Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas terça, 05 de julho de 2022

ANGÚSTIA DO VIÚVO (CONTO DO PARANAENSE DALTON TREVISAN)

ANGÚSTIA DO VIÚVO

Dalton Trevisan

 

Ele acorda tosse e resmunga: “Essa bronquite”. Ainda na cama, dedo trêmulo, acende o primeiro cigarro e o segundo enquanto faz a barba. Espirra com o chuveiro frio. Bebe o café preto servido por dona Angelina, sai sem ver os filhos adormecidos. São sete horas e entra no emprego às oito. A rotina de preencher fichas e calcular percentagens.

 

Volta para o almoço, os filhos já estão no colégio. De tarde, a copiar faturas. Engole cafezinho bem quente — uma de suas predas — sem queimar a língua. Sanduíche e copo de leite. Esconde-se da chuva na biblioteca pública ou vai ao cinema. Às dez horas, sobe no ônibus, o jornal dobrado no bolso. Caminha três quarteirões até a casa silenciosa, apenas uma luz na varanda.

 

Dona Angelina dorme em sossego; não precisa vir tirar-lhe o sapato e deitá-lo vestido. Já não é s o bêbedo que rola na valeta. No escuro, atravessa o corredor e a sala, acende a luz da cozinha. Pendura o paletó na cadeira. Prende a gravata na cinta para não respingá-la.

 

O jantar está no armário com tela: um prato fundo coberto por outro raso. Coloca-o na mesa nua e, antes de sentar-se, guarda de volta no armário o prato raso umedecido pelo vapor. Come tudo, não acha gosto e abusada pimenta. Deita o café na caneca. Engole-o frio, um resto de pó no fundo. Dispõe na pia o prato e a caneca, abre a torneira e enche-os de água.

 

Mais um cigarro e, com a lima no chaveiro, limpa as unhas amarelas: consome duas carteiras por dia. Encaminha-se ao banheiro, escova os dentes e bate com a escova três vezes na beira da pia. Observa-se no espelho, rancoroso. Exibe a língua, os dentes manchados de nicotina:

 

— Dia de ficar bêbedo.

 

Já não bebe, mas repete em voz alta o desafio. Com a morte da esposa, entregou os filhos à dona Angelina e, por cinco meses, morou só na casa, sem acender o fogo nem arrumar a cama. Abandonou o emprego, não visitava as crianças. Dona Angelina ignorava se ainda estava vivo. Dormia embriagado todas as noites, não no quarto de casal, mas no paiol da lenha. Trazia um embrulho de pastéis, que mastigava entre goles de cachaça; estavam frios e úmidos de gordura, o que era indiferente, pois não lhes encontrava sabor.

 

— Hoje é dia de ficar bêbedo — anunciava a si mesmo. — Vou olhar para as telhas...

 

E olhava: as velhas telhas encardidas e cobertas de teias. Quando chovia, despregavam-se as aranhas de ventres peludos. A cabeça debaixo do lençol, mordendo os dedos, ele tremia de pavor. Certa vez a caixa d’água transbordou, inundando a casa, e os vizinhos deram o alarma.

 

Dona Angelina veio providenciar o conserto e, ao ver no colchão os buracos de brasa de cigarro, arrastou com ela o filho, que se deixou ir, cansado demais para discutir. Fechou-se no antigo quarto de solteiro, olhou- se muito tempo ao espelho, a princípio curioso, depois aborrecido e, enfim, com náusea. Naquela hora, sem ao menos pensar que era uma decisão, deixou de beber.

 

Agora, passado um ano, apagada a luz do banheiro, dirige-se no escuro ao seu quarto. Detém-se um instante na sala e escuta: o ronco estertoroso da velha encobre a respiração dos filhos. O menor dorme com dona Angelina, a menina na cama de grades. Bem que ela o preveniu:

 

— Está perdendo a festa da vida. Os filhos é que...

 

Embora a porta aberta, ele se afasta sem voltar o rosto: uma gaiola o amor dos filhos, dourada quem sabe. Você não fura o olho do passarinho para que ele cante mais doce? Outro cigarro enquanto se despe. Dispõe a roupa na cadeira; bem cedo a mãe vem apanhá-la, escova e passa a ferro — o único temo. Ninguém diria que é o mesmo, não fora um buraco de cigarro na manga. Domingo ele próprio capricha no vinco da calça preta.

 

Afofa os dois travesseiros para ler o jornal, nunca mais abriu um livro. Uma vez por semana, com repugnância e método, entrega-se ao prazer solitário — o mísero consolo do viúvo. Afinal vem o sono, aninha-se nas cobertas e dorme, o eterno grilo debaixo da janela. Ali na sala, ao pé do caixão, espanta a mosca no rosto da falecida. Os outros dão-lhe as costas:

 

— Olhe bem para a sua vítima. Você que a matou.

 

Finou-se de leucemia, que a família atribuiu aos beijos do vampiro sem alma. As lágrimas secando na face, espera a manhã. Encolhido, tosse e resmunga: “essa bronquite...” Dedo trêmulo, acende o primeiro cigarro ainda na cama e o segundo enquanto faz a barba. Chuveiro frio. Sai sem ver os filhos. Na rotina de preencher fichas e calcular percentagem, debaixo das telhas, espiam-no as aranhas de ventre cabeludo.


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