Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas sábado, 06 de novembro de 2021

NO MAR (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

NO MAR

Raul Pompéia

 

 

 

I

 

Em volta de nós alargava-se um círculo d'água contornado pelo horizonte.

Era o Atlântico.

A noute caíra, uma noute esplêndida. O céu, recamado de cetim azul, cavava-se no alto, profundo e luminoso. Umas estrelas, de luz mortiça apareciam cintilando como cabeças de alfinete de prata e a lua desfigurada e enorme pela refração saía do oriente.

Havia oito dias que estávamos no mar, e cada noute fora para mim um espetáculo incomparável; nenhuma, porém, como a última. A pureza da atmosfera, o sossego das ondas, a tranqüilidade de bordo e o luar casavam-se tanto com o bem-estar de espírito em que me achava que eu me sentia impregnado de romantismo.

Estava sentado na coberta do vapor, sobre um caixão, que tinha (lembro-me ainda) as iniciais C.R. borradas com tinta preta. Levantei-me e me acerquei da amurada.

Firmei no parapeito os cotovelos e pus-me a olhar e a meditar. Por um tapete deslumbrante desenrolado por cima d'água, vinham até o vapor os raios de um luar branco delicioso.

Comecei a ver nesse tapete uns rostos conhecidos, digo, uns semblantes que havia gravados no meu coração. Eram as minhas recordações.

Reconhecia minha mãe, reconhecia meu pai, reconhecia meus irmãos.

Pensei neles e refleti que, dentro de uma semana, estaria eu na Europa, longe, longe dos seus carinhos. Entristeci-me. Súbito, porém, como que senti no cérebro uma chuva de estrelas; principiei a distinguir em meio da noute as grandezas que eu ia encontrar no velho mundo, tão novo para mim. O Brasil e a Europa apresentavam-se distintos na esfera das minhas reflexões. De uma parte, um hemisfério escuro, mergulhado na sombria tristeza da saudade; de outra, um hemisfério radioso iluminado pela minha sede do desconhecido.

O tempo que levei nessas cismas não sei. Fato é que, ao despertar-me delas, vi a lua elevada bastante e o isolamento em torno de mim. Os passageiros, que por ali andavam passeando ao luar, se tinham recolhido; um ou outro marinheiro necessário às manobras mostrava-se, neste ou naquele ponto, como uma sombra...

Ouvi, então, um suspiro abafado.

Cousa esquisita! Um suspiro ali pertinho, um suspiro que me pareceu escapado a um peito amante e a uns lábios formosos de moça poética...

Voltei-me para ver quem era.

A uns oito passos de mim, estava alguém, encostado à amurada como eu e olhando para o mar como eu estivera. Sonhei logo mil romances. O luar clareava um rosto de mulher, não deixando contudo ver-lhe a beleza. Do corpo, pouca cousa aparecia, oculto como se achava na sombra da amurada. Dirigi-me para a suspiradora.

Ela não mostrou perceber o meu movimento. Possível me foi examiná-la.

Era uma linda jovem de dezesseis anos presumíveis. Tinha uns olhos grandes, encantadores, voltados para o mar e uma pequenina mão encostada ao veludo rosado da face.

Trajava de azul, pareceu-me.

Lembrei-me de que, nas minhas cismas, não se me afigurava um rosto como o dessa visão, desse anjo.

É que meu coração não fora ainda penetrado pelas ternuras do amor e eu me habituara no Brasil a ver, nas mulheres, mulheres. Entretanto, naquela que ali estava eu via um anjo.

Esse anjo voltou os olhos para mim.

Vi de frente o mais belo rosto de menina que pudera idealizar.

Tinha cabelos castanhos e a tez entre o moreno e o alvo, isto é, da cor mais simpática do mundo.

O anjo sorriu-me furtivamente...

Eu vira aquela mulher uma única vez a bordo. Fora no dia seguinte ao do nosso embarque. Notara-lhe a beleza simplesmente. Desta vez, entretanto, um interesse excepcional levava-me para ela.

Sorri-me ao seu sorriso.

A linda criança envergonhou-se. Baixou o rosto. Eu estendi o braço e tomei-lhe a cintura. Ela não se ofendeu.

- Como se chama o senhor? perguntou com a voz comprida, balbuciante.

- Júlio, disse eu... E a senhora?

- Júlia, disse-me ela.

Oh! que não sei como referir ao leitor a doçura que me derramou no peito esta coincidência.

Júlia gozou também, com isso. Senti-lhe o braço redondo apertado pela manga do vestido cingir-me o pescoço com força. O meu corpo e o dela estavam achegados um do outro. As palpitações do meu coração encontravam-se com as palpitações do seu coração.

Saboreei num instante todas as alegrias de um amante feliz; e perante a presença da lua, como um namorado da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa Júlia um beijo... demoradamente...

Mais um aperto de mão e separei-me do meu anjo...

 

II

 

Dous longos dias se passaram, sem que eu tornasse a ver a minha Júlia, o meu primeiro amor...

Comecei a ter remorsos de não haver perguntado à mocinha quem eram seus pais, quem era ela, dizendo-lhe quem era eu também. Não quis informar-me para não despertar suspeitas. Resolvi esperar.

Debalde porém, postei-me à noute no lugar da minha entrevista.

Júlia não voltou.

Na terceira noute depois do momento mais feliz que tive na minha viagem, vi um homem dirigir-se para mim. Um marinheiro.

Vinha sério e como que tímido.

Cumprimentou-me, cumprimentei-o.

Eu estava à proa do vapor, vendo as ondas passearem à luz do luar, que continuava admirável como na noute de meu beijo. Era tarde.

- Sr. Júlio, disse o marujo, chamando-me pelo meu nome, sem querer, eu o vi, noutro dia, beijar uma moça... Queira acompanhar-me... vai ver uma cousa interessante talvez para o senhor...

Fui com o marinheiro para o tombadilho.

- Fique aqui e espere, mandou ele, indicando a entrada do beliche de um meu amigo de bordo... solteiro e folião...

Mal acabara o homem de falar, vi sair do beliche uma mulher...

Júlia!

O marinheiro olhava-me com um ar compadecido. Juro que tive ímpetos de dar uma bofetada neste homem de bem.

 

III

 

Momentos depois, pensa o leitor que estava eu resolvido a suicidar-me?...

Dei uma gargalhada.


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