O PORCO
Humberto de Campos
A terra estava ainda mole do Dilúvio, mas começavam a rebentar, já, aqui e ali, as sementes das plantas resistentes. E como já houvesse, no solo libertado das águas alimento bastante para a bicharia salva da inundação, resolveu Noé, naquela manhã de grande sol e de grandes ventos, abrir as portas da arca, encalhada na areia.
— Primeiro os veados, — ordenou o Patriarca.
Jafet correu à proa da embarcação, espantou um casal de gamos que devorava uns restos de palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em disparada, estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.
— Agora, os leões.
Cham instigou, cauteloso, um leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a claridade intensa do sol, e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando com força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.
E assim foram saindo, dois a dois, os camelos, os cavalos, as zebras, as girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os castores, os cães, as águias, os milhafres, as cotovias, tudo, em suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra ou do ar.
Deserta a Arca, notou Noé, ao passar-lhe revista, que, no lugar em que estivera o elefante, ficara, empestando o ambiente, um monte de imundice, de lama pútrida, que repugnava.
— Sem? Cham? Jafet? — gritou o velho, chamando os filhos.
Os rapazes acudiram, tapando o nariz.
— Tirem daqui esta indignidade, — ordenou.
Os futuros construtores de Babel entreolharam-se, horripilados com aquela incumbência nauseante. E iam principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o pai, compreendendo-lhes o escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe acudido uma ideia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:
— Move-te!
A montanha de imundice estremeceu por si mesma, ergueu-se acima do soalho alguns centímetros, suspensa por quatro pés invisíveis.
O Patriarca estendeu os braços e, novamente, determinou:
— Retira-te!
O monte de lama podre partiu correndo, buscando misturar-se com a lama que ficara das águas.
Tinha nascido o porco.