à sobremesa que este negócio começou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a companhia bifurcou-se; elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava o voltarete habitual. Aí o Venâncio enunciou o princípio da origem divina dos matrimônios, princípio que o Leal, sócio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos matrimônios bons. Os maus, segundo ele explicou daí a pouco, eram obra do diabo.

 

— Vou dar-lhes a prova, continuou o Venâncio, desabotoando o colete e encostando o braço no peitoril da janela que abria para o jardim. Foi no tempo da Campestre... Ah! os bailes da Campestre! Tinha eu então vinte e dois anos. Namorei-me ali de uma moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos cinqüenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido. Vocês podem imaginar se me atirei ou não ao namoro...

 

— Com a mãe?

 

— Adeus! Se dizem tolices, calo-me. Atirei-me à filha; começamos o namoro logo na primeira noite; continuamos, correspondemo-nos; enfim, estávamos ali, estávamos apaixonados, em menos de quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licença para falar à mãe; e, com efeito, dirigi uma carta à viúva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria uma grande honra, se me admitisse na família. Respondeu-me oito dias depois que Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e por isso sentia muito, e pedia-me desculpa. Imaginem como fiquei! Moço ainda, sangue na guelra, e demais apaixonado, quis ir à casa da viúva, fazer uma estralada, arrancar a moça, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e escrevi a Cecília perguntando se consentia que a tirasse por justiça. Cecília respondeu-me que era bom ver primeiro se a mãe voltava atrás; não queria dar-lhe desgostos, mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria minha e só minha...

 

Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondência. A viúva, certa da paixão da filha, fez o diabo. Começou por não ir mais à Campestre; trancou as janelas, não ia a parte nenhuma; mas nós escrevíamos um ao outro, e isso bastava. No fim de algum tempo, arranjei meio de vê-la, à noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma chácara vizinha, ajudado por uma boa preta da casa. A primeira coisa que a preta fazia era prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite, porém, o cachorro soltou-se e veio a mim. A viúva acordou com o barulho, foi à janela dos fundos, e viu-me saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva partiu para a filha:

 

— Cabeça de vento! peste! isto são coisas que se façam? foi isto que te ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como osso! Peste! peste!

 

A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue. Que a tal mulherzinha era das arábias! Mandou chamar o irmão, que morava na Tijuca, um José Soares, que era então comandante do 6º batalhão da Guarda Nacional; mandou-o chamar, contou-lhe tudo, e pediu-lhe conselho. O irmão respondeu que o melhor era casar Cecília sem demora; mas a viúva observou que, antes de aparecer noivo, tinha medo que eu fizesse alguma, e por isso tencionava retirá-la de casa, e mandá-la para o convento da Ajuda; dava-se com as madres principais...

 

Três dias depois, Cecília foi convidada pela mãe a aprontar-se, porque iam passar duas semanas na Tijuca. Ela acreditou, e mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu jurei que daria a liberdade, se chegasse a casar com a sinhá-moça. Vestiu-se, pôs a roupa necessária no baú, e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco minutos, a mãe revelou tudo à filha; não ia levá-la para a Tijuca, mas para o convento, de onde sairia quando fosse tempo de casar. Cecília ficou desesperada. Chorou de raiva, bateu o pé, gritou, quebrou os vidros do carro, fez uma algazarra de mil diabos. Era um escândalo nas ruas por onde o carro ia passando. A mãe já lhe pedia pelo amor de Deus que sossegasse; mas era inútil. Cecília bradava, jurava que era asneira arranjar noivos e conventos; e ameaçava a mãe, dava socos em si mesma... Podem imaginar o que seria.

 

Quando soube disto não fiquei menos desesperado. Mas, refletindo bem compreendi que a situação era melhor; Cecília não teria mais contemplação com a mãe, e eu podia tirá-la por justiça. Compreendi também que era negócio que não podia esfriar. Obtive o consentimento dela, e tratei dos papéis. Falei primeiro ao Desembargador João Regadas, pessoa muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos que a moça seria depositada na casa dele. Cecília era agora a mais apressada; tinha medo que a mãe a fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava aterrada, pensava em mordaças, cordas... Queria sair quanto antes.

 

Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor da viúva, quando as freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada por justiça. Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal; era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. A mulher do desembargador foi que a recebeu, e não sabia que dizer; o marido não estava em casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto, casado de dois meses, e o Jaime, viúvo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a realidade das coisas; disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era consentir no casamento, e não armar escândalo. Fizeram-me boas ausências; tanto eles como a mãe afirmaram-lhe que eu, se não tinha posição nem família, era um rapaz sério e de futuro. Cecília foi chamada à sala, e não fraqueou: declarou que, ainda que o céu lhe caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.

 

Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava então em Santos, deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a Santos. Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo interrogatório acerca da família da noiva. Depois confessou que desaprovava o meu procedimento.

 

— Andaste mal, Venâncio; nunca se deve desgostar uma mãe...

 

— Mas se ela não queria?

 

— Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos. Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família. Esse mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela é bonita?

 

— Muito bonita.

 

— Tanto melhor.

 

Pedi-lhe que viesse comigo, para assistir ao casamento. Relutou, mas acabou cedendo; impôs só a condição de esperar um mês. Escrevi para a Corte, e esperei as quatro mais longas semanas da minha vida. Afinal chegou o dia, mas veio um desastre, que me atrapalhou tudo. Minha mãe deu uma queda, e feriu-se gravemente; sobreveio erisipela, febre, mais um mês de demora, e que demora! Não morreu, felizmente; logo que pôde viemos todos juntos para a Corte, e hospedamo-nos no Hotel Pharoux; por sinal que assistiram, no mesmo dia, que era o 25 de março, à parada das tropas no Largo do Paço.

 

Eu é que não me pude ter, corri a ver Cecília. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a mulher do desembargador que me recebeu, mas tão fria que desconfiei. Voltei no dia seguinte, e a recepção foi ainda mais gelada. No terceiro dia, não pude mais e perguntei se Cecília teria feito as pazes com a mãe, e queria desfazer o casamento. Mastigou e não respondeu nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Cecília; depois, rasguei-a, e escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras estava doente, ou se não queria mais casar. Responderam-me vocês? Assim me respondeu ela.

 

— Tinha feito as pazes com a mãe?

 

— Qual! Ia casar com o filho viúvo do desembargador, o tal que morava com o pai. Digam-me, se não é mesmo obra talhada no céu?

 

— Mas as lágrimas, os vidros quebrados?...

 

— Os vidros quebrados ficaram quebrados. Ela é que casou com o filho do depositário, daí a seis semanas... Realmente, se os casamentos não fossem talhados no céu, como se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o que lhes digo. São coisas arranjadas por Deus. Mal comparado, é como no voltarete: eu tinha licença em paus, mas o filho do desembargador, que tinha outra em copas, preferiu e levou o bolo.

 

— É boa! Vamos à espadilha.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 24 de maio de 2022

A VIDA ETERNA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A VIDA ETERNA

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 23 de maio de 2022

VIAGEM À RODA DE MIM MESMO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

VIAGEM À RODA DE MIM MESMO

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 22 de maio de 2022

VERBA TESTAMENTÁRIA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

VERBA TESTAMENTÁRIA

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 21 de maio de 2022

VÊNUS! DIVINA VÊNUS! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VÊNUS! DIVINA VÊNUS!

Machado de Assis

 

 

 

— Vênus! Vênus! divina Vênus!

 

E despegando os olhos da parede, onde estava uma cópia pequenina da Vênus de Milo, Ricardo arremeteu contra o papel e arrancou de si dois versos para completar uma quadra começada às sete horas da manhã. Eram sete e meia; a xícara de café, que a mãe lhe trouxera antes de sair para a missa, estava intacta e fria sobre a mesa; a cama, ainda desfeita, era uma pequena cama de ferro, a mesa em que escrevia era de pinho; a um canto um par de sapatos, o chapéu pendente de um prego. Desarranjo e falta de meios. O poeta, com os pés metidos em chinelas velhas, com a cabeça apoiada na mão esquerda, ia escrevendo a poesia. Tinha acabado a quadra e releu-a:

 

Mimosa flor que dominas

Todas as flores do prado,

Tu tens as formas divinas

De Vênus, modelo amado.

 

Os dois últimos versos não lhe pareceram tão bons como os dois primeiros, nem lhe saíram tão fluentemente. Ricardo deu uma pancadinha seca na borda da mesa, e endireitou o busto. Concertou os bigodes, fitou novamente a Vênus de Milo, — uma triste cópia em gesso, — e tratou de ver se os versos lhe saíam melhores.

 

Tem vinte anos este moço, olhos claros e miúdos, cara sem expressão, nem bonita nem feia, banal. Cabelo reluzente de óleo, que ele põe todos os dias. Dentes tratados com esmero. As mãos são delgadinhas, como os pés, e tem as unhas compridas e encurvadas. Empregado em um dos arsenais, vive com a mãe (já não tem pai), e paga a casa e parte da comida. A outra parte é paga pela mãe, que, apesar de velha, trabalha muito. Moram no bairro dos Cajueiros. O ano em que isto se dava era o de 1859. É domingo. Dizendo que a mãe foi à missa, quase não é preciso acrescentar que com um surrado vestido preto.

 

Ricardo prosseguia. O amor às unhas faz com que não as roa, quando se acha em dificuldades métricas. Em compensação, afaga a ponta do nariz com a ponta dos dedos. Esforça-se por sacar dali dois versos substitutivos, mas inutilmente. Afinal, tanto repetiu os dois versos condenados, que acabou por achar a quadra excelente e continuou a poesia. Saiu a segunda estrofe, depois a terceira, a quarta e a quinta. A última dizia que o Deus verdadeiro, querendo provar que os falsos não eram tão poderosos como supunham, inventara, contra a bela Vênus, a formosa Marcela. Gostou desta idéia; era uma chave de ouro. Ergueu-se e passeou pelo quarto, recitando os versos; em seguida, parou diante da Vênus de Milo, encantado da comparação. Chegou a dizer-lhe em voz alta:

 

— Os braços que te faltam são os braços dela!

 

Também gostou desta idéia, e tentou convertê-la em uma estrofe, mas a veia esgotara-se. Copiou a poesia, — primeiramente, em um caderno de outras; depois, em uma folha de papel bordado. Acabava a cópia quando a mãe voltava da missa. Mal teve tempo de guardar tudo na gaveta. A mãe viu que ele não bebera o café, feito por ela, e posto ali com a recomendação de que o não deixasse esfriar.

 

"Hão de ser os malditos versos!" pensou ela consigo.

 

— Sim, mamãe, foram os malditos versos! disse ele.

 

Maria dos Anjos, espantada:

 

— Você adivinhou o que eu pensei?

 

Ricardo podia responder que já lhe ouvira muitas vezes aquelas palavras, acompanhadas de certo gesto característico; mas preferiu mentir.

 

— O poeta adivinha. A inspiração não serve só para compor versos, mas também para ler na alma dos outros.

 

— Então, você leu também que eu rezei hoje na missa por você... ?

 

— Li, sim, senhora.

 

— E que pedi a Nossa Senhora, minha madrinha, que acabe com essa paixão, por aquela moça... Como se chama mesmo?

 

Ricardo, depois de alguns instantes, respondeu:

 

— Marcela.

 

— Marcela, é verdade. Não disse o nome, mas Nossa Senhora sabe. Eu não digo que vocês não se mereçam; não a conheço. Mas, Ricardo, você não pode tomar estado. Ela é filha de doutor, não há de querer lavar nem engomar.

 

Ricardo teve moralmente náuseas. Aquela idéia reles de lavar e engomar era própria de uma alma baixa, ainda que excelente. Venceu o asco, e olhou para a mãe com um gesto igualmente amigo e superior. No almoço, disse-lhe que Marcela era a mais famosa moça do bairro.

 

— Mamãe acredita que os anjos venham à terra? Marcela é um anjo.

 

— Acredito, meu filho, mas os anjos comem, quando estão neste mundo e se casam... Ricardo, se você anda com tanta vontade de casar, por que não aceita Felismina, sua prima, que gosta tanto de você?

 

— Ora, mamãe! Felismina!

 

— Não é rica, é pobre...

 

— Quem lhe fala em dinheiro? Mas, Felismina! basta-lhe o nome; é difícil achar outro tão ridículo. Felismina!

 

— Não foi ela que escolheu o nome, foi o pai, quando ela se batizou.

 

— Pois sim, mas não se segue que seja bonito. E depois, eu não gosto dela, é prosaica, tem o nariz comprido e os ombros estreitos, sem graça; os olhos parecem mortos, olhos de peixe podre, e fala arrastado. Parece da roça.

 

— Também eu sou da roça, meu filho, replicou a mãe com brandura.

 

Ricardo almoçou, passou o dia agitado, felizmente lendo versos, que foram o seu calmante. Tinha um volume de Casimiro de Abreu, outro de Soares de Passos, um de Lamartine, não contando os seus próprios manuscritos. De noite, foi à casa de Marcela. Ia resoluto. Não eram os primeiros versos que escrevia à moça, mas não lhe entregara nenhuns, — por acanhamento. De fato, esse namoro que Maria dos Anjos receava acabasse em casamento, não passava ainda de alguns olhares e durava já umas seis semanas. Foi o irmão de Marcela que apresentou ali o nosso poeta, com quem se encontrava, às tardes, em um armarinho do bairro. Disse que era um moço de muita habilidade. Marcela, que era bonita, não deixava passar olhos sem fazer-lhes alguma pergunta a tal respeito, e como as respostas eram todas afirmativas, fingia não entendê-las e continuava o interrogatório. Ricardo respondeu pronto e entusiasmado; tanto bastou para continuarem uma variação infinita sobre o mesmo tema. Entretanto, não havia nenhuma palavra de boca, trocada entre eles, coisa que parecesse com declaração. Os próprios dedos de Ricardo eram frouxos, quando recebiam os dela, que eram frouxíssimos.

 

"Hoje dou o golpe", ia ele pensando.

 

Havia gente em casa do Dr. Viana, pai da moça. Tocava-se piano; Marcela perguntou-lhe logo com os olhos do costume:

 

— Que tal me acha?

 

— Linda, angélica, respondeu Ricardo pelo mesmo idioma.

 

Apalpou a algibeira do fraque; lá estava a poesia metida em sobrecarta cor-de-rosa, com uma pombinha cor de ouro, em um dos cantos.

 

— Hoje temos solo, disse-lhe o filho do Dr. Viana. Aqui está este senhor, que é excelente parceiro.

 

Ricardo quis recusar; não pôde, não podia. E lá foi jogar o solo, a tentos, em um gabinete, ao pé da sala de visitas. Cerca de hora e meia não arredou pé; afinal confessou que estava cansado, precisava andar um pouco, voltaria depois.

 

Correu à sala. Marcela tocava piano, um moço de bigodes compridos, ao pé dela, ia cantar não sei que ária de ópera italiana. Era tenor, cantou, romperam grandes palmas. Ricardo, ao canto de uma janela, fez-lhe o favor de umas palminhas, e esperou os olhos da pianista. Os dele meditavam já esta frase: "Sois o mais belo, o mais puro, o mais adorável dos arcanjos, ó soberana do meu coração e da minha vida". Marcela, entretanto, foi sentar-se entre duas amigas, e de lá perguntou-lhe:

 

— Pareço-lhe bonita?

 

— Sois o mais belo, o mais...

 

Não pôde acabar. Marcela falou às amigas, e encaminhou os olhos para o tenor, com a mesma pergunta:

 

— Pareço-lhe bonita?

 

Ele, pela mesma língua, respondeu que sim, mas com tal clareza e autoridade, como se fora o próprio inventor do idioma. E não esperou nova pergunta; não se restringiu à resposta; disse-lhe com energia:

 

— E eu, que lhe pareço?

 

Ao que Marcela respondeu, sem grande hesitação:

 

— Um belo noivo.

 

Ricardo empalideceu. Não somente viu a significação da resposta, mas ainda assistiu ao diálogo, que continuou com vivacidade, abundância e expressão. De onde vinha esse pelintra? Era um jovem médico, chegado dias antes da Bahia, recomendado ao pai de Marcela; jantara ali, a reunião era em honra dele. Médico distinto, bela voz de tenor... Tais foram as informações que deram ao pobre-diabo. Durante o resto da noite, apenas pôde colher um ou dois olhares rápidos. Resolveu sair mais cedo para mostrar que estava ferido.

 

Não foi logo para casa; vagou uma hora ou mais, entre o desânimo e o furor, falando alto, jurando esquecê-la, desprezá-la. No dia seguinte, almoçou mal, trabalhou mal, jantou mal, e trancou-se no quarto, à noite. A consolação única eram os versos, que achava lindos. Releu-os com amor. E a musa deu-lhe a força d’alma que a aventura de domingo lhe tirara. Passados três dias, Ricardo não pôde mais consigo, e foi à casa do Dr. Viana; achou-o de chapéu na cabeça, esperando que as senhoras acabassem de vestir-se; iam ao teatro. Marcela desceu daí a pouco, radiante, e perguntou-lhe ocularmente:

 

— Que tal me acha com este vestido?

 

— Linda, respondeu ele.

 

Depois, animando-se um pouco, perguntou Ricardo à moça, sempre com os olhos, se queria que também ele fosse ao teatro. Marcela não lhe respondeu; dirigiu-se para a janela, a ver o carro que chegara. Ele não sabia (como sabê-lo?) que o jovem médico baiano, o tenor, o diabo, Maciel, em suma, combinara com a família ir ao teatro, e já lá os estava esperando. No dia seguinte, com o pretexto de saber que tal andara o espetáculo, correu à casa de Marcela. Achou-a em conversação com o tenor, ao lado um do outro, confiança que nunca lhe dera. Quinze dias depois falou-se da possibilidade de uma aliança; quatro meses depois estavam casados.

 

Quisera contar aqui as lágrimas de Ricardo; mas não as houve. Imprecações, sim, protestos, juramento, ameaças, vindo tudo a acabar em uma poesia com o título Perjura. Publicou esses versos, e, para lhes dar toda a significação, pôs-lhe a data do casamento. Marcela, porém, estava na lua-de-mel, não lia outros jornais além dos olhos do marido.

 

Amor cura amor. Não faltavam mulheres que tomassem a si essa obra demisericórdia. Uma Fausta, uma Dorotéia, uma Rosina, ainda outras, vieram sucessivamente adejar as asas nos sonhos do poeta. Todas tiveram a mesma madrinha:

 

— Vênus! Vênus! divina Vênus!

 

Choviam versos; as rimas buscavam rimas, cansadas de serem as mesmas; a poesia fortalecia o coração do moço. Nem todas as mulheres tiveram notícia do amor do poeta; mas bastava que existissem, que fossem belas, ou quase, para fasciná-lo e inspirá-lo. Uma dessas tinha apenas dezesseis anos, chamava-se Virgínia e era filha de um tabelião, com quem Ricardo se fez encontradiço para mais facilmente penetrar-lhe em casa. Foi-lhe apresentado como poeta.

 

— Sim? Eu sempre gostei de versos, disse o tabelião; se não fosse o meu cargo, escreveria alguns sonetinhos. No meu tempo compus fábulas. O senhor gosta de fábulas?

 

— Como não? redargüiu Ricardo. A poesia lírica é melhor, mas a fábula...

 

— Melhor? Não compreendo. A fábula tem conceito, além da graça de fazer falar os animais...

 

— Justamente!

 

— Então, como é que disse que a poesia lírica era melhor?

 

— Num sentido.

 

— Que sentido?

 

— Quero dizer, cada forma tem a sua beleza; assim, por exemplo...

 

— Exemplos não faltam. A questão é que o senhor acha a poesia lírica melhor que a fábula. Só se não acha?

 

— Realmente, parece que não é melhor, confessou Ricardo.

 

— Diga logo inferior. Luar, névoas, virgens, lago, estrelas, olhos de anjo, são palavras vãs, boas para poetas apatetados. Eu, tirando-me a fábula e a sátira, não sei para que serve a poesia. Para encher a cabeça de caraminholas, e o papel de tolices...

 

Ricardo aturou toda essa rabugice do notário, para o fim de ser admitido em casa dele — coisa fácil, porque o pai de Virgínia tinha algumas fábulas antigas e outras inéditas e poucos ouvintes do ofício, ou verdadeiramente nenhum. Virgínia acolheu o moço com boa vontade; era o primeiro que lhe falava de amores — porque desta vez o nosso Ricardo não se deixou ficar atado. Não lhe fez declaração franca e em prosa, dava-lhe versos às escondidas. Ela guardava-os "para os ler depois" e no dia seguinte agradecia-os.

 

— Muito mimosos, dizia sempre.

 

— Eu fui apenas secretário da musa, respondeu ele uma vez; os versos foram ditados por ela. Conhece a musa?

 

— Não.

 

— Veja no espelho.

 

Virgínia entendeu e corou. Já os dedos de ambos começaram a dizer alguma coisa. O pai ia muitas vezes com eles ao Passeio Público, entretendo-os com fábulas. Ricardo estava certo de dominar a mocinha e esperava que ela fizesse os dezessete anos para pedir-lhe a mão, a ela e ao pai. Um dia, porém (quatro meses depois de conhecê-la), Virgínia adoece de moléstia grave, que a pôs entre a vida e a morte. Ricardo padeceu deveras. Não se lembrou de compor versos, nem tinha inspiração para eles; mas a leitura casual daquela elegia de Lamartine, em que há estas palavras: Elle avait seize ans; c’est bien tôt pour mourir, deu-lhe idéia de escrever alguma coisa em que aquilo entrasse por epígrafe. E trabalhava, à noite, de manhã, na rua, tudo por causa da epígrafe.

 

— Elle avait seize ans; c’est bien tôt pour mourir! repetia ele andando.

 

Felizmente, a moça arribou, ao fim de quinze dias, e, logo que pôde, foi convalescer na Tijuca, em casa da madrinha. Não foi sem levar um soneto de Ricardo, com a famosa epígrafe, o qual principiava por estes dois versos:

 

Agora, que a mimosa flor caída

Ao terrífico vento da procela...

 

Virgínia convalesceu depressa; mas não voltou logo, ficou lá um mês, dois meses, e, como eles não se correspondiam, Ricardo vivia naturalmente ansioso. O tabelião dizia-lhe que os ares eram bons, que a filha andava fraca, e não desceria sem estar inteiramente restabelecida. Um dia leu-lhe uma fábula, composta na véspera, e dedicada ao bacharel Vieira, sobrinho da comadre.

 

— Compreendeu o sentido, não? perguntou-lhe no fim.

 

— Sim, senhor, entendi que o sol, disposto a restituir a vida à lua...

 

— E não atina?

 

— A moralidade é clara.

 

— Creio; mas a ocasião...

 

— A ocasião?

 

— A ocasião é o casamento da minha pecurrucha com o bacharel Vieira, que chegou de S. Paulo; gostaram-se; foi pedida anteontem...

 

Esta nova desilusão atordoou completamente o rapaz. Desenganado, jurou acabar com mulheres e musas. Que eram musas senão mulheres? Contou à mãe esta resolução, sem entrar em pormenores, e a mãe o aprovou de todo. De fato, meteu-se em casa, as tardes e as noites, deu de mão aos passeios e aos namoros. Não compôs mais versos, esteve a ponto de quebrar a Vênus de Milo. Um dia soube que Felismina, a prima, ia casar. Maria dos Anjos pediu-lhe uns cinco ou dez mil-réis para um presentinho; ele deu-lhe dez mil-réis, logo que recebeu o ordenado.

 

— Com quem casa? perguntou.

 

— Com um moço da Estrada de Ferro.

 

Ricardo consentiu em ir com a mãe, à noite, visitar a prima. Lá achou o noivo, ao pé dela, no canapé, conversando baixinho. Depois das apresentações, Ricardo encostou-se ao canto de uma janela, e o noivo foi ter com ele, passados alguns minutos, para dizer-lhe que estimava muito conhecê-lo, tinha uma casa às suas ordens e um criado para o servir. Já o tratava por primo.

 

— Sei que meu primo é poeta.

 

Ricardo, com fastio, deu de ombros.

 

— Ouvi dizer que é um grande poeta.

 

— Quem lhe disse isso?

 

— Pessoas que sabem. Sua prima também me disse que fazia bonitos versos.

 

Ricardo, após alguns segundos:

 

— Fiz versos; provavelmente não os farei mais.

 

Daí a pouco estavam os noivos outra vez juntos, falando baixinho. Ricardo teve-lhe inveja. Eram felizes, uma vez que gostavam um do outro. Pareceu-lhe até que ela gostava ainda mais, porque sorria sempre; e daí talvez fosse para mostrar os lindos dentes que Deus lhe dera. O andar da moça também era mais gracioso. O amor transforma as mulheres, pensava ele; a prima está melhor do que era. O noivo é que lhe pareceu um tanto impertinente, só a tratá-lo por primo... Disse isto à mãe, na volta para casa.

 

— Mas que tem isso?

 

Sonhou nessa noite que assistia ao casamento de Felismina, muitos carros, muitas flores, ela toda de branco, o noivo de gravata branca e casaca preta, ceia lauta, brindes, recitando ele Ricardo uns versos...

 

— Se outro não recitar, se não eu... disse ele de manhã, ao sair da cama.

 

E a figura de Felismina entrou a persegui-lo. Dias depois, indo à casa dela, viu-a conversar com o noivo, e teve um pequeno desejo de atirá-lo à rua. Soube que ele ia na manhã seguinte para a Barra do Piraí, a serviço.

 

— Demora-se muito?

 

— Oito dias.

 

Ricardo visitou a prima todas essas noites. Ela, aterrada com o sentimento que via nascer no primo, não sabia que fizesse. A princípio resolveu não aparecer-lhe; mas aparecia-lhe, e ouvia tudo o que ele contava com os olhos postos nos dele. A mãe dela tinha a vista curta. Na véspera da volta do noivo, Ricardo apertou-lhe a mão com força, com violência, e disse-lhe adeus "até nunca mais". Felismina não ousou pedir-lhe que viesse; mas passou a noite mal. O noivo regressou por dois dias.

 

— Dois dias? perguntou-lhe Ricardo na rua onde ele lhe deu a notícia.

 

— Sim, primo, tenho muito que fazer, explicou o outro.

 

Partiu, as visitas continuaram; os olhos falavam, os braços, as mãos, um diálogo perpétuo, não espiritual, não filosófico, um diálogo fisiológico e familiar. Uma noite, Ricardo sonhou que pegava da prima e subia com ela ao alto de um penedo, no meio do oceano. Viu-a sem braços. Acordando de manhã, olhou para a Vênus de Milo.

 

— Vênus! Vênus! divina Vênus!

 

Atirou-se à mesa, ao papel, meteu mãos à obra, para compor alguma coisa, um soneto, um soneto que fosse. E olhava para Vênus — a imagem da prima, — e escrevia, riscava, tornava a escrever e a riscar, e novamente escrevia até que lhe saíram os dois primeiros versos do soneto. Os outros vieram vindo, cai aqui, cai acolá.

 

— Felismina! exclamava ele. O nome dela há de ser a chave de ouro. Rima com divina e cristalina. E concluía assim o soneto.

 

E tu, criança amada, tão divina

Não és cópia da Vênus celebrada,

És antes seu modelo, Felismina.

 

Deu-lho nessa noite. Ela chorou depois que os leu. Tinha de pertencer a outro homem. Ricardo ouviu essa palavra e disse-lhe ao ouvido:

 

— Nunca!

 

Indo a acabar os quinze dias, o noivo escreveu dizendo que precisava ficar ainda na Barra umas duas ou três semanas. Os dois, que iam dando pressa a tudo, trataram da conclusão. Quando Maria dos Anjos ouviu ao filho que ia desposar a prima, ficou espantada, e pediu que se explicasse.

 

— Isto não se explica, mamãe...

 

— E o outro?

 

— Está na Barra. Ela já lhe escreveu pedindo desculpa e contando a verdade.

 

Maria dos Anjos abanou a cabeça, com ar de reprovação.

 

— Não é bonito, Ricardo...

 

— Mas se nós gostamos um do outro? Felismina confessou que ia casar com ele, à toa, sem vontade; que sempre gostara de mim; casava por não ter com quem.

 

— Sim, mas palavra dada...

 

— Que palavra, mamãe? Mas se eu a adoro; digo-lhe que a adoro. Queria que eu ficasse a olhar ao sinal, e ela também, só porque houve um equívoco, uma palavra dada sem reflexão? Felismina é um anjo. Não foi à toa que lhe deram um nome, que é a rima de divina. Um anjo, mamãe!

 

— Oxalá sejam felizes.

 

— Com certeza; mamãe verá.

 

Casaram-se. Ricardo era todo para a realidade do amor. Conservou a Vênus de Milo, a divina Vênus, posta na parede, apesar dos protestos de modéstia da mulher. Convém saber que o noivo casou mais tarde na Barra, Marcela e Virgínia estavam casadas. As outras moças que Ricardo amou e cantou, tinham já maridos. O poeta deixou de poetar, com grande mágoa dos seus admiradores. Um deles perguntou-lhe um dia, ansioso:

 

— Então você não faz mais versos?

 

— Não se pode fazer tudo, respondeu Ricardo, acariciando os seus cinco filhos.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 20 de maio de 2022

VALÉRIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

VALÉRIO

Machao de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 19 de maio de 2022

O ÚLTIMO CAPÍTULO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

O ÚLTIMO CAPÍTULO

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 18 de maio de 2022

A ÚLTIMA RECEITA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A ÚLTIMA RECEITA

Machado de Assis

 

 

 

A viúva Lemos adoecera; uns dizem que dos nervos, outros que de saudades do marido. Fosse o que fosse, a verdade é que adoecera, em certa noite de setembro, ao regressar de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia surda e devota. A doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que coisa seria? Na opinião da tia um cozimento de altéia e um rosário a não sei que santo do céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava a eficácia dos remédios da tia, mas opinava por um médico.

 

Chamou-se um médico.

 

Havia justamente na vizinhança um médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o Dr. Avelar, sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o Dr. Avelar na manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel.

 

O Dr. Avelar limitou-se a torcer o nariz quando examinou a enferma, e a receitar dois ou três remédios, dos quais só um era útil; o resto figurava no fundo do quadro.

 

  1. Paula tomou os remédios como quem não queria deixar a vida. Havia razão. Apenas dois anos fora casada, e contava apenas vinte e quatro anos. Havia já treze meses que lhe morria o marido. Apenas entrara no pórtico do matrimônio.

 

A esta circunstância é justo acrescentar mais duas; era bonita e tinha alguma coisa de seu. Três razões para agarrar-se à vida como o náufrago a uma tábua de salvação.

 

Uma única razão haveria para que ela aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente saudades do marido. Mas não tinha. O casamento fora um arranjo de família e dele próprio; Paula aceitou o arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não deu ao marido nem estima nem amor. Viúva dois anos depois, e ainda moça, é claro que a vida para ela começava apenas. A idéia de morrer seria para ela não só a maior de todas as calamidades, mas também a mais desastrada de todas as tolices.

 

Não quis morrer nem caso era de morte.

 

Os remédios foram tomados pontualmente; o médico mostrou-se assíduo; dentro de poucos dias, três a quatro, estava restabelecida a interessante enferma.

 

De todo?

 

Não.

 

Quando o médico voltou no quinto dia, achou-a sentada na sala, envolvida em grande roupão, com os pés numa almofada, o rosto extremamente pálido, e muito mais ainda por causa da pouca luz.

 

O estado era natural em que se levantava da cama; mas a viuvinha alegou ainda umas dores de cabeça, a que o médico chamou nevralgia, e uns temores, que foram classificados no capítulo dos nervos.

 

— Serão graves moléstias? perguntou ela.

 

— Oh! não, minha senhora, respondeu Avelar, são achaques aborrecidos, mas não graves, e geralmente próprios de doentes formosas.

 

Paula sorriu com um ar tão triste que fazia duvidar do prazer com que ouviu estas palavras do médico.

 

— Dá-me porém remédios, não? perguntou ela.

 

— Sem dúvida.

 

Avelar receitou efetivamente alguma coisa e prometeu voltar no dia seguinte.

 

A tia era surda, como sabemos, não ouvia nada da conversa entre os dois. Mas não era tola; começou a reparar que a filha ficava mais doente quando se aproximava a chegada do médico. Além disso nutria dúvidas sérias acerca da aplicação exata dos remédios. O certo é porém que Paula, tão amiga de bailes e passeios, parecia realmente doente porque não saía de casa.

 

Notou igualmente a tia que, pouco antes da hora do médico, a sobrinha fazia uma aplicação mais copiosa de pó-de-arroz. Paula era morena; ficava muito branca. A meia luz da sala, os xales, o ar mórbido tornavam-lhe a palidez extremamente verossímil.

 

A tia não parou nesse ponto; foi ainda além. Não era médico o Avelar? Naturalmente devia saber se realmente estava enferma a viúva. Interrogando o médico, asseverou que a viúva estava muito mal, e prescreveu-lhe o mais absoluto repouso.

 

Tal era a situação da enferma e do facultativo.

 

Um dia em que este entrou achou-a folheando um livro. Estava com a palidez de costume e o mesmo ar abatido.

 

— Como vai a minha doente? disse familiarmente o Dr. Avelar.

 

— Mal.

 

— Mal?

 

— Horrorosamente mal... Que lhe parece o pulso?

 

Avelar examinou-lhe o pulso.

 

— Regular, disse ele. A tez está um tanto pálida, mas os olhos parecem bons... Houve algum ataque?

 

— Não; mas sinto-me desfalecida.

 

— Deu o passeio que lhe aconselhei?

 

— Não tive ânimo.

 

— Fez mal. Não passeou e está lendo...

 

— Um livro inocente.

 

— Inocente?

 

O médico pegou no livro e examinou-lhe a lombada.

 

— Um livro diabólico! disse ele atirando-o para cima da mesa.

 

— Por quê?

 

— Livro de poeta, livro para namorados, minha senhora, que é uma casta de doentes terríveis. Não se curam eles; ou raramente se curam; mas há pior, que é adoecerem os sãos. Peço-lhe licença para confiscar o livro.

 

— Uma distração! murmurou Paula com uma doçura capaz de vencer um tirano.

 

Mas o médico mostrou-se firme.

 

— Uma perversão, minha senhora! Em ficando boa pode ler se quiser todos os poetas do século; antes, não.

 

Paula ouviu esta palavra com singular, mas disfarçada alegria.

 

— Parece-lhe então que estou muito doente? disse ela.

 

— Muito, não digo; Tem ainda um resto de abalo que só pode desaparecer com o tempo e um regímen severo.

 

— Severo demais.

 

— Mas necessário...

 

— Duas coisas lastimo sobre todas.

 

— Quais?

 

— A pimenta e o café.

 

— Oh!

 

— É o que lhe digo. Não tomar café nem pimenta é o limite da paciência humana. Quinze dias mais deste regímen ou desobedeço ou expiro.

 

— Nesse caso, expire, disse Avelar sorrindo.

 

— Acha melhor?

 

— Acho igualmente mau. O remorso, porém, será meu só, enquanto que se V. Ex.ª desobedecer terá os seus últimos instantes amargurados por um tardio arrependimento. Melhor é morrer vítima que culpada.

 

— Melhor é não morrer nem culpada nem vítima.

 

— Nesse caso não tome pimenta nem café.

 

A leitora que acaba de ler esta conversa, admirar-se-ia muito se visse a nossa doente nesse mesmo dia ao jantar: teve pimenta à farta e bebeu excelente café no fim. Não admira porque era o seu costume. A tia admirava-se com razão de uma doença que consentia tais liberdades; a sobrinha não se explicava cabalmente a este respeito.

 

Choviam convites de jantares e bailes. A viuvinha recusava-os todos por causa do seu mau estado de saúde.

 

Foi uma verdadeira calamidade.

 

Entraram a chover as visitas e bilhetes. Muitas pessoas achavam que a doença devia ser interna, muito interna, profundamente interna, visto que lhe não apareciam sinais no rosto. Os nervos (eternos caluniados!) foram a explicação que geralmente se deu à singular moléstia da moça.

 

Três meses correram assim, sem que a doença de Paula cedesse uma linha aos esforços do médico. Os esforços do médico não podiam ser maiores; de dois em dois dias uma receita. Se a doente se esquecia do seu estado e estava a falar e a corar como quem tinha saúde, o médico era o primeiro a lembrar-lhe o perigo, e ela obedecia logo entregando-se à mais prudente inação.

 

Às vezes zangava-se.

 

— Todos os senhores são uns bárbaros, dizia ela.

 

— Uns bárbaros... necessários, respondia Avelar sorrindo.

 

E acrescentava:

 

— Eu não direi o que são as doentes.

 

— Diga sempre.

 

— Não digo.

 

— Caprichosas?

 

— Mais.

 

— Rebeldes?

 

— Menos.

 

— Impertinentes?

 

— Sim. Algumas são impertinentes e amáveis.

 

— Como eu.

 

— Naturalmente.

 

— Já o esperava, dizia a viúva Lemos sorrindo. Sabe por que razão lhe perdôo tudo? É porque é médico. Um médico tem carta branca para gracejar conosco; isso mesmo nos dá saúde.

 

Neste ponto levantou-se.

 

— Parece-me até que já estou melhor.

 

— Parece e está... quero dizer, está muito mal.

 

— Muito mal?

 

— Não, muito mal, não; não está boa...

 

— Meteu-me um susto!

 

Seria realmente zombar do leitor o explicar-lhe que a doente e o médico estavam a pender um para o outro; que a doente sofria tanto como o Corcovado, e que o médico conhecia cabalmente a sua perfeita saúde. Gostavam um do outro sem se atreverem a dizer a verdade, simplesmente pelo receio de se enganarem. O meio de se falarem todos os dias era aquele.

 

Mas gostavam eles já antes da fatal constipação do baile? Não. Até então ignoravam a existência um do outro. A doença favoreceu o encontro; o encontro do coração; o coração favorecia desde logo o casamento, se tivessem caminhado em linha reta, em vez dos rodeios em que andavam.

 

Quando Paula ficou boa da constipação adoeceu do coração; não tendo outro recurso fingiu-se doente. O médico, que pela sua parte desejava isso mesmo exagerou ainda as invenções da suposta enferma.

 

A tia, sendo surda, assistia inutilmente aos diálogos da doente com o médico. Um dia escreveu a este pedindo-lhe que apressasse a cura da sobrinha. Avelar desconfiou da carta a princípio. Seria uma despedida? Podia ser pelo menos uma desconfiança. Respondeu que a moléstia de D. Paula era, aparentemente insignificante, mas podia tornar-se grave sem um regímen severo, que ele lhe recomendava sempre.

 

A situação, entretanto, prolongava-se. A doente estava cansada da doença, e o médico da medicina. Ambos eles começaram a desconfiar que não eram mal aceitos. O negócio entretanto não caminhava muito.

 

Um dia Avelar entrou triste em casa da viúva.

 

— Jesus! exclamou sorrindo a viúva; ninguém dirá que é o médico. Parece o doente.

 

— Doente de lástima, disse Avelar abanando a cabeça; por outros termos, é a lástima que me dá este ar enfermo.

 

— Lástima de quê?

 

— De V.Ex.ª.

 

— De mim?

 

— É verdade.

 

A moça riu-se consigo mesma; todavia esperou a explicação.

 

Houve um silêncio.

 

No fim dele:

 

— Sabe, disse o médico, sabe que está muito mal?

 

— Eu?

 

Avelar fez um gesto afirmativo.

 

— Já o sabia, suspirou a doente.

 

— Não digo que tudo esteja perdido, continuou o médico, mas nada se perde em prevenir.

 

— Então...

 

— Coragem!

 

— Fale.

 

— Mande chamar o padre.

 

— Aconselha-me a confissão?

 

— É indispensável.

 

— Perderam-se todas as esperanças?

 

— Todas. Confissão... e banhos.

 

A viúva soltou uma risada.

 

— E banhos?

 

— Banhos de igreja.

 

Outra risada.

 

— Aconselha-me então o casamento.

 

— Justo.

 

— Imagino que está gracejando.

 

— Estou falando muito sério. O remédio não é novo nem desprezível. Todas as semanas lá vão muitos enfermos, e dão-se bem alguns deles. É um específico inventado desde muitos séculos e que provavelmente só acabará no último dia do mundo. Pela minha parte nada mais tenho que fazer.

 

Quando a viuvinha menos esperava, Avelar levantou-se e saiu. Falava sério ou gracejava? Dois dias se passaram sem que o médico voltasse. A doente estava triste; a tia aflita; houve idéia de mandar chamar outro médico. Recusou-a a doente.

 

— Então só um médico acertou com a tua moléstia?

 

— Talvez.

 

No fim de três dias recebeu a viúva Lemos uma carta do médico.

 

Abriu-a.

 

Dizia assim:

 

É absolutamente impossível esconder por mais tempo o que sinto por V. Ex.ª. Amo-a.

 

Sua moléstia precisa de uma última receita, verdadeiro remédio para quem ama, — sim, porque V. Ex.ª também me ama. Que razão obrigaria a negá-lo?

 

Se sua resposta for afirmativa haverá mais dois entes felizes neste mundo.

 

Se negativa...

 

Adeus!

 

A carta foi lida com explosão de entusiasmo; o médico foi chamado a toda a pressa, para receber e dar saúde. Casaram-se os dois daí a quarenta dias.

 

Tal é a história da Última Receita.

 

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 17 de maio de 2022

TROCA DE DATAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TROCA DE DATAS

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 16 de maio de 2022

TRIO EM LÁ MENOR (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TRIO EM LÁ MENOR

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 15 de maio de 2022

TRINA E UNA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 14 de maio de 2022

TRÊS TESOUROS PERDIDOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 13 de maio de 2022

TRÊS CONSEQUÊNCIAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

TRÊS CONSEQUÊNCIAS

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

  1. Mariana Vaz está no derradeiro mês do primeiro ano de viúva. São 15 de dezembro de 1880, e o marido faleceu no dia 2 de janeiro, de madrugada, depois de uma bela festa do ano-bom, em que tudo dançou na fazenda, até os escravos. Não me peçam grandes notícias do finado Vaz; ou, se insistem por elas, ponham os olhos na viúva. A tristeza do primeiro dia é a de hoje. O luto é o mesmo. Nunca mais a alegria sorriu sequer na casa que vira a felicidade e a desgraça de D. Mariana.

 

Vinte e cinco anos, realmente, e vinte e cinco anos bonitos, não deviam andar de preto, mas cor-de-rosa ou azul, verde ou granada. Preto é que não. E, todavia, é a cor dos vestidos da jovem Mariana, uma cor tão pouco ajustada aos olhos dela, não porque estes também não sejam pretos, mas por serem moralmente azuis. Não sei se me fiz entender. Olhos lindos, rasgados, eloqüentes; mas, por agora quietos e mudos. Não menos eloqüente, e não menos calado é o rosto da pessoa.

 

Está a findar o ano da viuvez. Poucos dias faltam. Mais de um cavalheiro pretende a mão dela. Recentemente, chegou formado o filho de um fazendeiro importante da localidade; e é crença geral que ele restituirá ao mundo a bela viúva. O juiz municipal, que reúne à mocidade a viuvez, propõe-se a uma troca de consolações. Há um médico e um tenente-coronel indigitados como possíveis candidatos. Tudo vão trabalho! D. Mariana deixa-os andar, e continua fiel à memória do morto. Nenhum deles possui a força capaz de o fazer esquecer; — não, esquecer seria impossível; ponhamos substituir.

 

Mas, como ia dizendo, estava-se no derradeiro mês do primeiro ano. Era tempo de aliviar o luto. D. Mariana cuidou seriamente em mandar arranjar alguns vestidos escuros, apropriados à situação. Tinha uma amiga na corte, e determinou-se a escrever-lhe, remetendo-lhe as medidas. Foi aqui que interveio a tia dela, protetora do juiz municipal:

 

— Mariana, você por que não manda vir vestidos claros?

 

— Claros? Mas, titia, não vê que uma viúva...

 

— Viúva, sim; mas você não vai ficar viúva toda a vida.

 

— Como não?

 

A tia foi às do cabo:

 

— Mariana, você há de casar um dia; por que não escolhe já um bom marido? Sei de um, que é o melhor de todos, um homem honesto, sério, o Dr. Costa...

 

Mariana interrompeu-a; pediu-lhe que, pelo amor de Deus, não lhe tocasse em tal assunto. Moralmente, estava casada. O casamento dela subsistia. Nunca seria infiel ao “seu Fernando”. A tia levantou os ombros; depois lembrou-lhe que fora casada duas vezes.

 

— Oh! titia! são modos de ver.

 

A tia voltou à carga, nesse dia à noite, e no outro. O juiz municipal recebeu uma carta dela, dizendo que aparecesse para ver se tentava alguma coisa. Ele foi. Era, na verdade, um rapaz sério, muito simpático, e distinto. Mariana, vendo o plano concertado entre os dois, resolveu vir em pessoa à corte. A tia tentou dissuadi-la, mas perdeu tempo e latim. Mariana, além de fiel à memória do marido, era obstinada; não podia suportar a idéia de lhe imporem coisa nenhuma. A tia, não podendo dissuadi-la, acompanhou-a.

 

Na corte tinha algumas amigas e parentas. Elas acolheram a jovem viúva com muitas atenções, deram-lhe agasalho, carinhos, conselhos. Uma prima levou-a a uma das melhores modistas. D. Mariana disse-lhe o que queria: — sortir-se de vestidos escuros, apropriados ao estado de viúva. Escolheu vinte, sendo dois inteiramente pretos, doze escuros e simples para uso de casa, e seis mais enfeitados. Escolheu também chapéus noutra casa. Mandou fazer os chapéus, e esperou as encomendas para seguir com elas.

 

Enquanto esperava, como a temperatura ainda permitia ficar na corte, Mariana andou de um lado para outro, vendo uma infinidade de coisas que não via desde os dezessete anos. Achou a corte animadíssima. A prima quis levá-la ao teatro, e só o conseguiu depois de muita teima; Mariana gostou muito.

 

Ia freqüentes vezes à Rua do Ouvidor, já porque lhe era necessário provar os vestidos, já porque queria despedir-se por alguns anos de tanta coisa bonita. São as suas palavras. Na Rua do Ouvidor, onde a sua beleza era notada, correu logo que era uma viúva recente e rica. Cerca de vinte corações palpitaram logo, com a veemência própria do caso. Mas, que poderiam eles alcançar, eles da rua, se os da própria roda da prima não alcançavam nada? Com efeito, dois amigos do marido desta, rapazes da moda, fizeram a sua roda à viúva, sem maior proveito. Na opinião da prima, se fosse um só talvez domasse a fera; mas eram dois, e fizeram-na fugir.

 

Mariana chegou a ir a Petrópolis. Gostou muito; era a primeira vez que lá ia, e desceu cortada de saudades. A corte consolou-a; Botafogo, Laranjeiras, Rua do Ouvidor, movimento de bonds, gás, damas e rapazes, cruzando-se, carros de toda a sorte, tudo isto lhe parecia cheio de vida e movimento.

 

Mas os vestidos fizeram-se, e os chapéus enfeitaram-se. O calor começou a apertar muito; era necessário seguir para a fazenda. Mariana pegou dos chapéus e dos vestidos, meteu-se com a tia na estrada de ferro e seguiu. Parou um dia na vila, onde o juiz municipal a cumprimentou, e caminhou para casa.

 

Em casa, depois de descansada, e antes de dormir teve saudades da corte. Dormiu tarde e mal. A vida agitada da corte perpassava no espírito da moça como um espetáculo mágico. Ela via as damas que desciam ou subiam a Rua do Ouvidor, as lojas, os rapazes, os bonds, os carros; via as lindas chácaras dos arredores, onde a natureza se casava à civilização, lembrava-se da sala de jantar da prima, ao rés-do-chão, dando para o jardim, com dois rapazes à mesa, — os tais dois que a reqüestaram à toa. E ficava triste, custava-lhe fechar os olhos.

 

Dois dias depois, apareceu na fazenda o juiz municipal, a visitá-la. D. Mariana recebeu-o com muito carinho. Tinha no corpo o primeiro dos vestidos de luto aliviado. Era escuro, muito escuro, com fitas pretas e tristes; mas ficava-lhe tão bem! Desenhava-lhe o corpo com tanta graça, que aumentava a graça dos olhos e da boca.

 

Entretanto, o juiz municipal não lhe disse nada, nem com a boca nem com os olhos. Conversaram da corte, dos esplendores da vida, dos teatros, etc.; depois, por iniciativa dele, falaram do café e dos escravos. Mariana notou que ele não tinha as finezas dos dois rapazes da casa da prima, nem mesmo o tom elegante dos outros da Rua do Ouvidor; mas achou-lhe em troca, muita distinção e gravidade.

 

Dois dias depois, o juiz despediu-se; ela instou para que ele ficasse. Tinha-lhe notado no colete alguma coisa análoga aos coletes da Rua do Ouvidor. Ele ficou mais dois dias; e tornaram a falar, não só do café, como de outros assuntos menos pesados.

 

Afinal, seguiu o juiz municipal, não sem prometer que voltaria três dias depois, aniversário natalício da tia de Mariana. Nunca ali se festejara tal dia; mas a fazendeira não achou outro meio de examinar bem se as gravatas do juiz municipal eram semelhantes às da Rua do Ouvidor. Pareceu-lhe que sim; e durante os três dias de ausência não pensou em outra coisa. O jovem magistrado, ou de propósito, ou casualmente, fez-se esperar; chegou tarde; Mariana, ansiosa, não pôde conter a alegria, quando ele transpôs a porteira.

 

“Bom! disse consigo a tia; está caída.”

 

E caída ficou. Casaram-se três meses depois. A tia, experiente e filósofa, acreditou e fez crer que, se Mariana não tem vindo em pessoa comprar os vestidos, ainda agora estaria viúva; a Rua do Ouvidor e os teatros restituíram-lhe a idéia matrimonial. Parece que era assim mesmo porque o jovem casal pouco tempo depois vendeu a fazenda e veio para cá. Outra conseqüência da vinda à corte: — a tia ficou com os vestidos. Que diabo fazia Mariana com tanto vestido escuro? Deu-os à boa velha. Terceira e última conseqüência: um pequerrucho.

 

Tudo por ter vindo ao atrito da felicidade alheia.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 12 de maio de 2022

TO BE OR NOT TO BE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TO BE OR NOT TO BE

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 11 de maio de 2022

TERPSÍCORE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

TERPSÍCORE

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 10 de maio de 2022

TEMPO DE CRISE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

TEMPO DE CRISE

Machado de Assis

 

 

 

Queres tu saber, meu rico irmão, a notícia que achei no Rio de Janeiro, apenas pus pé em terra? Uma crise ministerial. Não imaginas o que é uma crise ministerial na cidade fluminense. Lá na província chegam as notícias amortecidas pela distância, e além disso completas; quando sabemos de um ministério defunto, sabemos logo de um ministério recém-nato. Aqui a coisa é diversa, assiste-se à morte do agonizante, depois ao enterro, depois ao nascimento do outro, o qual muitas vezes, graças às dificuldades políticas, só vem à luz depois de uma operação cesariana.

 

Quando desembarquei estava o C. à minha espera na Praia dos Mineiros, e as suas primeiras palavras foram estas:

 

— Caiu o ministério!

 

Tu sabes que eu tinha razões para não gostar do gabinete, depois da questão de meu cunhado, de cuja demissão ainda ignoro a causa. Todavia, senti que o gabinete morresse tão cedo, antes de dar todos os seus frutos, principalmente quando o negócio do meu cunhado era justamente o que me trazia cá. Perguntei ao C. quem eram os novos ministros.

 

— Não sei, respondeu; nem te posso afirmar se os outros caíram; mas desde manhã não corre outra coisa. Vamos saber notícias. Queres comer?

 

— Sem dúvida, respondi; vou residir no Hotel da Europa, se houver lugar.

 

— Há de haver.

 

Seguimos para o Hotel da Europa que é na Rua do Ouvidor; lá me deram um aposento e um almoço. Acendemos charutos e saímos.

 

À porta perguntei-lhe eu:

 

— Onde saberemos notícias?

 

— Aqui mesmo na Rua do Ouvidor.

 

— Pois então na Rua do Ouvidor é que?

 

— Sim; a Rua do Ouvidor é o lugar mais seguro para saber notícias. A casa do Moutinho ou do Bernardo, a casa do Desmarais ou do Garnier, são verdadeiras estações telegráficas. Ganha-se mais em estar aí comodamente sentado do que em andar pela casa dos homens da situação.

 

Ouvi silenciosamente as explicações do C. e segui com ele até um pasmatório político, onde apenas encontramos um sujeito fumando, e conversando com o caixeiro.

 

— A que horas esteve ela aqui? perguntava o sujeito.

 

— Às dez.

 

Ouvimos estas palavras entrando. O sujeito calou-se imediatamente e sentou-se numa cadeira por trás de um mostrador, batendo com a bengala na ponta do botim.

 

— Trata-se de algum namoro, não? perguntei eu baixinho ao C.

 

— Curioso! respondeu-me ele; naturalmente é algum namoro, tens razão; alguma rosa de Citera.

 

— Qual! disse eu.

 

— Por quê?

 

— Os jardins de Citera são francos; ninguém espreita as rosas por fora...

 

— Provinciano! disse o C. com um daqueles sorrisos que só ele tem; tu não sabes que, estando as rosas em moda, há certa honra para o jardineiro... Anda sentar-te.

 

— Não; fiquemos um pouco à porta; quero conhecer esta rua de que tanto se fala.

 

— Com razão, respondeu o C. Dizem de Shakespeare que, se a humanidade perecesse, ele só poderia compô-la, pois que não deixou intacta uma fibra sequer do coração humano. Aplico el cuento. A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o mais. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os sentimentos e todas as idéias...

 

— Continua, meu Virgílio.

 

— Pois vai ouvindo, meu Dante. Queres ver a elegância fluminense. Aqui acharás a flor da sociedade, — as senhoras que vêm escolher jóias ao Valais ou sedas a Notre Dame, — os rapazes que vêm conversar de teatros, de salões, de modas e de mulheres. Queres saber da política? Aqui saberás das notícias mais frescas, das evoluções próximas, dos acontecimentos prováveis; aqui verás o deputado atual com o deputado que foi, o ministro defunto e às vezes o ministro vivo. Vês aquele sujeito? É um homem de letras. Deste lado, vem um dos primeiros negociantes da praça. Queres saber do estado do câmbio? Vai ali ao Jornal do Commercio, que é o Times de cá. Muita vez encontrarás um coupé à porta de uma loja de modas: é uma Ninon fluminense. Vês um sujeito ao pé dela, dentro da loja, dizendo um galanteio? Pode ser um diplomata. Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas vidraças rutilante de riqueza, — porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom consigo, — é que a simples vista consola.

 

Saiu-me o C. tamanho filósofo que me espantou. Ao mesmo tempo agradeci ao céu tão precioso encontro. Para um provinciano, que não conhece bem a capital, é uma felicidade encontrar um cicerone inteligente.

 

O sujeito que estava dentro chegou à porta, demorou-se alguns instantes, e saiu acompanhado por outro, que então passava.

 

— Cansou de esperar, disse eu.

 

— Sentemo-nos.

 

Sentamo-nos.

 

— Fala-se então de tudo aqui?

 

— De tudo.

 

— Bem e mal?

 

— Como na vida. É a sociedade humana em ponto pequeno. Mas por enquanto o que nos importa é a crise; deixemos de moralizar...

 

Interessava-me tanto a conversa, que pedi ao C. a continuação das suas lições, tão necessárias a quem não conhecia a cidade.

 

— Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não vale um mês de experiência e de observação. Abre um moralista; encontrarás excelentes análises do coração humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...

 

Estas últimas palavras revelaram no C. um desses indivíduos doentes que andam a ver tudo cor de morte e do sangue. Eu que vinha para divertir-me, não queria estar a braços com um segundo volume de nosso Padre Tomé, espécie de Timon cristão, a quem darás a ler esta carta, acompanhada de muitas lembranças minhas.

 

— Sabes que mais? disse eu ao meu cicerone, vim para divertir-me, e por isso acho-te razão; tratemos da crise. Mas por enquanto nada sabemos, e...

 

— Aqui vem o nosso Abreu, que há de saber alguma coisa.

 

O Dr. Abreu que entrou nesse momento, era um homem alto e magro, longo bigode, colarinho em pé, paletó e calças azuis. Fomos apresentados um ao outro. O C. perguntou-lhe o que sabia da crise.

 

— Nada, respondeu misteriosamente o Dr. Abreu; apenas ouvi ontem de noite que os homens não se entendiam...

 

— Mas eu já hoje ouvi dizer na praça que havia crise formal, disse o C.

 

— É possível, disse o outro. Saí agora mesmo de casa, e vim logo para aqui... Houve Câmara?

 

— Não.

 

— Bem; isso é um indício. Estou capaz de ir à Câmara...

 

— Para quê? Aqui mesmo saberemos.

 

O Dr. Abreu tirou um charuto de uma charuteira de marroquim encarnado, e fitando muito os olhos no chão, como quem está seguindo um pensamento, acendeu quase maquinalmente o charuto.

 

Soube depois que era um meio inventado por ele para não oferecer charutos aos circunstantes.

 

— Mas que lhe parece? perguntou-lhe o C. passando algum tempo.

 

— Parece-me que os homens caem. Nem podia deixar de ser assim. Há mais de um mês que andam brigados.

 

— Mas por quê? perguntei eu.

 

— Por várias coisas; e a principal é justamente a presidência da sua província...

 

— Ah!

 

— O Ministro do Império quer o Valadares, e o da fazenda insiste pelo Robim. Ontem houve conselho de ministros, e o do Império apresentou definitivamente a nomeação do Valadares... Que faz o colega?

 

— Ora, vivam! Então já sabem da crise?

 

Esta pergunta era feita por um sujeito que entrou pela loja mais rápido que um foguete. Trazia na cara uns ares de gazeta noticiosa.

 

— Crise formal? perguntamos todos.

 

— Completa. Os homens brigaram ontem de noite; e foram hoje de manhã a S. Cristóvão...

 

— É o que dizia, observou o Dr. Abreu.

 

— Qual o verdadeiro motivo da crise? perguntou o C.

 

— O verdadeiro motivo foi uma questão da guerra.

 

— Não creia nisso!

 

O Dr. Abreu disse estas palavras com um ar de tão altiva convicção, que o recém-chegado replicou um pouco enfiado:

 

— Sabe então o verdadeiro motivo mais do que eu que estive com o cunhado do Ministro da Guerra?

 

A réplica pareceu decisiva; o Dr. Abreu limitou-se a fazer aquele gesto com que a gente costuma dizer: Pode ser...

 

— Seja qual for o motivo, disse o C., a verdade é que temos crise ministerial; mas será aceita a demissão?

 

— Eu creio que é, disse o Sr. Ferreira (era o nome do recém-chegado).

 

— Quem sabe?

 

Ferreira tomou a palavra:

 

— A crise era prevista; eu há mais de quinze dias anunciei ali em casa do Bernardo, que a crise não podia deixar de estar iminente. A situação não podia prolongar-se; se os ministros não concordassem a Câmara os obrigaria a sair. Já a deputação da Bahia tinha mostrado os dentes, e até sei (posso dizê-lo agora) sei que um deputado do Ceará estava para apresentar uma moção de desconfiança...

 

Ferreira disse estas palavras em voz baixa, com o ar misterioso que convém a certas revelações. Nessa ocasião ouvimos um carro. Corremos à porta; era efetivamente um ministro.

 

— Mas então não estão todos em S. Cristóvão? observou o C.

 

— Este vai naturalmente para lá.

 

Ficamos à porta; e o grupo foi-se pouco a pouco aumentando; antes de um quarto de hora éramos oito. Todos falavam na crise; uns sabiam a coisa de fonte certa; outros por ouvir dizer. O Ferreira saiu pouco depois dizendo que ia à Câmara saber o que havia de novo. Nessa ocasião apareceu um desembargador e indagou se era exato o que se dizia relativamente à crise ministerial.

 

Afirmamos que sim.

 

— Qual seria a causa? perguntou ele.

 

O Abreu, que dera antes como causa a presidência lá da província, declarou agora ao desembargador que uma questão da guerra produzira o desacordo entre os ministros.

 

— Está certo disso? perguntou o desembargador.

 

— Certíssimo; soube-o hoje mesmo do cunhado do Ministro da Guerra.

 

Nunca vi maior facilidade em mudar de opinião, nem maior descaro em colher as afirmações alheias. Interroguei depois o C. que me respondeu:

 

— Não te espantes; em tempo de crise é sempre bom mostrar que se anda bem infocrmado.

 

Dos presentes eram quase todos oposicionistas, ou pelo menos faziam coro com o Abreu, que fazia diante do cadáver ministerial o papel de Bruto diante do cadáver de César. Alguns defendiam a vítima, mas como se defende uma vítima política, sem grande calor nem excessiva paixão.

 

Cada personagem novo trazia uma confirmação ao trato; já não era trato; evidentemente havia crise. Grupos de políticos e politicões estavam parados às portas das lojas, conversando animadamente. De quando em quando surgia ao longe um deputado. Era logo cercado e interrogado; e só se colhia a mesma coisa.

 

Vimos ao longe um homem de 35 anos, meão na altura, suíças, luneta pênsil, olhar profundo, acompanhando uma influência política.

 

— Graças a Deus! agora vamos ter notícias frescas, disse o C.

 

Ali vem o Mendonça; há de saber alguma coisa.

 

A influência política não pôde passar de outro grupo; o Mendonça veio ao nosso.

 

— Venha cá; você que lambe os vidros por dentro há de saber o que há?

 

— O que há?

 

— Sim.

 

— Há crise.

 

— Bem; mas os homens saem ou ficam?

 

Mendonça sorriu, depois ficou sério, corrigiu o laço da gravata, e murmurou um: não sei; assaz parecido com um: sei demais.

 

Olhei atentamente para aquele homem que parecia estar senhor dos segredos do Estado, e admirei a discrição com que os ocultava de nós.

 

— Diga o que sabe, Sr. Mendonça, disse o desembargador.

 

— Eu já disse a V. Excia. o que há, interrompeu o Abreu; pelo menos tenho razão para afirmá-lo. Não sei o que sabe lá o Sr. Mendonça, mas creio que não estará comigo...

 

Mendonça fez um gesto de quem ia falar. Foi cercado por todos. Ninguém ouviu com mais atenção o oráculo de Delfos.

 

— Sabem que há crise; a causa é muito secundária, mas a situação não podia prolongar-se.

 

— Qual é a causa?

 

— A nomeação de um juiz de direito.

 

— Só!

 

— Só.

 

— Já sei o que é, disse Abreu sorrindo. Era negócio pendente há muitas semanas.

 

— Foi isso. Os homens lá foram ao paço.

 

— Será aceita a demissão? perguntei eu.

 

Mendonça abaixou a voz.

 

— Creio que é.

 

Depois apertou a mão ao desembargador, ao C. e ao Abreu e retirou-se com a mesma satisfação de um homem que acaba de salvar o Estado.

 

— Pois, senhores, eu creio que esta versão é a verdadeira. O Mendonça anda informado.

 

Passa defronte um sujeito.

 

— Anda cá, Lima, gritou Abreu.

 

O Lima aproximou-se.

 

— Estás convidado para o ministério?

 

— Estou; você quer alguma pasta?

 

Não penses que este Lima era alguma coisa; o dito de Abreu era um gracejo que se renova em todas as crises.

 

A única preocupação do Lima eram umas senhoras que passavam. Ouvi dizer que eram as Valadares, — a família do indigitado presidente. Pararam à porta da loja, conversaram alguma coisa com o C. e o Lima, e seguiram viagem.

 

— São lindas estas moças, disse um dos circunstantes.

 

— Eu era capaz de as nomear para o ministério.

 

— Sendo eu presidente do conselho.

 

— Também eu.

 

— A mais gorda devia ser Ministro da Marinha.

 

— Por quê?

 

— Porque parece mesmo uma fragata.

 

Ligeiro sorriso acolheu este diálogo entre o desembargador e o Abreu. Viu-se ao longe um carro.

 

— Quem será? Algum ministro?

 

— Vejamos.

 

— Não; é a A...

 

— Como vai bonita!

 

— Pudera!

 

— Ela já tem carro?

 

— Há muito tempo.

 

— Olhem, ali vem o Mendonça.

 

— Vem com outro. Quem é?

 

— É um deputado.

 

Passaram os dois juntos de nós. O Mendonça não nos cumprimentou; ia conversando baixinho com o deputado.

 

Houve outra trégua na conversa política. E não te admires. Nada mais natural do que entremear aqui uma discussão sobre crise política com as sedas de uma dama do tom.

 

Finalmente surgiu de longe o já citado Ferreira.

 

— Que há? perguntamos quando ele chegou.

 

— Foi aceita a demissão.

 

— Quem é o chamado?

 

— Não se sabe.

 

— Por quê?

 

— Dizem que os homens ficam com as pastas até segunda-feira.

 

Dizendo estas palavras, o Ferreira entrou, e foi sentar-se. Outros o imitaram; alguns se foram embora.

 

— Mas donde sabe isso? disse o desembargador.

 

— Soube na Câmara.

 

— Não me parece natural.

 

— Por quê?

 

— Que força moral deve ter um ministério já demitido e ocupando as pastas?

 

— Realmente, a coisa é singular; mas eu ouvi ao primo do Ministro da Fazenda.

 

Ferreira tinha a particularidade de andar informado pelos parentes dos ministros; pelo menos, assim o dizia.

 

— Quem será chamado?

 

— Naturalmente o N.

 

— Ou o P.

 

— Já hoje de manhã se dizia que era o K.

 

Entrou o Mendonça; o caixeiro deu-lhe uma cadeira, e ele sentou-se ao lado do Lima, que nesse momento descalçava as luvas, ao mesmo tempo que o desembargador oferecia rapé aos circunstantes.

 

— Então, Sr. Mendonça, quem é o chamado? perguntou o desembargador.

 

— O B.

 

— Com certeza?

 

— É o que se diz.

 

— Eu ouvi que só na segunda-feira se organizará ministério novo.

 

— Qual! insistiu Mendonça; afirmo-lhe que o B. foi ao paço.

 

— Viu-o?

 

— Não, mas disseram-mo.

 

— Pois acredite que até segunda-feira...

 

A conversa ia-me interessando; eu já tinha esquecido o interesse que ligava à mudança dos ministros, para atender simplesmente ao que se passava diante de mim. Não imaginas o que é formar um ministério na rua antes que ele esteja formado no paço.

 

Cada qual expôs a sua conjetura; vários nomes foram lembrados para o poder. Às vezes aparecia um nome contra o qual se apresentavam objeções; então replicava o autor da combinação:

 

— Está enganado; pode o F. ficar com a pasta da Justiça, o M. com a da Guerra, K. Marinha, T. Obras Públicas, V. Fazenda, X. Império, e C. Estrangeiros.

 

— Não é possível; o V. é que deve ficar com a pasta de Estrangeiros.

 

— Mas o V. não pode entrar nessa combinação.

 

— Por quê?

 

— É inimigo do F.

 

— Sim; mas a deputação da Bahia?

 

Aqui coçava o outro a orelha.

 

— A deputação da Bahia, respondia ele, pode ficar bem metendo o N.

 

— O N. não aceita.

 

— Por quê?

 

— Não quer ministério de transição.

 

— Chama a isto ministério de transição?

 

— Pois que é mais?

 

Este diálogo em que todos tomavam parte, inclusive o C. e que era repetido sempre que um dos circunstantes apresentava uma combinação nova, foi interrompido pela chegada de um deputado.

 

Desta vez íamos ter notícias frescas.

 

Efetivamente soubemos pelo deputado que o V. tinha sido chamado ao paço e estava organizando gabinete.

 

— Que dizia eu? exclamou Ferreira. Nem era de ver outra coisa. A situação é do V.; o seu último discurso foi o que os franceses chamam discurso-ministro. Quem são os outros?

 

— Por ora, disse o deputado, só há dois ministros na lista: o da Justiça e o do Império.

 

— Quem são?

 

— Não sei, respondeu o deputado.

 

Não me foi difícil ver que o homem sabia, mas era obrigado a guardar segredo. Compreendi que aquele é que lambia os vidros por dentro, expressão muito usada em tempo de crise.

 

Houve um pequeno silêncio. Conjeturei que cada qual estivesse a adivinhar quem seriam os nomeados; mas, se alguém os descobriu, não os nomeou.

 

O Abreu dirigiu-se ao deputado.

 

— V. Ex.a acredita que o ministério fique organizado hoje?

 

— Creio que sim; mas daí pode ser que não...

 

— A situação não é boa, observou Ferreira.

 

— Admira-me que V. Ex.a não seja convidado...

 

Estas palavras, naquela ocasião inconvenientes, foram pronunciadas pelo Lima, que trata a política como trata as mulheres e os cavalos. Cada um de nós procurou disfarçar o efeito de semelhante tolice, mas o deputado respondeu direitamente à pergunta:

 

— Pois não me admira nada disso; deixo o lugar aos componentes. Estou pronto a servir como soldado... Não passo disso.

 

— Perdão, é muito digno!

 

Entrou um homem esbaforido. Fiquei surpreso. Era um deputado. Olhou para todos, e dando com os olhos no colega, disse:

 

— Podes dar-me uma palavra?

 

— Que é? perguntou o deputado levantando-se.

 

— Vem cá.

 

Foram até à porta, depois despediram-se de nós e seguiram apressadamente para cima.

 

— Estão ambos ministros, exclamou Ferreira.

 

— Acredita? perguntei eu.

 

— Sem dúvida.

 

Mendonça foi da mesma opinião; e foi a primeira vez que o vi adotar uma opinião alheia.

 

Eram duas horas da tarde quando saíram os dois deputados. Ansiosos por saber mais notícias, saímos todos e descemos a rua vagarosamente. Grupos de quatro e cinco se entretinham com o assunto do dia. Parávamos; combinávamos as versões; mas não retificavam as dos outros. Um desses grupos já estavam os três ministros nomeados; outro acrescentava os nomes dos dois deputados, pela única razão de os ter visto entrar num carro.

 

Às três horas já corriam versões de todo o gabinete, mas era tudo vago.

 

Determinamos não voltar para casa sem saber do resultado da crise, salvo se a notícia não viesse até às cinco horas, pois era de mau gosto (disse-me o C.) andar na Rua do Ouvidor às 5 horas da tarde.

 

— Mas qual será o meio de saber? perguntei eu.

 

— Eu vou ver se colho alguma coisa, disse Ferreira.

 

Vários incidentes nos iam detendo a marcha: algum amigo que passava, uma mulher que saía de uma loja, uma jóia nova em uma vidraça, um grupo tão curioso como o nosso, etc.

 

Nada se soube nessa tarde.

 

Voltei para o Hotel da Europa a fim de descansar e jantar; o C. jantou comigo. Conversamos muito do tempo da academia, dos nossos amores, das nossas travessuras, até que a noite veio e resolvemos voltar à Rua do Ouvidor.

 

— Não era melhor irmos à casa do V., pois que é ele o organizador do gabinete? perguntei.

 

— Principalmente, não temos tamanho interesse que justifique esse passo, respondeu o C.; depois, é natural que ele não nos possa falar. Organizar um gabinete não é coisa simples. Finalmente, apenas o gabinete estiver organizado cá saberemos na rua qual ele é.

 

A Rua do Ouvidor é lindíssima à noite. Estão os rapazes às portas das lojas, vendo passar as moças, e como tudo está iluminado, não imaginas o efeito que faz.

 

Confesso que me esqueceu o ministério e a crise. Havia então menos quem cuidasse de política; a noite da Rua do Ouvidor pertence exclusivamente à fashion, que é menos dada aos negócios do Estado que os freqüentadores de dia. Todavia, achamos alguns grupos onde se dava como certa a organização do gabinete, mas não se sabia ao certo quem eram os ministros todos.

 

Encontramos os mesmos amigos da manhã.

 

Ora, justamente quando o Mendonça se dispunha a ir colher alguma coisa certa, apareceu o desembargador com o rosto alegre.

 

— Que há?

 

— Está organizado.

 

— Mas quem são?

 

O desembargador tirou do bolso uma lista.

 

— São estes.

 

Lemos os nomes à luz do lampião de um mostrador. O Mendonça não gostou do gabinete; o Abreu achou-o excelente; o Lima, fraco.

 

— Mas isto é certo? perguntei eu.

 

— Deram-me agora esta lista; creio que é autêntica.

 

— O que é? perguntou por trás de mim uma voz.

 

Era um sujeito moreno e bigode grisalho.

 

— Sabe quem são? perguntou-lhe o Abreu.

 

— Tenho uma lista.

 

— Vejamos se combina com esta.

 

Costearam-se as listas; havia engano num nome.

 

Mais adiante encontramos outro grupo lendo outra lista. Divergiam em dois nomes. Alguns sujeitos que não tinham lista copiavam uma deles, deixando de copiar os nomes duvidosos, ou escrevendo-os todos com uma cruz à margem. Corriam assim as listas até que apareceu uma com ares de autêntica; outras foram aparecendo no mesmo sentido e às 9 horas da noite sabíamos positivamente, sem arredar pé da Rua do Ouvidor, qual era o gabinete.

 

O Mendonça ficou alegre com o resultado da crise.

 

Perguntaram-lhe por que razão.

 

— Tenho dois compadres no ministério! respondeu ele.

 

Aqui tens o quadro infiel de uma crise ministerial no Rio de Janeiro. Infiel digo, porque o papel não pode conter os diálogos, nem as versões, nem os comentários, nem as caras de um dia de crise. Ouvem-se, contemplam-se; não se descrevem.


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 09 de maio de 2022

SUJE-SE, GORDO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SUJE-SE GORDO!

Machado de Assis

 

 

 

Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.

- Fui sempre contrário ao júri, - disse-me aquele amigo, - não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.

Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda.

Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, - proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, - chamava-se Lopes, - replicou com aborrecimento:

- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.

- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.

- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer Sujar-se? Suje-se gordo!

"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.

Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.

Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.

Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.

- Como se chama? perguntou o presidente.

- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.

Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com um pontinha de riso nos cantos da boca.

Seguiu-se a leitura do processo. Era um falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me impressionou muito, o inquérito. os documentos, a tentativa de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.

Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes. os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

Enquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: "Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de dinheiro mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.

Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!" Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer- lhe aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 08 de maio de 2022

UM SONHO E OUTRO SONHO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM SONHO E OUTRO SONHO

Machado de Assis

 

 

 

Crês em sonhos? Há pessoas que os aceitam como a palavra do destino e da verdade. Outros há que os desprezam. Uma terceira classe explica-os, atribuindo-os a causas naturais. Entre tantas opiniões não quero saber da tua, leitora, que me lês, principalmente se és viúva, porque a pessoa a quem aconteceu o que vou dizer era viúva, e o assunto pode interessar mais particularmente às que perderam os maridos. Não te peço opinião, mas atenção.

 

Genoveva, vinte e quatro anos, bonita e rica, tal era a minha viúva. Três anos de viuvez, um de véu longo, dois de simples vestidos pretos, chapéus pretos, e olhos pretos, que vinham do consórcio e do berço. A diferença é que agora olhavam para o chão, e, se olhavam para alguma coisa ou alguém, eram sempre tristes, como os que já não têm consolação na terra nem provavelmente no céu. Morava em uma casa escondida, para os lados do Engenho Velho, com a mãe e os criados. Nenhum filho. Um que lhe devia nascer, foi absorvido pelo nada; tinha cinco meses de gestação.

 

O retrato do marido, bacharel Marcondes, ou Nhonhô, pelo nome familiar, vivia no quarto dela, pendente da parede, moldura de ouro, coberta de crepe. Todas as noites, Genoveva, depois de rezar a Nossa Senhora, não se deitava sem lançar o último olhar ao retrato, que parecia olhar para ela. De manhã o primeiro olhar era para ele. Quando o tempo veio amortecendo o efeito da dor, esses gestos diminuíram naturalmente e acabaram; mas a imagem vivia no coração. As mostras externas não diminuíam a saudade.

 

Rica? Não, não era rica, mas tinha alguma coisa; tinha o bastante para viver com a mãe, à larga. Era, conseguintemente, um bom negócio para qualquer moço ativo, ainda que não tivesse nada de seu; melhor ainda para quem possuísse alguma coisa, porque as duas bolsas fariam uma grande bolsa, e a beleza da viúva seria a mais valiosa moeda do pecúlio. Não lhe faltavam pretendentes de toda a espécie, mas todos perdiam o tempo e o trabalho. Carlos, Roberto, Lucas, Casimiro e outros muitos nomes inscreviam-se no livro dos passageiros, e iam-se embora sem esperanças. Alguns nem levavam saudades. Muitos as levavam em grande cópia e das mais tristes. Genoveva não se deixou prender de ninguém.

 

Um daqueles candidatos, Lucas, pôde saber da mãe de Genoveva algumas circunstâncias da vida e da morte do finado genro. Lucas tinha ido pedir licença à boa senhora para solicitar a mão da filha. Não havia necessidade, pois que a viúva dispunha de si; mas a incerteza de ser aceito sugeriu-lhe esse alvitre, a fim de ver se ganhava a boa vontade e intercessão da mãe.

 

— Não lhe dou tal conselho, respondeu esta.

 

— De pedi-la em casamento?

 

— Sim; ela deu-lhe alguma esperança?

 

Lucas hesitou.

 

— Vejo que não lhe deu nenhuma.

 

— Devo ser verdadeiro. Esperanças, não tenho; não sei se D. Genoveva me perdoa, ao menos, a afeição que me inspirou.

 

— Pois não lhe peça nada.

 

— Parece-lhe que...

 

— Que perderá o tempo. Genoveva não casará nunca mais. Até hoje tem a imagem do marido diante de si, vive da lembrança dele, chora por ele, e nunca se unirá a outro.

 

— Amaram-se muito?

 

— Muito. Imagine uma união que apenas durou três anos. Nhonhô, quando morreu, quase que a levou consigo. Viveram como dois noivos; o casamento foi até romanesco. Tinham lido não sei que romance, e aconteceu que a mesma linha da mesma página os impressionou igualmente; ele soube disso lendo uma carta que ela escrevera a uma amiga. A amiga atestou a verdade, porque ouvira a confissão de Nhonhô, antes de lhe mostrar a carta. Não sei que palavras foram, nem que romance era. Nunca me dei a essas leituras. Mas naturalmente eram palavras ternas. Fosse o que fosse, apaixonaram-se um pelo outro, como raras vezes vi, e casaram-se para ser felizes por longos anos. Nhonhô morreu de uma febre perniciosa. Não pode imaginar como Genoveva sofreu. Quis ir com o cadáver, agarrou-se ao caixão, perdeu os sentidos, e esteve fora de si quase uma semana. O tempo e os meus cuidados, além do médico, é que puderam vencer a crise. Não chegou a ir à missa; mandamos dizer uma, três meses depois.

 

A mãe exagerava no ponto de dizer que foi a frase do romance que ligou a filha ao marido; eles tinham naturalmente inclinação. A frase não fez mais que falar por eles. Nem por isso tira o romanesco de Genoveva e do finado Marcondes, que fizera versos aos dezoito anos, e, aos vinte, um romance, A bela do Sepulcro, cuja heroína era uma moça que, havendo perdido o esposo, ia passar os dias no cemitério, ao pé da sepultura dele. Um moço, que ia passar as tardes no mesmo cemitério, ao pé da sepultura da noiva, viu-a e admirou aquela constância póstuma, tão irmã da sua; ela o viu também, e a identidade da situação os fez amados um do outro. A viúva, porém, quando ele a pediu em casamento, negou-se e morreu oito dias depois.

 

Genoveva tinha presente este romance do marido. Havia-o lido mais de vinte vezes, e nada achava tão patético nem mais natural. Mandou fazer uma edição especial, e distribuiu exemplares a todos os amigos e conhecidos da família. A piedade conjugal desculpava esse obséquio pesado, ainda que gratuito. A bela do sepulcro era ilegível. Mas não se conclua daí que o autor, como homem espirituoso, era inferior às saudades da viúva. Inteligente e culto, cometera aquele pecado literário, que, nem por ser grande, o teria levado ao purgatório.

 

Três anos depois de viúva, apareceu-lhe um pretendente. Era bacharel, como o marido, tinha trinta anos, e advogava com tanta felicidade e real talento que contava já um bom pecúlio. Chamava-se Oliveira. Um dia, a mãe de Genoveva foi demandada por um parente que pretendia haver duas casas dela, por transações feitas com o marido. Querendo saber de um bom advogado, inculcaram-lhe Oliveira, que em pouco tempo venceu a demanda. Durante o correr desta, Oliveira foi duas vezes à casa de Genoveva, e só a viu da segunda; mas foi quanto bastou para achá-la interessantíssima, com os seus vestidos pretos, tez muito clara e olhos muito grandes. Vencida a demanda, a constituinte meteu-se em um carro e foi ao escritório de Oliveira, para duas coisas, agradecer-lhe e remunerá-lo.

 

— Duas pagas? retorquiu ele rindo. Eu só recebo uma — agradecimentos ou honorários. Já tenho os agradecimentos.

 

— Mas...

 

— Perdoe-me isto, mas a sua causa era tão simples, correu tão depressa, deu-me tão pouco trabalho, que seria injustiça pedir-lhe mais do que a sua estima. Dá-me a sua estima?

 

— Seguramente, respondeu ela.

 

Quis ainda falar, mas não achava palavras, e saiu convencida de que era chegado o reino de Deus. Entretanto, querendo fazer uma fineza ao generoso advogado, resolveu dar-lhe um jantar, para o qual convidou algumas famílias íntimas. Oliveira recebeu o convite com alacridade. Não gostava de perfumes nem adornos; mas nesse dia borrifou o lenço com Jockey Club e pôs ao peito uma rosa amarela.

 

Genoveva recebeu o advogado como recebia outros homens; a diferença, porém, entre ele e os outros é que estes apresentavam logo no primeiro dia as credenciais, e Oliveira não pedia sequer audiência. Entrou como um estrangeiro de passagem, curioso, afável, interessante, tratando as coisas e pessoas como os passageiros em trânsito pelas cidades de escala. Genoveva teve excelente impressão do homem; a mãe estava encantadíssima.

 

— Enganei-me, pensou Genoveva, recolhendo-se ao quarto. Cuidei que era outro pedido, entretanto... Mas, por que motivo fez o que fez, e aceitou o jantar de mamãe?

 

Chegou a suspeitar que a mãe e o advogado estavam de acordo, que ela não fizera mais que buscar ocasião de os apresentar um ao outro, e travar relações. A suspeita cresceu quando, dias depois, a mãe falou em visitar a mãe de Oliveira, com quem este vivia; mas a prontidão com que aceitou as suas razões de negativa tornou a moça perplexa. Genoveva examinou o caso e reconheceu que atribuía à mãe um papel menos próprio; varreu-se-lhe a suposição. Demais (e isto valia por muito), as maneiras do homem estavam em desacordo com quaisquer projetos.

 

Travadas as relações, bem depressa as duas famílias se visitavam, e a miúdo. Oliveira residia longe; mas achou casa perto e mudou-se. As duas mães achavam-se reciprocamente encantadoras, e tanto a de Genoveva gostava de Oliveira, como a de Oliveira gostava de Genoveva. Tudo isto vai parecendo simétrico; mas eu não tenho modo de contar diferentemente coisas que se passaram assim, ainda que reconheça a conveniência de as compor algo. Quanto menos, falta-me tempo... A verdade é que as duas matronas se amavam e trabalhavam para fazer os filhos encontradiços.

 

Um, dois, três meses correram, sem que Oliveira revelasse a menor inclinação à viuvinha. Entretanto, as horas passadas com ele, em qualquer das casas, não podiam ser mais deleitosas. Ninguém sabia encher o tempo tão bem, falando a cada uma das pessoas a sua própria linguagem. Durante esse prazo teve Genoveva ainda um pretendente, que não recebeu melhor agasalho; parece até que tratou a este com uma sombra de despeito e irritação inexplicáveis, não só para ele, como para ela própria.

 

— Realmente, o pobre diabo não tem culpa que eu seja viúva, disse ela consigo.

 

“Que eu seja bonita”, é o que ela devia dizer, e pode ser que tal idéia chegasse a bater as asas, para atravessar-lhe o cérebro; mas, há certa modéstia inconsciente, que faz evitar confissões, não digo presumidas, mas orgulhosas. Seja o que for, Genoveva chegou a ter pena do pretendente.

 

— Por que não se portou ele como o Oliveira, que me respeita? continuou consigo.

 

Entrara o quarto mês das relações, e o respeito do advogado não diminuiu. Jantaram juntos algumas vezes, e chegaram a ir juntos ao teatro. Oliveira abriu até um capitulo de confidências com ela, não amorosas, é claro, mas de sensações, de impressões, de cogitações. Um dia, disse-lhe que, em pequeno, tivera desejo de ser frade; mas levado ao teatro, e assistindo à comédia do Pena, O Noviço, o espetáculo do menino, vestido de frade, e correndo pela sala, a bradar: eu quero ser frade! eu quero ser frade! fez-lhe perder todo o gosto da profissão.

 

— Achei que não podia vestir um hábito assim profanado.

 

— Profanado, como? O hábito não tinha culpa.

 

— Não tinha culpa, é verdade; mas eu era criança, não podia vencer essa impressão infantil. E parece que foi bom.

 

— Quer dizer que não seria bom frade?

 

— Podia ser que fosse sofrível; mas eu quisera sê-lo excelente.

 

— Quem sabe?

 

— Não; dei-me tão bem com a vida do foro, com esta chicana da advocacia, que não é provável tivesse a vocação contemplativa tão perfeita como quisera. Há só um caso em que eu acabaria num convento.

 

— Qual?

 

Oliveira hesitou um instante.

 

— Se enviuvasse, respondeu.

 

Genoveva, que sorria, aguardando a resposta, fez-se rapidamente séria, e não retorquiu. Oliveira não acrescentou nada, e a conversa naquele dia acabou menos expressiva que das outras vezes. Posto que tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se deitou; ao contrário, ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo acordada.

 

Na manhã seguinte, a primeira coisa em que pensou foi justamente na conversação da véspera, isto é, naquela última palavra de Oliveira. Que havia nela? Aparentemente, pouco; e pode ser que, na realidade, ainda menos. Era um sentimento de homem que não admitia o mundo, depois de roto o consórcio; e iria refugiar-se na solidão e na religião. Confessemos que não basta para explicar a preocupação da nossa viúva. A viúva, entretanto, não viveu de outra coisa, durante esse dia, salvo o almoço e o jantar, que ainda assim foram quase silenciosos.

 

— Estou com dor de cabeça, respondeu à mãe, para explicar as suas poucas palavras.

 

— Toma antipirina.

 

— Não, isto passa.

 

E não passava. “Se enviuvasse, ele ia meter-se em um convento”, pensava Genoveva; logo, era uma censura a ela, por não ter feito o mesmo. Mas que razão havia para desejá-la recolhida a um mosteiro? Pergunta torta; parece que a pergunta direita seria outra: “Que razão haveria para não desejá-la recolhida a um mosteiro?” Mas se não era direita, era natural, e o natural é muitas vezes torto. Pode ser até que, bem exprimidas as primeiras palavras, deixem o sentido das segundas; mas, eu não faço aqui psicologia, narro apenas.

 

Atrás daquele pensamento, veio outro mui diverso. Talvez que ele tivesse tido alguma paixão, tão forte, que, se casasse e enviuvasse... E por que não a teria ainda agora? Pode ser que amasse a alguém, que pretendesse casar, e que, se acaso perdesse a mulher amada, fugisse ao mundo para sempre. Confessara-lhe isto, como usava fazer a outros respeitos, como lhe confessava opiniões, que dizia não repetir a ninguém mais. Essa explicação, posto que natural, atordoou Genoveva ainda mais que a primeira.

 

— Afinal, que tenho eu com isto? Faz muito bem.

 

Passou mal a noite. No dia seguinte foi com a mãe fazer compras à Rua do Ouvidor, demorando-se muito, sem saber porquê, e olhando para todos os lados, sempre que saía de uma loja. Passando por um grupo estremeceu e olhou para as pessoas que falavam, mas não conheceu nenhuma. Tinha ouvido, entretanto, a voz de Oliveira. Há vozes parecidas com outras, que enganam muito, ainda quando a gente vai distraída. Há também ouvidos mal educados.

 

A declaração de Oliveira de que entraria para um convento, se chegasse a enviuvar, não saía da cabeça de Genoveva. Passaram-se alguns dias sem ver o advogado. Uma noite, depois de cuidar no caso, Genoveva olhou para o retrato do marido antes de deitar-se; repetiu a ação no dia seguinte, e o costume dos primeiros tempos da viuvez tornou a ser o de todas as noites. De uma vez, mal adormecera, teve um sonho extraordinário.

 

Apareceu-lhe o marido, vestido de preto, como se enterrara, e pôs-lhe a mão na cabeça. Estavam em um lugar que não era bem sala nem bem rua, uma coisa intermédia, vaga, sem contornos definidos. O principal do sonho era o finado, cara pálida, mãos pálidas, olhos vivos, é certo, mas de uma tristeza de morte.

 

— Genoveva! disse-lhe ele.

 

— Nhonhô! murmurou ela.

 

— Para que me perturbas a vida da morte, o sono da eternidade?

 

— Como assim?

 

— Genoveva, tu esqueceste-me.

 

— Eu?

 

— Tu amas a outro.

 

Genoveva negou com a mão.

 

— Nem ousas falar, observou o defunto.

 

— Não, não amo, acudiu ela.

 

Nhonhô afastou-se um pouco, olhou para a antiga esposa, abanou a cabeça incredulamente, e cruzou os braços. Genoveva não podia fitá-lo.

 

— Levanta os olhos, Genoveva.

 

Genoveva obedeceu.

 

— Ainda me amas?

 

— Oh! ainda! exclamou Genoveva.

 

— Apesar de morto, esquecido dos homens, hóspede dos vermes?

 

— Apesar de tudo!

 

— Bem, Genoveva; não te quero forçar a nada, mas se é verdade que ainda me amas, não conspurques o teu amor com as carícias de outro homem.

 

— Sim.

 

— Juras?

 

— Juro.

 

O finado estendeu-lhe as mãos, e pegou nas dela; depois, enlaçando-a pela cintura, começou uma valsa rápida e lúgubre, giro de loucos, em que Genoveva não podia fitar nada. O espaço já não era sala, nem rua, nem sequer praça; era um campo que se alargava a cada giro dos dois, por modo que, quando estes pararam, Genoveva achou-se em uma vasta planície, semelhante a um mar sem praias; circulou os olhos, a terra pegava com o céu por todos os lados. Quis gritar; mas sentiu na boca a mão fria do marido que lhe dizia:

 

— Juras ainda?

 

— Juro, respondeu Genoveva.

 

Nhonhô tornou a pegar-lhe da cintura, a valsa recomeçou, com a mesma vertigem de giros, mas com o fenômeno contrário, em relação ao espaço. O horizonte estreitou-se a mais e mais, até que eles se acharam numa simples sala, com este apêndice: uma eça e um caixão aberto. O defunto parou, trepou ao caixão, meteu-se nele, e fechou-o; antes de fechado, Genoveva viu a mão do defunto, que lhe dizia adeus. Soltou um grito e acordou.

 

Parece que, antes do grito final, soltara outros de angústia, porque quando acordou, viu já ao pé da cama uma preta da casa.

 

— Que foi, Nhanhã?

 

— Um pesadelo. Eu disse alguma coisa? falei? gritei?

 

— Nhanhã gritou duas vezes, e agora outra vez,

 

— Mas foram palavras?

 

— Não, senhora; gritou só.

 

Genoveva não pôde dormir o resto da noite. Sobre a manhã chegou a conciliar o sono, mas este foi interrompido e curto.

 

Não referiu à mãe os pormenores do sonho; disse só que tivera um pesadelo. De si para si, aceitou aquela visão do marido e as suas palavras, como determinativas do seu proceder. Ao demais, jurara, e este vínculo era indestrutível. Examinando a consciência, reconheceu que estava prestes a amar a Oliveira, e que a notícia desta afeição, ainda mal expressa, tinha chegado ao mundo onde vivia o marido. Ela cria em sonhos; tinha para si que eles eram avisos, consolações e castigos. Havia-os sem valor, sonhos de brincadeira; e ainda esses podiam ter alguma significação. Estava dito; acabaria com aquele princípio de qualquer coisa que Oliveira conseguira inspirar-lhe e tendia a crescer.

 

Na seguinte noite, Genoveva despediu-se do retrato do marido, rezou por ele, e meteu-se na cama com receio. Custou-lhe dormir, mas afinal o sono fechou-lhe os lindos olhos e a alma acordou sem ter sonhado nada, nem mal nem bem; acordou com a luz do sol que lhe entrava pelas portas das janelas.

 

Oliveira deixara de ir ali uma semana. Genoveva espantou-se da ausência; a mãe quis ir à casa dele saber se era alguma doença, mas a filha tirou-lhe a idéia da cabeça. No princípio da outra semana, apareceu ele com a mãe, tinha tido um resfriamento que o reteve na cama três dias.

 

— Eu não disse? acudiu a mãe de Genoveva. Eu disse que havia de ser negócio de doença, porque o doutor não deixa de vir tanto tempo...

 

— E a senhora não acreditou? perguntou Oliveira à linda viúva.

 

— Confesso que não.

 

— Pensa, como minha mãe, que sou invulnerável.

 

Sucederam-se as visitas entre as duas casas, mas nenhum incidente veio perturbar a resolução em que estava Genoveva de cortar inteiramente quaisquer esperanças que pudesse haver dado ao advogado. Oliveira era ainda o mesmo homem respeitoso. Passaram-se algumas semanas. Um dia, Genoveva ouviu dizer que Oliveira ia casar.

 

— Não é possível, disse ela à amiga que lhe deu a notícia.

 

— Não é possível, por quê? acudiu a outra. Vai casar com a filha de um comerciante inglês, um Stanley. Todos sabem disto.

 

— Enfim, como eu pouco saio...

 

Justifiquemos a viúva. Não lhe parecia possível, porque ele visitava-as com tal freqüência, que não se podia crer em casamento tratado. Quando visitaria a noiva? Apesar da razão, Genoveva sentia que podia ser assim mesmo. Talvez o futuro sogro fosse algum esquisitão, que não admitisse a visita de todas as noites. Notou que, a par disto, Oliveira era desigual com ela; tinha dias e dias de indiferença, depois lá vinha um olhar, uma palavra, um dito, um aperto de mão... Os apertos de mão eram o sinal mais freqüente: tanto que ela sentia alguma falta no dia em que ele era frouxo, e esperava o dia seguinte para ver se era mais forte. Lançava estas curiosidades à conta da vaidade. Vaidade de mulher bonita, dizia a si mesma.

 

Daquela vez, porém, esperou-o com certa ânsia, e fez-lhe bem o aperto de mão com que ele a saudou na sala. Arrependera-se de não ter contado à mãe a notícia do casamento, para que esta perguntasse ao advogado; e, não se podendo ter, falou ela mesma.

 

— Eu, minha senhora?

 

Genoveva continuou sorrindo.

 

— Sim, senhor.

 

— Há de ser outro Oliveira, também advogado, que está realmente para casar este mês. Eu não me casarei nunca.

 

Naquela noite, Genoveva, ao deitar-se olhou ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe dobrado, e tarde dormiu, com medo de outra valsa; mas acordou sem sonhos.

 

Que poderá haver entre uma viúva que promete ao finado esposo, em sonhos, não contrair segundas núpcias, e um advogado que declara, em conversação, que jamais se casará? Parece que nada ou muito; mas é que o leitor não sabe ainda que este Oliveira tem por plano não saltar o barranco sem que ela lhe estenda as duas mãos, posto que a adore, como dizem todos os enamorados. A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair, que algum efeito produzira, visto que a mão de Genoveva tremia um pouco, muito pouco, e que a ponta dos dedos... Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.

 

Notem bem que eu não tenho culpa destas histórias enfadonhas de dedos e contradedos, e palavras sem sentido, outras meio inclinadas, outras claras, obscuras; menos ainda dos planos de um e das promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no segundo dia tinha pegado em ambos, ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes: casem-se. E passava a contar outras histórias menos monótonas. Mas, as pessoas são estas; é preciso aceitá-las assim mesmo.

 

Passaram-se dias, uma, duas, três semanas, sem incidente maior. Oliveira parecia deixar a estratégia de Fabio Cunctator. Um dia declarou francamente à viúva que a amava; era um sábado, em casa dela, antes de jantar, enquanto as duas mães os tinham deixado sós. Genoveva abria as folhas de um romance francês que Oliveira lhe trouxera. Ele fitava pela centésima vez uma aquarela, pendurada no trecho da parede que ficava entre duas janelas. Bem ouvia a faca de marfim rasgando as folhas espessas do livro, e o silêncio deixado pelas duas senhoras que tinham deixado a sala; mas não voltava a cabeça nem baixava os olhos. Baixou-os de repente, e voltou-os para a viúva. Ela sentia-os, e, para dizer alguma coisa:

 

— Sabe se é bonito o romance? perguntou, parando de rasgar as folhas.

 

— Dizem-me que sim.

 

Oliveira foi sentar-se em um pouf, que estava ao pé do sofá, e fitou as mãos de Genoveva, pousadas sobre o livro aberto, mas as mãos continuaram o seu ofício para escapar à admiração do homem, como, se cortando as folhas, fossem menos admiráveis que paradas. Alongou-se o silêncio, um silêncio constrangido — que Genoveva quisera romper, sem achar modo nem ocasião. Pela sua parte, Oliveira tinha ímpetos de lhe dizer subitamente o resto do que ela devia saber pelos últimos dias; mas não cedia aos ímpetos, e acabou trivialmente elogiando-lhe as mãos. Não valia a pena tanto trabalho para acabar assim. Ele, porém, vexado da situação, pôs toda a alma na boca e perguntou à viúva se desejava ser sua esposa.

 

Desta vez, as mãos pararam sem plano. Genoveva, confusa, pregou os olhos no livro, e o silêncio entre os dois fez-se mais longo e profundo. Oliveira olhava para ela; via-lhe as pálpebras caídas e a respiração curta. Que palavra estaria dentro dela? Hesitava pelo vexame de dizer que sim? ou pelo aborrecimento de dizer que não? Oliveira tinha razões para crer na primeira hipótese. Os últimos dias foram de acordo tácito, de consentimento prévio. Entretanto, a palavra não saía; e a memória do sonho veio complicar a situação. Genoveva recordou-se da penosa e triste valsa, da promessa e do féretro, e empalideceu. Nisto foram interrompidos pelas duas senhoras, que voltaram à sala.

 

O jantar foi menos animado que de costume. De noite, vieram algumas pessoas, e a situação piorou. Separaram-se sem resposta. A manhã seguinte foi cheia de tédio para Genoveva, um tédio temperado com alegria que bem fazia adivinhar o estado da alma da moça. Oliveira não apareceu nesse dia; mas, veio no outro, à noite. A resposta que ela deu não podia ser mais decisiva, ainda que trêmula e murmurada.

 

Há aqui um repertório de pequenas coisas infinitas, que não pode entrar em um simples conto nem ainda em longo romance; não teria graça escrito. Sabe-se o que sucede desde a aceitação de um noivo até o casamento. O que se não sabe, porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga, dias antes de casar. É o que se vai ler para acabar.

 

Desde duas semanas antes da pergunta de Oliveira, a viúva deitava-se sem olhar para o retrato do finado marido. Logo depois da resposta, olhava-o algumas vezes, de soslaio, até que tornou ao anterior costume. Ora, uma noite, quatro dias antes de casar, como houvesse pensado no sonho da valsa e na promessa não cumprida, deitou-se com medo e só dormiu sobre a madrugada. Nada lhe sucedeu; mas, na segunda noite, teve um sonho extraordinário.

 

Não era a valsa do outro sonho, posto que, ao longe, na penumbra, via uns contornos cinzentos de vultos que andavam à roda. Viu, porém, o marido, a princípio severo, depois triste, perguntando-lhe como é que esquecera a promessa. Genoveva não respondeu nada; tinha a boca tapada por um carrasco, que era não menos que Oliveira.

 

— Responde, Genoveva!

 

— Ah! Ah!

 

— Tu esqueceste tudo. Estás condenada ao inferno!

 

Uma língua de fogo lambeu a parte do céu, que se conservava azul, porque todo o resto era um amontoado de nuvens carregadas de tempestade. Do meio delas saiu um vento furioso, que pegou da moça, do defunto marido e do noivo e os levou por uma estrada fora, estreita, lamacenta, cheia de cobras.

 

— O inferno! sim! o inferno!

 

E o carrasco tapava-lhe a boca, e ela mal podia gemer uns gritos abafados.

 

— Ah! ah!

 

Parou o vento, as cobras ergueram-se do chão e dispersaram-se no ar, entrando cada uma pelo céu dentro; algumas ficaram com a cauda de fora. Genoveva sentiu-se livre; desaparecera o carrasco, e o defunto esposo, de pé, pôs-lhe a mão na cabeça, e disse com voz profética:

 

— Morrerás se casares!

 

Desapareceu tudo; Genoveva acordou; era dia. Ergueu-se trêmula; o susto foi passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia consigo: “São sonhos”. Casou e não morreu.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 07 de maio de 2022

SÓ! (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

SÓ!

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 06 de maio de 2022

SINGULAR OCORRÊNCIA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

SINGULAR OCORRÊNCIA

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 05 de maio de 2022

SILVESTRE (CONTO DE MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

SILVESTRE

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 04 de maio de 2022

A SENHORA DO GALVÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A SENHORA DO GALVÃO

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 03 de maio de 2022

UMA SENHORA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

UMA SENHORA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 02 de maio de 2022

A SEGUNDA VIDA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A SEGUNDA VIDA

Machado de Assis

 

 

Monsenhor Caldas interrompeu a narração do desconhecido:


     - Dá Licença? é só um instante.


     Levantou-se, foi ao interior da casa, chamou o preto velho que o servia, e disse-lhe em voz baixa:


    - João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido. Anda, vai depressa.


      E, voltando à sala:


     - Pronto, disse ele; podemos continuar.


     - Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a Terra de vista, deixando muito abaixo a Lua, as estrelas e o Sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis. A sua pegou fogo alguma vez?


      - Não, senhor.


      - São incombustíveis. Fui subindo, subindo; na distância de quarenta mil léguas, ouvi uma deliciosa música, e logo que cheguei a cinco mil léguas, desceu um enxame de almas, que me levaram num palanquim feito de éter e plumas. Entrei daí a pouco no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da Terra. Não sou poeta, monsenhor; não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina. Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e cores, uma coisa indefinível e incompreensível. Só vendo. Lá dentro é que soube que completava mais um milheiro de almas; tal era o motivo das festas extraordinárias que fizeram-me, e que duraram dois séculos, ou, pelas nossas contas, quarenta e oito horas. Afinal, concluídas as festas, convidaram-me a tornar à Terra para cumprir uma vida nova; era o privilégio de cada alma que completava o milheiro. Respondi agradecendo e recusando, mas não havia recusar. Era uma lei eterna. A única liberdade que me deram foi a escolha do veículo; podia nascer príncipe ou condutor de ônibus. Que fazer? Que faria Vossa Reverendíssima no meu lugar?


      - Não posso saber; depende...


     - Tem razão; depende das circunstâncias. Mas imagine que as minhas eram tais que não me davam gosto a tornar cá. Fui vítima da inexperiência, monsenhor, tive uma velhice ruim, por essa razão. Então lembrou-me que sempre ouvira dizer a meu pai e outras pessoas mais velhas, quando viam algum rapaz: -- "Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!" Lembou-me isto, e declarei que me era indiferente nascer mendigo ou potentado, com a condição de nascer experiente. Não imagina o riso universal com que me ouviram. Jó, que ali preside a província dos pacientes, disse-me que um tal desejo era disparate; mas eu teimei e venci. Daí a pouco escorreguei no espaço; gastei nove meses a atravessá-lo até cair nos braços de uma ama-de-leite, e chamei-me José Maria. Vossa Reverendíssima é Romualdo, não?


      - Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas.


      - Será parente do Padre Sousa Caldas


      - Não, senhor.


      - Bom poeta o Padre Caldas. Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. Conto-lhe primeiro o que me sucedeu; depois lhe direi o que desejo de Vossa Reverendíssima. Entretanto, se me permitisse ir fumando...


       Monsenhor Caldas fez um gesto de assentimento, sem perder de vista a bengala que José Maria conservava atravessada sobre as pernas. Este preparou vagarosamente um cigarro. Era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante. Apareceu ali, tinha o padre acabado de almoçar, e pediu-lhe uma entrevista para negócio grave e urgente. Monsenhor fê-lo entrar e sentar-se; no fim de dez minutos, viu que estava com um lunático. Perdoava-lhe a incoerência das idéias ou o assombroso da invenções; podia ser até que lhe servissem de estudo. Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto esperava o auxílio policial, Monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados. José Maria acendeu finalmente o cigarro, e continuou:


       - Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de confusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas. Cresci; fiz-me rapaz, entrei no período dos amores... Não se assuste; serei casto, como a primeira ceia. Vossa Reverendíssima sabe o que é uma ceia de rapazes e mulheres?


       - Como quer que saiba?


      - Tinha dezenove anos, continuou José Maria, e não imagina o espanto dos meus amigos, quando me declarei pronto a ir a uma tal ceia... Ninguém esperava tal coisa de um rapaz tão cauteloso, que fugia de tudo, dos sonos atrasados, dos sonos excessivos, de andar sozinho a horas mortas, que vivia, por assim dizer, às apalpadelas. Fui à ceia; era no Jardim Botânico, obra esplêndida. Comidas, vinhos, luzes, flores, alegria dos rapazes, os olhos das damas, e, por cima de tudo, um apetite de vinte anos. Há de crer que não comi nada? A lembrança de três indigestões apanhadas quarenta anos antes na primeira vida, fez-me recuar. Menti dizendo que estava indisposto. Uma das damas veio sentar-se à minha direita, para curar-me; outra levantou-se também, e veio para a minha esquerda, com o mesmo fim. Você cura de um lado, eu curo do outro, disseram elas. Eram lépidas, frescas, astuciosas, e tinham fama de devorar o coração e a vida dos rapazes. Confesso-lhe que fiquei com medo e retraí-me. Elas fizeram tudo, tudo; mas em vão. Vim de lá de manhã, apaixonado por ambas, sem nenhuma delas, e caindo de fome. Que lhe parece? concluiu José Maria pondo as mãos nos joelhos, e arqueando os braços para fora.


      - Com efeito...


      - Não lhe digo mais nada; Vossa Reverendíssima adivinhará o resto. A minha segunda vida é assim uma mocidade expansiva e impetuosa, enfreada por uma experiência virtual e tradicional. Vivo como Eurico, atado ao próprio cadáver... Não, a comparação não é boa. Como lhe parece que vivo?


     - Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés...


     - Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim...


       José Maria ergueu-se, agitando os braços, à maneira de asas. Ao erguer-se, caiu-lhe a bengala no chão; mas ele não deu por ela. Continuou a agitar os braços, em pé, defronte do padre, e a dizer que era isso mesmo, um pássaro, um grande pássaro... De cada vez que batia os braços nas coxas, levantava os calcanhares, dando ao corpo uma cadência de movimentos, e conservava os pés unidos, para mostrar que os tinha amarrados. Monsenhor aprovava de cabeça; ao mesmo tempo afiava as orelhas para ver se ouvia passos na escada. Tudo silêncio. Só lhe chegavam os rumores de fora: -- carros e carroças que desciam, quitandeiras apregoando legumes, e um piano da vizinhança. José Maria sentou-se finalmente, depois de apanhar a bengala, e continuou nestes termos:


       - Um pássaro, um grande pássaro. Para ver quanto é feliz a comparação, basta a aventura que me traz aqui, um caso de consciência, uma paixão, uma mulher, uma viúva, D. Clemência. Tem vinte e seis anos, uns olhos que não acabam mais, não digo no tamanho, mas na expressão, e duas pinceladas de buço, que lhe completam a fisionomia. É filha de um professor jubilado. Os vestidos pretos ficam-lhe tão bem que eu às vezes digo-lhe rindo que ela não enviuvou senão para andar de luto. Caçoadas! Conhecemo-nos há um ano, em casa de um fazendeiro de Cantagalo. Saímos namorados um do outro. Já sei o que me vai perguntar: por que é que não nos casamos, sendo ambos livres...


       - Sim, senhor.


     - Mas, homem de Deus! é essa justamente a matéria da minha aventura. Somos livres, gostamos um do outro, e não nos casamos; tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja, explicará, se puder. Voltamos para a Corte namorados. Clemência morava com o velho pai, e um irmão empregado no comércio; relacionei-me com ambos, e comecei a freqüentar a casa, em Mata-cavalos. Olhos, apertos de mão, palavras soltas, outras ligadas, uma frase, duas frases, e estávamos amados e confessados. Uma noite, no patamar da escada, trocamos o primeiro beijo... Perdoe estas coisas, monsenhor; faça de conta que me está ouvindo de confissão. Nem eu lhe digo isto senão para acrescentar que saí dali tonto, desvairado, com a imagem de Clemência na cabeça e o sabor do beijo na boca. Errei cerca de duas horas, planeando uma vida única; determinei pedir-lhe a mão no fim da semana, e casar daí a um mês. Cheguei às derradeiras minúcias, cheguei a redigir e ornar de cabeça as cartas de participação. Entrei em casa depois de meia-noite, e toda essa fantasmagoria voou, como as mutações à vista nas antigas peças de teatro. Veja se adivinha como.


     - Não alcanço...


     - Considerei, no momento de despir o colete, que o amor podia acabar depressa; tem-se visto algumas vezes. Ao descalçar as botas, lembrou-me coisa pior: -- podia ficar o fastio. Concluí a toilette de dormir, acendi um cigarro, e, reclinado no canapé, pensei que o costume, a convivência, podia salvar tudo; mas, logo depois, adverti que as duas índoles podiam ser incompatíveis; e que fazer com duas índoles incompatíveis e inseparáveis? Mas, enfim, dei de barato tudo isso, porque a paixão era grande, violenta; considerei-me casado, com uma linda criancinha... Uma? duas, seis, oito; podiam vir oito, podiam vir dez; algumas aleijadas. Também podia vir uma crise, duas crises, falta de dinheiro, penúria, doenças; podia vir alguma dessas afeições espúrias que perturbam a paz doméstica... Considerei tudo e concluí que o melhor era não casar. O que não lhe posso contar é o meu desespero; faltam-me expressões para lhe pintar o que padeci nessa noite... Deixa-me fumar outro cigarro?
Não esperou resposta, fez o cigarro, e acendeu-o. Monsenhor não podia deixar de admirar-lhe a bela cabeça, no meio do desalinho próprio do estado; ao mesmo tempo notou que ele falava em termos polidos, e, que apesar dos rompantes mórbidos, tinha maneiras. Quem diabo podia ser esse homem? José Maria continuou a história, dizendo que deixou de ir à casa de Clemência, durante seis dias, mas não resistiu às cartas e às lágrimas. No fim de uma semana correu para lá, e confessou-lhe tudo, tudo. Ela ouviu-o com muito interesse, e quis saber o que era preciso para acabar com tantas cismas, que prova de amor queria que ela lhe desse. A resposta de José Maria foi uma pergunta.


      - Está disposta a fazer-me um grande sacrifício? disse-lhe eu. Clemência jurou que sim. "Pois bem, rompa com tudo, família e sociedade; venha morar comigo; casamo-nos depois desse noviciado." Compreendo que Vossa Reverendíssima arregale os olhos. Os dela encheram-se de lágrimas; mas, apesar de humilhada, aceitou tudo. Vamos; confesse que sou um monstro.


        - Não, senhor...


        - Como não? Sou um monstro. Clemência veio para minha casa, e não imagina as festas com que a recebi. "Deixo tudo, disse-me ela; você é para mim o universo." Eu beijei-lhe os pés, beijei-lhe os tacões dos sapatos. Não imagina o meu contentamento. No dia seguinte, recebi uma carta tarjada de preto; era a notícia da morte de um tio meu, em Santa Ana do Livramento, deixando-me vinte mil contos. Fiquei fulminado. "Entendo, disse a Clemência, você sacrificou tudo, porque tinha notícia da herança." Desta vez, Clemência não chorou, pegou em si e saiu. Fui atrás dela, envergonhado, pedi-lhe perdão; ela resistiu. Um dia, dois dias, três dias, foi tudo vão; Clemência não cedia nada, não falava sequer. Então declarei-lhe que me mataria; comprei um revólver, fui ter com ela, e apresentei-lho: é este.


       Monsenhor Caldas empalideceu. José Maria mostrou-lhe o revólver, durante alguns segundos, tornou a metê-lo na algibeira, e continuou:


      - Cheguei a dar um tiro. Ela, assustada, desarmou-me e perdoou-me. Ajustamos precipitar o casamento, e, pela minha parte, impus uma condição: doar os vinte mil contos à Biblioteca Nacional. Clemência atirou-se-me aos braços, e aprovou-me com um beijo. Dei os vinte mil contos. Há de ter lido nos jornais... Três semanas depois casamo-nos. Vossa Reverendíssima respira como quem chegou ao fim. Qual! Agora é que chegamos ao trágico. O que posso fazer é abreviar umas particularidades e suprimir outras; restrinjo-me a Clemência. Não lhe falo de outras emoções truncadas, que são todas as minhas, abortos de prazer, planos que se esgarçam no ar, nem das ilusões de sala rota, nem do tal pássaro... plás... plás... plás...


       E, de um salto, José Maria ficou outra vez de pé, agitando os braços, e dando ao corpo uma cadência. Monsenhor Caldas começou a suar frio. No fim de alguns segundos, José Maria parou, sentou-se, e reatou a narração, agora mais difusa, mais derramada, evidentemente mais delirante. Contava os sustos em que vivia, desgostos e desconfianças. Não podia comer um figo às dentadas, como outrora; o receio do bicho diminuía-lhe o sabor. Não cria nas caras alegres da gente que ia pela rua: preocupações, desejos, ódios, tristezas, outras coisas, iam dissimuladas por umas três quartas partes delas. Vivia a temer um filho cego ou surdo-mudo, ou tuberculoso, ou assassino, etc. Não conseguia dar um jantar que não ficasse triste logo depois da sopa, pela idéia de que uma palavra sua, um gesto da mulher, qualquer falta de serviço podia sugerir o epigrama digestivo, na rua, debaixo de um lampião. A experiência dera-lhe o terror de ser empulhada. Confessava ao padre que, realmente, não tinha até agora lucrado nada; ao contrário, perdera até, porque fora levado ao sangue... Ia contar-lhe o caso do sangue. Na véspera, deitara-se cedo, e sonhou... Com quem pensava o padre que ele sonhou?


       - Não atino..


      - Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. "Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa pode ombrear com eles. Salomão é a sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos." Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: "José Maria, são os teus vinte anos." Era uma gargalhada assim: -- cá, cá, cá, cá, cá...


       José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico. De repente, parou; levantou-se, e contou que, tão depressa abriu os olhos como viu a mulher diante dele, aflita e desgrenhada. Os olhos de Clemência eram doces, mas ele disse-lhe que os olhos doces também fazem mal. Ela arrojou-se-lhe aos pés... Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido. "Não, miserável! não! tu não me fugirás!" bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés.


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 01 de maio de 2022

O IMORTAL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O IMORTAL

Machado de Assis

 

 

 

— Meu pai nasceu em 1600...

 

— Perdão, em 1800, naturalmente...

 

— Não, senhor, replicou o Dr. Leão, de um modo grave e triste; foi em 1600.

 

Estupefação dos ouvintes, que eram dois, o Coronel Bertioga, e o tabelião da vila, João Linhares. A vila era na província fluminense; suponhamos Itaboraí ou Sapucaia. Quanto à data, não tenho dúvida em dizer que foi no ano de 1855, uma noite de novembro, escura como breu, quente como um forno, passante de nove horas. Tudo silêncio. O lugar em que os três estavam era a varanda que dava para o terreiro. Um lampião de luz frouxa, pendurado de um prego, sublinhava a escuridão exterior. De quando em quando, gania um seco e áspero vento, mesclando-se ao som monótono de uma cachoeira próxima. Tal era o quadro e o momento, quando o Dr. Leão insistiu nas primeiras palavras da narrativa.

 

— Não, senhor; nasceu em 1600.

 

Médico homeopata, — a homeopatia começava a entrar nos domínios da nossa civilização, — este Dr. Leão chegara à vila, dez ou doze dias antes, provido de boas cartas de recomendação, pessoais e políticas. Era um homem inteligente, de fino trato e coração benigno. A gente da vila notou-lhe certa tristeza no gesto, algum retraimento nos hábitos, e até uma tal ou qual sequidão de palavras, sem embargo da perfeita cortesia; mas tudo foi atribuído ao acanho dos primeiros dias e às saudades da Corte. Contava trinta anos, tinha um princípio de calva, olhar baço e mãos episcopais. Andava propagando o novo sistema.

 

Os dois ouvintes continuavam pasmados. A dúvida fora posta pelo dono da casa, o Coronel Bertioga, e o tabelião ainda insistiu no caso, mostrando ao médico a impossibilidade de ter o pai nascido em 1600. Duzentos e cinqüenta e cinco anos antes! dois séculos e meio! Era impossível. Então, que idade tinha ele? e de que idade morreu o pai?

 

— Não tenho interesse em contar-lhes a vida de meu pai, respondeu o Dr. Leão. Falaram-me no macróbio que mora nos fundos da matriz; disse-lhes que, em negócio de macróbios, conheci o que há mais espantoso no mundo, um homem imortal...

 

— Mas seu pai não morreu? disse o coronel.

 

— Morreu.

 

— Logo, não era imortal, concluiu o tabelião triunfante. Imortal se diz quando uma pessoa não morre, mas seu pai morreu.

 

— Querem ouvir-me?

 

— Homem, pode ser, observou o coronel meio abalado. O melhor é ouvir a história. Só o que digo é que mais velho do que o Capataz nunca vi ninguém. Está mesmo caindo de maduro. Seu pai devia estar também muito velho...?

 

— Tão moço como eu. Mas para que me fazem perguntas soltas? Para se espantarem cada vez mais, porque na verdade a história de meu pai não é fácil de crer. Posso contá-la em poucos minutos.

 

Excitada a curiosidade, não foi difícil impor-lhes silêncio. A família toda estava acomodada, os três eram sós na varanda, o dr. Leão contou enfim a vida do pai, nos termos em que o leitor vai ver, se se der o trabalho de ler o segundo e os outros capítulos.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

— Meu pai nasceu em 1600, na cidade de Recife.

 

Aos vinte e cinco anos tomou o hábito franciscano, por vontade de minha avó, que era profundamente religiosa. Tanto ela como o marido eram pessoas de bom nascimento, — “bom sangue”, como dizia meu pai, afetando a linguagem antiga.

 

Meu avô descendia da nobreza de Espanha, e minha avó era de uma grande casa do Alentejo. Casaram-se ainda na Europa, e, anos depois, por motivos que não vêm ao caso dizer, transportaram-se ao Brasil, onde ficaram e morreram. Meu pai dizia que poucas mulheres tinha visto tão bonitas como minha avó. E olhem que ele amou as mais esplêndidas mulheres do mundo. Mas não antecipemos.

 

Tomou meu pai o hábito, no convento de Iguaraçu, onde ficou até 1639, ano em que os holandeses, ainda uma vez, assaltaram a povoação. Os frades deixaram precipitadamente o convento; meu pai, mais remisso do que os outros (ou já com o intento de deitar o hábito às urtigas), deixou-se ficar na cela, de maneira que os holandeses o foram achar no momento em que recolhia alguns livros pios e objetos de uso pessoal. Os holandeses não o trataram mal. Ele os regalou com o melhor da ucharia franciscana, onde a pobreza é de regra. Sendo uso daqueles frades alternarem-se no serviço da cozinha, meu pai entendia da arte, e esse talento foi mais um encanto ao aparecer do inimigo.

 

No fim de duas semanas, o oficial holandês ofereceu-lhe um salvo-conduto, para ir aonde lhe parecesse; mas meu pai não o aceitou logo, querendo primeiro considerar se devia ficar com os holandeses, e, à sombra deles desamparar a Ordem, ou se lhe era melhor buscar vida por si mesmo. Adotou o segundo alvitre, não só por ter o espírito aventureiro, curioso e audaz, como porque era patriota, e bom católico, apesar da repugnância à vida monástica, e não quisera misturar-se com o herege invasor. Aceitou o salvo-conduto e deixou Iguaraçu.

 

Não se lembrava ele, quando me contou essas coisas, não se lembrava mais do número de dias que despendeu sozinho por lugares ermos, fugindo de propósito ao povoado, não querendo ir a Olinda ou Recife, onde estavam os holandeses. Comidas as provisões que levava, ficou dependente de alguma caça silvestre e frutas. Deitara, com efeito, o hábito às urtigas; vestia uns calções flamengos, que o oficial lhe dera, e uma camisola ou jaquetão de couro. Para encurtar razões, foi ter a uma aldeia de gentio, que o recebeu muito bem, com grandes carinhos e obséquios. Meu pai era talvez o mais insinuante dos homens. Os índios ficaram embeiçados por ele, mormente o chefe, um guerreiro velho, bravo e generoso, que chegou a dar-lhe a filha em casamento. Já então minha avó era morta, e meu avô desterrado para a Holanda, notícias que meu pai teve, casualmente, por um antigo servo da casa. Deixou-se estar, pois, na aldeia, o gentio, até o ano de 1642, em que o guerreiro faleceu. Este caso do falecimento é que é maravilhoso: peço-lhes a maior atenção.

 

O coronel e o tabelião aguçaram os ouvidos, enquanto o Dr. Leão extraía pausadamente uma pitada e inseria-a no nariz, com a pachorra de quem está negaceando uma coisa extraordinária.

 

 

 

CAPÍTULO III

 

Uma noite, o chefe indígena, — chamava-se Pirajuá, — foi à rede de meu pai, anunciou-lhe que tinha de morrer, pouco depois de nascer o sol, e que ele estivesse pronto para acompanhá-lo fora, antes do momento último. Meu pai ficou alvoroçado, não por lhe dar crédito, mas por supô-lo delirante. Sobre amadrugada, o sogro veio ter com ele.

 

— Vamos, disse-lhe.

 

— Não, agora não: estás fraco, muito fraco...

 

— Vamos! repetiu o guerreiro.

 

E, à luz de uma fogueira expirante, viu-lhe meu pai a expressão intimativa do rosto, e um certo ar diabólico, em todo caso extraordinário, que o aterrou. Levantou-se, acompanhou-o na direção de um córrego. Chegando ao córrego, seguiram pela margem esquerda, acima, durante um tempo que meu pai calculou ter sido um quarto de hora. A madrugada acentuava-se; a lua fugia diante dos primeiros anúncios do sol. Contudo, e apesar da vida do sertão que meu pai levava desde alguns tempos, a aventura assustava-o; seguia vigiando o sogro, com receio de alguma traição. Pirajuá ia calado, com os olhos no chão, e a fronte carregada de pensamentos, que podiam ser cruéis ou somente tristes. E andaram, andaram, até que Pirajuá disse:

 

— Aqui.

 

Estavam diante de três pedras, dispostas em triângulo. Pirajuá sentou-se numa, meu pai noutra. Depois de alguns minutos de descanso:

 

— Arreda aquela pedra, disse o guerreiro, apontando para a terceira, que era a maior.

 

Meu pai levantou-se e foi à pedra. Era pesada, resistiu ao primeiro impulso; mas meu pai teimou, aplicou todas as forças, a pedra cedeu um pouco, depois mais, enfim foi removida do lugar.

 

— Cava o chão, disse o guerreiro.

 

Meu pai foi buscar uma lasca de pau, uma taquara ou não sei que, e começou a cavar o chão. Já então estava curioso de ver o que era. Tinha-lhe nascido uma idéia, — algum tesouro enterrado, que o guerreiro, receoso de morrer, quisesse entregar-lhe. Cavou, cavou, cavou, até que sentiu um objeto rijo; era um vaso tosco, talvez uma igaçaba. Não o tirou, não chegou mesmo a arredar a terra em volta dele. O guerreiro aproximou-se, desatou o pedaço de couro de anta que lhe cobria a boca, meteu dentro o braço, e tirou um boião. Este boião tinha a boca tapada com outro pedaço de couro.

 

— Vem cá, disse o guerreiro.

 

Sentaram-se outra vez. O guerreiro tinha o boião sobre os joelhos, tapado, misterioso, aguçando a curiosidade de meu pai, que ardia por saber o que havia ali dentro.

 

— Pirajuá vai morrer, disse ele; vai morrer para nunca mais. Pirajuá ama guerreiro branco, esposo de Maracujá, sua filha; e vai mostrar um segredo como não há outro.

 

Meu pai estava trêmulo. O guerreiro desatou lentamente o couro que tapava o boião. Destapado, olhou para dentro, levantou-se, e veio mostrá-lo a meu pai. Era um líquido amarelado, de um cheiro acre e singular.

 

— Quem bebe isto, um gole só, nunca mais morre.

 

— Oh! bebe, bebe! exclamou meu pai com vivacidade.

 

Foi um movimento de afeto, um ato irrefletido de verdadeira amizade filial, porque só um instante depois é que meu pai advertiu que não tinha, para crer na notícia que o sogro lhe dava, senão a palavra do mesmo sogro, cuja razão supunha perturbada pela moléstia. Pirajuá sentiu o espontâneo da palavra de meu pai, e agradeceu-lha; mas abanou a cabeça.

 

— Não, disse ele; Pirajuá não bebe, Pirajuá quer morrer. Está cansado, viu muita lua, muita lua. Pirajuá quer descansar na terra, está aborrecido. Mas Pirajuá quer deixar este segredo a guerreiro branco; está aqui; foi feito por um velho pajé de longe, muito longe... Guerreiro branco bebe, não morre mais.

 

Dizendo isto, tornou a tapar a boca do boião, e foi metê-lo outra vez dentro da igaçaba. Meu pai fechou depois a boca da mesma igaçaba, e repôs a pedra em cima. O primeiro clarão do sol vinha apontando. Voltaram para casa depressa; antes mesmo de tomar a rede, Pirajuá faleceu.

 

Meu pai não acreditou na virtude do elixir. Era absurdo supor que um tal líquido pudesse abrir uma exceção na lei da morte. Era naturalmente algum remédio, se não fosse algum veneno; e neste caso, a mentira do índio estava explicada pela turvação mental que meu pai lhe atribuiu. Mas, apesar de tudo, nada disse aos demais índios da aldeia, nem à própria esposa. Calou-se; — nunca me revelou o motivo do silêncio: creio que não podia ser outro senão o próprio influxo do mistério.

 

Tempos depois, adoeceu, e tão gravemente que foi dado por perdido. O curandeiro do lugar anunciou a Maracujá que ia ficar viúva. Meu pai não ouviu a notícia, mas leu-a em uma página de lágrimas, no rosto da consorte, e sentiu em si mesmo que estava acabado. Era forte, valoroso, capaz de encarar todos os perigos; não se aterrou, pois, com a idéia de morrer, despediu-se dos vivos, fez algumas recomendações e preparou-se para a grande viagem.

 

Alta noite, lembrou-se do elixir, e perguntou a si mesmo se não era acertado tentá-lo. Já agora a morte era certa, que perderia ele com a experiência? A ciência de um século não sabia tudo; outro século vem e passa adiante. Quem sabe, dizia ele consigo, se os homens não descobrirão um dia a imortalidade, e se o elixir científico não será esta mesma droga selvática? O primeiro que curou a febre maligna fez um prodígio. Tudo é incrível antes de divulgado. E, pensando assim, resolveu transportar-se ao lugar da pedra, à margem do arroio; mas não quis ir de dia, com medo de ser visto. De noite, ergueu-se, e foi, trôpego, vacilante, batendo o queixo. Chegou à pedra, arredou-a, tirou o boião, e bebeu metade do conteúdo. Depois sentou-se para descansar. Ou o descanso, ou o remédio, alentou-o logo. Ele tornou a guardar o boião; daí a meia hora estava outra vez na rede. Na seguinte manhã estava bom...

 

— Bom de todo? perguntou o tabelião João Linhares, interrompendo o narrador.

 

— De todo.

 

— Era algum remédio para febre...

 

— Foi isto mesmo o que ele pensou, quando se viu bom. Era algum remédio para febre e outras doenças; e nisto ficou; mas, apesar do efeito da droga, não a descobriu a ninguém. Entretanto, os anos passaram, sem que meu pai envelhecesse; qual era no tempo da moléstia, tal ficou. Nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. Moço, perpetuamente moço. A vida do mato começara a aborrecê-lo; ficara ali por gratidão ao sogro; as saudades da civilização vieram tomá-lo. Um dia, a aldeia foi invadida por uma horda de índios de outra, não se sabe por que motivo, nem importa ao nosso caso. Na luta pereceram muitos, meu pai foi ferido, e fugiu para o mato. No dia seguinte veio à aldeia, achou a mulher morta. As feridas eram profundas; curou-as com o emprego de remédios usuais; e restabeleceu-se dentro de poucos dias. Mas os sucessos confirmaram-no no propósito de deixar a vida semi-selvagem e tornar à vida civilizada e cristã. Muitos anos se tinham passado depois da fuga do convento de Iguaraçu; ninguém mais o reconheceria. Um dia de manhã deixou a aldeia, com o pretexto de ir caçar; foi primeiro ao arroio, desviou a pedra, abriu a igaçaba, tirou o boião, onde deixara um resto do elixir. A idéia dele era fazer analisar a droga na Europa, ou mesmo em Olinda ou no Recife, ou na Bahia, por algum entendido em coisas de química e farmácia. Ao mesmo tempo não podia furtar-se a um sentimento de gratidão; devia àquele remédio a saúde. Com o boião ao lado, a mocidade nas pernas e a resolução no peito, saiu dali, caminho de Olinda e da eternidade.

 

 

 

CAPÍTULO IV

 

— Não posso demorar-me em pormenores, disse o Dr. Leão aceitando o café que o coronel mandara trazer. São quase dez horas...

 

— Que tem? perguntou o coronel. A noite é nossa; e, para o que temos de fazer amanhã, podemos dormir quando bem nos parecer. Eu por mim não tenho sono. E você, Sr. João Linhares?

 

— Nem um pingo, respondeu o tabelião.

 

E teimou com o Dr. Leão para contar tudo, acrescentando que nunca ouvira nada tão extraordinário. Note-se que o tabelião presumia ser lido em histórias antigas, e passava na vila por um dos homens mais ilustrados do Império; não obstante, estava pasmado. Ele contou ali mesmo, entre dois goles de café, o caso de Matusalém, que viveu novecentos e sessenta e nove anos, e o de Lameque que morreu com setecentos e setenta e sete; mas, explicou logo, porque era um espírito forte, que esses e outros exemplos da cronologia hebraica não tinham fundamento científico...

 

— Vamos, vamos ver agora o que aconteceu a seu pai, interrompeu o coronel.

 

O vento, de esfalfado, morrera; e a chuva começava a rufar nas folhas das árvores, a princípio com intermitências, depois mais contínua e basta. A noite refrescou um pouco. O Dr. Leão continuou a narração, e, apesar de dizer que não podia demorar-se nos pormenores, contou-os com tanta miudeza, que não me atrevo a pô-los tais quais nestas páginas; seria fastidioso. O melhor é resumi-lo.

 

Rui de Leão, ou antes Rui Garcia de Meireles e Castro Azevedo de Leão, que assim se chamava o pai do médico, pouco tempo se demorou em Pernambuco. Um ano depois, em 1654, cessava o domínio holandês. Rui de Leão assistiu às alegrias da vitória, e passou-se ao reino, onde casou com uma senhora nobre de Lisboa. Teve um filho; e perdeu o filho e a mulher no mesmo mês de março de 1661. A dor que então padeceu foi profunda; para distrair-se visitou a França e a Holanda. Mas na Holanda, ou por motivo de uns amores secretos, ou por ódio de alguns judeus descendentes ou naturais de Portugal, com quem entreteve relações comerciais na Haia, ou enfim por outros motivos desconhecidos, Rui de Leão não pôde viver tranqüilo muito tempo; foi preso e conduzido para a Alemanha, de onde passou à Hungria, a algumas cidades italianas, à França, e finalmente à Inglaterra. Na Inglaterra estudou o inglês profundamente; e, como sabia o latim, aprendido no convento, o hebraico, que lhe ensinara na Haia o famoso Spinoza, de quem foi amigo, e que talvez deu causa ao ódio que os outros judeus lhe criaram; — o francês e o italiano, parte do alemão e do húngaro, tornou-se em Londres objeto de verdadeira curiosidade e veneração. Era buscado, consultado, ouvido, não só por pessoas do vulgo ou idiotas, como por letrados, políticos e personagens da Corte.

 

Convém dizer que em todos os países por onde andara tinha ele exercido os mais contrários ofícios: soldado, advogado, sacristão, mestre de dança, comerciante e livreiro. Chegou a ser agente secreto da Áustria, guarda pontifício e armador de navios. Era ativo, engenhoso, mas pouco persistente, a julgar pela variedade das coisas que empreendeu; ele, porém, dizia que não, que a sorte é que sempre lhe foi adversa. Em Londres, onde o vemos agora, limitou-se ao mister de letrado e gamenho; mas não tardou que voltasse a Haia, onde o esperavam alguns dos amores velhos, e não poucos recentes.

 

Que o amor, força é dizê-lo, foi uma das causas da vida agitada e turbulenta do nosso herói. Ele era pessoalmente um homem galhardo, insinuante, dotado de um olhar cheio de força e magia. Segundo ele mesmo contou ao filho, deixou muito longe o algarismo dom-juanesco das mille e tre. Não podia dizer o número exato das mulheres a quem amara, em todas as latitudes e línguas, desde a selvagem Maracujá de Pernambuco, até à bela cipriota ou à fidalga dos salões de Paris e Londres; mas calculava em não menos de cinco mil mulheres. Imagina-se facilmente que uma tal multidão devia conter todos os gêneros possíveis da beleza feminil: loiras, morenas, pálidas, coradas, altas, meãs, baixinhas, magras ou cheias, ardentes ou lânguidas, ambiciosas, devotas, lascivas, poéticas, prosaicas, inteligentes, estúpidas; — sim, também estúpidas, e era opinião dele que a estupidez das mulheres tinha o sexo feminino, era graciosa, ao contrário da dos homens, que participava da aspereza viril.

 

— Há casos, dizia ele, em que uma mulher estúpida tem o seu lugar.

 

Na Haia, entre os novos amores, deparou-se-lhe um que o prendeu por longo tempo: lady Emma Sterling, senhora inglesa, ou antes escocesa, pois descendia de uma família de Dublin. Era formosa, resoluta, e audaz; — tão audaz que chegou a propor ao amante uma expedição a Pernambuco para conquistar a capitania, e aclamarem-se reis do novo Estado. Tinha dinheiro, podia levantar muito mais, chegou mesmo a sondar alguns armadores e comerciantes, e antigos militares que ardiam por uma desforra. Rui de Leão ficou aterrado com a proposta da amante, e não lhe deu crédito; mas lady Ema insistiu e mostrou-se tão de rocha, que ele reconheceu enfim achar-se diante de uma ambiciosa verdadeira. Era, todavia, homem de senso; viu que a empresa, por mais bem organizada que fosse, não passaria de tentativa desgraçada; disse-lho a ela; mostrou-lhe que, se a Holanda inteira tinha recuado, não era fácil que um particular chegasse a obter ali domínio seguro, nem ainda instantâneo. Lady Ema abriu mão do plano, mas não perdeu a idéia de o exalçar a alguma grande situação.

 

— Tu serás rei ou duque...

 

— Ou cardeal, acrescentava ele rindo.

 

— Por que não cardeal?

 

Lady Ema fez com que Rui de Leão entrasse daí a pouco na conspiração que deu em resultado a invasão da Inglaterra, a guerra civil, e a morte enfim dos principais cabos da rebelião. Vencida esta, lady Ema não deu por vencida. Ocorreu-lhe então uma idéia espantosa. Rui de Leão inculcava ser o próprio pai do duque de Monmouth, suposto filho natural de Carlos II, e caudilho principal dos rebeldes. A verdade é que eram parecidos como duas gotas d’água. Outra verdade é que lady Ema, por ocasião da guerra civil, tinha o plano secreto de fazer matar o duque, se ele triunfasse, e substituí-lo pelo amante, que assim subiria ao trono de Inglaterra. O pernambucano, escusado é dizê-lo, não soube de semelhante aleivosia, nem lhe daria o seu assentimento. Entrou na rebelião, viu-a perecer ao sangue e no suplício, e tratou de esconder-se. Ema acompanhou-o; e, como a esperança do cetro não lhe saía do coração, passado algum tempo fez correr que o duque não morrera, mas sim um amigo tão parecido com ele, e tão dedicado, que o substituiu no suplício.

 

— O duque está vivo, e dentro de pouco aparecerá ao nobre povo da Grã-Bretanha, sussurrava ela aos ouvidos.

 

Quando Rui de Leão efetivamente apareceu, a estupefação foi grande, o entusiasmo reviveu, o amor deu alma a uma causa, que o carrasco supunha ter acabado na Torre de Londres. Donativos, presentes, armas, defensores, tudo veio às mãos do audaz pernambucano, aclamado rei, e rodeado logo de um troço de varões resolutos a morrer pela mesma causa.

 

— Meu filho, — disse ele, século e meio depois, ao médico homeopata, — dependeu de muito pouco não teres nascido príncipe de Gales... Cheguei a dominar cidades e vilas, expedi leis, nomeei ministros, e, ainda assim, resisti a duas ou três sedições militares que pediam a queda dos dois últimos gabinetes. Tenho para mim que as dissensões internas ajudaram as forças legais, e devo-lhes a minha derrota. Ao cabo, não me zanguei com elas; a luta fatigara-me; não minto dizendo que o dia da minha captura foi para mim de alívio. Tinha visto, além da primeira, duas guerras civis, uma dentro da outra, uma cruel, outra ridícula, ambas insensatas. Por outro lado, vivera muito, e uma vez que me não executassem, que me deixassem preso ou me exilassem para os confins da terra, não pedia nada mais aos homens, ao menos durante alguns séculos... Fui preso, julgado e condenado à morte. Dos meus auxiliares não poucos negaram tudo; creio mesmo que um dos principais morreu na Câmara dos Lords. Tamanha ingratidão foi um princípio de suplício. Ema, não; essa nobre senhora não me abandonou; foi presa, condenada, e perdoada; mas não me abandonou. Na véspera de minha execução, veio ter comigo, e passamos juntos as últimas horas. Disse-lhe que não me esquecesse, dei-lhe uma trança de cabelos, pedi-lhe que perdoasse ao carrasco... Ema prorrompeu em soluços; os guardas vieram buscá-la. Ficando só, recapitulei a minha vida, desde Iguaraçu até a Torre de Londres. Estávamos então em 1686; tinha eu oitenta e seis anos, sem parecer mais de quarenta. A aparência era a da eterna juventude; mas o carrasco ia destruí-la num instante. Não valia a pena ter bebido metade do elixir e guardado comigo o misterioso boião, para acabar tragicamente no cepo do cadafalso... Tais foram as minhas idéias naquela noite. De manhã preparei-me para a morte. Veio o padre, vieram os soldados, e o carrasco. Obedeci maquinalmente. Caminhamos todos, subi ao cadafalso, não fiz discurso; inclinei o pescoço sobre o cepo, o carrasco deixou cair a arma, senti uma dor penetrante, uma angústia enorme, como que a parada súbita do coração; mas essa sensação foi tão grande como rápida; no instante seguinte tornara ao estado natural. Tinha no pescoço algum sangue, mas pouco e quase seco. O carrasco recuou, o povo bramiu que me matassem. Inclinaram-me a cabeça, e o carrasco, fazendo apelo a todos os seus músculos e princípios, descarregou outro golpe, e maior, se é possível, capaz de abrir-me ao mesmo tempo a sepultura, como já se disse de um valente. A minha sensação foi igual à primeira na intensidade e na brevidade; reergui a cabeça. Nem o magistrado nem o padre consentiram que se desse outro golpe. O povo abalou-se, uns chamaram-me santo, outros diabo, e ambas essas opiniões eram defendidas nas tabernas à força de punho e de aguardente. Diabo ou santo, fui presente aos médicos da corte. Estes ouviram o depoimento do magistrado, do padre, do carrasco, de alguns soldados, e concluíram que, uma vez dado o golpe, os tecidos do pescoço ligavam-se outra vez rapidamente, e assim os mesmos ossos, e não chegavam a explicar um tal fenômeno. Pela minha parte, em vez de contar o caso do elixir, calei-me; preferi aproveitar as vantagens do mistério. Sim, meu filho; não imaginas a impressão de toda a Inglaterra, os bilhetes amorosos que recebi das mais finas duquesas, os versos, as flores, os presentes, as metáforas. Um poeta chamou-me Anteu. Um jovem protestante demonstrou-me que eu era o mesmo Cristo.

 

 

 

CAPÍTULO V

 

O narrador continuou:

 

— Já vêem, pelo que lhes contei, que não acabaria hoje nem em toda esta semana, se quisesse referir miudamente a vida inteira de meu pai. Algum dia o farei, mas por escrito, e cuido que a obra dará cinco volumes, sem contar os documentos...

 

— Que documentos? perguntou o tabelião.

 

— Os muitos documentos comprobatórios que possuo, títulos, cartas, traslados de sentenças, de escrituras, cópias de estatísticas... Por exemplo, tenho uma certidão do recenseamento de um certo bairro de Gênova, onde meu pai morreu em 1742; traz o nome dele, com declaração do lugar em que nasceu...

 

— E com a verdadeira idade? perguntou o coronel.

 

— Não. Meu pai andou sempre entre os quarenta e os cinqüenta. Chegando aos cinqüenta, cinqüenta e poucos, voltava para trás; — e era-lhe fácil fazer isto, porque não esquentava lugar; vivia cinco, oito, dez, doze anos numa cidade, e passava a outra... Pois tenho muitos documentos que juntarei, entre outros, o testamento de lady Ema, que morreu pouco depois da execução gorada de meu pai. Meu pai dizia-me que entre as muitas saudades que a vida lhe ia deixando, lady Ema era das mais fortes e profundas. Nunca viu mulher mais sublime, nem amor mais constante, nem dedicação mais cega. E a morte confirmou a vida, porque o herdeiro de lady Ema foi meu pai. Infelizmente, a herança teve outros reclamantes, e o testamento entrou em processo. Meu pai, não podendo residir em Inglaterra, concordou na proposta de um amigo providencial que veio a Lisboa dizer-lhe que tudo estava perdido; quando muito poderia salvar um restozinho de nada, e ofereceu-lhe por esse direito problemático uns dez mil cruzados. Meu pai aceitou-os; mas, tão caipora que o testamento foi aprovado, e a herança passou às mãos do comprador...

 

— E seu pai ficou pobre...

 

— Com os dez mil cruzados, e pouco mais que apurou. Teve então idéia de meter-se no negócio de escravos; obteve privilégio, armou um navio, e transportou africanos para o Brasil. Foi a parte da vida que mais lhe custou; mas afinal acostumou-se às tristes obrigações de um navio negreiro. Acostumou-se, e enfarou-se, que era outro fenômeno na vida dele. Enfarava-se dos ofícios. As longas solidões do mar alargaram-lhe o vazio interior. Um dia refletiu, e perguntou a si mesmo, se chegaria a habituar-se tanto à navegação, que tivesse de varrer o oceano, por todos os séculos dos séculos. Criou medo; e compreendeu que o melhor modo de atravessar a eternidade era variá-la...

 

— Em que ano ia ele?

 

— Em 1694; fins de 1694.

 

— Veja só! Tinha então noventa e quatro anos, não era? Naturalmente, moço...

 

— Tão moço que casou daí a dois anos, na Bahia, com uma bela senhora que...

 

— Diga.

 

— Digo, sim; porque ele mesmo me contou a história. Uma senhora que amou a outro. E que outro! Imaginem que meu pai, em 1695, entrou na conquista da famosa república dos Palmares. Bateu-se como um bravo, e perdeu um amigo, um amigo íntimo, crivado de balas, pelado...

 

— Pelado?

 

— É verdade; os negros defendiam-se também com água fervendo, e este amigo recebeu um pote cheio; ficou uma chaga. Meu pai contava-me esse episódio com dor, e até com remorso, porque, no meio da refrega, teve de pisar o pobre companheiro; parece até que ele expirou quando meu pai lhe metia as botas na cara...

 

O tabelião fez uma careta; e o coronel, para disfarçar o horror, perguntou o que tinha a conquista dos Palmares com a mulher que...

 

— Tem tudo, continuou o médico. Meu pai, ao tempo que via morrer um amigo, salvara a vida de um oficial, recebendo ele mesmo uma flecha no peito. O caso foi assim. Um dos negros, depois de derrubar dois soldados, envergou o arco sobre a pessoa do oficial, que era um rapaz valente e simpático, órfão de pai, tendo deixado a mãe em Olinda... Meu pai compreendeu que a flecha não lhe faria mal a ele, e então, de um salto, interpôs-se. O golpe feriu-o no peito; ele caiu. O oficial, Damião... Damião de tal. Não digo o nome todo, porque ele tem alguns descendentes para as bandas de Minas. Damião basta. Damião passou a noite ao pé da cama de meu pai, agradecido, dedicado, louvando-lhe uma ação tão sublime. E chorava. Não podia suportar a idéia de ver morrer o homem que lhe salvara a vida por um modo tão raro. Meu pai sarou depressa, com pasmo de todos. A pobre mãe do oficial quis beijar-lhe as mãos: — “Basta-me um prêmio, disse ele; a sua amizade e a do seu filho”. O caso encheu de pasmo Olinda inteira. Não se falava em outra coisa; e daí a algumas semanas a admiração pública trabalhava em fazer uma lenda. O sacrifício, como vêem, era nenhum, pois meu pai não podia morrer; mas o povo, que não sabia disso, buscou uma causa ao sacrifício, uma causa tão grande como ele, e descobriu que o Damião devia ser filho de meu pai, e naturalmente filho adúltero. Investigaram o passado da viúva; acharam alguns recantos que se perdiam na obscuridade. O rosto de meu pai entrou a parecer conhecido de alguns; não faltou mesmo quem afirmasse ter ido a uma merenda, vinte anos antes, em casa da viúva, que era então casada, e visto aí meu pai. Todas estas patranhas aborreceram tanto a meu pai, que ele determinou passar à Bahia, onde casou...

 

— Com a tal senhora?

 

— Justamente... Casou com D. Helena, bela como o sol, dizia ele. Um ano depois morria em Olinda a viúva, e o Damião vinha à Bahia trazer a meu pai uma madeixa dos cabelos da mãe, e um colar que a moribunda pedia para ser usado pela mulher dele. D. Helena soube do episódio da flecha, e agradeceu a lembrança da morta. Damião quis voltar para Olinda; meu pai disse-lhe que não, que fosse no ano seguinte. Damião ficou. Três meses depois uma paixão desordenada... Meu pai soube da aleivosia de ambos, por um comensal da casa. Quis matá-los; mas o mesmo que os denunciou avisou-os do perigo, e eles puderam evitar a morte. Meu pai voltou o punhal contra si, e enterrou-o no coração.

 

“Filho, dizia-me ele, contando o episódio; dei seis golpes, cada um dos quais bastava para matar um homem, e não morri.” Desesperado saiu de casa, e atirou-se ao mar. O mar restituiu-o à terra. A morte não podia aceitá-lo: ele pertencia à vida por todos os séculos. Não teve outro recurso mais do que fugir; veio para o Sul, onde alguns anos depois, no princípio do século passado, podemos achá-lo na descoberta das minas. Era um modo de afogar o desespero, que era grande, pois amara muito a mulher, como um louco...

 

— E ela?

 

— São contos largos, e não me sobra tempo. Ela veio ao Rio de Janeiro, depois das duas invasões francesas; creio que em 1713. Já então meu pai enriquecera com as minas, e residia na cidade fluminense, benquisto, com idéias até de ser nomeado governador. D. Helena apareceu-lhe, acompanhada da mãe e de um tio. Mãe e tio vieram dizer-lhe que era tempo de acabar com a situação em que meu pai tinha colocado a mulher. A calúnia pesara longamente sobre a vida da pobre senhora. Os cabelos iam-lhe embranquecendo: não era só a idade que chegava, eram principalmente os desgostos, as lágrimas. Mostraram-lhe uma carta escrita pelo comensal denunciante, pedindo perdão a D. Helena da calúnia que lhe levantara e confessando que o fizera levado de uma criminosa paixão. Meu pai era uma boa alma; aceitou a mulher, a sogra e o tio. Os anos fizeram o seu ofício; todos três envelheceram, menos meu pai. Helena ficou com a cabeça toda branca; a mãe e o tio voavam para a decrepitude; e nenhum deles tirava os olhos de meu pai, espreitando as cãs que não vinham, e as rugas ausentes. Um dia meu pai ouviu-lhes dizer que ele devia ter parte com o diabo. Tão forte! E acrescentava o tio: “De que serve o testamento, se temos de ir antes?” Duas semanas depois morria o tio; a sogra acabou pateta, daí a um ano. Restava a mulher, que pouco mais durou.

 

— O que me parece, aventurou o coronel, é que eles vieram ao cheiro dos cobres...

 

— Decerto.

 

— ... e que a tal D. Helena (Deus lhe perdoe!) não estava tão inocente como dizia. É verdade que a carta do denunciante...

 

— O denunciante foi pago para escrever a carta, explicou o Dr. Leão; meu pai soube disso, depois da morte da mulher, ao passar pela Bahia... Meia-noite! Vamos dormir; é tarde; amanhã direi o resto.

 

— Não, não, agora mesmo.

 

— Mas, senhores... Só se for muito por alto.

 

— Seja por alto.

 

O doutor levantou-se e foi espiar a noite, estendendo o braço para fora, e recebendo alguns pingos de chuva na mão. Depois voltou-se e deu com os dois olhando um para o outro, interrogativos. Fez lentamente um cigarro, acendeu-o, e, puxadas umas três fumaças, concluiu a singular história.

 

 

 

CAPÍTULO VI

 

— Meu pai deixou pouco depois o Brasil, foi a Lisboa, e dali passou-se à Índia, onde se demorou mais de cinco anos, e donde voltou a Portugal, com alguns estudos feitos acerca daquela parte do mundo. Deu-lhes a última lima, e fê-los imprimir, tão a tempo, que o governo mandou-o chamar para entregar-lhe o governo de Goa. Um candidato ao cargo, logo que soube do caso, pôs em ação todos os meios possíveis e impossíveis. Empenhos, intrigas, maledicência, tudo lhe servia de arma. Chegou a obter, por dinheiro, que um dos melhores latinistas da península, homem sem escrúpulos, forjasse um texto latino da obra de meu pai, e o atribuísse a um frade agostinho, morto em Adém. E a tacha de plagiário acabou de eliminar meu pai, que perdeu o governo de Goa, o qual passou às mãos do outro; perdendo também, o que é mais, toda a consideração pessoal. Ele escreveu uma longa justificação, mandou cartas para a Índia, cujas respostas não esperou, porque no meio desses trabalhos, aborreceu-se tanto, que entendeu melhor deixar tudo, e sair de Lisboa. Esta geração passa, disse ele, e eu fico. Voltarei cá daqui a um século, ou dois.

 

— Veja isto, interrompeu o tabelião, parece coisa de caçoada! Voltar daí a um século — ou dois, como se fosse um ou dois meses. Que diz, “seu” coronel?

 

— Ah! eu quisera ser esse homem! É verdade que ele não voltou um século depois... Ou voltou?

 

— Ouça-me. Saiu dali para Madri, onde esteve de amores com duas fidalgas, uma delas viúva e bonita como o sol, a outra casada, menos bela, porém amorosa e terna como uma pomba-rola. O marido desta chegou a descobrir o caso, e não quis bater-se com meu pai, que não era nobre; mas a paixão do ciúme e da honra levou esse homem ofendido à prática de uma aleivosia, igual à outra: mandou assassinar meu pai; os esbirros deram-lhe três punhaladas e quinze dias de cama. Restabelecido, deram-lhe um tiro; foi o mesmo que nada. Então, o marido achou um meio de eliminar meu pai; tinha visto com ele alguns objetos, notas, e desenhos de coisas religiosas da Índia, e denunciou-o ao Santo Ofício, como dado a práticas supersticiosas. O Santo Ofício, que não era omisso nem frouxo nos seus deveres, tomou conta dele, e condenou-o a cárcere perpétuo. Meu pai ficou aterrado. Na verdade, a prisão perpétua para ele devia ser a coisa mais horrorosa do mundo. Prometeu, o mesmo Prometeu foi desencadeado... Não me interrompa, Sr. Linhares, depois direi quem foi esse Prometeu. Mas, repito: ele foi desencadeado, enquanto que meu pai estava nas mãos do Santo Ofício, sem esperança. Por outro lado, ele refletiu consigo que, se era eterno, não o era o Santo Ofício. O Santo Ofício há de acabar um dia, e os seus cárceres, e então ficarei livre. Depois, pensou também que, desde que passasse um certo número de anos, sem envelhecer nem morrer, tornar-se-ia um caso tão extraordinário, que o mesmo Santo Ofício lhe abriria as portas. Finalmente, cedeu a outra consideração. “Meu filho, disse-me ele, eu tinha padecido tanto naqueles longos anos de vida, tinha visto tanta paixão má, tanta miséria, tanta calamidade, que agradeci a Deus, o cárcere e uma longa prisão; e disse comigo que o Santo Ofício não era tão mau, pois que me retirava por algumas dezenas de anos, talvez um século, do espetáculo exterior...”

 

— Ora essa!

 

— Coitado! Não contava com a outra fidalga, a viúva, que pôs em campo todos os recursos de que podia dispor, e alcançou-lhe a fuga daí a poucos meses. Saíram ambos de Espanha, meteram-se em França, e passaram à Itália, onde meu pai ficou residindo por longos anos. A viúva morreu-lhe nos braços; e, salvo uma paixão que teve em Florença, por um rapaz nobre, com quem fugiu e esteve seis meses, foi sempre fiel ao amante. Repito, morreu-lhe nos braços, e ele padeceu muito, chorou muito, chegou a querer morrer também. Contou-me os atos de desespero que praticou; porque, na verdade, amara muito a formosa madrilena. Desesperado, meteu-se a caminho, e viajou por Hungria, Dalmácia, Valáquia; esteve cinco anos em Constantinopla; estudou o turco a fundo, e depois o árabe. Já lhes disse que ele sabia muitas línguas; lembra-me de o ver traduzir o padre-nosso em cinqüenta idiomas diversos. Sabia muito. E ciências! Meu pai sabia uma infinidade de coisas: filosofia, jurisprudência, teologia, arqueologia, química, física, matemáticas, astronomia, botânica; sabia arquitetura, pintura, música. Sabia o diabo.

 

— Na verdade...

 

— Muito, sabia muito. E fez mais do que estudar o turco; adotou o maometanismo. Mas deixou-o daí a pouco. Enfim, aborreceu-se dos turcos: era a sina dele aborrecer-se facilmente de uma coisa ou de um ofício. Saiu de Constantinopla, visitou outras partes da Europa, e finalmente passou-se a Inglaterra aonde não fora desde longos anos. Aconteceu-lhe aí o que lhe acontecia em toda a parte: achou todas as caras novas; e essa troca de caras no meio de uma cidade, que era a mesma deixada por ele, dava-lhe a impressão de uma peça teatral, em que o cenário não muda, e só mudam os atores. Essa impressão, que a princípio foi só de pasmo, passou a ser de tédio; mas agora, em Londres, foi outra coisa pior, porque despertou nele uma idéia, que nunca tivera, uma idéia extraordinária, pavorosa...

 

— Que foi?

 

— A idéia de ficar doido um dia. Imaginem: um doido eterno. A comoção que esta idéia lhe dava foi tal que quase enlouqueceu ali mesmo. Então lembrou-se de outra coisa. Como tinha o boião do elixir consigo, lembrou de dar o resto a alguma senhora ou homem, e ficariam os dois imortais. Sempre era uma companhia. Mas, como tinha tempo diante de si, não precipitou nada; achou melhor esperar pessoa cabal. O certo é que essa idéia o tranqüilizou... Se lhe contasse as aventuras que ele teve outra vez na Inglaterra, e depois em França, e no Brasil, onde voltou no vice-reinado do Conde de Resende, não acabava mais, e o tempo urge, além do que o Sr. Coronel está com sono...

 

— Qual sono!

 

— Pelo menos está cansado.

 

— Nem isso. Se eu nunca ouvi uma coisa que me interessasse tanto. Vamos; conte essas aventuras.

 

— Não; direi somente que ele achou-se em França por ocasião da revolução de 1789, assistiu a tudo, à queda e morte do rei, dos girondinos, de Danton, de Robespierre; morou algum tempo com Filinto Elísio, o poeta, sabem? Morou com ele em Paris; foi um dos elegantes do Diretório, deu-se com o primeiro Cônsul... Quis até naturalizar-se e seguir as armas e a política; podia ter sido um dos marechais do império, e pode ser até que não tivesse havido Waterloo. Mas ficou tão enjoado de algumas apostasias políticas, e tão indignado, que recusou a tempo. Em 1808 achamo-lo em viagem com a corte real para o Rio de Janeiro. Em 1822 saudou a independência; e fez parte da Constituinte; trabalhou no 7 de Abril; festejou a maioridade; há dois anos era deputado.

 

Neste ponto os dois ouvintes redobraram de atenção. Compreenderam que iam chegar ao desenlace, e não quiseram perder uma sílaba daquela parte da narração, em que iam saber da morte do imortal. Pela sua parte, o Dr. Leão parara um pouco; podia ser uma lembrança dolorosa; podia também ser um recurso para aguçar mais o apetite. O tabelião ainda lhe perguntou, se o pai não tinha dado a alguém o resto do elixir, como queria; mas o narrador não lhe respondeu nada. Olhava para dentro; enfim, terminou deste modo:

 

— A alma de meu pai chegara a um grau de profunda melancolia. Nada o contentava; nem o sabor da glória, nem o sabor do perigo, nem o do amor. Tinha então perdido minha mãe, e vivíamos juntos, como dois solteirões. A política perdera todos os encantos aos olhos dum homem que pleiteara um trono, e um dos primeiros do universo. Vegetava consigo; triste, impaciente, enjoado. Nas horas mais alegres fazia projetos para o século XX e XXIV, porque já então me desvendara todo o segredo da vida dele. Não acreditei, confesso; e imaginei que fosse alguma perturbação mental; mas as provas foram completas, e demais a observação mostrou-me que ele estava em plena saúde. Só o espírito, como digo, parecia abatido e desencantado. Um dia, dizendo-lhe eu que não compreendia tamanha tristeza, quando eu daria a alma ao diabo para ter a vida eterna, meu pai sorriu com uma tal expressão de superioridade, que me enterrou cem palmos abaixo do chão. Depois, respondeu que eu não sabia o que dizia; que a vida eterna afigurava-se-me excelente, justamente porque a minha era limitada e curta; em verdade, era o mais atroz dos suplícios. Tinha visto morrer todas as suas afeições; devia perder-me um dia, e todos os mais filhos que tivesse pelos séculos adiante. Outras afeições e não poucas o tinham enganado; e umas e outras, boas e más, sinceras e pérfidas, era-lhe forçoso repeti-las, sem trégua, sem um respiro ao menos, porquanto, a experiência não lhe podia valer contra a necessidade de agarrar-se a alguma coisa, naquela passagem rápida dos homens e das gerações. Era uma necessidade da vida eterna; sem ela, cairia na demência. Tinha provado tudo, esgotado tudo; agora era a repetição, a monotonia, sem esperanças, sem nada. Tinha de relatar a outros filhos, vinte ou trinta séculos mais tarde, o que me estava agora dizendo; e depois a outros, e outros, e outros, um não acabar mais nunca. Tinha de estudar novas línguas, como faria Aníbal, se vivesse até hoje: e para quê? para ouvir os mesmos sentimentos, as mesmas paixões... E dizia-me tudo isso, verdadeiramente abatido. Não parece esquisito? Enfim um dia, como eu fizesse a alguns amigos uma exposição do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos de meu pai um fogo desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram chamar-me ao quarto dele. Achei-o moribundo; disse-me então, com a língua trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto do elixir, e assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe a morte. E, dito isto, expirou.

 

O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que pensassem da famosa história; mas a seriedade do médico era tão profunda, que não havia duvidar. Creram no caso, e creram também definitivamente na homeopatia. Narrada a história a outras pessoas, não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros atribuíram-lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado por ambos de não poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a morte é, enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e não era inverossímil. Dou este problema aos estudiosos. Tal é o caso extraordinário, que há anos, com outro nome, e por outras palavras, contei a este bom povo, que provavelmente já os esqueceu a ambos.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 30 de abril de 2022

A IGREJA DO DIABO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A IGREJA DO DIABO

Machado de Assis

 

 

CAPÍTULO I

 

DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

 

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: - Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

 

II

ENTRE DEUS E O DIABO

 

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

 

 

Ill

A BOA NOVA AOS HOMENS

 

Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

 

 

IV

FRANJAS E FRANJAS

 

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

 

 


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 29 de abril de 2022

IDENTIDADE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

IDENTIDADE

Machado de Assis

 

 

 

Convenhamos que o fenômeno da semelhança completa entre dois indivíduos não parentes é coisa mui rara, — talvez ainda mais rara que um mau poeta calado. Pela minha parte não achei nenhum. Tenho visto parecenças curiosas, mas nunca ao ponto de estabelecer identidade entre duas pessoas estranhas.

 

Na família as semelhanças são naturais; e isso que fazia pasmar ao bom Montaigne, não traz o menor espanto ao mais soez dos homens. Os Ausos, povo antigo, cujas mulheres eram comuns, tinham um processo sumário para restituir os filhos aos pais: era a semelhança que, ao cabo de três meses, apresentasse o menino com algum dos cidadãos. Vá por conta de Heródoto. A natureza era assim um tabelião muito mais seguro. Mas que entre dois indivíduos de família e casta diferentes (a não serem os Drômios e os Menecmas dos poetas) a igualdade das feições, da estatura, da fala, de tudo, seja tal que se não possam distinguir um do outro, é caso para ser posto em letra de forma, depois de ter vivido três mil anos em um papiro, achado em Tebas. Vá por conta do papiro.

 

***

 

Era uma vez um faraó, cujo nome se perdeu na noite das velhas dinastias, — mas suponhamos que se chamava Pha-Nohr. Teve notícia de que existia em certo lugar do Egito um homem tão parecido com ele que era difícil discriminá-los. A princípio ouviu a notícia com indiferença, mas, depois de uma grande melancolia que teve, achaque dos últimos tempos, lembrou-se de deputar três homens que fossem procurar esse milagre e trazê-lo ao paço.

 

— Dêem-lhe o que pedir; se tiver dívidas, quero que as paguem; se amar alguma mulher, que a traga consigo. O essencial é que esteja cá e depressa, ou eu mando executar os três.

 

A corte respirou jubilosa. Após vinte anos de governo, era a primeira ameaça de morte que saía da real boca. Toda ela aplaudiu a pena; alguns ousaram propor uma formalidade simbólica, — que, antes de executar os três emissários, se lhes cortassem os pés para significar a pouca diligência empregada em cumprir os recados do faraó. Este, porém, sorriu de um modo mui particular.

 

Não tardou que os emissários tornassem a Mênfis com o menecma do rei. Era um pobre escriba, por nome Bachtan, sem pais, nem mulher, nem filhos, nem dívidas, nem concubinas. A cidade e a corte ficaram alvoroçadas ao ver entrar o homem, que era a própria figura do faraó. Juntos, só se podiam reconhecer pelos vestidos, porque o escriba, se não tinha majestade e grandeza, trazia certo ar tranqüilo e nobre, que as supria. Eram mais que dois homens parecidos; eram dois exemplares de uma só pessoa; eles mesmos não se distinguiam mais que pela consciência da personalidade. Pha-Nohr aposentou o escriba em uma câmara pegada à sua, dizendo que era para um trabalho de interesse público; e ninguém mais o viu durante dois meses.

 

No fim desse tempo, Pha-Nohr, que instruíra o escriba em todas as matérias da administração, declarou-lhe uma noite que ia pô-lo no trono do Egito por algum tempo, meses ou anos. Bachtan ficou sem entender nada.

 

— Não entendes, escriba? O escriba agora sou eu. Tu és faraó. Fica aí com o meu nome, o meu poder e a minha figura. Não descobrirás a ninguém o segredo desta troca. Vou a negócios do Estado.

 

— Mas, senhor...

 

— Reinas ou morres.

 

Antes reinar. Bachtan obedeceu à ordem, mas suplicou ao rei que a demora não fosse muita; faria justiça, mas não tinha gosto ao poder, menos ainda nascera para governar o Egito. Trocaram de aposentos. O escriba rolou durante a noite inteira, sem achar cômodo, no leito da vindoura Cleópatra. De manhã, segundo o ajustado, foi o rei despedido com as vestes do escriba, dando-lhe o escriba, que fazia de faraó, algum dinheiro e muitas pedras preciosas. Dez guardas do paço acompanharam o ex-faraó até os subúrbios de uma cidade distante.

 

— Viva a vida! exclamou este, apenas perdeu de vista os soldados. Santo nome de Ísis e de Osíris! Viva a vida e a liberdade!

 

Ninguém, exceto o vento bochorno do Egito, ouviu essas primeiras palavras ditas por ele a todo o universo. O vento foi andando indiferente; mas o leitor, que não é vento, pede explicação delas. Quando menos, supõe que este homem é doido. Tal era também a opinião de alguns doutores; mas, graças ao regímen especialista da terra, outros queriam que o mal dele viesse do estômago, outros do ventre, outros do coração. Que mal? Uma coisa esquisita. Imagine-se que Pha-Nohr começara a governar com vinte e dois anos, tão alegre, expansivo e resoluto, que encantou a toda a gente; tinha idéias grandes, úteis e profundas. No fim, porém, de dois anos, mudou completamente de gênio. Tédio, desconfiança, aversão às pessoas, sarcasmos amiudados e, finalmente, umas crises melancólicas, que lhe levavam dias e dias. Durou isto dezoito anos.

 

Já sabemos que foi ao sair de uma daquelas crises que ele entregou o Egito ao escriba. A causa, porém, deste ato inexplicável é a mesma da singular troca de gênio. Pha-Nohr persuadira-se de que não podia conhecer o caráter nem o coração dos homens, através da linguagem curial, ataviada naturalmente, e que lhe parecia oblíqua, dúbia, sem vida própria nem contrastes. Vá que lhe não dissessem coisas rudes, nem ainda as verdades inteiras; mas, por que lhe não mostrariam a alma toda, menos esses desvãos secretos, que há em toda a casa? Desde que isto se lhe meteu em cabeça, caiu na ruim tristeza e longas hipocondrias; e, se lhe não aparece o menecma que pôs no trono, provavelmente morreria de desespero.

 

Agora tinha ímpetos de voar, de correr toda aquela abóbada de estanho que lá ficava acima dele, ou então ir conversar com os crocodilos, trepar aos hipopótamos, disputar as serpentes aos íbis. Pelo boi Ápis! pensava ele andando e gesticulando, ruim ofício era o meu. Cá levo agora a minha boa alegria e não a dou a troco de nada, nem do Egito nem de Babilônia.

 

***

 

— Charmion, quem será aquele homem que vem tão alegre? perguntou um tecelão, jantando à porta de casa com a mulher.

 

Charmion voltou os olhos cheios de mistérios do Nilo para o lado que o marido indicava. Pha-Nohr, logo que os viu, correu para eles. Era à entrada da cidade; podia ir buscar pousada e comida. Mas tão ansioso estava por sentir que não era rei e meter a mão nos corações e nos caracteres, que não hesitou em pedir-lhes algum bocado para matar a fome.

 

— Sou um pobre escriba, disse ele. Trago uma caixa de pedras preciosas, que me deu o faraó por achar que era parecido com ele; mas pedras não se comem.

 

— Comerás do nosso peixe e beberás do nosso vinho, disse-lhe o tecelão.

 

O vinho era ruim; o peixe fora mal crestado ao sol; mas para ele valiam mais que os banquetes de Mênfis, era o primeiro jantar da liberdade. Expandia-se o ex-faraó; ria, falava, interrogava, queria saber isto e aquilo, batia no ombro ao tecelão, e este ria-se também e contava-lhe tudo.

 

— A cidade é um covil de sacripantes; mais ruins que eles só os meus vizinhos aqui da entrada. Contarei a história de um ou dois e bastará para conhecer o resto.

 

Contou umas coisas juntamente ridículas e execráveis, que o hóspede ouviu aborrecido. Este, para desanojar-se, olhou para Charmion e notou que ela pouco mais fazia que fitá-lo com os seus grandes olhos cheios de mistérios do Nilo. Não amara a outra mulher; esta reduziu os seus quarenta e dois anos a vinte e cinco, ao passo que o tecelão prosseguia em dizer a má casta de vizinhos que a fortuna lhe dera. Uns perversos! e os que não eram perversos eram asnos, como um tal Phtataghuruh que...

 

“Que poder misterioso fez nascer tão linda criatura entre mecânicos?” dizia Pha-Nohr consigo.

 

Caiu a tarde. Pha-Nohr agradeceu o obséquio e quis ir-se embora; mas o tecelão não consentiu em deixá-lo; passaria ali a noite. Deu-lhe um bom aposento, ainda que pobre. Charmion foi adereçá-lo com as melhores coisas que tinha, deitando-lhe sobre a cama uma bonita colcha bordada — daquelas famosas colchas do Egito citadas por Salomão — e encheu-lhe o ar de aromas finíssimos. Era pobre, mas gostava do luxo.

 

Pha-Nohr deitou-se pensando nela. Era virtuoso; parecia-lhe que estava pagando mal os obséquios do marido e sacudia de si a imagem da moça. Os olhos, porém, ficavam; viu-os na escuridão, fitos nele, como dois fachos noturnos, e ouviu-lhe também a voz terna e súplice. Saltou da cama, os olhos desapareceram, mas a voz continuava, e, coisa extraordinária, intercalada com a do marido. Não podiam estar longe; colou o ouvido à parede. Ouviu que o tecelão propunha à mulher ficarem com a caixa das pedras preciosas do hóspede, indo buscá-la ao quarto; fariam depois alarido e diriam que eram ladrões. Charmion opunha-se; ele teimava, ela suplicava...

 

Pha-Nohr ficou embasbacado. Quem diria que o bom tecelão, tão obsequioso?... Não dormiu o resto da noite; gastou-a a andar e a agitar-se para que o homem lá não fosse. De manhã, dispôs-se a andar. O tecelão quis retê-lo, pediu-lhe um dia mais, ou dois, algumas horas; não alcançou nada. Charmion não ajudou o marido; trazia, porém, os mesmos olhos da véspera, fitos no hóspede, teimosos e enigmáticos. Pha-Nohr deu-lhe em lembrança uns brincos de cristal e um bracelete de ouro.

 

— Até um dia! murmurou-lhe ela ao ouvido.

 

Pha-Nohr entrou na cidade, achou pousada, deixou as suas coisas a bom recado e saiu para a rua. Morria por andar à toa, desconhecido, misturado à outra gente, falar e ouvir a todos, com franqueza, sem os atilhos do formalismo nem as composturas do paço. Toda a cidade estava em alvoroço, por causa da grande festa anual de Ísis. Grupos na rua, ou às portas, mulheres, homens, crianças, muito riso, muita conversa, uma algazarra de todos os diabos. Pha-Nohr ia a toda parte; foi ver aparelhar os barcos, entrou nos mercados, interrogando a todos. A linguagem era naturalmente rude, — às vezes obscena. No meio do tumulto recebeu alguns encontrões. Eram os primeiros, e mais lhe doeu a dignidade que a pessoa. Parece que chegou a desandar para casa; mas riu-se logo do melindre e tornou à multidão.

 

Na primeira rua em que entrou, viu duas mulheres que brigavam, agarradas uma à outra, com palavras e murros. Eram robustas e descaradas. Em volta, a gente fazia círculo, e animava-as, como se pratica ainda hoje com os cães. Pha-Nohr não pôde sofrer o espetáculo; primeiro, quis sair dali; mas tal pena teve das duas criaturas, que rompeu a multidão, penetrou no espaço em que elas estavam e separou-as. Resistiram; ele, não menos robusto, meteu-se de permeio. Então elas, vendo que não podiam ir uma à outra, despejaram nele a raiva; Pha-Nohr afasta-se, atravessa a multidão, elas perseguem-no, entre a risota pública, ele corre, elas correm, e, a pedrada e nome cru, o acompanham até longe. Uma das pedras feriu-lhe o pescoço.

 

“Vou-me daqui, pensou ele, entrando em casa. Em curando a ferida, embarco. Parece, na verdade, uma cidade de sacripantes.”

 

Nisto ouviu vozes na rua, e daí a pouco entrava-lhe em casa um magistrado acompanhado das duas mulheres e de umas vinte pessoas. As mulheres queixavam-se de que esse homem investira contra elas. As vinte pessoas juraram a mesma coisa. O magistrado ouviu a explicação de Pha-Nohr; e, dizendo este que a sua melhor defesa era a ferida que trazia no pescoço, retorquiu-lhe o magistrado que as duas agravadas naturalmente haviam de defender-se, e multou-o. Pha-Nohr, esquecendo a abdicação temporária, gritou que lhe prendessem o magistrado.

 

— Outra multa, respondeu este gravemente; e o ferido não teve mais que pagar para se não descobrir.

 

Estava em casa, triste e acabrunhado, quando viu entrar, daí a dois dias, a bela Charmion debulhada em lágrimas. Sabendo da aventura, desamparou tudo, casa e marido, para vir tratar dele. Doía-lhe muito? Queria que ela lhe bebesse o sangue da ferida, como o melhor vinho do Egito e do mundo? Trazia um pacote com os objetos de uso pessoal.

 

— Teu marido? perguntou Pha-Nohr.

 

— Meu marido és tu!

 

Pha-Nohr quis replicar; mas os olhos da moça encerravam, mais que nunca, todos os mistérios do Egito. Além dos mistérios, tinha ela um plano. Dissera ao marido que ia com uma família amiga à festa de Ísis, e foi assim que saiu de casa.

 

— Olha, concluiu, para mais captar-lhe a confiança, aqui trouxe o meu par de crótalos, com que uso acompanhar as danças e as flautas. Os barcos saem amanhã. Alugarás um e iremos, não a Busíris, mas ao lugar mais ermo e áspero, que será para mim o seio da própria Ísis divina.

 

Cegueira do amor, em vão Pha-Nohr quis recuar e dissuadi-la. Tudo ficou ajustado. Como precisassem dinheiro, saiu ele a vender duas pedras preciosas. Nunca soubera o valor de tais coisas; umas foram-lhe dadas, outras foram-lhe compradas pelos seus mordomos. Contudo, tal foi o preço que lhe ofereceu por elas o primeiro comprador, que ele voltou as costas, por mais que este o chamasse para fazer negócio. Chegou-se a outro e contou-lhe o que se dera com o primeiro.

 

— Como se há de impedir que os velhacos abusem da boa-fé dos homens de bem? disse este com voz melíflua.

 

E, depois de examinar as pedras, declarou que eram boas, e perguntou se o dono lhes tinha alguma afeição particular.

 

— Para mim, acrescentou, é fora de dúvida que a afeição que se tem a um objeto torna-o mais vendável. Não me pergunte a razão; é um mistério.

 

— Não tenho a estas nenhuma afeição particular, acudiu Pha-Nohr.

 

— Bem, deixe-me avaliá-las.

 

Calculou baixinho, olhando para o ar, e acabou oferecendo metade do valor das pedras. Era tão superior esta segunda oferta à primeira, que Pha-Nohr aceitou-a com grandes alegrias. Comprou um barco, de boa acácia, calafetado de fresco, e voltou à pousada, onde Charmion lhe ouviu toda a história.

 

— A consciência daquele homem, concluiu Pha-Nohr, é em si mesma uma rara pedra preciosa.

 

— Não digas isso, meu divino sol. As pedras valiam o dobro.

 

Pha-Nohr, indignado, quis ir ter com o homem; mas a formosa Charmion reteve-o, era tarde e inútil. Tinham de embarcar na manhã seguinte. Veio a manhã, embarcaram, e no meio de tantos barcos que iam a Busíris puderam eles escapar-se e foram dar à outra cidade distante, onde acharam casa estreita e graciosa, um ninho de amor.

 

— Viveremos aqui até à morte, disse-lhe a bela Charmion.

 

***

 

Já não era a pobre namorada sem adornos; podia agora desbancar as ricas donas de Mênfis. Jóias, finas túnicas, vasos de aromas, espelhos de bronze, alcatifas por toda a parte e mulheres que a servissem, umas do Egito, outras da Etiópia; mas a melhor jóia de todas, a melhor alcatifa, o melhor espelho és tu, dizia ela a Pha-Nohr.

 

Não faltaram também amigos nem amigas, por mais que quisessem viver reclusos. Entre os homens, havia dois mais particularmente aceitos a ambos, um velho letrado e um rapaz que andara por Babilônia e outras partes. Na conversação, era natural que Charmion e as amigas ouvissem com prazer as narrativas do moço. Pha-Nohr deleitava-se com as palestras do letrado.

 

Desde longos anos que este compunha um livro sobre as origens do Nilo; e, conquanto ninguém o tivesse lido, a opinião geral é que era admirável. Pha-Nohr quis ter a glória de ouvir-lhe algum trecho; o letrado levou-o à casa dele, um dia, aos primeiros raios do sol. Abria o livro por uma longa dissertação sobre a origem da terra e do céu; depois vinha outra sobre a origem das estações e dos ventos; outra sobre a origem dos ritos, dos oráculos e do sacerdócio. No fim de três horas, pararam, comeram alguma coisa e entraram na segunda parte, que tratava da origem da vida e da morte, matéria de tanta ponderação, que não acabou mais, porque a noite os tomou em meio. Pha-Nohr levantou-se desesperado.

 

— Amanhã continuaremos, disse o letrado; acabada esta parte, trato logo da origem dos homens, da origem dos reinos, da origem do Egito, da origem dos faraós, da minha própria origem, da origem das origens, e entramos na matéria particular do livro, que são as origens do Nilo, antecedendo-as, porém, das origens de todos os rios do universo. Mas que lhe parece o que li?

 

Pha-Nohr não pôde responder; saiu furioso. Na rua teve uma vertigem e caiu. Quando voltou a si, a lua clareava o caminho, ergueu-se a custo e foi para casa.

 

— Maroto! serpente! dizia ele. Se eu fosse rei, não me aborrecias mais de meia hora. Vã liberdade, que me condenas à escravidão!

 

E assim pensando, ia cheio de saudades de Mênfis, do poder que emprestara ao escriba e até dos homens que lhe falavam tremendo e aos quais fugira. Trocara tudo por nada... Aqui emendou-se. Charmion valia por tudo. Já lá iam meses que viviam juntos; os indiscretos é que lhe empanavam a felicidade. Murmurações de mulheres, disputas de homens eram realmente matéria estranha ao amor de ambos. Construiu novo plano de vida; deixariam aquela cidade, onde não podiam viver para si. Iriam para algum lugar pobre e de pouca gente. Para que luxo externo, amigos, conversações frívolas? E ele cantarolava, andando: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...”

 

Chegou à casa, correu ao aposento comum, para enxugar as lágrimas à bela Charmion. Não achou nada, nem a moça, nem as pedras preciosas, nem as jóias, túnicas, espelhos, muitas outras coisas de valia. Não achou sequer o moço viajante, que provavelmente, à força de falar de Babilônia, despertou na dama o desejo de irem visitá-la juntos...

 

Pha-Nohr chorou de raiva e de amor. Não dormiu; no dia seguinte indagou, mas ninguém sabia de nada. Vendeu os poucos móveis e tapetes que lhe ficaram, e foi para uma cidadezinha próxima, no mesmo distrito. Levava esperanças de encontrá-la. Estava abatido e lúgubre. Para ocupar o tempo e sarar do abalo, meteu-se a aprendiz de embalsamador. A morte me ajudará a suportar a vida, disse ele.

 

A casa era das mais célebres. Não embalsamava só os cadáveres das pessoas ricas, mas também os das menos abastadas e até da gente pobre. Como os preços de segunda e terceira classes eram os mesmos de outras partes, muitas famílias mandavam para ali os seus cadáveres, para que os embalsamassem com os das pessoas nobres. Pha-Nohr começou pela gente ínfima, cujo processo de embalsamamento era mais sumário. Notou logo que ele e os companheiros de classe eram vistos com desdém pelos embalsamadores da segunda classe; estes chegavam-se muito aos da primeira, mas os da primeira não faziam caso de uns nem de outros. Não se mortificou com isso. Sacar ou não os intestinos do cadáver, ingerir-lhe óleo de cedro ou vinho de palma, mirra e canela, era diferença de operação e de preço. Outra coisa o mortificou deveras.

 

Tinha ido ali buscar uma oficina de melancolia e deu com um bazar de chufas e anedotas. Certamente havia respeito, quando entrava uma encomenda; o cadáver era recebido com muitas atenções, gestos graves, caras lúgubres. Logo, porém, que os parentes o deixavam, recomeçavam as alegrias. As mulheres, se faleciam moças e bonitas, eram longamente vistas e admiradas por todos. A biografia dos mortos conhecidos era feita ali mesmo, lembrando este um caso, aquele outro. Operavam os corpos, gracejando, falando cada um dos seus negócios, planos, idéias, puxando daqui e dali, como se cortam sapatos. Pha-Nohr compreendeu que o uso encruara naquela gente a piedade e a sensibilidade.

 

“Talvez eu mesmo acabe assim”, pensou ele.

 

Deixou o ofício, depois de esperar algum tempo a ver se entrava o cadáver da bela Charmion. Exerceu outros, foi barbeiro, bateleiro, caçador de aves aquáticas. Cansado, exausto, aborrecido, apertaram-lhe as saudades do trono; resolveu tornar a Mênfis e ocupá-lo.

 

Toda a cidade, logo que o viu, clamou que era chegado o escriba parecido com o faraó, que ali estivera tempos atrás; e faziam-se grupos na rua e uma grande multidão o seguiu até ao paço.

 

— Muito parecido! exclamavam de um lado e de outro.

 

— Sim? perguntava Pha-Nohr, sorrindo.

 

— A única diferença, explicou-lhe um velho, é que o faraó está muito gordo.

 

Pha-Nohr estremeceu. Correu-lhe um frio pela espinha. Muito gordo? Era então impossível a permuta das pessoas. Deteve-se alguns instantes; mas acudiu-lhe logo ir assim mesmo ao paço, e, destronando o escriba, descobrir o segredo. Para que encobri-lo mais?

 

Entrou; a corte esperava-o, em redor do faraó, e reconheceu logo que era impossível agora confundi-los, à vista da diferença na grossura dos corpos; mas a cara, a fala, o gesto eram ainda os mesmos. Bachtan perguntou-lhe placidamente o que é que queria; Pha-Nohr sentiu-se rei e declarou-lhe que o trono.

 

— Sai daí, escriba, concluiu; o teu papel está acabado.

 

Bachtan riu-se para os outros, os outros riram-se e o paço estremeceu com a gargalhada universal. Pha-Nohr fechou as mãos e ameaçou a todos; mas a corte continuou a rir. Bachtan, porém, fez-se sério e declarou que esse homem sedicioso era um perigo para o Estado. Pha-Nohr foi ali mesmo preso, julgado e condenado à morte. Na manhã seguinte, cumpriu-se a sentença diante do faraó e grande multidão. Pha-Nohr morreu tranqüilo, rindo do escriba e de toda a gente, menos talvez de Charmion: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...” A multidão, logo que ele expirou, soltou uma formidável aclamação:

 

— Viva Pha-Nohr!

 

E Bachtan, sorrindo, agradeceu.

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 28 de abril de 2022

IDEIAS DE CANÁRIO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

IDEIAS DE CANÁRIO

Machado de Assis

 

 

 

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

No princípio do mês passado, - disse ele, - indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atualhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

- Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

- Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...

- Como - interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

- Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

- Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

- Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...

- Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

- Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

- O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

- As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

- Quero só o canário.

Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

Não tendo mais família que dous criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, - ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

- O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...

- Mas não o procuraram?

- Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

- Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doudo; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...

- Que jardim? que repuxo?

- O mundo, meu querido.

- Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor.

O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...

- De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 27 de abril de 2022

A IDEIA DO EZEQUIEL MAIA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

A IDEIA DO EZEQUIEL MAIA

Machado de Assis

 

 

 

A idéia do Ezequiel Maia era achar um mecanismo que lhe permitisse rasgar o véu ou revestimento ilusório que dá o aspecto material às coisas. Ezequiel era idealista. Negava abertamente a existência dos corpos. Corpo era uma ilusão do espírito, necessária aos fins práticos da vida, mas despida da menor parcela de realidade. Em vão os amigos lhe ofereciam finas viandas, mulheres deleitosas, e lhe pediam que negasse, se podia, a realidade de tão excelentes coisas. Ele lastimava, comendo, a ilusão da comida; lastimava-se a si mesmo, quando tinha ante si os braços magníficos de uma senhora. Tudo concepção do espírito; nada era nada. Esse mesmo nome de Maia não o tomou ele, senão como um símbolo. Primitivamente, chamava-se Nóbrega; mas achou que os hindus celebram uma deusa, mãe das ilusões, a que dão o nome de Maia, e tanto bastou para que trocasse por ele o apelido de família.

 

A opinião dos amigos e parentes era que este homem tinha o juízo a juros naquele banco invisível, que nunca paga os juros, e, quando pode, guarda o capital. Parece que sim; parece também que ele não tocou de um salto o fundo do abismo, mas escorregando, indo de uma restauração da cabala para outra da astrologia, da astrologia à quiromancia, da quiromancia à charada, da charada ao espiritismo, do espiritismo ao niilismo idealista. Era inteligente e lido; formara-se em matemáticas, e os professores desta ciência diziam que ele a conhecia como gente.

 

Depois de largo cogitar, achou Ezequiel um meio: abstrair-se pelo nariz. Consistia em fincar os olhos na extremidade do nariz, à maneira do faquir, embotando a sensibilidade ao ponto de perder toda a consciência do mundo exterior. Cairia então o véu ilusório das coisas; entrar-se-ia no mundo exclusivo dos espíritos. Dito e feito. Ezequiel metia-se em casa, sentava-se na poltrona, com as mãos espalmadas nos joelhos, e os olhos na ponta do nariz. Pela afirmação dele, a abstração operava-se em vinte minutos, e poderia fazer-se mais cedo, se ele não tivesse o nariz tão extenso. A inconveniência de um nariz comprido é que o olhar, desde que transpusesse uma certa linha, exercia mais facilmente a miserável função ilusória. Vinte minutos, porém, era o prazo razoável de uma boa abstração. O Ezequiel ficava horas e horas, e às vezes dias e dias, sentado, sem se mexer, sem ver nem ouvir; e a família (um irmão e duas sobrinhas) preferia deixá-lo assim, a acordá-lo; não se cansaria, ao menos, na perpétua agitação do costume.

 

— Uma vez abstrato, dizia ele aos parentes e familiares, liberto-me da ilusão dos sentidos. A aparência da realidade extingue-se, como se não fosse mais do que um fumo sutil, evaporado pela substância das coisas. Não há então corpos; entesto com os espíritos, penetro-os, revolvo-os, congrego-me, transfundo-me neles. Não sonhaste a noite passada comigo, Micota?

 

— Sonhei, titio, mentia a sobrinha.

 

— Não era sonho; era eu mesmo que estava contigo; por sinal que me pedias as festas, e eu prometi-te um chapéu, um bonito chapéu enfeitado de plumas...

 

— Isso é verdade, acudia a sobrinha.

 

— Tudo verdade, Micota; mas a verdade única e verdadeira. Não há outra; não pode haver verdade contra verdade, assim como não há sol contra sol.

 

As experiências do Ezequiel repetiram-se durante seis meses. Nos dois primeiros meses, eram simples viagens universais; percorria o globo e os planetas dentro de poucos minutos, aniquilava os séculos, abrangia tudo, absorvia tudo, difundia-se em tudo. Saciou assim a primeira sede da abstração. No terceiro mês, começou uma série de excursões analíticas. Visitou primeiramente o espírito do padeiro da esquina, de um barbeiro, de um coronel, de um magistrado, vizinhos da mesma rua; passou depois ao resto da paróquia, do distrito e da capital, e recolheu quantidade de observações interessantes. No quarto mês empreendeu um estudo que lhe comeu cinqüenta e seis dias: achar a filiação das idéias, e remontar à primeira idéia do homem. Escreveu sobre este assunto uma extensa memória, em que provou a todas as luzes que a primeira idéia do homem foi o círculo, não sendo o homem simbolicamente outra coisa: — um círculo lógico, se o considerarmos na pura condição espiritual; e se o tomarmos com o invólucro material, um círculo vicioso. E exemplificava. As crianças brincam com arcos, fazem rodas umas com as outras; os legisladores parlamentares sentam-se geralmente em círculo, e as constantes alterações do poder, que tanta gente condena, não são mais do que uma necessidade fisiológica e política de fazer circular os homens. Que são a infância e a decrepitude, senão as duas pontas ligadas deste círculo da vida? Tudo isso lardeado de trechos latinos, gregos e hebraicos, verdadeiro pesadelo, fruto indigesto de uma inteligência pervertida. No sexto mês...

 

— Ah! meus amigos, o sexto mês é que me trouxe um achado sublime, uma solução ao problema do senso moral. Para os não cansar; restrinjo-me ao exame comparativo que fiz em dois indivíduos da nossa rua, o Neves do nº 25, e o Delgado. Sabem que eles ainda são parentes.

 

E aí começou o Ezequiel uma narração tão extraordinária, que os amigos não puderam ouvir sem algum interesse. Os dois vizinhos eram da mesma idade, mais ou menos, quarenta e tantos anos, casados, com filhos, sendo que o Neves liquidara o negócio desde algum tempo, e vivia das rendas, ao passo que o Delgado continuara o negócio, e justamente falira três semanas antes.

 

— Vocês lembram-se ter visto o Delgado entrar aqui em casa um dia muito triste?

 

Ninguém se lembrava, mas todos disseram que sim.

 

— Desconfiei do negócio, continuou o Ezequiel, abstraí-me, e fui direito a ele. Achei-lhe a consciência agitada, gemendo, contorcendo-se; perguntei-lhe o que era, se tinha praticado alguma morte, e respondeu-me que não; não praticara morte nem roubo, mas espancara a mulher, metera-lhe as mãos na cara, sem motivo, por um assomo de cólera. Cólera passageira, disse-lhe, e uma vez que façam as pazes... — Estão feitas, acudiu ele; Zeferina perdoou-me tudo, chorando; ah! doutor, é uma santa mulher! — E então? — Mas não posso esquecer que lhe dei, não me perdôo isto; sei que foi na cegueira da raiva, mas não posso perdoar-me, não posso. E a consciência tornou a doer-lhe, como a princípio, inquieta, convulsa. Dá cá aquele livro, Micota.

 

Micota trouxe-lhe o livro, um livro manuscrito, in folio, capa de couro escuro e lavrado. O Ezequiel abriu-o na página 140, onde o nome do Delgado estava escrito com esta nota: — “Este homem possui o senso moral”. Escrevera a nota, logo depois daquele episódio; e todas as experiências futuras não vieram senão confirmar-lhe a primeira observação.

 

— Sim, ele tem o senso moral, continuou o Ezequiel. Vocês vão ver se me enganei. Dias depois, tendo-me abstraído, fui logo a ele, e achei-o na maior agitação. — Adivinho, disse-lhe; houve outra expansão muscular, outra correção... Não me respondeu nada; a consciência mordia-se toda, presa de um furor extraordinário. Como se apaziguasse de quando em quando, aproveitei os intervalos para teimar com ele. Disse-me então que jurara falso para salvar um amigo, ato de covardia e de impiedade. Para atenuá-lo, lembrava-se dos tormentos da véspera, da luta que sustentara antes de jazer a promessa de ir jurar falso; recordava também a amizade antiga ao interessado, os favores recebidos, uns de recomendação, outros de amparo, alguns de dinheiro; advertia na obrigação de retribuir os benefícios, na ridicularia de uma gratidão teórica, sentimental, e nada mais. Quando ele amontoava essas razões de justificação ou desculpa, é que a consciência parecia tranqüila; mas, de repente, todo o castelo voava a um piparote desta palavra: “Não devias ter jurado falso”. E a consciência revolvia-se, frenética, desvairada, até que a própria fadiga lhe trazia algum descanso.

 

Ezequiel referiu ainda outros casos. Contou que o Delgado, por sugestões de momento, faltara algumas vezes à verdade, e que, a cada mentira, a consciência raivosa dava sopapos em si mesma. Enfim, teve o desastre comercial, e faliu. O sócio, para abrandar a inclemência dos fados, propôs-lhe um arranjo de escrituração. Delgado recusou a pés juntos; era roubar os credores, não devia fazê-lo. Debalde o sócio lhe demonstrava que não era roubar os credores, mas resguardar a família, coisa diferente. Delgado abanou a cabeça. Não e não; preferia ficar pobre, miserável, mas honrado; onde houvesse um recanto de cortiço e um pedaço de carne-seca, podia viver. Demais, tinha braços. Vieram as lágrimas da mulher, que lhe não pediu nada mas trouxe as lágrimas e os filhos. Nem ao menos as crianças vieram chorando; não, senhor; vieram alegres, rindo, pulando muito, sublinhando assim a crueldade da fortuna. E o sócio, ardilosamente ao ouvido: — Ora vamos; veja você se é lícito trair a confiança destes inocentes. Veja se... Delgado afrouxou e cedeu.

 

— Não, nunca me há de esquecer o que então se passou naquela consciência, continuou o Ezequiel; era um tumulto, um clamor, uma convulsão diabólica, um ranger de dentes, uma coisa única. O Delgado não ficava quieto três minutos; ia de um lado para outro, atônito, fugindo a si mesmo. Não dormiu nada a primeira noite. De manhã saiu para andar à toa; pensou em matar-se; chegou a entrar em uma casa de armas, à Rua dos Ourives, para comprar um revólver, mas advertiu que não tinha dinheiro, e retirou-se. Quis deixar-se esmagar por um carro. Quis enforcar-se com o lenço. Não pensava no código; por mais que o revolvesse, não achava lá a idéia da cadeia. Era o próprio delito que o atormentava. Ouvia vozes misteriosas que lhe davam o nome de falsário, de ladrão; e a consciência dizia-lhe que sim, que ele era um ladrão e um falsário. Às vezes pensava em comprar um bilhete de Espanha, tirar a sorte grande, convocar os credores, confessar tudo, e pagar-lhes integralmente, com juro, um juro alto, muito alto, para puni-lo do crime... Mas a consciência replicava logo que era um sofisma, que os credores seriam pagos, é verdade, mas só os credores. O ato ficava intacto. Queimasse ele os livros e dispersasse as cinzas ao vento, era a mesma coisa; o crime subsistia. Assim passou três noites, três noites cruéis, até que no quarto dia, de manhã, resolveu ir ter com o Neves e revelar-lhe tudo.

 

— Descanse, titio, disse-lhe uma das sobrinhas, assustada com o fulgor dos olhos do Ezequiel.

 

Mas o Ezequiel respondeu que não estava cansado, e contaria o resto.

 

O resto era estupendo. O Neves lia os jornais no terraço, quando o Delgado lhe apareceu. A fisionomia daquele era tão bondosa, a palavra com que o saudou — “Anda cá, Juca!” vinha tão impregnada da velha familiaridade, que o Delgado esmoreceu. Sentou-se ao pé dele, acanhado, sem força para lhe dizer nem lhe pedir nada, um conselho, ou, quando menos, uma consolação. Em que língua narraria o delito a um homem cuja vida era um modelo, cujo nome era um exemplo? Viveram juntos; sabia que a alma do Neves era como um céu imaculado, que só interrompia o azul para cravejá-lo de estrelas. Estas eram as boas palavras que ele costumava dizer aos amigos. Nenhuma ação que o desdourasse. Não espancara a mulher, não jurara falso, não emendara a escrituração, não mentiu, não enganou ninguém.

 

— Que tem você? perguntou o Neves.

 

— Vou contar-lhe uma coisa grave, explodiu o Delgado; peço-lhe desde já que me perdoe.

 

Contou-lhe tudo. O Neves, que a princípio o ouvira com algum medo, por ele lhe ter pedido perdão, depressa respirou; mas não deixou de reprovar a imprudência do Delgado. Realmente, onde tinha ele a cabeça para brincar assim com a cadeia? Era negócio grave; urgia abafá-lo, e, em todo caso, estar alerta. E recordava-lhe o conceito em que sempre teve o tal sócio. — “Você defendia-o então; e aí tem a bela prenda. Um maluco!” O Delgado, que trazia consigo o remorso, sentiu incutir-se-lhe o terror; e, em vez de um remédio, levou duas doenças.

 

“Justos céus! exclamou consigo o Ezequiel, dar-se-á que este Neves não tenha o senso moral?”

 

Não o deixou mais. Esquadrinhou-lhe a vida; talvez alguma ação do passado, alguma coisa... Nada; não achou nada. As reminiscências do Neves eram todas de uma vida regular, metódica, sem catástrofes, mas sem infrações. O Ezequiel estava atônito. Não podia conciliar tanta limpeza de costumes com a absoluta ausência de senso moral. A verdade, porém, é que o contraste existia. Ezequiel ainda advertiu na sutileza do fenômeno e na conveniência de verificá-lo bem. Dispôs-se a uma longa análise. Entrou a acompanhar o Neves a toda a parte, em casa, na rua, no teatro, acordado ou dormindo, de dia ou de noite.

 

O resultado era sempre o mesmo. A notícia de uma atrocidade deixava-o interiormente impassível; a de uma indignidade também. Se assinava qualquer petição (e nunca recusou nenhuma) contra um ato impuro ou cruel, era por uma razão de conveniência pública, a mesma que o levava a pagar para a Escola Politécnica, embora não soubesse matemáticas. Gostava de ler romances e de ir ao teatro; mas não entendia certos lances e expressões, certos movimentos de indignação, que atribuía a excessos de estilo. Ezequiel não lhe perdia os sonhos, que eram, às vezes, extraordinários. Este, por exemplo: sonhou que herdara as riquezas de um nababo, forjando ele mesmo o testamento e matando o testador. De manhã, ainda na cama, recordou todas as peripécias do sonho, com os olhos no teto, e soltou um suspiro.

 

Um dia, um fâmulo do Neves, andando na rua, viu cair uma carteira do bolso de um homem, que caminhava adiante dele, apanhou-a e guardou-a. De noite, porém, surgiu-lhe este caso de consciência: — se um caído era o mesmo que um achado. Referiu o negócio ao Neves, que lhe perguntou, antes de tudo, se o homem vira cair a carteira; sabendo que não, levantou os ombros. Mas, conquanto o fâmulo fosse grande amigo dele, o Neves arrependeu-se do gesto, e, no dia seguinte, recomendou-lhe a entrega da carteira; eis as circunstâncias do caso. Indo de bond, o condutor esqueceu-se de lhe pedir a passagem; Neves, que sabia o valor do dinheiro, saboreou mentalmente esses duzentos réis caídos; mas advertiu que algum passageiro poderia ter notado a falta, e, ostensivamente, por cima da cabeça de outros, deu a moeda ao condutor. Uma idéia traz outra; Neves lembrou-se que alguém podia ter visto cair a carteira e apanhá-la o fâmulo; foi a este, e compeliu-o a anunciar o achado. “A consideração pública, Bernardo, disse ele, é a carteira que nunca se deve perder.”

 

Ezequiel notou que este adágio popular — ladrão que furta a ladrão tem cem anos de perdão, — estava incrustado na consciência do Neves, e parecia até inventado por ele. Foi o único sentimento de horror ao crime, que lhe achou; mas, analisando-o, descobriu que não era senão um sentimento de desforra contra o segundo roubado, o aplauso do logro, uma consolação no prejuízo, um antegosto do castigo que deve receber todo aquele que mete a mão na algibeira dos outros.

 

Realmente, um tal contraste era de ensandecer ao homem mais ajuizado do universo. O Ezequiel fez essa mesma reflexão aos amigos e parentes; acrescentou que jurara aos seus deuses achar a razão do contraste, ou suicidar-se. Sim, ou morreria, ou daria ao mundo civilizado a explicação de um fenômeno tão estupendo como a contradição da consciência do Neves com as suas ações exteriores... Enquanto ele falava assim, os olhos chamejavam muito. Micota, a um sinal do pai, foi buscar à janela uma das quartinhas d’água, que ali estavam ao fresco, e trouxe-a a Ezequiel. Profundo Ezequiel! tudo entendeu, mas aceitou a água, bebeu dois ou três goles, e sorriu para a sobrinha. E continuou dizendo que sim, senhor, que acharia a razão, que a formularia em um livro de trezentas páginas...

 

— Trezentas páginas, estão ouvindo? Um livro grosso assim...

 

E estendia três dedos. Depois descreveu o livro. Trezentas páginas, com estampas, uma fotografia da consciência do Neves e outra das suas ações. Jurava que ia mandar o livro a todas as academias do universo, com esta conclusão em forma de epígrafe: — “Há virtualmente um pequeno número de gatunos, que nunca furtaram um par de sapatos”.

 

— Coitado! diziam os amigos descendo as escadas. Um homem de tanto talento!


Literatura - Contos e Crônicas terça, 26 de abril de 2022

UM HOMEM SUPERIOR (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

UM HOMEM SUPERIOR

Machado de Assis

 

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 24 de abril de 2022

UM HOMEM CÉLEBRE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

UM HOMEM CÉLEBRE

Machado de Assis

 

 

 

- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?

Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.

- Diga, minha senhora.

- É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.

Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.

Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.

Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.

Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.

- Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.

Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.

Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.

Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.

Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.

Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

- Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram freqüentes.

- A bengala.

- Mas parece que hoje chove.

- Chove, repetiu Pestana maquinalmente.

- Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.

Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:

- Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.

- Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, - ou por alusão a algum sucesso do dia, - ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.

- Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.

- Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.

- E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.

Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.

Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...

- As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.

- Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.

- Vai casar com uma viúva.

- Velha?

- Vinte e sete anos.

- Bonita?

- Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.

Os escrivães não deviam ter espírito, - mau espírito quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.

Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.

Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.

- Acaba, disse Maria; não é Chopin?

Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.

- Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!

Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.

Poucos dias depois, - uma clara e fresca manhã de maio de 1876, - eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.

- Para quê? dizia ele a si mesmo.

Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.

- Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?

- Nada.

- Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.

Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.

- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.

Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.

Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.

Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

- Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.

- Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.

- Adeus.

- Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 22 de abril de 2022

HISTÓRIA DE UMA LÁGRIMA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 

HISTÓRIA DE UMA LÁGRIMA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 20 de abril de 2022

HISTÓRIA DE UMA FITA AZUL (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS ) VÍDEO

HISTÓRIA DE UMA FITA AZUL

Machado de Assis

 

 

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 18 de abril de 2022

HISTÓRIA COMUM (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

HISTÓRIA COMUM

Machado de Assis

 

 

 

... Caí na copa do chapéu de um homem que passava... Perdoe-me este começo; é um modo de ser épico. Entro em plena ação. Já o leitor sabe que caí, e caí na copa do chapéu de um homem que passava; resta dizer donde caí e por que caí.

 

Quanto à minha qualidade de alfinete, não é preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita, e as damas de sociedade os fichus, ou as flores, ou isto, ou aquilo. Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao próprio vestido. Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de contar a minha aventura.

 

Tinha-me comprado uma triste mucama. O dono do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei quantos réis; coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este é o seu nome, — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não sei quanto tempo ali estive; saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a mucama trazia ao pescoço. Como o lenço era novo, não fiquei grandemente desconsolado. E depois a mucama era asseada e estimada, vivia nos quartos das moças, era confidente dos seus namoros e arrufos; enfim, não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil.

 

Entre o peito da Felicidade e o recanto de uma mesa velha, que ela tinha na alcova, gastei uns cinco ou seis dias. De noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da mesa; de manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade; mas a vida dos alfinetes, não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi falar de um baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos. As senhoras preparavam-se com esmero e afinco, cuidavam das rendas, sedas, luvas, flores, brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão no baile do desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele; mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do lenço de uma triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.

 

— Felicidade, diziam as moças, à noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão as outras meias?

 

— Que meias, nhanhã?

 

— As que estavam na cadeira...

 

— Uê! nhanhã! Estão aqui mesmo.

 

E Felicidade ia de um lado para outro, solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias de outra, compondo a cauda desta, concertando o diadema daquela, tudo com um amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que os tirava da toilette, para o corpo das moças, dizia comigo, que era bem bom ser alfinete de damas, e damas bonitas que iam a festas.

 

— Meninas, são horas!

 

— Lá vou, mamãe! disseram todas.

 

E foram, uma a uma, primeiro a mais velha, depois a mais moça, depois a do meio. Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando uma rosa no peito, uma linda rosa; pregou-a e sorriu para a mucama.

 

— Hum! hum! resmungou esta. Seu Florêncio hoje fica de queixo caído...

 

Clarinha olhou para o espelho, e repetiu consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo no sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e respondeu sorrindo:

 

— Pode ser.

 

— Pode ser? Vai ficar mesmo.

 

— Clarinha, só se espera por você.

 

— Pronta, mamãe!

 

Tinha prendido a rosa, às pressas, e saiu.

 

Na sala estava a família, dois carros à porta; desceram enfim, e Felicidade com elas, até à porta da rua. Clarinha foi com a mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas. Clarinha calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde; entraram; mas, ao entrar caiu a rosa do peito da moça. Consternação desta; teima da mãe que era tarde, que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa outra vez. Mas Clarinha pedia que se demorasse um instante, um instante só, e diria à mucama que fosse buscar um alfinete.

 

— Não é preciso, sinhá; aqui está um.

 

Um era eu. Que alegria a de Clarinha! Com que alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes, enquanto descalçava as luvas. Descalçou-as: pregou comigo a rosa, e o carro partiu. Lá me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com destino ao baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte teve mais rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o lenço pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda, carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a leva escada acima; uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de flores... Ah! enfim! eis-me no meu lugar.

 

Estamos na terceira valsa. O par de Clarinha é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e anda à roda como um louco. Acabada a valsa, fomos passear os três, ele murmurando-lhe coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo, teso, orgulhoso. Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a pedi-la.

 

— Não se vexe; não é preciso que me diga nada; basta que me aperte a mão.

 

Clarinha apertou-lhe a mão; ele levou-a à boca e beijou-a; ela olhou assustada para dentro.

 

— Ninguém vê, continuou o Dr. Florêncio; amanhã mesmo escreverei a seu pai.

 

Conversaram ainda uns dez minutos, suspirando coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que lhe ficava em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva entre duas valsas. Afinal, como era mister voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor, a rosa que trazia ao peito.

 

— Tome...

 

E despregando a rosa, deu-a ao namorado, atirando-me, com a maior indiferença, à rua... Caí na copa do chapéu de um homem que passava e...


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 16 de abril de 2022

A HERANÇA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

A HERANÇA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 14 de abril de 2022

GALERIA PÓSTUMA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

GALERIA PÓSTUMA 

Machado de Assis

(Grafia original)

 

I

Não, não se descreve a consternação que produziu em todo o Engenho Velho, e particularmente no coração dos amigos, a morte de Joaquim Fidelis. Nada mais inesperado. Era robusto, tinha saude de ferro, e ainda na vespera fôra a um baile, onde todos o viram conversado e alegre. Chegou a dansar, a pedido de uma senhora sexagenaria, viuva de um amigo d'elle, que lhe tomou do braço, e lhe disse:

—Venha cá, venha cá, vamos mostrar a estes criançolas como é que os velhos são capazes de desbancar tudo.

Joaquim Fidelis protestou sorrindo; mas obedeceu e dansou. Eram duas horas quando sahiu, embrulhando os seus sessenta annos n'uma capa grossa,—estavamos em junho de 1879—mettendo a calva na carapuça, accendendo um charuto, e entrando lepidamente no carro.

No carro é possivel que conchilasse; mas, em casa, máu grado a hora e o grande peso das palpebras, ainda foi a secretária, abriu uma gaveta, tirou um de muitos folhetos manuscriptos,—e escreveu durante tres ou quatro minutos umas dez ou onze linhas. As ultimas palavras eram estas: «Em summa, baile chinfrim; uma velha gaiteira obrigou-me a dansar uma quadrilha; á porta um crioulo pediu-me as festas. Chinfrim!» Guardou o folheto, despiu-se, metteu-se na cama, dormiu e morreu.

Sim, a noticia consternou a todo o bairro. Tão amado que elle era, com os modos bonitos que tinha, sabendo conversar com toda a gente, instruido com os instruidos, ignorante com os ignorantes, rapaz com os rapazes, e até moça com as moças. E depois, muito serviçal, prompto a escrever cartas, a fallar a amigos, a concertar brigas, a emprestar dinheiro. Em casa d'elle reuniam-se á noite alguns intimos da visinhança, e ás vezes de outros bairros; jogavam o voltarete ou o _whist_, fallavam de politica. Joaquim Fidelis tinha sido deputado até á dissolução da camara pelo marquez de Olinda, em 1863. Não conseguindo ser reeleito, abandonou a vida publica. Era conservador, nome que a muito custo admittiu, por lhe parecer gallicismo politico. _Saquarema_ é o que elle gostava de ser chamado. Mas abriu mão de tudo; parece até que nos ultimos tempos desligou-se do proprio partido, e afinal da mesma opinião. Ha razões para crêr que, de certa data em diante, foi um profundo sceptico, e nada mais.

Era rico e lettrado. Formára-se em direito no anno de 1842. Agora não fazia nada e lia muito. Não tinha mulheres em casa. Viuvo desde a primeira invasão da febre amarella, recusou contrahir segundas nupcias, com grande magoa de tres ou quatro damas, que nutriram essa esperança durante algum tempo. Uma d'ellas chegou a prorogar perfidamente os seus bellos cachos de 1845 até meiados do segundo neto; outra, mais moça e tambem viuva, pensou retel-o com algumas concessões, tão generosas quão irreparaveis. «Minha querida Leocadia, dizia elle nas occasiões em que ella insinuava a solução conjugal, por que não continuaremos assim mesmo? O mysterio é o encanto da vida.» Morava com um sobrinho, o Benjamim, filho de uma irmã, orphão desde tenra idade. Joaquim Fidelis deu-lhe educação e fel-o estudar, até obter diploma de bacharel em sciencias juridicas, no anno de 1877.

Benjamim ficou atordoado. Não podia acabar de crer na morte do tio. Correu ao quarto, achou o cadaver na cama, frio, olhos abertos, e um leve arregaço ironico ao canto esquerdo da boca. Chorou muito e muito. Não perdia um simples parente, mas um pai, um pai terno, dedicado, um coração unico. Benjamim enxugou, emfim, as lagrimas; e, porque lhe fizesse mal ver os olhos abertos do morto, e principalmente o labio arregaçado, concertou-lhe ambas as cousas. A morte recebeu assim a expressão tragica; mas a originalidade da mascara perdeu-se.

—Não me digam isto! bradava d'ahi a pouco um dos visinhos, Diogo Villares, ao receber noticia do caso.

Diogo Villares era um dos cinco principaes familiares de Joaquim Fidelis. Devia-lhe o emprego que exercia desde 1857. Veiu elle; vieram os outros quatro, logo depois, um a um, estupefactos, incredulos. Primeiro chegou o Elias Xavier, que alcançára por intermedio do finado, segundo se dizia, uma commenda; depois entrou o João Braz, deputado que foi, no regimen das supplencias, eleito com o influxo do Joaquim Fidelis. Vieram, emfim, o Fragoso e o Galdino, que lhe não deviam diplomas, commendas nem empregos, mas outros favores. Ao Galdino adiantou elle alguns poucos capitaes, e ao Fragoso arranjou-lhe um bom casamento... E morto! morto para todo sempre! De redor da cama, fitavam o rosto sereno e recordavam a ultima festa, a do outro domingo, tão intima, tão expansiva! E, mais perto ainda, a noite da ante-vespera, em que o voltarete do costume foi até ás onze horas.

—Amanhã não venham, disse-lhes o Joaquim Fidelis; vou ao baile do Carvalhinho.

—E depois?...

—Depois de amanhã, cá estou.

E, á sahida, deu-lhes ainda um maço de excellentes charutos, segundo fazia ás vezes, com um accrescimo de doces seccos para os pequenos, e duas ou tres pilherias finas... Tudo esvaido! tudo disperso! tudo acabado!

Ao enterro acudiram muitas pessoas gradas, dous senadores, um ex-ministro, titulares, capitalistas, advogados, commerciantes, medicos; mas as argolas do caixão foram seguras pelos cinco familiares e o Benjamim. Nenhum d'elles quiz ceder a ninguem esse ultimo obsequio, considerando que era um dever cordial e intransferivel. O adeus do cemiterio foi proferido pelo João Braz, um adeus tocante, com algum excesso de estylo para um caso tão urgente, mas, emfim, desculpavel. Deitada a pá de terra, cada um se foi arredando da cova, menos os seis, que assistiram ao trabalho posterior e indifferente dos coveiros. Não arredaram pé antes de vêr cheia a cova até acima, e depositadas sobre ellas as coroas funebres.


II

A missa do setimo dia reuniu-os na igreja. Acabada a missa, os cinco amigos acompanharam á casa o sobrinho do morto. Benjamim convidou-os a almoçar.

—Espero que os amigos do tio Joaquim serão tambem meus amigos, disse elle.

Entraram, almoçaram. Ao almoço fallaram do morto; cada um contou uma anecdota, um dito; eram unanimes no louvor e nas saudades. No fim do almoço, como tivessem pedido uma lembrança do finado, passaram ao gabinete, e escolheram á vontade, este uma canneta velha, aquelle uma caixa de oculos, um folheto, um retalho qualquer intimo, Benjamim sentia-se consolado. Communicou-lhes que pretendia conservar o gabinete tal qual esta va. Nem a secretária abrira ainda. Abriu-a então, e, com elles, inventariou o conteudo de algumas gavetas. Cartas, papeis soltos, programmas de concertos, menus de grandes jantares, tudo alli estava de mistura e confusão. Entre outras cousas acharam alguns cadernos manuscriptos, numerados e datados.

—Um diario! disse Benjamim.

Com effeito, era um diario das impressões do finado, especie de memorias secretas, confidencias do homem a si mesmo. Grande foi a commoção dos amigos; lêl-o era ainda conversal-o. Tão recto caracter! tão discreto espirito! Benjamim começou a leitura; mas a voz embargou-se-lhe depressa, e João Braz continuou-a.

O interesse do escripto adormeceu a dor do obito. Era um livro digno do prelo. Muita observação politica e social, muita reflexão philosophica, anecdotas de homens publicos, do Feijó, do Vasconcellos, outras puramente galantes, nomes de senhoras, o da Leocadia, entre outros; um repertorio de factos e commentarios. Cada um admirava o talento do finado, as graças do estylo, o interesse da materia. Uns opinavam pela impressão typographica; Benjamim dizia que sim, com a condição de excluir alguma cousa, ou inconveniente ou demasiado particular. E continuavam a ler, saltando pedaços e paginas, até que bateu meio-dia. Levantaram-se todos; Diogo Villares ia já chegar á repartição fóra de horas; João Braz e Elias tinham onde estar juntos. Galdino seguia para a loja. O Fragoso precisava mudar a roupa preta, e acompanhar a mulher á rua do Ouvidor. Concordaram em nova reunião para proseguir a leitura. Certas particularidades tinham-lhes dado uma comichão de escandalo, e as comichões coçam-se: é o que elles queriam fazer, lendo.

—Até amanhã, disseram.

—Até amanhã.

Uma vez só, Benjamim continuou a lêr o manuscripto. Entre outras cousas, admirou o retrato da viuva Leocadia, obra-prima de paciencia e semelhança, embora a data coincidisse com a dos amores. Era prova de uma rara isenção de espirito. De resto, o finado era eximio nos retratos. Desde 1873 ou 1874, os cadernos vinham cheios d'elles, uns de vivos, outros de mortos, alguns de homens publicos, Paula Souza, Aureliano, Olinda, etc. Eram curtos e substanciaes, ás vezes trez ou quatro rasgos firmes, com tal fidelidade e perfeição, que a figura parecia photographada. Benjamim ia lendo; de repente deu com o Diogo Villares. E leu estas poucas linhas:

«DIOGO VILLARES.—Tenho-me referido muitas vezes a este amigo, e fal-o-hei algumas outras mais, se elle me não matar de tedio, cousa em que o reputo profissional. Pediu-me ha annos que lhe arranjasse um emprego, e arranjei-lh'o. Não me avisou da moeda em que me pagaria. Que singular gratidão! Chegou ao excesso de compor um soneto e publical-o. Fallava-me do obsequio a cada passo, dava-me grandes nomes; emfim, acabou. Mais tarde relacionámo-nos intimamente. Conheci-o então ainda melhor. _C'est le genre ennuyeux._ Não é mau parceiro de voltarete. Dizem-me que não deve nada a ninguem. Bom pai de familia. Estupido e credulo. Com intervallo de quatro dias, já lhe ouvi dizer de um ministerio que era excellente e detestavel:—differença dos interlocutores. Ri muito e mal. Toda a gente, quando o vê pela primeira vez, começa por suppol-o um varão grave; no segundo dia dá-lhe piparotes. A razão é a figura, ou, mais particularmente, as bochechas, que lhe emprestam um certo ar superior.»

A primeira sensação do Benjamim foi a do perigo evitado. Se o Diogo Villares estivesse alli? Releu o retrato e mal podia crer; mas não havia negal-o, era o proprio nome do Diogo Villares, era a mesma lettra do tio. E não era o unico dos familiares; folheou o manuscripto e deu com o Elias:

«ELIAS XAVIER.—Este Elias é um espirito subalterno, destinado a servir alguem, e a servir com desvanecimento, como os cocheiros de casa elegante. Vulgarmente trata as minhas visitas intimas com alguma arrogancia e desdem: politica de lacaio ambicioso. Desde as primeiras semanas, comprehendi que elle queria fazer-se meu privado; e não menos comprehendi que, no dia que realmente o fosse, punha os outros no meio da rua. Ha occasiões em que me chama a um vão da janella para fallar-me secretamente do sol e da chuva. O fim claro é incutir nos outros a suspeita de que ha entre nós cousas particulares, e alcança isso mesmo, porque todos lhe rasgam muitas cortezias. É intelligente, risonho e fino. Conversa muito bem. Não conheço comprehensão mais rapida. Não é poltrão nem maldizente. Só falla mal de alguem, por interesse; faltando-lhe interesse, cala-se; e a maledicencia legitima é gratuita. Dedicado e insinuante. Não tem idéas, é verdade; mas ha esta grande differença entre elle e o Diogo Villares:—o Diogo repete prompta e boçalmente as que ouve, ao passo que o Elias sabe f azel-as suas e plantal-as opportunamente na conversação. Um caso de 1865 caracterisa bem a astucia d'este homem. Tendo dado alguns libertos para a guerra do Paraguay, ia receber uma commenda. Não precisava de mim; mas veiu pedir a minha intercessão, duas ou tres vezes, com um ar consternado e supplice. Fallei ao ministro, que me disse:—«O Elias já sabe que o decreto está lavrado; falta só a assignatura do imperador.» Comprehendi então que era um estratagema para poder confessar-me essa obrigação. Bom parceiro de voltarete; um pouco brigão, mas entendido.»

—Ora o tio Joaquim! exclamou Benjamim levantando-se. E depois de alguns instantes, reflexionou comsigo:—Estou lendo um coração, livro inedito. Conhecia a edição publica, revista e expurgada. Este é o texto primitivo e interior, a lição exacta e authentica. Mas quem imaginaria nunca... Ora o tio Joaquim!

E, tornando a sentar-se, releu tambem o retrato do Elias, com vagar, meditando as feições. Posto lhe faltasse observação, para avaliar a verdade do escripto, achou que em muitas partes, ao menos, o retrato era semelhante. Cotejava essas notas iconographicas, tão cruas, tão seccas, com as maneiras cordiaes e graciosas do tio, e sentia-se tomado de um certo terror e mau-estar. Elle, por exemplo, que teria dito delle o finado? Com esta ideia, folheou ainda o manuscripto, passou por alto algumas damas, alguns homens publicos, deu com o Fragoso,—um esboço curto e curtissimo,—logo depois o Galdino, e quatro paginas adiante o João Braz. Justamente o primeiro levára delle uma caneta, pouco antes, talvez a mesma com que o finado o retratára. Curto era o esboço, e dizia assim:

«FRAGOSO.—Honesto, maneiras assucaradas e bonito. Não me custou casal-o; vive muito bem com a mulher. Sei que me tem uma extraordinaria adoração,—quasi tanta como a si mesmo. Conversação vulgar, polida e chocha.»

«GALDINO MADEIRA.—O melhor coração do mundo e um caracter sem macula; mas as qualidades do espirito destroem as outras. Emprestei-lhe algum dinheiro, por motivo da familia, e porque me não fazia falta. Ha no cerebro d'elle um certo furo, por onde o espirito escorrega e cai no vacuo. Não reflecte tres minutos seguidos. Vive principalmente de imagens, de phrases translatas. Os «dentes da calumnia» e outras expressões, surradas como colchões de hospedaria, são os seus encantos. Mortificase facilmente no jogo, e, uma vez mortificado, faz timbre em perder, e em mostrar que é de proposito. Não despede os maus caixeiros. Se não tivesse guarda-livros, é duvidoso que sommasse os quebrados. Um subdelegado, meu amigo, que lhe deveu algum dinheiro, durante dous annos, dizia-me com muita graça, que o Galdino quando o via na rua, em vez de lhe pedir a divida, pedia-lhe noticias do ministerio.»

«JOÃO BRAZ.—Nem tolo nem bronco. Muito attencioso, embora sem maneiras. Não póde ver passar um carro de ministro; fica pallido e vira os olhos. Creio que é ambicioso; mas na edade em que está, sem carreira, a ambição vai-se-lhe convertendo em inveja. Durante os dois annos em que serviu de deputado, desempenhou honradamente o cargo: trabalhou muito, e fez alguns discursos bons, não brilhantes, mas solidos, cheios de factos e reflectidos. A prova de que lhe ficou um residuo de ambição, é o ardor com que anda á cata de alguns cargos honorificos ou preeminentes; ha alguns mezes consentiu em ser juiz de uma irmandade de S. José, e segundo me dizem, desempenha o cargo com um zelo exemplar. Creio que é atheu, mas não affirmo. Ri pouco e discretamente. A vida é pura e severa, mas o caracter tem uma ou duas cordas fraudulentas, a que só faltou a mão do artista; nas cousas minimas, mente com facilidade.»

Benjamim, estupefacto, deu emfim comsigo mesmo.—«Este meu sobrinho, dizia o manuscripto, tem vinte e quatro annos de edade, um projecto de reforma judiciaria, muito cabello, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto leal e bom,—bom até á credulidade. Tão firme nas affeições como versatil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulario e as formulas.»

Quiz reler, e não pôde; essas poucas linhas davam-lhe a sensação de um espelho. Levantou-se, foi á janella, mirou a chacara e tornou dentro para contemplar outra vez as suas feições. Contemplou-as; eram poucas, falhas, mas não pareciam calumniosas. Se alli estivesse um publico, é provavel que a mortificação do rapaz fosse menor, porque a necessidade de dissipar a impressão moral dos outros dar-lhe-ia a força necessaria para reagir contra o escripto; mas, a sós, comsigo, teve de supportal-o sem contraste. Então considerou se o tio não teria composto essas paginas nas horas de máu humor; comparou-as a outras em que a phrase era menos aspera, mas não cogitou se alli a brandura vinha ou não de molde.

Para confirmar a conjectura, recordou as maneiras usuaes do finado, as horas de intimidade e riso, a sós com elle, ou de palestra com os demais familiares. Evocou a figura do tio, com o olhar espirituoso e meigo, e a pilheria grave; em logar d'essa, tão candida e sympathica, a que lhe appareceu foi a do tio morto, estendido na cama, com os olhos abertos e o labio arregaçado. Sacudiu-a do espirito, mas a imagem ficou. Não podendo rejeital-a, Benjamim tentou mentalmente fechar-lhe os olhos e concertar-lhe a bocca; mas tão depressa o fazia, como a palpebra tornava a levantar-se, e a ironia arregaçava o beiço. Já não era o homem, era o auctor do manuscripto.

Benjamim jantou mal e dormiu mal. No dia seguinte, á tarde, apresentaram-se os cinco familiares para ouvir a leitura. Chegaram sofregos, anciosos; fizera-lhe muitas perguntas; pediram-lhe com instancia para ver o manuscripto. Mas Benjamim tergiversava, dizia isto e aquillo, inventava pretextos; por mal de peccados, appareceu-lhe na sala, por traz d'elles, a eterna bocca do defunto, e esta circumstancia fel-o ainda mais acanhado. Chegou a mostrar-se frio, para ficar só, e ver se com elles desapparecia a visão. Assim se passaram trinta a quarenta minutos. Os cinco olharam emfim uns para os outros, e deliberaram sahir; despediram-se ceremoniosamente, e foram conversando, para suas casas:

—Que differença do tio! que abysmo! a herança enfunou-o! deixal-o! ah! Joaquim Fidelis! ah! Joaquim Fidelis!


Literatura - Contos e Crônicas terça, 12 de abril de 2022

HABILIDOSO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

 

HABILIDOSO

Machado de Assis

(Vídeo)

 


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 10 de abril de 2022

FULANO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FULANO

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

Venha o leitor commigo assistir á abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta annos. Morreu hontem, dous de Janeiro de 1884, ás onze horas e trinta minutos da noite. Não imagina a força de animo que mostrou em toda a molestia. Cahiu na vespera de finados, e a principio suppunhamos que não fosse nada; mas a doença persistiu, e ao fim de dous mezes e poucos dias a morte o levou.

Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o testamento. Ha de conter por força algumas determinações de interesse geral e honrosas para elle. Antes de 1863 não seria assim, porque até então era um homem muito mettido comsigo, reservado, morando no caminho do Jardim Botanico, para onde ia de omnibus ou de mula. Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira, com treze annos. Fo i n'esse anno que elle começou a occupar-se com outras cousas, além da familia, revellando um espirito universal e generoso. Nada posso affirmar-lhe sobre a causa disto. Creio que foi uma apologia de amigo, por occasião d'elle fazer quarenta annos. Fulano Beltrão leu no _Jornal do Commercio_, no dia cinco de Março de 1864, um artigo anonymo em que se lhe diziam cousas bellas e exactas:--bom pai, bom esposo, amigo pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse justiça, era muito; mas anonymamente, era raro.

--Você verá, disse Fulano Beltrão á mulher, você verá que isto é do Xavier ou do Castro; logo rasgaremos o capote.

Castro e Xavier eram dous habituados da casa, parceiros constantes do voltarete e velhos amigos do meu amigo. Costumavam dizer cousas amaveis, no dia cinco de março, mas era ao jantar, na intimidade da familia, entre quatro paredes; impressos, era a primeira vez que elle se benzia com elogios. Póde ser que me engane; mas estou que o expectaculo da justiça, a prova material de que as boas qualidades e as boas acções não morrem no escuro, foi o que animou o meu amigo a dispersar-se, a apparecer, a divulgar-se, a dar á collectividade humana um pouco das virtudes com que nasceu. Considerou que milhares de pessoas estariam lendo o artigo, á mesma hora em que o lia tambem; imaginou que o commentavam, que interrogavam, que confirmavam, ouviu mesmo, por um phenomeno de allucinação que a sciencia ha de explicar, e que não é raro, ouviu distinctamente algumas vozes do publico. Ouviu que lhe chamavam homem de bem, cavalheiro distincto, amigo dos amigos, laborioso, honesto, todos os qualificativos que elle vira empregados em outros, e que na vida de bicho do matto em que ia, nunca presumiu que lhe fossem--typographicamente--applicados.

--A imprensa é uma grande invenção, disse elle á mulher.

Foi ella, D. Maria Antonia, quem rasgou o capote; o artigo era do Xavier. Declarou este que só em attenção á dona casa confessava a auctoria; e accrescentou que a manifestação não sahira completa, porque a idéa d'elle era que o artigo fosse dado em todos os jornaes, não o tendo feito por havel-o acabado ás sete horas da noite. Não houve tempo de tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se lhe podia chamar, mandando transcrever o artigo no _Diario do Rio_ e o _Correio Mercantil_.

Quando mesmo, porém, este facto não desse causa á mudança de vida do nosso amigo, fica uma cousa de pé, a saber, que daquelle anno em diante, e propriamente do mez de março, é que elle começou a apparecer mais. Era até então um casmurro, que não ia ás assembléas das companhias, não votava nas eleições politicas, não frequentava theatros, nada, absolutamente nada. Já n'aquelle mez de março, a vinte e dous ou vinte ou vinte e tres, presenteou a Santa Casa da Misericordia com um bilhete da grande loteria de Hespanha, e recebeu uma honrosa carta do provedor, agradecendo em nome dos pobres. Consultou a mulher e os amigos, se devia publicar a carta ou guardal-a, parecendo-lhe que não a publicar era uma desattenção. Com effeito, a carta foi dada a vinte e seis de março, em todas as folhas, fazendo uma dellas commentarios desenvolvidos ácerca da piedade do doador. Das pessoas que leram esta noticia, muitas naturalmente ainda se lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas occurencias: «Fulano Beltrão é aquelle mesmo que, etc.» primeiro alicerce da reputação de um homem.

É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não posso estar a contar-lhe tudo. Digo-lhe summariamente que as injustiças da rua começaram a ter n'elle um vingador activo e discursivo; que as miserias, principalmente as miserias dramaticas, filhas de um incendio ou inundação, acharam no meu amigo a iniciativa dos soccorros que, em taes casos, devem ser promptos e publicos. Ninguem como elle para um desses movimentos. Assim tambem com as alforias de escravos. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, era muito commum apparecerem na Praça do Commercio crianças escravas, para cuja liberdade se pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava tres quartas partes das subscripções, com tal exito, que em poucos minutos ficava o preço coberto.

A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até lhe trazia lembranças que, sem ella, é possivel que nunca lhe tivessem acudido. Não fallo do baile que elle deu para celebrar a victoria de Riachuelo, porque era um baile planeado antes de chegar a noticia da batalha, e elle não fez mais do que attribuir-lhe um motivo mais alto do que a simples recreação de familia, metter o retrato do almirante Barroso no meio de um trophéu de armas navaes e bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato do imperador, e fazer, á ceia, alguns brindes patrioticos, como tudo consta dos jornaes de 1865.

Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem caracteristico da influencia que a justiça dos outros póde ter no nosso procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do thesouro, aonde tinha ido tratar de umas decimas. Ao passar pela egreja da Lampadosa, lembrou-se que fôra alli baptisado; e nenhum homem tem uma recordação d'estas, sem remontar o curso dos annos e dos acontecimentos, deitar-se outra vez no collo materno, rir e brincar, como nunca mais se ri nem brinca. Fulano Beltrão não escapou a este effeito; atravessou o adro, entrou na egreja, tão singela, tão modesta, e para elle tão rica e linda. Ao sahir, tinha uma resolução feita, que pôz por obra dentro de poucos dias: mandou de presente á Lampadosa um soberbo castiçal de prata, com duas datas, além do nome do doador--a data da doação e a do baptisado. Todos os jornaes deram esta noticia, e até a receberam em duplicata, porque a administração da egreja entendeu (com muita razão) que tambem lhe cumpria divulgal-a aos quatro ventos.

No fim de tres annos, ou menos, entrára o meu amigo nas cogitações publicas; o nome d'elle era lembrado, mesmo quando nenhum successo recente vinha suggeril-o, e não só lembrado como adjectivado. Já se lhe notava a ausencia em alguns logares. Já o iam buscar para outros. D. Maria Antonia via assim entrar-lhe no Eden a serpente biblica, não para tental-a, mas para tentar a Adão. Com effeito, o marido ia a tantas partes, cuidava de tantas cousas, mostrava-se tanto na rua do Ouvidor, á porta do Bernardo, que afrouxou a convivencia antiga da casa. D. Maria Antonia disse-lh'o. Elle concordou que era assim, mas demonstrou-lhe que não podia ser de outro modo, e, em todo caso, se mudára de costumes, não mudára de sentimentos. Tinha obrigações moraes com a sociedade; ninguem se pertence exclusivamente; d'ahi um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. Não era mesmo conveniente; a filha caminhava para a edade do matrimonio, e casa fechada cria morrinha de convento; por exemplo, um carro, porque é que não teriam um carro? D. Maria Antonia sentiu um arrepio de prazer, mas curto; protestou logo, depois de um minuto de reflexão.

--Não; carro para que? Não; deixemo-nos de carro.

--Já está comprado, mentiu o marido.

Mas aqui chegamos ao juizo da provedoria. Não veiu ainda ninguem; esperemos á porta. Tem pressa? São vinte minutos no maximo. Pois é verdade, comprou uma linda victoria; e, para quem, só por modestia, andou tantos annos ás costas de mula ou apertado n'um omnibus, não era facil acostumar-se logo ao novo vehiculo. A isso attribuo eu as attitudes salientes e inclinadas com que elle andava, nas primeiras semanas, os olhos que estendia a um lado e outro, á maneira de pessoa que procura alguem ou uma casa. Afinal acostumou-se; passou a usar das attitudes reclinadas, embora sem um certo sentimento de indifferença ou despreoccupação, que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres. Ellas, aliás, não gostavam de sahir de carro; mas elle teimava tanto que sahissem, que fossem a toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remedio senão obedecer-lhe; e, na rua, era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada um certo cocheiro, toda a gente dizia logo:--ahi vem a familia de Fulano Beltrão. E isto mesmo, sem que elle talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.

No anno de 1868 deu entrada na politica. Sei do anno porque coincidiu com a queda dos liberaes e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que elle declarou adherir á situação, não á socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinha idéas politicas; quando muito, dispunha de um d'esses temperamentos que substituem as idéas, e fazem crer que um homem pensa, quando simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma allucinação de momento. Viu-se na camara vibrando um áparte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o presidente do conselho, que sorria para elle, n'uma intimidade grave de governo. E ahi é que a galeria, na exacta accepção do termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que poude para entrar na camara; a meio caminho cahiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de affirmar ao Itaborahy o contrario do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma cousa; mas perdeu a eleição, e deu de mão á politica. Muito mais acertado andou, mettendo-se na questão da maçonaria com os prelados. Deixára-se estar quedo, a principio; por um lado, era maçon; por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflicto tomou taes proporções que elle não podia ficar calado; entrou n'elle com o ardor, a expansão, a publicidade que mettia em tudo; celebrou reuniões em que fallou muito da liberdade de consciencia e do direito que assistia ao maçon de enfiar uma opa; assignou protestos, representações, felicitações, abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.

Morreu-lhe a mulher em 1878. Ella pediu-lhe que a enterrasse sem apparato, e elle assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua ultima vontade como um decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dôr com o publico; e, se enterrou a mulher sem apparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Italia um magnifico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na rua do Ouvidor, durante perto de um mez. A filha ainda veiu assistir á inauguração. Deixei de os ver uns quatro annos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dous mezes o levou d'esta para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força d'alma. Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar ás que chegavam, as que acabavam de sahir; cousa inutil, porque uma folha amiga publicava-as todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu lêr os jornaes, e n'um d'elles uma pequena communicação relativamente á sua molestia, o que de algum modo pareceu reanimal-o. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; á noite expirou.

Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são elles. São; entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das praticas tabelliôas; mas isto mesmo de contar a familia desde o quarto avô prova o espirito exacto e paciente do meu amigo. Não esquecia nada. O ceremonial do sahimento é longo e complicado, mas bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos pios; alguns industriaes. Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...

Trinta contos para que? Para servir de começo a uma subscripção publica destinada a erigir uma estatua a Pedro Alvares Cabral. «Cabral, diz alli o testamento, não póde ser olvidado dos brazileiros, foi o precursor do nosso imperio». Recommenda que a estatua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o retrato do bispo Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração mineira, e o de dous cidadãos da presente geração «notáveis por seu patriotismo e liberalidade» á escolha da commissão, que elle mesmo nomeou para levar a empreza a cabo.

Que ella se realise, não sei; falta-nos a perseverança do fundador da verba. Dado, porém, que a commissão se desempenhe da tarefa, e que este sol americano ainda veja erguer-se a estatua de Cabral, é da nossa honra que elle contemple n'um dos medalhões o retrato do meu finado amigo. Não lhe parece? Bem, o magistrado acabou, vamos embora.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 08 de abril de 2022

FREI SIMÃO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FREI SIMÃO

Machado de Assis

 

 

 

I

 

Frei Simão era um frade da ordem dos Beneditinos. Tinha, quando morreu, cinqüenta anos em aparência, mas na realidade trinta e oito. A causa desta velhice prematura derivava da que o levou ao claustro na idade de trinta anos, e, tanto quanto se pode saber por uns fragmentos de Memórias que ele deixou, a causa era justa.

Era frei Simão de caráter taciturno e desconfiado. Passava dias inteiros na sua cela, donde apenas saía na hora do refeitório e dos ofícios divinos. Não contava amizade alguma no convento, porque não era possível entreter com ele os preliminares que fundam e consolidam as afeições.

Em um convento, onde a comunhão das almas deve ser mais pronta e mais profunda, frei Simão parecia fugir à regra geral. Um dos noviços pôs-lhe alcunha de urso, que lhe ficou, mas só entre os noviços, bem entendido. Os frades professos, esses, apesar do desgosto que o gênio solitário de frei Simão lhes inspirava, sentiam por ele certo respeito e veneração.

Um dia anuncia-se que frei Simão adoecera gravemente. Chamaram-se os socorros e prestou-se ao enfermo todos os cuidados necessários. A moléstia era mortal: depois de cinco dias frei Simão expirou.

Durante estes cinco dias de moléstia, a cela de frei Simão esteve cheia de frades. Frei Simão não disse uma palavra durante esses cinco dias; só no último, quando se aproximava o minuto fatal, sentou-se no leito, fez chamar para mais perto o abade, e disse-lhe ao ouvido com voz sufocada e em tom estranho:

- Morro odiando a humanidade!

O abade recuou até a parede ao ouvir estas palavras, e no tom em que foram ditas. Quanto a frei Simão, caiu sobre o travesseiro e passou à eternidade.

Depois de feitas ao irmão finado as honras que se lhe deviam, a comunidade perguntou ao seu chefe que palavras ouvira tão sinistras que o assustaram. O abade referiu-as, persignando-se. Mas os frades não viram nessas palavras senão um segredo do passado, sem dúvida importante, mas não tal que pudesse lançar o terror no espírito do abade. Este explicou-lhes a idéia que tivera quando ouviu as palavras de frei Simão, no tom em que foram ditas, e acompanhadas do olhar com que o fulminou: acreditara que frei Simão estivesse doido; mais ainda, que tivesse entrado já doido para a ordem. Os hábitos da solidão e taciturnidade a que se votara o frade pareciam sintomas de uma alienação mental de caráter brando e pacífico; mas durante oito anos parecia impossível aos frades que frei Simão não tivesse um dia revelado de modo positivo a sua loucura; objetaram isso ao abade; mas este persistia na sua crença.

Entretanto procedeu-se ao inventário dos objetos que pertenciam ao finado, e entre eles achou-se um rolo de papéis convenientemente enlaçados, com este rótulo: "Memórias que há de escrever frei Simão de Santa Águeda, frade beneditino".

Este rolo de papéis foi um grande achado para a comunidade curiosa. Iam finalmente penetrar alguma coisa no véu misterioso que envolvia o passado de frei Simão, e talvez confirmar as suspeitas do abade.

O rolo foi aberto e lido perante todos.

Eram, pela maior parte, fragmentos incompletos, apontamentos truncados e notas insuficientes; mas de tudo junto pôde-se colher que realmente frei Simão estivera louco durante certo tempo.

O autor desta narrativa despreza aquela parte das Memórias que não tiver absolutamente importância; mas procura aproveitar a que for menos inútil ou menos obscura.

 

 

II

 

As notas de frei Simão nada dizem do lugar do seu nascimento nem do nome de seus pais. O que se pôde saber dos seus princípios é que, tendo concluído os estudos preparatórios, não pôde seguir a carreira das letras, como desejava, e foi obrigado a entrar como guarda-livros na casa comercial de seu pai.

Morava então em casa de seu pai uma prima de Simão, órfã de pai e mãe, que haviam por morte deixado ao pai de Simão o cuidado de a educarem e manterem. Parece que os cabedais deste deram para isto. Quanto ao pai da prima órfã, tendo sido rico, perdera tudo ao jogo e nos azares do comércio, ficando reduzido à última miséria.

A órfã chamava-se Helena; era bela, meiga e extremamente boa. Simão, que se educara com ela, e juntamente vivia debaixo do mesmo teto, não pôde resistir às elevadas qualidades e à beleza de sua prima. Amaram-se. Em seus sonhos de futuro contavam ambos o casamento, coisa que parece o mais natural do mundo para corações amantes.

Não tardou muito que os pais de Simão descobrissem o amor dos dois. Ora é preciso dizer, apesar de não haver declaração formal disto nos apontamentos do frade, é preciso dizer que os referidos pais eram de um egoísmo descomunal. Davam de boa vontade o pão da subsistência a Helena; mas lá casar o filho com a pobre órfã é que não podiam consentir. Tinham posto a mira em uma herdeira rica, e dispunham de si para si que o rapaz se casaria com ela.

Uma tarde, como estivesse o rapaz a adiantar a escrituração do livro mestre, entrou no escritório o pai com ar grave e risonho ao mesmo tempo, e disse ao filho que largasse o trabalho e o ouvisse. O rapaz obedeceu. O pai falou assim:

- Vais partir para a província de ***. Preciso mandar umas cartas ao meu correspondente Amaral, e ,como sejam elas de grande importância, não quero confiá-las ao nosso desleixado correio. Queres ir no vapor ou preferes o nosso brigue?

Esta pergunta era feita com grande tino.

Obrigado a responder-lhe, o velho comerciante não dera lugar a que seu filho apresentasse objeções.

O rapaz enfiou, abaixou os olhos e respondeu:

- Vou onde meu pai quiser.

O pai agradeceu mentalmente a submissão do filho, que lhe poupava o dinheiro da passagem no vapor, e foi muito contente dar parte à mulher de que o rapaz não fizera objeção alguma.

Nessa noite os dois amantes tiveram ocasião de encontrar-se a sós na sala de jantar.

Simão contou a Helena o que se passara. Choraram ambos algumas lágrimas furtivas, e ficaram na esperança de que a viagem fosse de um mês, quando muito.

À mesa do chá, o pai de Simão conversou sobre a viagem do rapaz, que devia ser de poucos dias. Isto reanimou as esperanças dos dois amantes. O resto da noite passou-se em conselhos da parte do velho ao filho sobre a maneira de portar-se na casa do correspondente. Às dez horas, como de costume, todos se recolheram aos aposentos.

Os dias passaram-se depressa. Finalmente raiou aquele em que devia partir o brigue. Helena saiu do seu quarto com os olhos vermelhos de chorar. Interrogada bruscamente pela tia, disse que era uma inflamação adquirida pelo muito que lera na noite anterior. A tia prescreveu-lhe abstenção da leitura e banhos de água de malvas.

Quanto ao tio, tendo chamado Simão, entregou-lhe uma carta para o correspondente, e abraçou-o. A mala e um criado estavam prontos. A despedida foi triste. Os dois pais sempre choraram alguma coisa, a rapariga muito.

Quanto a Simão, levava os olhos secos e ardentes. Era refratário às lágrimas; por isso mesmo padecia mais.

O brigue partiu. Simão, enquanto pôde ver terra, não se retirou de cima; quando finalmente se fecharam de todo as paredes do cárcere que anda, na frase pitoresca de Ribeyrolles, Simão desceu ao seu camarote, triste e com o coração apertado. Havia como um pressentimento que lhe dizia interiormente ser impossível tornar a ver sua prima. Parecia que ia para um degredo.

Chegando ao lugar do seu destino, procurou Simão o correspondente de seu pai e entregou-lhe a carta. O Sr. Amaral leu a carta, fitou o rapaz, e, depois de algum silêncio, disse-lhe, volvendo a carta:

- Bem, agora é preciso esperar que eu cumpra esta ordem de seu pai. Entretanto venha morar para a minha casa.

- Quando poderei voltar? perguntou Simão.

- Em poucos dias, salvo se as coisas se complicarem.

Este salvo, posto na boca de Amaral como incidente, era a oração principal. A carta do pai de Simão versava assim:

"Meu caro Amaral,

"Motivos ponderosos me obrigam a mandar meu filho desta cidade. Retenha-o por lá como puder. O pretexto da viagem é ter eu necessidade de ultimar alguns negócios com você, o que dirá ao pequeno, fazendo-lhe sempre crer que a demora é pouca ou nenhuma. Você, que teve na sua adolescência a triste idéia de engendrar romances, vá inventando circunstâncias e ocorrências imprevistas, de modo que o rapaz não me torne cá antes de segunda ordem. Sou, como sempre" ,etc.

 

 

III

 

Passaram-se dias e dias, e nada de chegar o momento de voltar à casa paterna. O ex-romancista era na verdade fértil, e não se cansava de inventar pretextos que deixavam convencido o pobre rapaz.

Entretanto, como o espírito dos amantes não é menos engenhoso que o dos romancistas, Simão e Helena acharam um meio de se escreverem, e deste modo podiam consolar-se da ausência, com presença das letras e do papel. Bem diz Heloísa que a arte de escrever foi inventada por alguma amante separada do seu amante. Nestas cartas juravam-se os dois sua eterna fidelidade.

No fim de dois meses de espera baldada e de ativa correspondência, a tia de Helena surpreendeu uma carta de Simão. Era a vigésima, creio eu. Houve grande temporal em casa. O tio, que estava no escritório, saiu precipitadamente e tomou conhecimento do negócio. O resultado foi proscrever de casa tinta, penas e papel, e instituir vigilância rigorosa sobre a infeliz rapariga.

Começaram pois a escassear as cartas ao pobre deportado. Inquiriu a causa disto em cartas choradas e compridas; mas como o rigor fiscal da casa de seu pai adquiria proporções descomunais, acontecia que todas as cartas de Simão iam parar às mãos do velho, que, depois de apreciar o estilo amoroso de seu filho, fazia queimar as ardentes epístolas.

Passaram-se dias e meses. Carta de Helena, nenhuma. O correspondente ia esgotando a veia inventadora, e já não sabia como reter finalmente o rapaz.

Chega uma carta a Simão. Era letra do pai. Só diferençava das outras que recebia do velho em ser esta mais longa, muito mais longa. O rapaz abriu a carta, e leu trêmulo e pálido. Contava nesta carta o honrado comerciante que a Helena, a boa rapariga que ele destinava a ser sua filha casando-se com Simão, a boa Helena tinha morrido. O velho copiara algum dos últimos necrológios que vira nos jornais, e ajuntara algumas consolações de casa. A última consolação foi dizer-lhe que embarcasse e fosse ter com ele.

O período final da carta dizia:

"Assim como assim, não se realizam os meus negócios; não te pude casar com Helena, visto que Deus a levou. Mas volta, filho, vem; poderás consolar-te casando com outra, a filha do conselheiro ***. Está moça feita e é um bom partido. Não te desalentas; lembra-te de mim".

O pai de Simão não conhecia bem o amor do filho, nem era grande águia para avaliá-lo, ainda que o conhecesse. Dores tais não se consolidam com uma carta nem com um casamento. Era melhor mandá-lo chamar, e depois preparar-lhe a notícia; mas dada assim friamente em uma carta, era expor o rapaz a uma morte certa.

Ficou Simão vivo em corpo e morto moralmente, tão morto que por sua própria idéia foi dali procurar uma sepultura. Era melhor dar aqui alguns dos papéis escritos por Simão relativamente ao que sofreu depois da carta; mas há muitas falhas, e eu não quero corrigir a exposição ingênua e sincera do frade.

A sepultura que Simão escolheu foi um convento. Respondeu ao pai que agradecia a filha do conselheiro, mas que daquele dia em diante pertencia ao serviço de Deus.

O pai ficou maravilhado. Nunca suspeitou que o filho pudesse vir a ter semelhante resolução. Escreveu às pressas para ver se o desviava da idéia; mas não pôde conseguir.

Quanto ao correspondente, para quem tudo se embrulhava cada vez mais, deixou o rapaz seguir para o claustro, disposto a não figurar em um negócio do qual nada realmente sabia.

 

 

IV

 

Frei Simão de Santa Águeda foi obrigado a ir à província natal em missão religiosa, tempos depois dos fatos que acabo de narrar.

Preparou-se e embarcou.

A missão não era na capital, mas no interior. Entrando na capital, pareceu-lhe dever ir visitar seus pais. Estavam mudados física e moralmente. Era com certeza a dor e o remorso de terem precipitado seu filho à resolução que tomou. Tinham vendido a casa comercial e viviam de suas rendas.

Receberam o filho com alvoroço e verdadeiro amor. Depois das lágrimas e das consolações, vieram ao fim da viagem de Simão.

- A que vens tu, meu filho?

- Venho cumprir uma missão do sacerdócio que abracei. Venho pregar, para que o rebanho do Senhor não se arrede nunca do bom caminho.

- Aqui na capital?

- Não, no interior. Começo pela vila de ***.

Os dois velhos estremeceram; mas Simão nada viu. No dia seguinte partiu Simão, não sem algumas instâncias de seus pais para que ficasse. Notaram eles que seu filho nem de leve tocara em Helena. Também eles não quiseram magoá-lo falando em tal assunto.

Daí a dias, na vila de que falara frei Simão, era um alvoroço para ouvir as prédicas do missionário.

A velha igreja do lugar estava atopetada de povo.

À hora anunciada, frei Simão subiu ao púlpito e começou o discurso religioso. Metade do povo saiu aborrecido no meio do sermão. A razão era simples. Avezado à pintura viva dos caldeirões de Pedro Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia ouvir com prazer a linguagem simples, branda, persuasiva, a que serviam de modelo as conferências do fundador da nossa religião.

O pregador estava a terminar, quando entrou apressadamente na igreja um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador, meio remediado com o sítio que possuía e a boa vontade de trabalhar; ela, senhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia invencível.

Depois de tomarem água benta, colocaram-se ambos em lugar donde pudessem ver facilmente o pregador.

Ouviu-se então um grito, e todos correram para a recém-chegada, que acabava de desmaiar. Frei Simão teve de parar o seu discurso, enquanto se punha termo ao incidente. Mas, por uma aberta que a turba deixava, pôde ele ver o rosto da desmaiada.

Era Helena.

No manuscrito do frade há uma série de reticências dispostas em oito linhas. Ele próprio não sabe o que se passou. Mas o que se passou foi que, mal conhecera Helena, continuou o frade o discurso. Era então outra coisa: era um discurso sem nexo, sem assunto, um verdadeiro delírio. A consternação foi geral.

 

 

V

 

O delírio de frei Simão durou alguns dias. Graças aos cuidados, pôde melhorar, e pareceu a todos que estava bom, menos ao médico, que queria continuar a cura. Mas o frade disse positivamente que se retirava ao convento, e não houve forças humanas que o detivessem.

O leitor compreende naturalmente que o casamento de Helena fora obrigado pelos tios.

A pobre senhora não resistiu à comoção. Dois meses depois morreu, deixando inconsolável o marido, que a amava com veras.

Frei Simão, recolhido ao convento, tornou-se mais solitário e taciturno. Restava-lhe ainda um pouco da alienação.

Já conhecemos o acontecimento de sua morte e a impressão que ela causara ao abade.

A cela de frei Simão de Santa Águeda esteve muito tempo religiosamente fechada. Só se abriu, algum tempo depois, para dar entrada a um velho secular, que por esmola alcançou do abade acabar os seus dias na convivência dos médicos da alma. Era o pai de Simão. A mãe tinha morrido.

Foi crença, nos últimos anos de vida deste velho, que ele não estava menos doido.

 


Literatura - Contos e Crônicas quarta, 06 de abril de 2022

FRANCISCA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS) VÍDEO

FRANCISCA

Machado de Assis

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 04 de abril de 2022

FOLHA ROTA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FOLHA ROTA

Machado de Assis

 

 

 

inham dado ave-marias; a Sra. D. Ana Custódia saiu para ir levar umas costuras à loja que era na Rua do Hospício. Pegou das costuras, entrouxou-as, pôs um xale às costas, um rosário ao pescoço, deu cinco ou seis ordens à sobrinha e caminhou para a porta.

 

— Venha quem vier, não abras, disse ela com a mão no ferrolho; já sabes o costume.

 

— Sim, titia.

 

— Não me demoro nada.

 

— Venha cedo.

 

— Venho, que a chuva pode cair. O céu está preto.

 

— Oh! titia, se roncar trovoada!

 

— Reza; mas eu volto já.

 

  1. Ana persignou-se e saiu.

 

A sobrinha fechou a rótula, acendeu uma vela e foi sentar-se a uma mesa de costura.

 

Luísa Marques tinha dezoito anos. Não era um prodígio de beleza, mas não era feia; pelo contrário, as feições eram regulares, as maneiras gentis. O olhar meigo e cândido. Mediana de estatura, delgada, naturalmente elegante, tinha proporções para vestir bem e primar pelos adornos. Infelizmente, não tinha adornos nem os vestidos eram bem cortados. Pobres, já se vê que deviam ser. Que outras coisas seriam os vestidos de uma filha de operário, órfã de pai e mãe, condenada a coser para ajudar a sustentar a casa da tia! Era um vestido de chita grossa, cortado por ela mesma, sem arte nem inspiração.

 

Penteada com certo desleixo, parece que isso mesmo lhe dobrava a graça da fronte. Encostada à mesa velha de trabalho, com a cabeça inclinada sobre a costura, os dedos a correrem pela fazenda, com a agulha fina e ágil não excitava a admiração, mas despertava a simpatia.

 

Logo depois de sentar-se, Luísa ergueu-se duas vezes e foi até à porta. De quando em quando levantava a cabeça como a prestar ouvido. Continuava a coser. Se a tia chegasse achá-la-ia a trabalhar com uma tranqüilidade verdadeiramente digna de imitação. E beijá-la-ia como costumava e lhe diria alguma coisa graciosa, que a menina ouviria com agradecimento.

 

Luísa adorava a tia, que lhe servia de mãe e pai, que a educara desde os sete anos. Por outro lado, D. Ana Custódia tinha-lhe afeto verdadeiramente maternal; uma e outra não possuíam outra família. Havia certamente dois parentes mais, um correeiro, cunhado de D. Ana, e um filho deste. Mas não se freqüentavam; havia até motivos para isso.

 

Vinte minutos depois de sair D. Ana, sentiu Luísa um rumor na rótula, como que um som leve de bengala que por ali roçasse. Estremeceu, mas não se assustou. Levantou-se devagarinho, como se a tia pudesse ouvi-la e foi até à rótula.

 

— Quem é? disse em voz baixa.

 

— Eu. Está cá?

 

— Não.

 

Luísa abriu um poucachinho a janela, uma curta fresta. Estendeu a mão por ela, e apertou-lha um rapaz que estava do lado de fora.

 

O rapaz era alto, e se não fosse noite fechada podia ver-se que tinha uns bonitos olhos, sobretudo um porte airoso. Eram graças naturais; artificiais não possuía nenhuma; vestia modestamente, sem pretensão.

 

— Saiu há muito tempo? perguntou ele.

 

— Há pouco.

 

— Volta já?

 

— Disse que sim. Não podemos hoje falar muito tempo.

 

— Nem hoje, nem quase nunca.

 

— Que quer você, Caetaninho? perguntou a moça tristemente. Eu não posso abusar; titia não gosta de me ver à janela.

 

— Há três dias que te não vejo, Luísa! suspirou ele.

 

— Eu, há um dia só.

 

— Viste-me ontem?

 

— Vi: quando você passou de tarde às cinco horas.

 

— Passei duas vezes; de tarde e de noite: sempre fechado.

 

— Titia estava em casa.

 

As duas mãos tornaram a encontrar-se e ficaram presas uma à outra. Correram assim alguns minutos, três ou quatro.

 

Caetaninho tornou a falar, a queixar-se, a gemer, a maldizer da sorte, enquanto Luísa o consolava e confortava. Na opinião do rapaz, não havia ninguém mais infeliz do que ele.

 

— Queres saber uma coisa? perguntou o namorado.

 

— Que é?

 

— Penso que papai desconfia...

 

— E então?...

 

— Desconfia e não aprova.

 

Luísa empalideceu.

 

— Oh! mas não faz mal! Eu só espero poder arranjar a minha vida; depois se queira ou não queira...

 

— Isso, não, se titio não aprova parece feio.

 

— Desprezar-te?

 

— Você não me despreza, emendou Luísa; mas desobedecerá a seu pai.

 

— Obedecer em tal caso, era feio da minha parte. Não, não obedecerei nunca!

 

— Não digas isso!

 

— Deixa-me arranjar a vida, verás: verás.

 

Luísa estava silenciosa alguns minutos, mordendo a ponta do lenço que tinha ao pescoço.

 

— Mas por que motivo é que você pensa que ele desconfia?

 

— Penso... suponho. Ontem soltou-me uma indireta, lançou-me um olhar de ameaça e fez um gesto... Não tem dúvida, dá-lhe para não aprovar a escolha de meu coração, como se eu precisasse consultá-lo...

 

— Não fale assim, Caetaninho!

 

— Também não sei por que motivo ele não se dá com titia! Se se dessem, tudo caminhava bem; mas é a minha desgraça, é a minha desgraça!

 

Caetano, filho do correeiro, lastimou-se ainda durante uns dez minutos; e sendo já longo o tempo da conversa, Luísa pediu-lhe e alcançou que ele se retirasse. Não o fez o moço sem um novo aperto de mão e um pedido que Luísa recusou.

 

O pedido era um... ósculo, digamos ósculo, que é menos cru, ou mais poético. O rapaz pedia-o invariavelmente, e ela invariavelmente o negava.

 

— Luísa, disse ele, no fim da recusa, espero que muito breve estaremos casados.

 

— Sim; mas não faça zangar seu pai.

 

— Não: farei tudo de harmonia com ele. Se recusar...

 

— Peço a Nossa Senhora que não.

 

— Mas, diga você; se ele recusar, que devo eu fazer?

 

— Esperar.

 

— Pois sim! Isso é bom de dizer.

 

— Vá; adeus; titia pode vir.

 

— Até breve, Luísa!

 

— Adeus!

 

— Passarei amanhã; se você não puder estar à janela, ao menos espie por dentro, sim?

 

— Sim.

 

Novo aperto de mão; dois suspiros; ele seguiu; ela fechou de todo o postigo.

 

Fechado o postigo, Luísa foi sentar-se outra vez à mesa de costura. Não ia alegre, como era de supor em uma moça que acabava de falar ao namorado; ia triste. Mergulhou toda no trabalho, ao que parece para esquecer alguma coisa ou aturdir o espírito. Mas não durou muito o remédio. Daí a pouco tinha levantado a cabeça e olhava fitamente o ar. Devaneava naturalmente; mas não eram devaneios azuis, senão negros, bem negros, mais negros que seus grandes olhos tristes.

 

O que ela dizia consigo era que tinha duas afeições na vida, uma franca, a da tia, outra encoberta, a do primo; e não sabia se tão cedo poderia mostrá-las juntas ao mundo. A notícia de que o tio desconfiasse alguma coisa e desaprovava talvez o amor de Caetano desconsolava-a e fazia-a tremer. Talvez fosse verdade; era possível que o correeiro destinasse o filho a outra. Em todo o caso as duas famílias não se davam — não sabia Luísa por que motivo —, e este fato podia contribuir para tornar difícil a realização de seu único e modesto sonho. Essas idéias, ora vagas, ora medonhas, mas sempre tingidas da cor da melancolia, abalavam seu espírito durante alguns minutos.

 

Depois veio a reação; a mocidade readquiriu seus direitos; a esperança trouxe a sua cor viva aos sonhos de Luísa. Ela olhou para o futuro e confiou nele. Que era um obstáculo momentâneo? Nada, se dois corações se amam. E haveria esse obstáculo? Dado que houvesse, ele seria o ramo de oliveira. No dia em que o tio soubesse que o filho a amava deveras e era correspondido, não tinha mais do que aprovar. Talvez mesmo a fosse pedir à tia D. Ana, que a estremecia, e recebê-lo-ia com lágrimas. O casamento seria o vínculo de todos os corações.

 

Nesses sonhos passaram ainda uns dez minutos. Luísa reparou que a costura estava atrasada e voltou de novo a atenção para ela.

 

  1. Ana voltou; Luísa foi abrir-lhe a porta, sem hesitação porque a tia convencionara um modo de bater, a fim de evitar surpresas de gente má.

 

Vinha um pouco amuada a velha; mas passou logo depois do beijo à sobrinha. Trazia o dinheiro da costura que fora levar à loja. Tirou o xale, descansou um pouco; foi ela própria cuidar da ceia. Luísa ficou cosendo algum tempo. Ergueu-se depois; preparou a mesa.

 

Tomaram um pouco de mate as duas, sozinhas e silenciosas. Era raro o silêncio, porque D. Ana, sem ser palradora, estava longe de ser taciturna. Tinha a palavra alegre. Luísa reparou naquela mudança e receou que a tia houvesse visto o vulto do primo de longe, e, não sabendo quem fosse, naturalmente ficara molestada. Seria isso? Luísa fez esta pergunta a si mesma e sentiu corar de vergonha. Criou algumas forças, e interrogou diretamente a tia.

 

— Que tem, que está tão triste? perguntou a moça.

 

  1. Ana limitou-se a levantar os ombros.

 

— Está zangada comigo? murmurou Luísa.

 

— Contigo, meu anjo? disse D. Ana apertando-lhe a mão; não, não é contigo.

 

— É com outra pessoa, concluiu a sobrinha. Posso saber quem é?

 

— Ninguém, ninguém. Fujo sempre de passar pela porta do Cosme e passo por outra rua; mas por desgraça, escapei ao pai e não escapei ao filho...

 

Luísa empalideceu.

 

— Ele não me viu, continuou D. Ana; mas eu bem o conheci. Felizmente era noite.

 

Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual a moça repetia as palavras da tia. Por desgraça! dissera D. Ana. Que havia pois entre ela e os dois parentes? Tinha vontade de a interrogar, mas não se atrevia; a velha não continuou; uma e outra refletiam caladamente.

 

Foi Luísa quem rompeu o silêncio:

 

— Mas por que foi desgraça encontrar o primo?

 

— Por quê?

 

Luísa confirmou a pergunta com um gesto de cabeça.

 

— Contos largos, disse D. Ana, contos largos. Um dia te contarei tudo.

 

Luísa não insistiu; ficou acabrunhada. O resto da noite foi sombrio para ela; fingiu ter sono e recolheu-se mais cedo do que costumava. Não tinha sono; velou ainda duas longas horas a trabalhar com o espírito, a beber uma ou outra lágrima indiscreta ou impaciente de lhe retalhar a face juvenil. Dormiu finalmente; e como de costume acordou cedo. Tinha um plano feito e a resolução de o executar até o fim. O plano era interrogar a tia outra vez, mas então disposta a saber a verdade, qualquer que ela fosse. Foi depois do almoço, que se lhe ofereceu a melhor ocasião, quando as duas se sentaram a trabalhar. D. Ana recusou a princípio; mas a insistência de Luísa foi tal, e ela amava-a tanto, que não lhe recusou dizer o que havia.

 

— Tu não conheces teu tio, disse a boa velha; nunca viveste com ele. Eu conheço-o muito. Minha irmã, que ele tirou de casa para perdê-la, viveu com ele dez anos de martírio. Se eu te contasse o que ela sofreu não havias de acreditar. Basta dizer que, se não fosse o abandono em que o marido a deixou, o pouco caso que fez da moléstia, talvez ela não tivesse morrido. E daí pode ser que sim. Creio que ela estimou não tomar remédios, para acabar mais depressa. O maldito não deitou uma lágrima; jantou no dia da morte como costumava jantar nos mais dias. O enterro saiu e ele continuou a vida de antes. Coitada! Quando me lembro...

 

Neste ponto, D. Ana interrompeu-se para enxugar as lágrimas, e Luísa não pôde também reter as suas.

 

— Ninguém sabe para o que veio ao mundo! exclamou sentenciosamente D. Ana. Aquela era a mais querida de meu pai; foi a mais infeliz. Destinos! destinos! O que te contei é já bastante para explicar a inimizade que nos separa. Acrescenta-lhe o gênio mau que ele tem, os modos grosseiros, e a língua... oh! a língua! Foi a língua dele que me feriu...

 

— Como?

 

— Luísa, tu és inocente, nada sabes deste mundo; mas é bom que aprendas alguma coisa. Aquele homem, depois de fazer morrer minha irmã lembrou-se de gostar de mim, e teve o atrevimento de vir declará-lo na minha casa. Eu então era outra mulher que não sou hoje; tinha cabelinho na venta. Não lhe respondi palavra; levantei a mão e castiguei-o no rosto. Vinguei-me e perdi-me. Ele recebeu o castigo calado; mas tratou de vingar-se também. Não te contarei o que disse e trabalhou contra mim; é longo e triste; basta saber que cinco meses depois, meu marido me pôs pela porta fora. Estava difamada; perdida; sem futuro nem reputação. Foi ele a causa de tudo. Meu marido era homem de boa-fé. Queria-me muito e morreu pouco depois de paixão.

 

Calou-se D. Ana, calou-se sem lágrimas nem gestos, mas com um rosto tão pálido de dor, que Luísa atirou-se a ela e abraçou-a. Foi esse gesto da moça que fez romper as lágrimas da velha. Chorou-as D. Ana longas e amargas; ajudou a chorá-las a sobrinha, que de envolta com ela lhe disse muita palavra consoladora. D. Ana recobrou a fala.

 

— Não terei razão em odiá-lo? perguntou ela.

 

O silêncio de Luísa foi a melhor resposta.

 

— Quanto ao filho nada me fez, continuou a velha; mas, se é filho de minha irmã também é filho dele. É o mesmo sangue, que eu odeio.

 

Luísa estremeceu.

 

— Titia! disse a moça.

 

— Odeio, sim! Ah! que a maior dor da minha vida seria... Não, não há de ser assim. Luísa, eu, se te visse casada com o filho daquele homem, morria decerto, porque perderia a única afeição, que me resta no mundo. Tu não pensas nisso; mas juras-me que em nenhum caso farás semelhante coisa?

 

Luísa empalideceu; hesitou um instante; mas jurou. Esse juramento foi o golpe último e mortal de suas esperanças. Nem o pai dele nem a mãe dela (D. Ana era quase mãe) consentiriam em fazê-la feliz. Luísa não se atreveu a defender o primo, a explicar que ele não tinha culpa nos atos e vilanias do pai. Que adiantaria isso, depois do que ouvira? O ódio estendia-se do pai ao filho; havia um abismo entre as duas famílias.

 

Naquele dia e no outro e no terceiro, chorou Luísa, nas poucas horas em que podia estar só, as lágrimas todas do desespero. No quarto dia já não tinha mais que chorar. Consolou-se como se consolam os desgraçados. Viu ir-se o único sonho da vida, a melhor esperança do futuro. Só então compreendeu a intensidade do amor que a prendia ao primo. Era o seu primeiro amor; estava destinado a ser o último.

 

Caetano passou ali muitas vezes; deixou de vê-la duas semanas inteiras. Supô-la doente e indagou da vizinhança. Quis escrever-lhe, mas não havia meio de entregar uma carta. Espreitava as horas em que a tia saía de casa e ia bater à porta. Trabalho inútil! A porta não se abria. Uma vez viu-a de longe à janela, apertou o passo; Luísa olhava para o lado oposto; não o viu vir. Chegando ao pé da porta, parou ele e disse:

 

— Enfim!

 

Luísa estremeceu, voltou-se e dando com o primo fechou o postigo com tanta pressa que um pedaço de manga do vestido ficou preso. Cego de dor, Caetaninho tentou empurrar o postigo, mas a moça havia-o fechado com o ferrolho. A manga do vestido foi puxada violentamente e rasgada. Caetano afastou-se com o inferno no coração; Luísa foi dali atirar-se ao leito lavada em lágrimas.

 

As semanas, os meses, os anos passaram. Caetaninho não foi esquecido; mas nunca mais se encontraram os olhos dos dois namorados. Oito anos depois morreu D. Ana. A sobrinha aceitou a proteção de uma vizinha e foi para casa dela, onde trabalhava dia e noite. No fim de catorze meses adoeceu de tubérculos pulmonares; arrastou uma vida aparente de dois anos. Tinha quase trinta quando morreu; enterrou-se por esmolas.

 

Caetaninho viveu; aos trinta e cinco anos era casado, pai de um filho, negociante de fazendas, jogava o voltarete e engordava. Morreu juiz de uma irmandade e comendador.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 02 de abril de 2022

FLOR ANÔNIMA (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FLOR ANÔNIMA

Machado de Assis

 

 

 

Manhã clara. A alma de Martinha é que acordou escura. Tinha ido na véspera a um casamento; e, ao tornar para casa, com a tia que mora com ela, não podia encobrir a tristeza que lhe dera a alegria dos outros e particularmente dos noivos.

 

Martinha ia nos seus... Nascera há muitos anos. Toda a gente que estava em casa, quando ela nasceu, anunciou que seria a felicidade da família. O pai não cabia em si de contente.

 

— Há de ser linda!

 

— Há de ser boa!

 

— Há de ser condessa!

 

— Há de ser rainha!

 

Essas e outras profecias iam ocorrendo aos parentes e amigos da casa.

 

Lá vão... Aqui pega a alma escura de Martinha. Lá vão quarenta e três anos, — ou quarenta e cinco, segundo a tia; Martinha, porém, afirma que são quarenta e três. Adotemos este número. Para ti, moça de vinte anos, a diferença é nada; mas deixa-te ir aos quarenta, nas mesmas circunstâncias que ela, e verás se não te cerceias uns dois anos. E depois nada obsta que marches um pouco para trás. Quarenta e três, quarenta e dois, fazem tão pouca diferença...

 

Naturalmente a leitora espera que o marido de Martinha apareça, depois de ter lido os jornais ou enxugado do banho. Mas é que não há marido, nem nada. Martinha é solteira, e daí vem a alma escura desta bela manhã clara e fresca, posterior à noite de bodas.

 

Só, tão só, provavelmente só até a morte; e Martinha morrerá tarde, porque é robusta como um trabalhador e sã como um pero. Não teve mais que a tia velha. Pai e mãe morreram, e cedo.

 

A culpa dessa solidão a quem pertence? ao destino ou a ela? Martinha crê, às vezes, que ao destino; às vezes, acusa-se a si própria. Nós podemos descobrir a verdade, indo com ela abrir a gaveta, a caixa, e na caixa a bolsa de veludo verde e velha, em que estão guardadas todas as suas lembranças amorosas. Agora que assistira ao casamento da outra, teve idéia de inventariar o passado. Contudo hesitou:

 

— Não, para que ver isto? É pior: deixemos recordações aborrecidas.

 

Mas o gosto de remoçar levou-a a abrir a gaveta, a caixa, e a bolsa; pegou da bolsa, e foi sentar-se ao pé da cama.

 

Há que anos não via aqueles despojos da mocidade! Pegou-lhes comovida, e entrou a revê-los.

 

De quem é esta carta? pensou ela ao ver a primeira. Teu Juca. Que Juca? Ah! o filho do Brito Brandão. “Crê que o meu amor será eterno!”. E casou pouco depois com aquela moça da Lapa. Eu era capaz de pôr a mão no fogo por ele. Foi no baile do Club Fluminense que o encontrei pela primeira vez. Que bonito moço! Alto, bigode fino, e uns olhos como nunca mais achei outros. Dançamos essa noite não sei quantas vezes. Depois começou a passar todas as tardes pela Rua dos Inválidos, até que nos foi apresentado. Poucas visitas, a princípio, depois mais e mais. Que tempo durou? Não me lembra; seis meses, nem tanto. Um dia começou a fugir, a fugir, até que de todo desapareceu. Não se demorou o casamento com a outra... “Crê que o meu amor será eterno!”

 

Martinha leu a carta toda e pô-la de lado.

 

— Qual! é impossível que a outra tenha sido feliz. Homens daqueles só fazem desgraçadas...

 

Outra carta. Gonçalves era o nome deste. Um Gonçalves louro, que chegou de S. Paulo, bacharelado de fresco, e fez tontear muita moça. O papel estava encardido e feio, como provavelmente estaria o autor. Outra carta, outras cartas. Martinha relia a maior parte delas. Não eram muitos os namorados; mas cada um deles deixara meia dúzia pelo menos, de lindas epístolas.

 

“Tudo perdido”, pensava ela.

 

E, uma palavra daqui, outra dali, fazia recordar tantos episódios deslembrados... “desde domingo (dizia um) que não me esquece o caso da bengala”. Que bengala? Martinha não atinou logo. Que bengala podia ser que fizesse ao autor da carta (um moço que principiava a negociar, e era agora abastado e comendador) não poder esquecê-la desde domingo?

 

Afinal deu com o que era; foi uma noite, ao sair da casa dela, que indo procurar a bengala, não a achou, porque uma criança de casa a levara para dentro; ela é que lha entregara à porta, e então trocaram um beijo...

 

Martinha ao lembrá-lo estremeceu. Mas refletindo que tudo agora estava esquecido, o domingo, a bengala e o beijo (o comendador tem agora três filhos), passou depressa a outras cartas.

 

Concluiu o inventário. Depois, acudindo-lhe que cada uma das cartas tivera resposta, perguntou a si mesma onde andariam as suas letras.

 

Perdidas, todas perdidas; rasgadas nas vésperas do casamento de cada um dos namorados, ou então varridas com o cisco, entre contas de alfaiates...

 

Abanou a cabeça para sacudir tão tristes idéias. Pobre Martinha! Teve ímpetos de rasgar todas aquelas velhas epístolas; mas sentia que era como se rasgasse uma parte da vida de si mesma, e recolheu-as.

 

Não haveria mais alguma na bolsa?

 

Meteu os olhos pela bolsa, não havia carta; havia apenas uma flor seca.

 

— Que flor é esta?

 

Descolorida, ressequida, a flor parecia trazer em si um bom par de dúzias de anos. Martinha não distinguia que espécie de flor era; mas fosse qual fosse, o principal era a história. Quem lha deu?

 

Provavelmente alguns dos autores das cartas, mas qual deles? e como? e quando?

 

A flor estava tão velha que se desfazia se não houvesse cuidado em lhe tocar.

 

Pobre flor anônima! Vejam a vantagem de escrever. O escrito traz a assinatura dos amores, dos ciúmes, das esperanças e das lágrimas. A flor não trazia data nem nome. Era uma testemunha que emudeceu. Os próprios sepulcros conservam o nome do pó guardado. Pobre flor anônima!

 

— Mas que flor é esta? repetiu Martinha.

 

Aos quarenta e cinco anos não admira que a gente esqueça uma flor. Martinha mirou-a, remirou-a, fechou os olhos a ver se atinava com a origem daquele despojo mudo.

 

Na história dos seus amores escritos não achou semelhante prenda; mas quem podia afirmar que não fosse dada de passagem, sem nenhum episódio importante a que se ligasse?

 

Martinha guardou as cartas para colocar a flor por cima, e impedir que o peso a desfibrasse mais depressa, quando uma recordação a assaltou:

 

— Há de ser... é... parece que é... É isso mesmo.

 

Lembrara-se do primeiro namorado que tivera, um bom rapaz de vinte e três anos; contava ela então dezenove. Era primo de umas amigas. Julião nunca lhe escrevera cartas. Um dia, depois de muita familiaridade com ela, por causa das primas, entrou a amá-la, a não pensar em outra coisa, e não o pôde encobrir, ao menos da própria Martinha. Esta dava-lhe alguns olhares, mais ou menos longos e risonhos; mas em verdade, não parecia aceitá-lo. Julião teimava, esperava, suspirava. Fazia verdadeiros sacrifícios, ia a toda parte onde presumia encontrá-la, gastava horas, perdia sonos. Tinha um emprego público e era hábil; com certeza subiria na escala administrativa, se pudesse cuidar somente dos seus deveres; mas o demônio da moça interpunha-se entre ele e os regulamentos. Esquecia-se, faltava à repartição, não tinha zelo nem estímulo. Ela era tudo para ele, e ele nada para ela. Nada; uma distração quando muito.

 

Um dia falara-se em não sei que flor bonita e rara no Rio de Janeiro. Alguém sabia de uma chácara onde a flor podia ser encontrada, quando a árvore a produzisse; mas, por enquanto, não produzia nada. Não havia outra, Martinha contava então vinte e um anos, e ia no dia seguinte ao baile do Club Fluminense; pediu a flor, queria a flor.

 

— Mas, se não há...

 

— Talvez haja, interveio Julião.

 

— Onde?

 

— Procurando-se.

 

— Crê que haja? perguntou Martinha.

 

— Pode haver.

 

— Sabe de alguma?

 

— Não, mas procurando-se... Deseja a flor para o baile de amanhã?

 

— Desejava.

 

Julião acordou no dia seguinte muito cedo; não foi à repartição e deitou-se a andar pelas chácaras dos arrabaldes. Da flor tinha apenas o nome e uma leve descrição. Percorreu mais de um arrabalde; ao meio-dia, urgido pela fome, almoçou rapidamente em uma casa de pasto. Tornou a andar, a andar, a andar. Em algumas chácaras era mal recebido, em outras gastava tempo antes que viesse alguém, em outras os cães latiam-lhe às pernas. Mas o pobre namorado não perdia a esperança de achar a flor. Duas, três, quatro horas da tarde. Eram cinco horas quando em uma chácara do Andaraí Grande

pôde achar a flor tão rara. Quis pagar dez, vinte ou trinta mil-réis por ela; mas a dona da casa, uma boa velha, que adivinhava amores a muitas léguas de distância, disse-lhe, rindo, que não custava nada.

 

— Vá, vá, leve o presente à moça, e seja feliz.

 

Martinha estava ainda a pentear-se quando Julião lhe levou a flor. Não lhe contou nada do que fizera, embora ela lho perguntasse. Martinha porém compreendeu que ele teria feito algum esforço, apertou-lhe muito a mão, e, à noite, dançou com ele uma valsa. No dia seguinte, guardou a flor, menos pelas circunstâncias do achado que pela raridade e beleza dela; e como era uma prenda de amor, meteu-a entre as cartas.

 

O rapaz, dentro de duas semanas, tornou a perder algumas esperanças que lhe haviam renascido. Martinha principiava o namoro do futuro comendador. Desesperado, Julião meteu-se para a roça, da roça para o sertão, e nunca mais houve notícia dele.

 

— Foi o único que deveras gostou de mim, suspirou agora Martinha, olhando para a pobre flor mirrada e anônima.

 

E, lembrando-se que podia estar casada com ele, feliz, considerada, com filhos, — talvez avó — (foi a primeira ocasião em que admitiu esta graduação sem pejo) Martinha concluiu que a culpa era sua, toda sua; queimou todas as cartas e guardou a flor.

 

Quis pedir à tia que lhe pusesse a flor no caixão, sobre o seu cadáver; mas era romântico demais. A negrinha chegara à porta:

 

— Nhanhã, o almoço está na mesa!


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 31 de março de 2022

FILOSOFIA DE UM PAR DE BOTAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

FILOSOFIA DE UM PAR DE BOTAS

Machado de Assis

 

 

 

Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit.

 

Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.

 

Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjeturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, umas pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:

 

BOTA ESQUERDA.- Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.

 

BOTA DIREITA.- Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia! Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?

 

BOTA ESQUERDA.- Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de todas. Ao menos na elegância...

 

BOTA DIREITA.- Na elegância, ninguém nos vencia.

 

BOTA ESQUERDA.- Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas botinas cor de chocolate... aquele par...

 

BOTA DIREITA.- O dos botões de madrepérola?

 

BOTA ESQUERDA.- Esse.

 

BOTA DIREITA.- O daquela viúva?

 

BOTA ESQUERDA.- O da viúva.

 

BOTA DIREITA.- Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade. Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe.

 

BOTA ESQUERDA.- O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar-nos; éramos calçadas com cuidado, postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.

 

BOTA DIREITA.- Sempre te conheci pirracenta.

 

BOTA ESQUERDA.- Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim levou-nos.

 

BOTA DIREITA.- Era bom homem, o Dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete, até tarde, duas e três horas da madrugada; mas, como o divertimento era parado, não nos incomodava muito. E depois, entrava em casa, na pontinha dos pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?

 

BOTA ESQUERDA.- Ora! por sinal que a mulher fingia dormir para lhe não tirar as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa senhora!

 

BOTA DIREITA.- Santo casal! Naquela casa fomos sempre felizes, sempre! E a gente que eles freqüentavam? Quando não havia tapetes, havia palhinha; pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos de carro muita vez, e eu gosto tanto de carro! Estivemos ali uns quarenta dias, não?

 

BOTA ESQUERDA.- Pois então! Ele gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições.

 

BOTA DIREITA.- Deixemo-nos de política.

 

BOTA ESQUERDA.- Apoiado.

 

BOTA DIREITA (com força).- Deixemo-nos de política, já disse!

 

BOTA ESQUERDA (sorrindo).- Mas um pouco de política debaixo da mesa?... Nunca te contei... contei, sim... o caso das botinas cor de chocolate... as da viúva...

 

BOTA DIREITA.- Da viúva, para quem o Dr. Crispim quebrava muito os olhos? Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha o pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa, conversei muito com uma das botinas. O Dr. Crispim sentara-se ao pé do comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas, e falamos, falamos pelas tripas de Judas... A princípio, não; a princípio ela fez-se de boa; e toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada: “Vá-se, me deixe!” Mas eu insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe que estava ainda muito bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu com o bico, depois com o tacão, pisou em mim, eu pisei nela e não te digo mais...

 

BOTA ESQUERDA.- Pois é justamente o que eu queria contar...

 

BOTA DIREITA.- Também conversaste?

 

BOTA ESQUERDA.- Não; ia conversar com a outra. Escorreguei devagarinho, muito devagarinho, com cautela, por causa da bota do comendador.

 

BOTA DIREITA.- Agora me lembro: pisaste a bota do comendador.

 

BOTA ESQUERDA.- A bota? Pisei o calo. O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os homens: Hein? E eu recuei; e o Dr. Crispim ficou muito vermelho, muito vermelho...

 

BOTA DIREITA.- Parece que foi castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos de presente a um procurador de poucas causas.

 

BOTA ESQUERDA.- Não me fales! Isso foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o mesmo que dizer: mata-me estas botas; esfrangalha-me estas botas!

 

BOTA DIREITA.- Dizes bem. Que roda viva! Era da Relação para os escrivães, dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para as partes (embora poucas), das partes para a Relação, da Relação para os escrivães...

 

BOTA ESQUERDA.- Et coetera. E as chuvas! e as lamas! Foi o procurador quem primeiro me deu este corte para desabafar um calo. Fiquei asseada com esta janela à banda.

 

BOTA DIREITA.- Durou pouco; passamos então para o fiel de feitos, que no fim de três semanas nos transferiu ao remendão. O remendão (ah! já não era a Rua do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos ao aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.

 

BOTA DIREITA.- Com esse havia pouco que fazer de dia, mas de noite...

 

BOTA ESQUERDA.- No curso de dança; lembra-me. O diabo do rapaz valsava como quem se despede da vida. Nem nos comprou para outra coisa, porque para os passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as noites... Nós éramos as botas do curso...

 

BOTA DIREITA.- Que abismo entre o curso e os tapetes do Dr. Crispim...

 

BOTA ESQUERDA.- Coisas!

 

BOTA DIREITA.- Justiça, justiça; o aprendiz não nos escovava; não tínhamos o suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranqüila.

 

BOTA ESQUERDA.- Relativamente, creio. Agora, que era alegre não há dúvida; em todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.

 

BOTA DIREITA.- Quando fomos parar às mãos...

 

BOTA ESQUERDA.- Aos pés.

 

BOTA DIREITA.- Aos pés daquele servente das obras públicas. Daí fomos atiradas à rua, onde nos apanhou um preto padeiro, que nos reduziu enfim a este último estado! Triste! triste!

 

BOTA ESQUERDA.- Tu queixas-te, mana?

 

BOTA DIREITA.- Se te parece!

 

BOTA ESQUERDA.- Não sei; se na verdade é triste acabar assim tão miseravelmente, numa praia, esburacadas e rotas, sem tacões nem ilusões, — por outro lado, ganhamos a paz, e a experiência.

 

BOTA DIREITA.- A paz? Aquele mar pode lamber-nos de um relance.

 

BOTA ESQUERDA.- Trazer-nos-á outra vez à praia. Demais, está longe.

 

BOTA DIREITA.- Que eu, na verdade, quisera descansar agora estes últimos dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e agora...

 

BOTA ESQUERDA.- Agora quê?

 

BOTA DIREITA.- A vergonha, mana.

 

BOTA ESQUERDA.- Vergonha, não. Podes crer, que fizemos felizes aqueles a quem calçamos; ao menos, na nossa mocidade. Tu que pensas? Mais de um não olha para suas idéias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana, a bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade civil...

 

BOTA DIREITA.- Que estilo! Bem se vê que nos calçou um advogado.

 

BOTA ESQUERDA.- Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos menos cumprimentadas?

 

BOTA DIREITA.- Talvez.

 

BOTA ESQUERDA.- Éramos, e o chapéu não se engana. O chapéu fareja a bota... Ora, pois! Viva a liberdade! viva a paz! viva a velhice! (A Bota Direita abana tristemente o cano). Que tens?

 

BOTA DIREITA.- Não posso; por mais que queira, não posso afazer-me a isto. Pensava que sim, mas era ilusão... Viva a paz e a velhice, concordo; mas há de ser sem as recordações do passado...

 

BOTA ESQUERDA.- Qual passado? O de ontem ou de anteontem? O do advogado ou o do servente?

 

BOTA DIREITA.- Qualquer; contanto que nos calçassem. O mais reles pé de homem é sempre um pé de homem.

 

BOTA ESQUERDA.- Deixa-te disso; façamos da nossa velhice uma coisa útil e respeitável.

 

BOTA DIREITA.- Respeitável, um par de botas velhas! Útil, um par de botas velhas! Que utilidade? que respeito? Não vês que os homens tiraram de nós o que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem? Quem é que nos há de respeitar? — aqueles mariscos? (olhando para mim) Aquele sujeito que está ali com os olhos assombrados?

 

BOTA ESQUERDA.- Vanitas! Vanitas!

 

BOTA DIREITA.- Que dizes tu?

 

BOTA ESQUERDA.- Quero dizer que és vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e que devemos dar-nos por felizes com esta aposentadoria, lardeada de algumas recordações.

 

BOTA DIREITA.- Onde estarão a esta hora as botinas da viúva?

 

BOTA ESQUERDA.- Quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras botinas... Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições. Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou sem tacões, novas ou velhas; direita ou acalcanhadas, lustrosas ou ruças, mas botas, botas botas!

 

Neste ponto calaram-se as duas interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e outra, a esperar se diziam alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.

 

Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham servido tanto! tinham rolado todos os degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia... Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.

 

Nisto vi chegar um sujeito maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me uma esmola; dei-lhe um níquel.

 

MENDIGO.- Deus lhe pague, meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um anjo que as pôs aqui...

 

EU (ao mendigo).- Mas, espere...

 

MENDIGO.- Espere o quê? Se lhe digo que estou descalço! (Pegando nas botas) Estão bem boas! Cosendo-se isto aqui, com um barbante...

 

BOTA DIREITA.- Que é isto, mana? que é isto? Alguém pega em nós... Eu sinto-me no ar...

 

BOTA ESQUERDA.- É um mendigo.

 

BOTA DIREITA.- Um mendigo? Que quererá ele?

 

BOTA DIREITA (alvoroçada).- Será possível?

 

BOTA ESQUERDA.- Vaidosa!

 

BOTA DIREITA.- Ah! mana! esta é a filosofia verdadeira: — Não há bota velha que não encontre um pé cambaio.

 


Literatura - Contos e Crônicas terça, 29 de março de 2022

SALES (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SALES

Machado de Assis

(Grafia original)

 

 

 

Ao certo, não se pode saber em que data teve Sales a sua primeira idéia. Sabe-se que, aos dezenove anos, em 1854, planeou transferir a capital do Brasil para o interior, e formulou alguma coisa a tal respeito; mas não se pode afirmar, com segurança, que tal fosse a primeira nem a segunda idéia do nosso homem. Atribuíram-lhe meia dúzia antes dessa, algumas evidentemente apócrifas, por desmentirem dos anos em flor, mas outras possíveis e engenhosas. Geralmente eram concepções vastas, brilhantes, inopináveis ou só complicadas. Cortava largo, sem poupar pano nem tesoura; e, quaisquer que fossem as objeções práticas, a imaginação estendia-lhe sempre um véu magnífico sobre o áspero e o aspérrimo. Ousaria tudo: pegaria de uma enxada ou de um cetro, se preciso fosse, para pôr qualquer idéia a caminho. Não digo cumpri-la, que é outra coisa.

 

Casou aos vinte e cinco anos, em 1859, com a filha de um senhor de engenho de Pernambuco, chamado Melchior. O pai da moça ficara entusiasmado, ouvindo ao futuro genro certo plano de produção de açúcar, por meio de uma união de engenhos e de um mecanismo simplíssimo. Foi no Teatro de Santa Isabel, no Recife, que Melchior lhe ouviu expor os lineamentos principais da idéia.

 

— Havemos de falar nisso outra vez, disse Melchior; por que não vai ao nosso engenho?

 

Sales foi ao engenho, conversou, escreveu, calculou, fascinou o homem. Uma vez acordados na idéia, saiu o moço a propagá-la por toda a comarca; achou tímidos, achou recalcitrantes, mas foi animando a uns e persuadindo a outros. Estudou a produção da zona, comparou a real à provável, e mostrou a diferença. Vivia no meio de mapas, cotações de preços, estatísticas, livros, cartas, muitas cartas. Ao cabo de quatro meses, adoeceu; o médico achou que a moléstia era filha do excesso de trabalho cerebral, e prescreveu-lhe grandes cautelas.

 

Foi por esse tempo que a filha do senhor do engenho e uma irmã deste regressaram da Europa, aonde tinham ido nos meados de 1858. Es liegen einige gute Ideen in diesen Rock, dizia uma vez o alfaiate de Heine, mirando-lhe a sobrecasaca. Sales não desceria a achar semelhantes coisas numa sobrecasaca; mas, numa linda moça, por que não? Há nesta pequena algumas idéias boas, pensou ele olhando para Olegária, — ou Legazinha, como se dizia no engenho. A moça era baixota, delgada, rosto alegre e bom. A influição foi recíproca e súbita. Melchior, não menos namorado do rapaz que a filha, não hesitou em casá-los; ligá-lo à família era assegurar a persistência de Sales na execução do plano.

 

O casamento fez-se em agosto, indo os noivos passar a lua-de-mel no Recife. No fim de dois meses, não voltando eles ao engenho, e acumulando-se ali uma infinidade de respostas ao questionário que Sales organizara, e muitos outros papéis e opúsculos, Melchior escreveu ao genro que viesse; Sales respondeu que sim, mas que antes disso precisava dar uma chegadinha ao Rio de Janeiro, coisa de poucas semanas, dois meses, no máximo. Melchior correu ao Recife para impedir a viagem; em último caso, prometeu que, se esperassem até maio, ele viria também. Tudo foi inútil; Sales não podia esperar; tinha isto, tinha aquilo, era indispensável.

 

— Se houver necessidade de apressar a volta, escreva-me; mas descanse, a boa semente frutificará. Caiu em boa terra, concluiu enfaticamente.

 

Ênfase não exclui sinceridade. Sales era sincero, mas uma coisa é sê-lo de espírito, outra de vontade. A vontade estava agora na jovem consorte. Entrando no mar, esqueceu-lhe a terra; descendo à terra, olvidou as águas. A ocupação única do seu ser era amar esta moça, que ele nem sabia que existisse, quando foi para o engenho do sogro cuidar do açúcar. Meteram-se na Tijuca, em casa que era juntamente ninho e fortaleza; — ninho para eles, fortaleza para os estranhos, aliás inimigos. Vinham abaixo algumas vezes, — ou a passeio, ou ao teatro; visitas raras e de cartão. Durou essa reclusão oito meses. Melchior escrevia ao genro que voltasse, que era tempo; ele respondia que sim, e ia ficando; começou a responder tarde, e acabou falando de outras coisas. Um dia, o sogro mandou-lhe dizer que todos os apalavrados tinham desistido da empresa. Sales leu a carta ao pé de Legazinha, e ficou longo tempo a olhar para ela.

 

— Que mais? perguntou Legazinha.

 

Sales afirmou a vista; acabava de descobrir-lhe um cabelinho branco. Cãs aos vinte anos! Inclinou-se, e deu no cabelo um beijo de boas-vindas. Não cuidou de outra coisa em todo o dia. Chamava-lhe "minha velha". Falava em comprar uma medalhinha de prata para guardar o cabelo, com a data, e só a abririam quando fizessem vinte e cinco anos de casados. Era uma idéia nova esse cabelo. Bem dizia ele que a moça tinha em si algumas idéias boas, como a sobrecasaca de Heine; não só as tinha boas, mas inesperadas.

 

Um dia, reparou Legazinha que os olhos do marido andavam dispersos no ar, ou recolhidos em si. Nos dias seguintes observou a mesma coisa. Note-se que não eram olhos de qualquer. Tinham a cor indefinível, entre castanho e ouro; — grandes, luminosos e até quentes. Viviam em geral como os de toda a gente; e, para ela, como os de nenhuma pessoa, mas o fenômeno daqueles dias era novo e singular. Iam da profunda imobilidade à mobilidade súbita e quase demente. Legazinha falava-lhe, sem que ele a ouvisse; pegava-lhe dos ombros ou das mãos, e ele acordava.

 

— Hem? que foi?

 

Legazinha a princípio ria-se.

 

— Este meu marido! Este meu marido! Onde anda você?

 

Sales ria também, levantava-se, acendia um charuto, e entrava a andar e a pensar; daí a pouco mergulhava outra vez em si. O fenômeno foi-se agravando. Sales passou a escrever horas e horas; às vezes, deixava a cama, alta noite, para ir tomar alguma nota. Legazinha supôs que era o negócio dos engenhos, e disse-lho, pendurando-se graciosamente do ombro:

 

— Os engenhos? repetiu ele. E voltando a si: — Ah! os engenhos...

 

Legazinha temia algum transtorno mental, e procurava distraí-lo. Já saíam a visitas, recebiam outras; Sales consentiu em ir a um baile, na Praia do Flamengo. Foi aí que ele teve um princípio de reputação epigramática, por uma resposta que deu distraidamente:

 

— Que idade terá aquela feiosa, que vai casar? perguntou-lhe uma senhora com malignidade.

 

— Perto de duzentos contos, respondeu Sales.

 

Era um cálculo que estava fazendo; mas o dito foi tomado à má parte, andou de boca em boca, e muita gente redobrou os carinhos com um homem capaz de dizer coisas tão perversas.

 

Um dia, o estado dos olhos foi cedendo inteiramente da imobilidade para a mobilidade; entraram a rir, a derramarem-se-lhe pelo corpo todo, e a boca ria, as mãos riam, todo ele ria a espáduas despregadas. Não tardou, porém, o equilíbrio: Sales voltou ao ponto central, mas — ai dela! — trazia uma idéia nova.

 

Consistia esta em obter de cada habitante da capital uma contribuição de quarenta réis por mês, — ou, anualmente, quatrocentos e oitenta réis. Em troca desta pensão tão módica, receberia o contribuinte durante a Semana Santa uma coisa que não posso dizer sem grandes refolhos de linguagem. Que como ele há pessoas neste mundo que acham mais delicado comer peixe cozido, que lê-lo impresso. Pois era o pescado necessário à abstinência, que cada contribuinte receberia em casa durante a semana santa, a troco de quatrocentos e oitenta réis por ano. O corretor, a quem Sales confiou o plano, não o entendeu logo; mas o inventor explicou-lho.

 

— Nem todos pagarão só os quarenta réis; uma terça parte, para receber maior porção e melhor peixe, pagará cem réis. Quantos habitantes haverá no Rio de Janeiro? Descontando os judeus, os protestantes, os mendigos, os vagabundos, etc., contemos trezentos mil. Dois terços, ou duzentos mil, a quarenta réis, são noventa e seis contos anuais. Os cem mil restantes, a cem réis, dão cento e vinte. Total: duzentos e dezesseis contos de réis. Compreendeu agora?

 

— Sim, mas...

 

Sales explicou o resto. O juro do capital, o preço das ações da companhia, porque era uma companhia anônima, número das ações, entradas dividendo provável, fundo de reserva, tudo estava calculado, somado. Os algarismos caíam-lhe da boca, lúcidos e grossos, como uma chuva de diamantes; outros saltavam-lhe dos olhos, à guisa de lágrimas, mas lágrimas de gozo único. Eram centenas de contos, que ele sacolejava nas algibeiras, passava às mãos e atirava ao teto. Contos sobre contos; dava com eles na cara do corretor, em cheio; repelia-os de si, a pontapés; depois recolhia-os com amor. Já não eram lágrimas nem diamantes, mas uma ventania de algarismos, que torcia todas as idéias do corretor, por mais rijas e arraigadas que estivessem.

 

— E as despesas? disse este.

 

Estavam previstas as despesas. As do primeiro ano é que seriam grandes. A companhia teria virtualmente o privilégio da pescaria, com pessoal seu, canoas suas, estações de paróquias, carroças de distribuição, impressos, licenças, escritório, diretoria, tudo. Deduzia as despesas, e mostrava lucro positivo, claro, numeroso. Vasto negócio, vasto e humano; arrancava a população aos preços fabulosos daqueles dias de preceito.

 

Trataram do negócio; apalavraram algumas pessoas. Sales não olhava a despesa para pôr a idéia a caminho. Não tinha mais que o dote da mulher, uns oitenta contos, já muito cerceados; mas não olhava a nada. São despesas produtivas, dizia a si mesmo. Era preciso escritório; alugou casa na Rua da Alfândega, dando grossas luvas, e meteu lá um empregado de escrita e um porteiro fardado. Os botões da farda do porteiro eram de metal branco, e tinham, em relevo, um anzol e uma rede, emblema da companhia; na frente do bonet via-se o mesmo emblema, feito de galão de prata. Essa particularidade, tão estranha ao comércio, causou algum pasmo, e recolheu boa soma de acionistas.

 

— Lá vai o negócio a caminho! dizia ele à mulher, esfregando as mãos.

 

Legazinha padecia calada. A orelha da necessidade começava a aparecer por trás da porta; não tardaria a ver-lhe o carão chupado e lívido, e o corpo em frangalhos. O dote, capital único, ia-se indo com o necessário e o hipotético. Sales, entretanto, não parava, acudia a tudo, à praça e à imprensa, onde escreveu alguns artigos longos, muito longos, pecuniariamente longos, recheados de Cobden e Bastiat, para demonstrar que a companhia trazia nas mãos "o lábaro da liberdade".

 

A doença de um conselheiro de Estado fez demorar os estatutos. Sales, impaciente nos primeiros dias, entrou a conformar-se com as circunstâncias, e até a sair menos. Às vezes vestia-se para dar uma vista ao escritório; mas, apertado o colete, ruminava outra coisa e deixava-se ficar. Crendice do amor, a mulher também esperava os estatutos; rezava uma ave-maria, todas as noites, para que eles viessem, que se não demorassem muito. Vieram; ela leu, um dia de manhã, o despacho de indeferimento. Correu atônita ao marido.

 

— Não entendem disto, respondeu Sales, tranqüilamente. Descansa; não me abato assim com duas razões.

 

Legazinha enxugou os olhos.

 

— Vais requerer outra vez? perguntou-lhe.

 

— Qual requerer!

 

Sales atirou a folha ao chão, levantou-se da rede em que estava, e foi à mulher; pegou-lhe nas mãos, disse-lhe que nem cem governos o fariam desfalecer. A mulher, abanando a cabeça:

 

— Você não acaba nada. Cansa-se à toa... No princípio tudo são prodígios; depois... Olha o negócio dos engenhos que papai me contou...

 

— Mas fui eu que me indeferi?

 

— Não foi; mas há que tempos anda você pensando em outra coisa!

 

— Pois sim, e digo-te...

 

— Não digas nada, não quero saber nada, atalhou ela.

 

Sales, rindo, disse-lhe que ainda havia de arrepender-se, mas que ele lhe daria um perdão "de rendas", nova espécie de perdão, mais eficaz que nenhum outro. Desfez-se do escritório e dos empregados, sem tristeza; chegou a esquecer-se de pedir luvas ao novo inquilino da casa. Pensava em coisa diferente. Cálculos passados, esperanças ainda recentes, eram coisas em que parecia não haver cuidado nunca. Debruçava-se-lhe do olho luminoso uma idéia nova. Uma noite, estando em passeio com a mulher, confiou-lhe que era indispensável ir à Europa, viagem de seis meses apenas. Iriam ambos, com economia... Legazinha ficou fulminada. Em casa respondeu-lhe, que nem ela iria, nem consentiria que ele fosse. Para quê? Algum novo sonho. Sales afirmou-lhe que era uma simples viagem de estudo, França, Inglaterra, Bélgica, a indústria das rendas. Uma grande fábrica de rendas; o Brasil dando malinas e bruxelas.

 

Não houve força que o detivesse, nem súplicas, nem lágrimas, nem ameaças de separação. As ameaças eram de boca. Melchior estava, desde muito, brigado com ambos; ela não abandonaria o marido. Sales embarcou, e não sem custo, porque amava deveras a mulher; mas era preciso, e embarcou. Em vez de seis meses, demorou-se sete; mas, em compensação, quando chegou, trazia o olhar seguro e radiante. A saudade, grande misericordiosa, fez com que a mulher esquecesse tantas desconsolações, e lhe perdoasse — tudo.

 

Poucos dias depois alcançou ele uma audiência do Ministro do Império. Levou-lhe um plano soberbo, nada menos que arrasar os prédios do Campo da Aclamação e substituí-los por edifícios públicos, de mármore. Onde está o quartel, ficaria o palácio da Assembléia Geral; na face oposta, em toda a extensão, o palácio do imperador. David cum Sibyla. Nas outras duas faces laterais ficariam os palácios dos sete ministérios, um para a Câmara Municipal e outro para o Diocesano.

 

— Repare V. Ex.ª que é toda a Constituição reunida, dizia ele rindo, para fazer rir o ministro; falta só o Ato Adicional. As províncias que façam o mesmo.

 

Mas o ministro não se ria. Olhava para os planos desenrolados na mesa, feitos por um engenheiro belga, pedia explicações para dizer alguma coisa, e mais nada. Afinal disse-lhe que o governo não tinha recursos para obras tão gigantescas.

 

— Nem eu lhos peço, acudiu Sales. Não preciso mais que de algumas concessões importantes. E o que não concederá o governo para ver executar este primor?

 

Durou seis meses esta idéia. Veio outra, que durou oito; foi um colégio, em que pôs à prova certo plano de estudos. Depois vieram outras, mais outras... Em todas elas gastava alguma coisa, e o dote da mulher desapareceu. Legazinha suportou com alma as necessidades; fazia balas e compotas para manter a casa. Entre duas idéias, Sales comovia-se, pedia perdão à consorte, e tentava ajudá-la na indústria doméstica. Chegou a arranjar um emprego ínfimo, no comércio; mas a imaginação vinha muita vez arrancá-lo ao solo triste e nu para as regiões magníficas, ao som dos guizos de algarismos e do tambor da celebridade.

 

Assim correram os primeiros seis anos de casamento. Começando o sétimo, foi o nosso amigo acometido de uma lesão cardíaca e de uma idéia. Cuidou logo desta, que era uma máquina de guerra para destruir Humaitá; mas a doença, máquina eterna, destruiu-o primeiro a ele. Sales caiu de cama, a morte veio vindo; a mulher, desenganada, tratou de o persuadir a que se sacramentasse.

 

— Faço o que quiseres, respondeu ele ofegante.

 

Confessou-se, recebeu o viático e foi ungido. Para o fim, o aparelho eclesiástico, as cerimônias, as pessoas ajoelhadas, ainda lhe deram rebate à imaginação. A idéia de fundar uma igreja, quando sarasse, encheu-lhe o semblante de uma luz extraordinária. Os olhos reviveram. Vagamente, inventou um culto, sacerdote, milhares de fiéis. Teve reminiscências de Robespierre; faria um culto deísta, com cerimônias e festas originais, risonhas como o nosso céu... Murmurava palavras pias.

 

— Que é? dizia Legazinha, ao pé da cama, com uma das mãos dele presa entre as suas, exausta de trabalho.

 

Sales não via nem ouvia a mulher. Via um campo vastíssimo, um grande altar ao longe, de mármore, coberto de folhagens e flores. O sol batia em cheio na congregação religiosa. Ao pé do altar via-se a si mesmo, magno sacerdote, com uma túnica de linho e cabeção de púrpura. Diante dele, ajoelhadas, milhares e milhares de criaturas humanas, com os braços erguidos ao ar, esperando o pão da verdade e da justiça... que ele ia... distribuir...


Literatura - Contos e Crônicas domingo, 27 de março de 2022

O SAINETE (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O SAINETE

Machado de Assis

 

 

 

Um dos problemas que mais preocupavam a rua do Ouvidor entre as da Quitanda e Gonçalves Dias, das duas às quatro horas da tarde, era a profunda e súbita melancolia do Dr. Maciel. O Dr. Maciel tinha apenas vinte e cinco anos, idade em que geralmente se compreende melhor o Cântico dos Cânticos do que as Lamentações de Jeremias. Sua índole mesma era mais propensa ao riso dos frívolos do que ao pesadume dos filósofos. Pode-se afirmar que ele preferia um dueto da Grã Duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado Fluminense aos domingos da Escola da Glória. Donde vinha pois a melancolia que tanto preocupava a rua do Ouvidor?

Pode o leitor coçar o nariz à procura da explicação; a leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o Dr. Maciel ama, que uma "seta do deus alado" o feriu mesmo no centro do coração. O que a leitora não pode adivinhar, sem que eu lho diga, é que o jovem médico ama a viúva Seixas, cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados pintalegretes. O Dr. Maciel gostava de a ver como todos os outros; amou-a desde certa noite e certo baile, em que ela, andando a passear pelo seu braço, perguntou-lhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo:

- Doutor, por que razão não quer honrar a minha casa? Estou visível todas as quintas-feiras para a turba-multa; os sábados pertencem aos amigos. Vá lá aos sábados.

Maciel prometeu que iria no primeiro sábado, e foi. Pulava-lhe o coração ao subir as escadas. A viúva estava só.

- Venho cedo, disse ele, logo depois dos primeiros cumprimentos.

- Vem tarde demais para a minha natural ansiedade, respondeu ela sorrindo.

O que se passou na alma de Maciel excede a todas as conjecturas. Num só minuto pôde ele ver juntas todas as maravilhas da terra e do céu, - todas as concentradas naquela elegante e suntuosa sala cuja dona, a Calipso daquele Telêmaco, tinha cravados nele um par de olhos, não negros, não azuis, não castanhos, mas dessa rara cor, que os homens atribuem a mais duradoura felicidade do coração, à esperança. Eram verdes, de um verde igual ao das folhas novas, e de uma expressão ora indolente, ora vivaz, - arma de dois gumes, - que ela sabia manejar como poucas.

E não obstante aquele intróito, o Dr. Maciel andava triste, abatido, desconsolado. A razão era que a viúva, depois de tão amáveis preliminares, não cuidou mais das condições em que seria celebrado um tratado conjugal. No fim de cinco ou seis sábados, cujas horas eram polidamente bocejadas a duo, a viúva adoeceu semanalmente naquele dia, e o jovem médico teve de contentar-se com a turba-multa das quintas-feiras.

A quinta-feira em que nos achamos é de Endoenças. Não era dia próprio de recepção. Contudo, Maciel dirigiu-se a Botafogo, a fim de pôr em execução um projeto, que ele ingenuamente supunha ser fruto do mais profundo maquiavelismo, mas que eu, na minha fidelidade de historiador, devo confessar que não passava de verdadeira infantilidade. Notara ele os sentimentos religiosos da viúva; imaginou que, indo fazer-lhe naquele dia a declaração verbal do seu amor, por meio de invocações pias, alcançaria facilmente o prêmio de seus trabalhos.

A viúva achava-se no toucador. Acabara de vestir-se; e de pé calçando as luvas, em frente do espelho, sorria para si mesma, como satisfeita da toilette. Não ia passear, como se poderia supor; ia visitar as igrejas. Queria alcançar por sedução a misericórdia divina.

Era boa devota aquela senhora de' vinte e seis anos, que freqüentava as festas religiosas, comia peixe durante toda a quaresma, acreditava alguma coisa em Deus, pouco no diabo e nada no inferno. Não acreditando no inferno, não tinha onde meter o diabo; venceu a dificuldade, agasalhando-o no coração. O demo assim alojado fora algum tempo o nosso melancólico Maciel. A religião da viúva era mais elegante que outra coisa. Quando ela se confessava era sempre com algum padre moço; em compensação só se tratava com médico velho. Nunca escondeu do médico o mais íntimo defluxo, nem revelou ao padre o mais insignificante pecado.

- O Dr. Maciel? disse ela lendo o cartão que a criada lhe entregou. Não o posso receber; vou sair. Espera, - continuou depois de relancear os olhos para o espelho; - manda-o entrar para aqui.

A ordem foi cumprida; alguns minutos depois fazia Maciel a sua entrada no toucador da viúva.

- Recebo-o no santuário, disse ela sorrindo logo que ele assomou à porta; prova de que o senhor pertence ao número dos verdadeiros fiéis.

- Oh! não é da minha fidelidade que eu duvido; e...

- E recebo-o de pé! Vou sair; vou visitar as igrejas.

- Sei; conheço os seus sentimentos de verdadeira religião, - disse Maciel com a voz a tremer-lhe; - vim até com receio de não a encontrar. Mas vim; era preciso que viesse; neste dia, sobretudo.

A viúva recolheu a abazinha de um sorriso que indiscretamente ia traindo o seu pensamento, e perguntou friamente ao médico que horas eram.

- Quase oito. Sua luva está calçada; falta só abotoá-la. É o tempo necessário para lhe dizer, neste dia tão solene, que eu sinto...

- Está abotoada. Quase oito, não? Não há tempo de sobra; é preciso ir a sete igrejas. Quer fazer o favor de acompanhar-me até o carro?

Maciel tinha espírito em quantidade suficiente para não perdê-lo todo com a paixão. Calou-se; e respondeu à viúva com um gesto de assentimento. Saíram do toucador e desceram ambos silenciosos. No trajeto planeou Maciel dizer-lhe uma só palavra, mas que contivesse todo o seu coração. Era difícil; o lacaio, que abrira a portinhola do coupé, ali estava como um emissário do seu mau destino.

- Quer que o leve até a cidade? perguntou a cidade? perguntou a viúva.

- Obrigado, respondeu Maciel.

O lacaio fechou a portinhola e correu a tomar o seu lugar; foi nesse rápido instante que o médico. inclinando o rosto, disse à viúva:

- Eulália...

Os cavalos começaram a andar; o resto da frase perdeu-se para a viúva e para nós.

Eulália sorriu da familiaridade e perdoou-lha. Reclinou-se molemente nos coxins do veículo e começou um monólogo que só acabou à porta de S. Francisco de Paula.

- Pobre rapaz! dizia ela consigo; vê-se que morre por mim. Não desgostei dele a princípio... Mas tenho eu culpa de que seja um maricas? Agora sobretudo. com aquele ar de moleza e abatimento, é... não é nada... é uma alma de cera. Parece que vinha disposto a ser mais atrevido; mas a alma faltou-lhe com a voz, e ficou apenas com as boas intenções. Eulália! Não foi mau este começo. Para um coração daqueles... Mas qual! c'est le genre ennuyeux!

Esta é a glosa mais resumida que posso dar do monólogo da viúva. O cupê estacionou na praça da Constituição; Eulália, seguida do lacaio, encaminhou-se para a igreja de S. Francisco de Paula. Ali, depositou a imagem de Maciel nas escadas, e atravessou o adro toda entregue ao dever religioso e aos cuidados de seu magnífico vestido preto.

A visita foi curta; era preciso ir a sete igrejas, fazendo a pé todo o trajeto de uma para outra. A viúva saiu sem preocupar-se mais com o jovem médico, e dirigindo-se para a igreja da Cruz.

Na Cruz achamos uma personagem nova, ou antes duas, o desembargador Araújo e sua sobrinha D. Fernanda Valadares, viúva do deputado deste nome, que falecera um ano antes, não se sabe se da hepatite que os médicos lhe acharam se de um discurso que proferiu na discussão do orçamento. As duas viúvas eram amigas; seguiram juntas na visitação das igrejas. Fernanda não tinha tantas acomodações com o céu, como a viúva Seixas; mas a sua piedade estava sujeita, como todas as coisas, às vicissitudes do coração. Em vista do que, logo que saíram da última igreja, disse ela à amiga que no dia seguinte iria vê-la e pedir-lhe uma informação.

- Posso dar já, respondeu Eulália. Vá embora, desembargador; eu levo Fernanda no meu carro.

No carro, disse Fernanda:

- Preciso de uma informação importante. Sabes que estou um pouco apaixonada?

- Sim?

- É verdade. Eu disse um pouco, mas devia dizer muito. O Dr. Maciel...

- O Dr. Maciel? interrompeu vivamente Eulália. Que pensas dele?

A viúva Seixas levantou os ombros e riu com um ar de tamanha piedade, que a amiga corou.

- Não te parece bonito? perguntou Fernanda.

- Não é feio.

- O que mais me seduz nele é o seu ar triste, um certo abatimento que me faz crer que padece. Sabes de alguma coisa a seu respeito?

- Eu?

- Ele dá-se muito contigo; tenho-o visto lá em tua casa. Sabes se haverá alguma paixão...

- Pode ser.

- Oh! conta-me tudo!

Eulália não contou nada; disse que nada sabia.

Concordou, entretanto, que o jovem médico talvez andasse enamorado, porque realmente não parecia gozar boa saúde. O amor, disse ela, era urna espécie de pletora, o casamento uma sangria sacramental. Fernanda precisava sangrar-se do mesmo modo que Maciel.

- Sobretudo nada de remédios caseiros, concluiu ela; nada de olhares e suspiros, que são paliativos destinados menos a minorar que a entreter a doença. O melhor boticário é o padre.

Fernanda tirou a conversa deste terreno farmacêutico e cirúrgico para subi-la às regiões do eterno azul. Sua voz era doce e comovida: o coração pulsava-lhe com força; e Eulália, ao ouvir os méritos que a amiga achava em Maciel, não pôde reprimir esta observação:

- Não há nada como ver as coisas com amor. Quem suporia nunca o Maciel que me estás pintando? Na minha opinião não passa de um bom rapaz; e ainda assim... Mas um bom rapaz é alguma coisa neste mundo?

- Pode ser que eu me engane, Eulália, replicou a viúva do deputado, mas creio que há ali uma alma nobre, elevada e pura. Suponhamos que não. Que importa? O coração empresta as qualidades que deseja.

A viúva Seixas não teve tempo de examinar a teoria de Fernanda. O carro chegara à rua Santo Amaro, onde esta morava. Despediram-se; Eulália seguiu para Botafogo.

- Parece que ama deveras, pensou Eulália logo que ficou só. Coitada! Um moleirão!

Eram nove horas da noite quando a viúva Seixas entrou em casa. Duas criadas - camareiras, - foram com ela para o toucador, onde a bela viúva se despiu; dali passou ao banho; enfiou depois um roupão e dirigiu-se para o quarto de dormir. Levaram-lhe uma taça de chocolate, que ela saboreou lentamente, tranqüilamente, voluptuosamente; saboreou-a e saboreou-se também a si própria, contemplando, da poltrona em que estava, a sua bela imagem no espelho fronteiro. Esgotada a taça, recebeu de uma criada o seu livro de orações, e foi dali a um oratório, diante do qual com devoção se ajoelhou e rezou. Voltando ao quarto, despiu-se, meteu-se no leito e pediu-lhe que lhe cerrasse as cortinas; feito o que, murmurou alegremente:

- Ora o Maciel!

E dormiu.

A noite foi muito menos tranqüila para o nosso apaixonado Maciel, que, logo depois das palavras proferidas à portinhola do carro, ficara furioso contra si mesmo. Tinha razão em parte; a familiaridade do tratamento dado à viúva precisava de mais detida explicação. Não era, porém, a razão que lhe fazia ver claro; nele exerciam maior ação os nervos que o cérebro.

Nem sempre "depois de uma noite de procelosa, traz a manhã serena claridade". A do dia seguinte foi tétrica. Maciel gastou-a toda na loja do Bernardo, a fumar em ambos os sentidos, - o natural e o figurado, a olhar sem ver as damas que passavam, estranho à palavra dos amigos, aos boatos políticos, às anedotas de ocasião.

- Fechei a porta para sempre! dizia ele com amargura.

Pelas quatro horas da tarde, apareceu-lhe um alívio, debaixo da forma de um colega seu, que lhe propôs ir clinicar em Carangola, donde recebera cartas muito animadoras. Maciel aceitou com ambas as mãos o oferecimento. Carangola nunca entrara no itinerário de suas ambições; é até possível que naquele momento ele não pudesse dizer a situação exata da localidade. Mas aceitou Carangola, como aceitaria a coroa de Inglaterra ou as pérolas todas de Ceilão.

- Há muito tempo, disse ele ao colega, que eu sentia necessidade de ir viver em Carangola. Carangola exerceu sempre em mim uma atração irresistível. Não podes imaginar como eu, já na Academia, me sentia arrastado para Carangola. Quando partimos?

- Não sei: dentro de três semanas, talvez.

Maciel achou que era muito, e propôs o prazo máximo de oito dias. Não foi aceito; não teve remédio senão curvar-se às três semanas prováveis. Quando ficou só, respirou.

- Bem! disse ele, irei esquecer e ser esquecido. No sábado houve duas aleluias, uma na Cristandade, outra em casa de Maciel, aonde chegou uma cartinha perfumada da viúva Seixas contendo estas simples palavras: - "Creio que hoje não terei a enxaqueca do costume; espero que venha tomar uma xícara de chá comigo". A leitura desta carta produziu na alma do jovem médico unia Glória in excelsis Deo. Era o seu perdão; era talvez mais do que isso. Maciel releu meia dúzia de vezes aquelas poucas linhas; nem é fora de propósito crer que chegou a beijá-las.

Ora, é de saber que na véspera, sexta-feira, as onze horas da manhã, recebera Eulália uma carta de Fernanda, e que às duas horas foi a própria Fernanda à casa de Eulália. A carta e a pessoa tratavam do mesmo assunto com a expansão natural em situações daquelas. Tem-se visto muita vez guardar um segredo do coração; mas é raríssimo, que, uma vez revelado, deixe de o ser até a saciedade. Fernanda escreveu e disse tudo o que sentia; sua linguagem, apaixonada e viva, era uma torrente de afeto, tão volumosa que chegou talvez a alagar, - a molhar pelo menos, - o coração de Eulália. Esta ouviu-a a principio com interesse, depois com indiferença, afinal com irritação.

- Mas o que queres tu que eu te faça? perguntou no fim de uma hora de confidência.

- Nada, respondeu Fernanda. Uma só coisa: que me animes.

- Ou te auxilie?

Fernanda respondeu com um aperto de mão tão significativo, que a viúva Seixas compreendeu facilmente a impressão que lhe causara. No sábado enviou a carta acima transcrita. Maciel recebeu-a como vimos, e à noite, à hora habitual, estava à porta de Eulália. A viúva não estava só. Havia umas quatro senhoras e uns três cavalheiros, visitas habituais das quintas-feiras.

Maciel entrou na sala um pouco acanhado e comovido. Que expressão leria no rosto de Eulália? Não tardou sabê-lo; a viúva recebeu-o com o seu melhor sorriso, - o menos faceiro e intencional, o mais espontâneo e sincero, um sorriso que Maciel, se fosse poeta, compararia a um íris de bonança, rimado com esperança ou bem-aventurança. A noite correu deliciosa; um pouco de música, muita conversa, muito espírito, um chá familiar, alguns olhares animadores, e um aperto de mão significativo no fim. Com estes elementos era difícil não ter os melhores sonhos do mundo. Teve-os Maciel, e o domingo da Ressurreição também o foi para ele.

Na seguinte semana viram-se três vezes. Eulália parecia mudada; a solicitude e a graça com que lhe falava estavam longe de tal ou qual frieza e indiferença dos últimos tempos. Este novo aspecto da moça produziu os seus naturais efeitos. Sentiu-se outro jovem médico; reanimou-se, colheu confiança, fez-se homem.

A terceira vez que a viu nessa semana foi em uma soirée. Acabaram de valsar e dirigiram-se para o terraço da casa, donde se via um magnífico panorama, capaz de fazer poeta o mais soez espírito do mundo. Ali foi fácil declaração, inteira, cabal, expressiva do que sentia o namorado; ouviu-lhe Eulália com os olhos embebidos nele, visivelmente encantada com a palavra de Maciel.

- Poderei crer no que me diz? perguntou ela.

A resposta do jovem médico foi apertar-lhe muito a mão, e cravar nela uns olhos mais eloqüentes que duas catilinárias. A situação estava definida, a aliança feita. Bem o percebeu Fernanda, quando os viu regressar à sala. Seu rosto cobriu-se de um véu de tristeza; dez minutos depois e o desembargador interrompia a partida de whist para acompanhar a sobrinha a Santo Amaro.

A leitora espera decerto ver casados os dois namorados e espaçada a viagem a Carangola até o fim do século. Quinze dias depois da declaração inicial Maciel deu os passos necessários ao consórcio. Não têm número os corações que estalaram de inveja ao saber da preferência da viúva Seixas. Esta pela sua parte sentia-se mais orgulhosa do que se desposasse o primeiro dos heróis da terra.

Donde veio este entusiasmo e que varinha mágica operou tamanha mudança no coração de Eulália? Leitora curiosa, a resposta está no título. Maciel pareceu insosso, enquanto lhe faltou o sainete de outra paixão. A viúva descobriu-lhe os méritos com os olhos de Fernanda; e bastou vê-lo preferido para que ela o preferisse. Se me miras, me miram, era a divisa de um célebre relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me miras; e mostraria conhecer o coração humano, - o feminino pelo menos.


Literatura - Contos e Crônicas sexta, 25 de março de 2022

O RELÓGIO DE OURO (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O RELÓGIO DE OURO

Machado de Assis

 

 

 

Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado como ele, do lugar e da situação.

Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem compreender muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto e, os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.

Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram das pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.

Por este motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha, qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.

Foi ter com ela.

Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com ar indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois reluzentes punhais.

– Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar.

Luís Negreiros não respondeu a interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:

– Que tens?

Luís Negreiros parou defronte dela.

– Que é isto? disse ele, tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de trovão.

Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:

– Vamos, de quem é aquele relógio?

Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:

– Não sei.

Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pode sofrear Luís Negreiros. Caminhou para ela, e segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:

– Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?

Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquele momento, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.

Clarinha saiu da sala.

Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.

– Onde está a senhora?

– Não sei, não senhor.

Luís Negreiros foi procurar a mulher; achou-a numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma cadeira e sentou-se em frente a Clarinha.

– Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?

– Não.

– Mas então...

– Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha. Ignoro como esse relógio se acha ali... Não sei de quem é... deixa-me.

– É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.

Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar onde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:

– Ó “seu” Luís! ó “seu” malandrim!

– Ai vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás.

Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo viravoltas com o chapéu-de-sol, com grande risco das jarras e do candelabro.

– Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.

– Não, senhor, estávamos conversando...

– Conversando?... repetiu Meireles.

E acrescentou consigo:

– Estavam de arrufos... é o que há de ser.

– Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?

– Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.

– Não o convidei?...

– Sim, não fazes anos amanhã?

– Ah! é verdade...

Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:

– Ah! é verdade!...

Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.

– Está maluco! Disse baixinho Meireles.

– Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles, seguindo pelo corredor, ia ter à sala de jantar.

Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:

– Obrigado, disse.

A moça olhou para ele admirada.

– Obrigado, repetiu Luís Negreiros, obrigado e perdoa-me.

Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago e foi para a sala de jantar.

– Tem razão! murmurou Luís Negreiros.

Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar requentado, - qui ne valut jamais rien.

Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele. A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.

E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.

Clarinha amava ternamente o marido e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira nuvem?

Durante o jantar Clarinha não disse palavra, - ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.

“Estão de arrufo, não há dúvida”, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele pareceu-me lépido”.

Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.

Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias.

Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.

Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.

– Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens? Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.

– Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me verão.

– Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.

O jantar acabou assim triste e aborrecido, Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo na ocasião oportuna.

Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria a casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.

Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.

– Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.

Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.

“Mas que enigma é este?” perguntava a si mesmo Luís Negreiros. “Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?”

A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde que chegara a casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ela a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.

Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com a mulher.

Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.

Houve um momento de silêncio.

Luís Negreiros foi o primeiro que falou.

– Clarinha, disse ele, este momento é solene. Respondes-me ao que te pergunto desde esta tarde?

A moça não respondeu.

– Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.

A moça levantou os ombros.

Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:

– Responde, demônio, ou morres!

Clarinha soltou um grito.

– Espera! Disse ela.

Luís Negreiros recuou.

– Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá; foi o que o portador me disse.

Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:

“Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.

Tua Iaiá”

Assim acabou a história do relógio de ouro.


Literatura - Contos e Crônicas quinta, 24 de março de 2022

OS OLHOS QUE COMIAM CARNE (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

OS OLHOS QUE COMIAM CARNE

Humberto de Campos

 

 

Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

- Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

- Não, senhor. Está até acesa..

- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

- Abra os olhos! - diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...


Literatura - Contos e Crônicas terça, 22 de março de 2022

O REI DOS CAIPORAS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O REI DOS CAIPORAS

Machado de Assis

 

 

 

Os acontecimentos humanos são regidos por um destino cego e caprichoso? Há estrelas propícias e estrelas funestas? Tem fundamento a crença popular de que certas criaturas são felizes porque choraram no ventre materno, e outras desgraçadas porque não choraram nem riram?

Questão é esta que não me atrevo a deslindar. A filosofia diz que os homens dependem de si; o vulgo aponta mil casos em que todos os esforços de um homem vão esbarrar diante de uma força invisível que o não deixa dar um passo adiante.  A filosofia é uma boa senhora, e o vulgo é um sujeito prático; seria parcialidade inclinar-me a qualquer deles. Atento-me a ambos.

O que vou contar alude a esta questão de fatalidade e destino.  O vulgo inventou uma palavra para indicar a fatalidade de um homem; chama-lhe Caiporismo. Os dicionários ainda não trazem o termo, mas ele corre já pelas salas e ruas e adquiriu direito de cidade.

João das Mercês era o tipo do homem caipora. O destino com todas as suas legiões de auxiliares tinha tomado a pessoa de João das Mercês por alvo de seus tiros. João das Mercês se caísse de costas tinha toda a certeza de quebrar o nariz.

Choveram-lhe desde o berço as contrariedades. Entrou no mundo com o pé esquerdo.  É mister ler esta expressão com a sua significação literal e real. A mãe de João das Mercês não resistiu aos trabalhos cirúrgicos e faleceu horas depois de vir à luz o filho.

Foi-se buscar à pressa uma ama.  Encontrou-se ao cabo de algumas horas uma preta que alimentou o pequeno durante cinco dias, e morreu de erisipela em um joelho. A segunda ama era uma mulher livre que tinha a mania de jogar na loteria, e que ao fim de um mês tirou a sorte grande: saiu da casa para ir abrir uma loja de costuras.  A terceira entrou a amar o irmão mais velho do pequeno, com violência tal, que o pai julgou acertado mandá-la embora. Veio quarta ama que era dorminhoca e deixava o pequeno berrar toda a santa noite; a quinta ama era respondona; a sexta dividia os afetos entre o menino e um permanente; a sétima foi aturada até o fim do tempo da amamentação, a despeito de uma voz de soprano que irritava os nervos do dono da casa, cantando modinhas do norte todo o santíssimo dia.

Parece que esta variedade de leite e de amas influiu poderosamente em João das Mercês.  Logo nos primeiros anos verificou-se nele uma tendência pronunciada para o sono, influxo da quarta ama. Aos cinco anos nada o alegrava mais que ver passar a tropa na rua, gosto que lhe ficou naturalmente do leite que bebeu à namorada do permanente. Aos sete anos cantava sofrivelmente, aos oito teve uma erisipela, aos doze furtou ao pai cinco mil réis para comprar um quarto de loteria; aos quinze começou a namorar uma prima e aos dezesseis foi posto fora de casa por seus atrevimentos.

Aqui temos nós João das Mercês na rua, com dezesseis anos, sem vintém na algibeira, nem pouso certo.  Felizmente a prima que ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das Mercês e haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que este aplicara ao filho. João encaminhou-se para lá.

- Meu pai deitou-me fora de casa, disse ele a dona Angélica; venho ver se me dão pouso e mesa, porque não tenho outro recurso.

- Fica João, respondeu a senhora dona Angélica; fizeste bem em te lembrares que ainda tens uma tia; aqui não te há de faltar nada, ao menos enquanto eu e o Gaspar vivermos.

Marianinha apareceu na sala e soube das desgraças do jovem primo.  Ao mesmo tempo teve notícia de que ele ia morar lá. Marianinha que era o tipo da inocência, bateu palmas e apertou a mão do primo, com uma efusão tal que não escapou à perspicácia da senhora dona Angélica.

Dona Angélica tinha muitas razões para patrocinar os amores da filha e do sobrinho  Bem sabia ela que João das Mercês não tinha herança nem emprego; mas em compensação Marianinha tinha uma perna mais curta que a outra. Arranjado o rapaz, bem se lhe podia dar a pequena e tudo ficava em casa.

Gaspar aprovou todas as decisões da mulher, com tanta maior benevolência, quanto que, se as não aprovasse, seria a mesma coisa.  Durante vinte anos de casamento, não constava que Gaspar tivesse jamais iniciado alguma coisa em casa, nem sequer desaprovado a mulher. Dona Angélica teve sempre o comando do exército doméstico, e devo acrescentar com a fidelidade de um romancista sincero que dona Angélica exercia esse comando com uma severidade digna de um general.

A boa velha era caprichosa; o marido era o tipo da obediência. Um dia acordou dona Angélica com a idéia de que o esposo devia usar suíças. Gaspar que trazia a barba toda, desde que ela achou que era a única moda respeitável, ia ao barbeiro e punha abaixo metade do pêlo. Dois meses depois, Angélica adotava o sistema dos bigodes, por se ter namorado de um retrato de Napoleão III. O marido voltava para casa com uma faixa de soldado francês. Suspeitava-se que o corte das calças inexplicáveis de Gaspar era produção de dona Angélica.

Aqui temos, em duas palavras, a nova família de João das Mercês  Sabendo com que amor o tratavam, o nosso João imaginou que ia levar uma vida regalada. Infelizmente foi ilusão que durou pouco. Dona Angélica disse um dia à mesa que era preciso arranjar algum emprego para o sobrinho.  Gaspar não se fez esperar. Foi dali a um cavalheiro com que andara na escola e que ocupava então o lugar de ministro da guerra. Pediu-lhe um emprego. Gaspar foi notável durante toda a sua vida pelo aferro com que sempre acompanhara o ministério atual.  Obteve o emprego.

João das Mercês obedeceu à intimação da sua tia e foi ocupar o lugar no arsenal de guerra, tendo obtido antes consentimento do pai.

Marianinha amava o primo, com toda a força de seus quinze anos. Era uma rapariga assaz bonita, assaz faceira, dotada de um excelente coração. João das Mercês que era estouvado e mal educado não deixava de ter igualmente uni coração digno de apreço. Amavam-se estas duas criaturas com o aferro de um primeiro amor.  Dona Angélica alimentava esta chama, que segundo ela, devia ser legitimada na igreja.

João das Mercês também nutria essas esperanças; e tratava de as comunicar à prima.

- Quando formos casados, dizia ele, havemos de ser felizes.

- Casados?

- Sim.

- Quando há de ser?

- Um dia, quando eu tiver mais idade.

- Ah! se fosse já!

Gaspar ouviu um dia esta conversa, e não se pôde ter de furor.

- Casar! exclamou ele; pois vocês já falam em casar? Onde é que se viu isto? Que diria tua mãe, quando souber que já a minha filha fala em casamento? E tu meu pirralho, que idéias andas metendo na cabeça de tua prima? Ora esperem!

Marianinha tremia; João murmurava uma resposta ao tio, quando este chegando-se à porta gritou para dentro:

- Oh! senhora dona Angélica!

- Que temos? gritou de dentro a esposa de Gaspar.

- Queira vir até cá, respondeu o marido com voz macia.

- Não me faltava mais nada! venha cá você.

Gaspar fez um gesto de ameaça aos pequenos e foi ter com a mulher a que expôs o que acabava de ouvir.

- E que tem você com isso? disse-lhe a mulher. Se os pequenos gostam um do outro, fazem muito bem; e eu até estimo isso, porque já andava com idéias de os unir. Você veio atrapalhar tudo; ora vai, vai tranqüilizar os pequenos.

Gaspar engoliu dificilmente a pílula. Atravessou o corredor como se passasse pelas forças caudinas; e voltou à sala onde os namorados tremiam pelo desfecho da cena.

- O amor, meus filhos, disse ele, é uma coisa santa, se vocês se amam com seriedade, sou o primeiro a aprovar esse sentimento que nos eleva aos nossos próprios olhos; o que eu combato, e que todos os bons pais devem combater, é o namoro sem fim, o passatempo indigno de jovens bem formados. Quando eu e a respeitável dona Angélica (aqui levantou muito a voz) nos amamos foi...

- Deixe-se de estar contando essas coisas aos pequenos, clamou de dentro a senhora dona Angélica.

- Foi seriamente, continuou Gaspar em voz baixa.

Tudo favorecia os amores de João das Mercês; mas ele não contava com o destino.

André das Mercês, pai do nosso João, arrependeu-se um dia de ter posto o filho fora de casa, e foi ter com  a irmã para obter a volta de João das Mercês. Dona Angélica opôs-se vivamente à saída do sobrinho. Disse francamente ao irmão que o seu projeto era insensato; que, já que tinha praticado um erro, devia agüentar com todas as conseqüências dele.

André era tão esturrado como a irmã; respondeu-lhe rispidamente; ela insistiu; insistiu; e depois de uma longa discussão em que ambos mostraram toda a solidez da respectiva língua, saiu André disposto a proceder violentamente.

Em caminho refletiu que não era conveniente dar um escândalo, e que podia alcançar tudo por bons modos.

- Talvez ela hoje estivesse de mau humor, pensou ele.

Encontrou o cunhado e expôs-lhe a questão.

- Meu amigo, disse-lhe Gaspar, eu aprovo o procedimento de minha mulher, sem deixar de aprovar as suas louváveis intenções.

- Louváveis, tem razão, acudiu André; o que eu quero é receber meu filho em casa. Assiste-me o direito...

- Não contesto.

- A mana está teimosa; mas se você intervier, pode ser que eu consiga alguma coisa...

- Acha então que eu...

- Sem dúvida, venha comigo.

- Vamos.  Minha mulher atende muito ao que eu digo. Com duas palavras minhas estou que arranjarei tudo. O caso é que o senhor não estrague tudo com as suas insistências...  Deixe-me falar só.

- Estou por tudo; eu não desejo brigar com ela.

- Está visto. O que se quer é fazer-lhe ouvir a razão.  Sabe o que são senhoras; caprichosas, intolerantes; mas deixe-me, eu farei tudo... Espere-me aqui um bocadinho, que eu vou ali à esquina comprar rapé, que tenho a caixa vazia.

- Eu vou também.

- Não; deixe-me ir só; o homem não gosta de vender rapé à vista de gente. São três minutos.

Gaspar voltou a esquina e meteu-se em um  corredor. André, depois de passear perto de um quarto de hora, foi à esquina e perguntou no armarinho pelo cunhado.

- Aqui só veio um preto comprar uma vela de cera, respondeu o caixeiro.

André ficou furioso, mas compreendeu tudo. Sabia que a irmã dominava o marido, mas não calculava que chegasse a tanto.

Resolveu, portanto, fazer as coisas por si.

No dia seguinte apareceu em casa de Angélica (não ouso dizer em casa de Gaspar) e de novo insistiu na entrega do pequeno; a missão não teve nenhum efeito. André resolveu ir esperar à porta do arsenal de guerra que o pequeno saísse e deitar-lhe a mão em cima.

João das Mercês não escapou ao laço.

Nesse mesmo dia foi morar para casa do pai, com ordem de não sair nem para o emprego nem para casa da tia.

Imaginem o furor de dona Angélica e a dor de Marianinha.  Gaspar fez cem projetos de vingança, sem que a mulher lhe aceitasse nenhum.

Separado da jovem namorada, João das Mercês ficou entregue ao mais profundo desespero. Correram os meses sem que se avistassem  os dois. Ao cabo de um ano, André arranjou para o filho um emprego, e foi a primeira vez que o mísero pôde pisar a rua. Seu primeiro cuidado foi ir à casa da tia.

Achou-se na sala toda a família e mais um rapaz de casaca e luvas brancas.  Marianinha empalideceu um pouco, mas logo lhe passou essa manifestação de remorso.  Remorso digo, porque o sujeito de luvas brancas e casaca, como o leitor há de ter percebido, vinha pedir a moça em casamento.

Dona Angélica acabava um discurso acerca dos deveres do casamento e do amor das mães aos filhos, discurso que Gaspar ouvia com aprovação de cabeça, e o noivo com abrimentos de boca.

João das Mercês não resistiu à dor. Saiu furioso acusando os céus e a terra das suas desgraças. Complicaram-se estas com a morte do pai. João das Mercês ficou no mundo sozinho.  Era preciso trabalhar; o rapaz entrou a trabalhar como um mouro.

Houve entretanto não sei que pretendente ao lugar dele; parece que o pretendente tinha jus ao lugar, porque um dia de manhã o chefe da repartição mandou chamar João das Mercês e deu-lhe a triste notícia de que estava demitido.

Nessa triste posição esteve João das Mercês uns quinze dias que foi quanto lhe durou o resto do ordenado. Ao fim desse tempo não tinha que comer.  O estômago é engenhoso e tem boa memória  João lembrou-se que havia em uma casa de pasto do seu conhecimento, um caixeiro a quem emprestara dez mil réis em ocasião em  que se achava desempregado. Comeu para lá.

O caixeiro conheceu o credor, e acudiu a servi-lo. João das Mercês pediu alguma coisa para almoçar, e fingindo ler a lista declarou ao caixeiro que não tinha dinheiro naquela ocasião.

O caixeiro era bom  rapaz e não deixou de o servir. Foi pelo mesmo teor o jantar e a ceia. No dia seguinte não havendo outra vela no horizonte culinário, João das Mercês recorreu ainda ao caixeiro, que não deixou de lhe fiar o comer; mas pensando que a penúria de João das Mercês era temporária, limitou-se a afiançar ao dono da casa a capacidade do freguês.

Ao fim de duas semanas, quando João das Mercês se assentava para comer o seu décimo quinto almoço, o dono da casa foi-lhe levar uma conta que fez empalidecer o pobre rapaz.

- Amanhã lhe pago isto, respondeu ele pondo a conta no bolso, e com  tanta confiança que parecia estar à espera de algum legado.  Ignora-se como comeu ele no dia seguinte e nos outros. Um mês depois achamo-lo empregado em  copiar certidões e outros papéis em casa de um tabelião. Era ativo no trabalho e sério no procedimento; infelizmente o tabelião padecia de moléstias que o enchiam de mau humor certas manhãs, mormente se comia em véspera carne cozida. Um dia em que o tabelião entrou no cartório afinadíssimo, João das Mercês teve a desgraça de copiar mal um papel. O tabelião revoltou-se contra o escrevente, e mandou fazer outra cópia, a qual, não saindo capaz, levou o tabelião às nuvens.  Por desgraça, João das Mercês abalroou na mesa e entornou-lhe o tinteiro sobre uma procuração.

Foi demitido.

Tentou João das Mercês entrar no comércio, e alcançou ser admitido como sócio de indústria em um armarinho.  O armarinho era afreguesado e João das Mercês julgou ter enfim dado o último golpe no caiporismo.  Daí a um ano reconheceu que andava iludido com a aparente vitória.

O caiporismo é a hidra de Lema.

O sócio disse-lhe um dia de manhã que ia buscar um primo em Sapopemba e partiu acompanhado de uma pequena mala.

João das Mercês ficou em casa só.

Mas os dias correram sem que o sócio voltasse; até que João fosse surpreendido com  uma letra de quinhentos mil réis.  Recorreu à burra e não achou vintém. Deu parte à policia; mas nem por isso escapou da correção.

Foi solto depois de um laborioso processo em que ficou provada a sua completa inocência. Os credores tomaram conta dos bens, e João das Mercês ficou no meio da rua com  as algibeiras vazias e nenhuma esperança de melhora.

Não tinha as algibeiras vazias de todo; depois de as revolver muito achou seis mil réis.

- Que tempo me durará isto? perguntou ele a si mesmo.  Nem três dias; é preciso comer e dormir. Acabado este dinheiro estou como antes. Que farei?

Aqui teve uma dessas inspirações que salvam impérios.

- Gasto dez tostões em alguma coisa, e com os cinco mil réis de resto compro um quarto de loteria.

Já sabemos que ele tinha esta mania que lhe deixara uma das sete amas.

Assim fez.

Depois de comer tranqüilamente um almoço sucinto e modesto, encaminhou-se para a rua da Quitanda e comprou o bilhete.

- 1441, disse ele, bom número; tenho fé.

Tinha uma esperança mas não tinha jantar nem cama. Felizmente a roda corria no dia seguinte. João das Mercês entrou a passear pelas ruas, disposto a sofrer filosoficamente a fome e o mais na esperança dos vinte contos.

Casualmente encontrou o tio Gaspar.

- Como estás? perguntou-lhe o tio.

- Bom.

- Já te livraste do processo?

- Já.

- Tão depressa?

- Acha que foi depressa?

- Sim, estas coisas costumam a ser mais longas. Eu quis fazer alguma coisa por ti; mas tua tia que é uma senhora de muito bem pensar, disse: "- Era bom ir socorrer o Joãozinho; mas o crime é tão feio que não é bom a gente meter-se nisto; que pensas tu Gaspar?" "- Que hei de pensar mulher?  Penso que o rapaz é inocente e que foi atraiçoado; mas as aparências enganam... e nesse caso é minha vontade que não nos metamos nisto".

- Faz bem.

- Onde estás agora?

- Aqui na rua.

- Mas qual é o teu emprego?

- Passear.

- Que dizes?

- A verdade.

Gaspar que não era mau homem, ficou penalizado com a situação do sobrinho. Quis fazer alguma coisa por ele; mas não ousava.

- Já comeste?

- Hoje comi; amanhã não sei.

- Olha, disse Gaspar com um belo movimento de generosidade, toma lá; eu fui agora mesmo receber um dinheiro; toma dez mil réis.

João das Mercês aceitou os dez mil réis e abraçou o tio.

- Bem! disse ele, a sorte começa a ceder.  Já tenho com que dormir hoje e comer amanhã.

Era não contar com o caiporismo e dona Angélica. Esta senhora pediu ao marido contas do dinheiro que fora cobrar. Gaspar contou-lhe francamente o estado em que achara João das Mercês e o procedimento que tivera. Dona Angélica irritou-se contra o marido e o sobrinho e exigiu a imediata entrega do dinheiro. Por honra dela, devo dizer que a sua intenção era simplesmente mortificar o marido.  Mas este, acostumado a obedecer-lhe, tomou à letra a ordem e saiu desesperado em busca de alguém que lhe emprestasse dez mil reis.

Esse alguém foi o sobrinho.

João das Mercês viu de longe o tio e aproximou-se dele. Achou-o triste e taciturno, perguntou-lhe o que tinha.

- Nada, disse Gaspar.

- Alguma coisa tem meu tio; vamos diga o que é.

Gaspar não disse palavra.

Então lembrou-se João das Mercês do domínio que a tia exercia no ânimo do marido, e calculou que a tristeza de Gaspar se prendesse ao generoso presente dos dez mil réis.

- Qual! disse Gaspar, quando João das Mercês lhe comunicou a suspeita; Angélica não era capaz de semelhante coisa; estima-te e respeita-te. A verdadeira causa de minha tristeza é que esse dinheiro não era meu, e eu dei-te os dez mil réis por engano.

João das Mercês entregou o dinheiro ao tio.

Gaspar sentiu-lhe borbulhar-lhe uma lágrima nos olhos.  Apertou a mão ao sobrinho e foi para casa. Entrava triunfante com os dez mil réis, quando dona Angélica franzindo o sobrolho, perguntou-lhe de onde os houvera. Gaspar confessou-lhe a verdade.

- Que! exclamou a esposa; pois tu tiveste ânimo de ir tirar estes pobres dez mil réis ao rapaz que nem comer tinha?

- Mas tu...

- Eu, o que? Eu disse aquilo por dizer. Vai, vai entregar este dinheiro ao pobre rapaz.

- Onde o encontrarei agora?

Gaspar saiu e não achou o sobrinho. Às ave-marias voltou para casa, mas receando que a mulher lhe revistasse as algibeiras, coisa que nunca deixava de fazer todas as noites, tratou de gastar os dez mil réis como pôde.

João das Mercês passou a noite na rua; no dia seguinte almoçou com um outro companheiro do cartório; e à hora do costume foi para a Misericórdia ver correr a roda.

- Tenho um pressentimento, disse ele consigo, de que hoje venço o destino.

Chegou; dez minutos depois o n.1441 era aclamado como tendo obtido os vinte contos de réis.

João das Mercês desmaiou.

Deram-lhe os prontos socorros. Tornou a si, apalpou as algibeiras; e achou o abençoado bilhete.

Graças a este recurso inesperado foi à antiga casa de pasto, cuja dívida estava paga, e apresentou o bilhete.

- Tenho aqui a sorte grande; dê-me de jantar que eu depois de amanhã lhe satisfaço a conta do que for.

Foi prontamente obedecido.  Jantou como um príncipe. No fim pediu ao caixeiro conhecido, sempre sobre a base do bilhete, alguns charutos que só tinham o defeito de não serem de Havana; no mais não prestavam para nada.

Mas naquela situação tudo o que se fuma é bom. Qualquer homem fumará alegremente couro de boi, se tiver a certeza de que no dia seguinte lhe metem na algibeira vinte contos de réis.

Acabava ele de acender um charuto, quando um sujeito que lhe ficara fronteiro, e tinha ouvido a conversa com o dono da casa, lhe disse com familiaridade:

- Com que então tirou a sorte grande?

- É verdade, respondeu João das Mercês, com a indiscrição de um homem feliz após tantas desgraças. Tirei a sorte grande e ainda estou admirado disso.

- Por que? disse o sujeito, levantando-se com  a xícara de café na mão e indo assentar-se à mesa do rapaz.

- Porque fui sempre muito caipora. Nunca comprei bilhete que me saísse sequer o mesmo dinheiro. Desta vez porém acertei..

- Homem, eu também fui sempre caipora. Joguei dois anos com o mesmo número e nunca tirei mais de 40$000.  Um dia porém, saiu o diabo detrás da porta e caiu-me a bicha em casa.

- Sim? Quando foi isso?

- Foi há seis meses.

- Um quarto ou bilhete inteiro?

- Meio bilhete.  Recebi dez contos.

- Talvez não precisasse deles...

- Quase que lhe posso dizer isso. Graças a Deus ajuda que não viessem os dez contos, tinha com que passar.  Acontece-lhe o mesmo?

- Infelizmente não, disse João das Mercês seduzido com a maneira e a confiança do interlocutor.

- Mais uma razão para que eu o felicite.

O desconhecido apertou a mão a João das Mercês e ofereceu-lhe um charuto.

- Estes charutos daqui não prestam, tome este. João das Mercês acendeu o charuto depois de pôr o seu fora, e reclinou-se sobre a mesa a conversar com o desconhecido.

Ao fim de uma hora saíram de braço dado. O desconhecido disse chamar-se Viana; João das Mercês deu também o seu nome.  Saíram como dois amigos velhos. Passearam todo o tempo; Viana levou a benevolência ao ponto de o convidar a tomar um sorvete no Carceller.

Perto da noite, disse Viana para João das Mercês.

- Vou levá-lo até à sua casa.

João das Mercês fez uma careta.

- Isso agora há de ser mais difícil, disse ele depois de alguns instantes.

- Por que?

- Porque...

- Seja franco.

- Pois bem, meu caro, eu não tenho casa!

- Não tem casa?

João das Mercês contou fielmente ao amigo a sua posição.  Viana ouviu a narração com visíveis sinais de simpatia.

- Pois se isto o não incomoda nem ofende, ofereço-lhe por hoje um hospício.  Amanhã já não será preciso porque receberá o dinheiro.

- Aceito.

Dirigiram-se para a rua da Misericórdia.  Viana morava ali em um primeiro andar mobiliado com algum asseio.

- A casa não está arranjada, disse ele, mas é porque eu mais me entendo com a desordem que com  a ordem.

- Está excelente, disse João das Mercês. Ah! meu caro senhor Viana, creio que sou agora verdadeiramente feliz. No dia em que me entra o dinheiro pela porta, entra-me um amigo pelo coração. Pela porta é metáfora, acrescentou ele rindo.

Viana apertou-lhe a mão comovido.

- Tive um amigo da sua idade; era a mesma alma franca e aberta aos sentimentos generosos; permita-me a ilusão de que o encontrei agora.

- Espero que não seja ilusão, exclamou João das Mercês.

Conversaram  até alta noite. A uma hora João das Mercês disse que estava com sono.

- Eu também, disse Viana. Vamos dormir. Tenho sempre esta outra cama pronta para o que der e vier.  Olhe, gosto de acordar cedo.

- Homem, nestas alturas não se me dera acordar mais tarde, respondeu João das Mercês que, como sabemos, adquirira de uma das suas amas o modo de dormir demais.

- É que eu tenho de sair cedo, para levar um papel à estrada de ferro.  Às nove horas estarei de volta.

- A minha madrugada será às nove horas.

- Veja já se perdeu o bilhete.

- Nada, cá está no bolso do colete.

Dormiram.

No dia seguinte, seriam onze horas quando João das Mercês abriu os olhos.  Viana ainda não tinha voltado. O rapaz costumava estar na cama acordado ainda um quarto de hora. Ao fim desse tempo levantou-se, lavou-se e vestiu-se.

Não tendo relógio não sabia que horas eram. O sol estava encoberto. João das Mercês chegou à janela a ver se via o dono da casa.

Não viu ninguém.

Pouco depois deram os sinos meio-dia.

- Meio-dia, disse ele. Onde estará este homem.

Começou a sentir fome e a arrepelar-se com a demora, quando instintivamente levou a mão ao bolso do colete.

Não achou o bilhete!.

- Roubado! exclamou ele com desespero.

Chegou à janela, gritou, acudiu gente à porta que o deram por maluco.  Do segundo andar desceram algumas pessoas, e depois de ouvirem as queixas do mísero rapaz, foram chamar a autoridade.

Quando o rapaz conseguiu achar-se na rua eram já duas horas. Seu primeiro pensamento foi ir à casa de loteria.

Correu para lá.

Ó desgraça! todos os quartos da sorte grande estavam pagos. Deu os sinais de Viana e eram os mesmos de um sujeito que lá fora cobrar um quarto.

Não se pode descrever o desespero de João das Mercês. Faltava-lhe aquele golpe mais terrível que todos, o de ter a fortuna na mão e senti-la voar como um pássaro esquivo.

Não hesitou; a idéia de morrer entrou-lhe na cabeça como uma solução às suas desgraças.

No fundo do bolso ainda achou um cartão de barca. Dirigiu-se à ponte e tomou passagem para S. Domingos.

No meio da viagem, aproveitou o descuido das pessoas que se achavam perto dele e atirou-se ao mar.

Houve logo a bordo o reboliço que um caso destes produz. A barca parou e a bordo se empregaram todos os esforços para salvar o infeliz.

João das Mercês veio à tona d'água quando lhe atiraram uma corda; ele repeliu-a com energia.

Seu pensamento era morrer.

Não contava com o caiporismo.

Os esforços empregados em favor de uma criatura que não queria nada da vida, foram coroados de sucesso, João das Mercês foi salvo.

Passado esse triste acontecimento, João das Mercês dispôs a lutar violentamente com a sorte; pareceu-lhe esta sorrir.  Alcançou o rapaz um emprego que lhe dera com que viver pobremente.

Alugou uma casinha na Cidade Nova, e assim passou alguns meses.

Uni dia reparou que havia defronte uma velha que não deixava de sorrir quando ele entrava ou saía de casa.  João das Mercês cumprimentava-a cortesmente, mas não julgava que o riso fosse com ele.

A casa da velha era a melhor casa da rua, e a moradora passava por ser rica.

Quando João das Mercês descobriu que o riso era com ele, começou a prestar maior atenção à vizinha. Esta redobrou de demonstrações e seria enfadonho contar aqui miudamente os acontecimentos que se deram depois. Basta saber que João das Mercês entrou a freqüentar a casa da vizinha, e esta declarou-lhe francamente o amor que o moço lhe havia inspirado.

Não devendo esperar que a própria velha oferecesse aquilo que era um favor para ele, João das Mercês exclamou um dia:

- E se nós nos casássemos?

- Essa é a minha intenção, disse Margarida, se acha que eu o posso fazer feliz.

- Oh! mais que feliz!

A velha linha duzentos contos.

Era mais que a sorte grande.

Marcou-se o dia do casamento, correram os pretões, João das Mercês mandou fazer a roupa nova e convidou Gaspar para ser padrinho.

- Sem dúvida, meu rapaz, respondeu o tio, mas quem é a madrinha?

- Eu tinha-me lembrado de minha tia.

- Conta com ela; vou agora mesmo avisá-la.

Margarida não cabia em si de contente; dizia que apesar da idade que tinha, sentia em si mais amor do que nunca tivera ao defunto marido.

João das Mercês disse a mesma coisa.  Amara muitas vezes, mas nunca com tanta força.

- Sei o que é, acrescentava ele, é que eu amei sempre a umas deslambidas sem gravidade nem as graças que só se podem ter em certa idade.

Margarida não tinha parente nenhum com exceção de um primo remoto, que fez todos os esforços para impedir o casamento, e que nada tendo alcançado, resolvera aceitar o convite para ser padrinho, não podendo brigar com a parenta rica.

Raiou enfim a véspera do casamento.

Por conselho da noiva, João das Mercês tinha desistido do emprego, aliás com repugnância, porque não queria parecer que ia viver às sopas da mulher.  A coisa era isso mesmo, mas ele não queria a aparência da coisa.

Terníssimos foram os adeuses dos noivos na véspera do casamento. João das Mercês já tinha fechado a porta, e Margarida ainda acenava com o lenço.

Alta noite foi João das Mercês acordado por violentas pancadas na porta.  Levantou-se sobressaltado e foi ver o que era.

Era um escravo de Margarida.

Vinha dizer que a senhora estava mal; e que o mandava chamar.

A primeira frase de dor do rapaz foi toda egoísta:

- Ah! meu caiporismo! exclamou ele enfiando as calças. Margarida estava realmente às portas da morte.

Quis ver o noivo; este chegou; ela apertou-lhe a mão com ternura.

Depois chamando o primo declarou que desejava fazer o seu testamento, mas ainda não tinha acabado de falar que expirou.

João das Mercês teve um ataque.

Quando voltou a si, o pobre rapaz lembrou-se outra vez de morrer. Mas tantos sucessos lhe tinham embotado a energia.

Nunca raiou dia de felicidade para este infeliz. Tem sido sucessivamente agente de procurador, copista de advogado, porteiro de teatro, vendedor de bilhetes de loteria, negociante de charutos, sempre perseguido pela fatalidade.

Ele mesmo diz com resignação evangélica:

- Sou o rei dos caiporas!

 


Literatura - Contos e Crônicas segunda, 21 de março de 2022

GIGOLÔ (CONTO DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

GIGOLÔ

Humberto de Campos

 

 

 

Na pequena mesa redonda, em que havia lugar para três, D. Georgina comentava com a liberdade das suas maneiras, o capítulo de uma revista parisiense sobre um termo de criação recente, que tem, já, uma aplicação universal.

 

— Eu não sei, nem compreendo, afinal, a prevenção contra esse vocábulo.

 

— Que vocábulo, minha senhora? — inquiri, intrigado.

 

— Que vocábulo? O "gigolô", masculino de "gigolete", que toda a gente emprega, hoje, nos salões, nas festas, nos passeios, nos cinemas, sem o menor constrangimento. Uma das minhas amigas, Madame Perez, tem uma cadelazinha a que deu o nome de "Gigolete", e chama-a por essa forma, em qualquer parte, sem o menor escândalo dos que a ouvem. As moças, hoje, andam à "gigolete", vestem-se à "gigolete", fantasiam-se de "gigolete" no Carnaval, e dizem-no sem rebuços, sem temores, sem que se engasguem com a aspereza da expressão. Não se pode, entretanto, falar em "gigolô", nem, mesmo, entre íntimos, sem que haja uma estranheza, um arrepio em todas as almas, principalmente nas que se dizem limpas de pecado. Por que essa diferença, essa disparidade, essa prevenção?

 

Eu olhei o Dr. Moraes, esposo da ilustre senhora, e, como o visse impassível, dirigi-me à mulher:

 

— E que é "gigolô", D. Georgina?

 

— O senhor, então, não sabe, conselheiro? Não sabe, mesmo?

 

E como lesse a ignorância estampada na minha fisionomia, explicou, virando-se para mim:

 

— "Gigolô" é o indivíduo adorado por uma mulher que tem outro homem que a ama, e que ela sustenta, à custa do último. Geralmente moço, o "gigolô" é tratado pela mulher que o adora com todos os requintes da paixão. Para ele são os seus melhores beijos, os seus melhores mimos, os seus maiores cuidados. O marido, ou o amante, ordinariamente idoso, fornece-lhe tudo, cercando-a de conforto, de luxo, de abundância, à custa, às vezes, dos maiores sacrifícios. Ela passa, entretanto, tudo isso ao "gigolô", que é, enfim, o único a lucrar com os amores e com o trabalho do outro.


Literatura - Contos e Crônicas sábado, 19 de março de 2022

QUESTÕES DE MARIDOS (CONTO DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

QUESTÕES DE MARIDOS

Machado de Assis

 

 

 

— O subjetivo... o subjetivo... Tudo através do subjetivo, — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.

 

Era um sestro. Outro sestro era sacar de uma gaveta dois maços de cartas para demonstrar a proposição. Cada maço pertencia a uma de duas sobrinhas, já falecidas. A destinatária das cartas era a tia delas, mulher do professor, senhora de sessenta e tantos anos, e asmática. Esta circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso; mas isto mesmo lhes mostrará que o caso é verídico.

 

Luísa e Marcelina eram os nomes das sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as deixou crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A primeira casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo dia. Uma e outra eram bonitas, ambas pobres.

 

— Coisa extraordinária! disse o professor à mulher um dia.

 

— Que é?

 

— Recebi duas cartas, uma do Candinho, outra do Soares, pedindo... pedindo o quê?

 

— Diga.

 

— Pedindo a Luísa...

 

— Os dois?

 

— E a Marcelina.

 

— Ah!

 

Este ah! traduzido literalmente, queria dizer: — já desconfiava isso mesmo. O extraordinário para o velho professor era que o pedido de ambos fosse feito na mesma ocasião. Mostrou ele as cartas à mulher, que as leu, e aprovou a escolha. Candinho pedia a Luísa, Soares a Marcelina. Eram ambos moços, e pareciam gostar muito delas.

 

As sobrinhas, quando o tio lhes comunicou o pedido, já estavam com os olhos baixos; não simularam espanto, porque elas mesmas é que tinham dado autorização aos namorados. Não é preciso dizer que ambas declararam aceitar os noivos; nem que o professor, à noite, escovou toda a sua retórica para responder conveniente aos dois candidatos.

 

Outra coisa que não digo, — mas é por não saber absolutamente, — é o que se passou entre as duas irmãs, uma vez recolhidas naquela noite. Por alguns leves cochichos, pode crer-se que ambas se davam por bem-aventuradas, propunham planos de vida, falavam deles, e, às vezes não diziam nada, deixando-se estar com as mãos presas e os olhos no chão. É que realmente gostavam dos noivos, e eles delas, e o casamento vinha coroar as suas ambições.

 

Casaram-se. O professor visitou-as no fim de oito dias, e achou-as felizes. Felizes, ou mais ou menos se passaram os primeiros meses. Um dia, o professor teve de ir viver em Nova Friburgo, e as sobrinhas ficaram na corte, onde os maridos eram empregados. No fim de algumas semanas de estada em Nova Friburgo, eis a carta que a mulher do professor recebeu de Luísa:

 

Titia,

 

Estimo que a senhora tenha passado bem, em companhia do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho agora anda com muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que ele esteja mais desembaraçado iremos vê-los.

 

Eu continuo feliz; Candinho é um anjo, um anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a peça. Muito engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de vê-la também.

 

Até breve, escreva-me, lembranças a titio, minhas e do Candinho.

 

Luísa.

 

Marcelina não escreveu logo, mas dez ou doze dias depois. A carta dizia assim:

 

Titia,

 

Não lhe escrevi há mais tempo, por andar com atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir que me mande notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder, creia que irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida. Até breve.

 

Marcelina.

 

— Vejam, comentava o professor; vejam a diferença das duas cartas. A de Marcelina com esta expressão: — estou muito aborrecida; e nenhuma palavra do Soares. Minha mulher não reparou na diferença, mas eu notei-a, e disse-lha, ela entendeu aludir a isso na resposta, e perguntou-lhe como é que uma moça, casada de meses, podia ter aborrecimentos. A resposta foi esta:

 

Titia,

 

Recebi a sua carta, e estimo que não tenha alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade.

 

Pergunta-me por que é que uma moça, casada de fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha aborrecimentos? Escrevi que estava aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento ou outro deixar de estar alegre?

 

É verdade que esses momentos meus são compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim, ficaria admirada. Mas enfim Deus é grande...

 

Marcelina.

 

— Naturalmente, a minha velha ficou desconfiada. Havia alguma coisa, algum mistério, maus-tratos, ciúmes, qualquer coisa. Escreveu-lhe pedindo que dissesse tudo, em particular, que a carta dela não seria mostrada a ninguém. Marcelina animada pela promessa, escreveu o seguinte:

 

Titia,

 

Gastei todo o dia a pensar na sua carta, sem saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só porque a senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar.

 

É verdade, titia, padeço muito, muito; não imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe causo aborrecimento.

 

Nos primeiros oito dias ainda as coisas foram bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir que ele não correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme, vivendo de mim e para mim. Ao contrário, parece outro, inteiramente outro, caprichoso, intolerante, gelado, pirracento, e não ficarei admirada se me disserem que ele ama a outra. Tudo é possível, por minha desgraça...

 

É isto que queria ouvir? Pois aí tem. Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do coração.

 

Marcelina.

 

— Ao mesmo tempo que esta carta chegava às mãos da minha velha, continuou o professor, recebia ela esta outra de Luísa:

 

Titia,

 

Há muitos dias que ando com vontade de escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de ser sem falta, embora a carta saia pequena.

 

Já lhe disse que continuo a ter uma vida muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando vê a minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo a ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah! titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los. Escreva-me.

 

Luísa.

 

E o professor, empunhando as cartas lidas, continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia tão desgraçada.

 

— Consultou-me se devia indagar mais alguma coisa de Marcelina, e até se conviria descer por causa dela; respondi-lhe que não, que esperássemos; podiam ser arrufos de pequena monta. Passaram-se três semanas sem cartas. Um dia a minha velha recebeu duas, uma de Luísa, outra de Marcelina; correu primeiro à de Marcelina.

 

Titia,

 

Ouvi dizer que tinham passado mal estes últimos dias. Será verdade? Se for verdade ou não, mande-me dizer. Nós vamos bem, ou como Deus é servido. Não repare na tinta apagada; é de minhas lágrimas.

 

Marcelina.

 

A outra carta era longa; mas eis aqui o trecho final. Depois de contar um espetáculo no Teatro Lírico, Luísa dizia assim:

 

... Em suma, titia, foi uma noite cheia, principalmente por estar ao lado do meu querido Candinho, que é cada vez mais angélico. Não imagina, não imagina. Diga-me: o titio foi assim também quando era moço? Agora, depois de velho, sei que é do mesmo gênero. Adeus, e até breve, para irmos ao teatro juntas.

 

Luísa.

 

— As cartas continuaram a subir, sem alteração de nota, que era a mesma para ambas. Uma feliz, outra desgraçada. Nós afinal já estávamos acostumados com a situação. De certo tempo em diante, houve mesmo de parte de Marcelina uma ou outra diminuição de queixas; não que ela se desse por feliz ou satisfeita com a sorte; mas resignava-se, às vezes, e não insistia muito. As crises amiudavam-se, e as queixas tornavam ao que eram.

 

O professor leu ainda muitas cartas das duas irmãs. Todas confirmavam as primeiras; as duas últimas eram, principalmente, características. Sendo longas, não é possível transcrevê-las; mas vai o trecho principal. O de Luísa era este:

 

... O meu Candinho continua a fazer-me feliz, muito feliz. Nunca houve marido igual na terra, titio; não houve, nem haverá; digo isto porque é a verdade pura.

 

O de Marcelina era este:

 

... Paciência; o que me consola é que meu filho ou filha, se viver, será a minha consolação: nada mais...

 

— E então? perguntaram as pessoas que escutavam o professor.

 

— Então, quê?... O subjetivo... O subjetivo...

 

— Explique-se.

 

— Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...


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