Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas quarta, 15 de junho de 2022

O DEFUNTO (CONTO DO CEARENSE THOMAZ LOPES)

O DEFUNTO

Thomaz Lopes

 

Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e parece-lhe então que estava morto.

 

Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! Que dolorosa e lenta agonia

 

De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.

 

E sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!

 

Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do "cadáver" que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?

 

E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! Que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.

 

- Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão! - Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos; - oh! Essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja

 

E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado' numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo, - e sente uma a uma ensanguentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!

 

Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria..

 

Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.

 

Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se, - assim como uma cidade que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.

 

Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.

 

Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. - E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha, mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos, - nem viv'alma! Apenas sombras. Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: - Marcha! Marcha! - As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão. Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva - o defunto caminhava.

 

De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma ideia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. - Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo - e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contato, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam. No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. - Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se "ele" ali estava oculto contemplando a felicidade do outro "ele"! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! Se ele pudesse, também seguir-lhes o voo!... Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra - e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... - Mas ele era cadáver e na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos... Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! Que deliciosa alegria! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo - coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte...

 

Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.

 

* * *

 

Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.

 

Pensou, então, no seu sonho - e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.

 

Longas horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia infinita! Ah! Como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...

 

* * *

 

Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol - único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.

 

Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! Quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro - longo como um deserto; a noite inteira - vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber

 

Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!

 

O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! Mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentara! A fome que ela fizera crescer! - E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as - e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago crispado pela fome.

 

Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.

 

Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita - e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...


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