Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Literatura - Contos e Crônicas terça, 03 de agosto de 2021

CORRESPONDÊNCIAS ÍNTIMAS - I (CONTO DO FLUMINENSE RAUL POMPÉIA)

CORRESPONDÊNCIAS ÍNTIMAS - I

Raul Pompéia

Meu caro X

 

Estou casado!

Com certeza não acreditas. Casar-se é aposentar-se, casar-se é acorrentar-se. Pois eu, o teu amigo Z, o mais ativo empregado dos negócios da pândega, o mais ardente camarada da vida de liberdades, renunciei heroicamente a todas as pompas do Satanaz, que, tu não ignoras, tanto aprecio e... aposentei-me, acorrentei-me, casei-me!...

Refreia por momentos a tua impaciência, que saberás em pouco como foi que me resolvi, ou melhor, que me resolveram a tomar no mundo uma posição tão definida e, por isso mesmo, tão incômoda.

E a minha é duplamente incômoda. Imagina. Eu sou quem sou... Tenho de passar a ser quem não sou. Não será fácil, bem sabes. A menina não traz dinheiro... E pretende ser, entretanto, assim uma espécie de princesa de Golconda.

E eu que me agüente no balanço, quer dizer, no casamento.

Felizmente, parece não ser ciumenta a minha metade.

É porque a pobrezinha deposita em mim uma confiança cega. Também é o que faltava... Ciumenta, sem dinheiro... Abóboras!...

Tu ainda não te casaste, meu feliz X... Eu, a cavalo no minguante prateado da minha lua-de-mel, estou aqui, do meu céu estrelado, a invejar-te a sorte. Imagina o que não é o casamento... O casamento, digo mal, o casamento, sem dinheiro.

O dinheiro é um bálsamo dourado que cura tudo, até as feridas domésticas. Os laços de Himeneu feitos de ouro são elásticos bastantes para não manietarem um gênio como o que possuo. O teu Z, com uma esposinha rica continuaria a ser o teu Z só com algumas dívidas de menos. Eu dar-lhe-ia até licença de ter ciúmes. Sim; que o ciúme das moças ricas raras vezes é profundo.

As meninas ricas aprenderam nos romances a arte de ser esposa. Sabem ter o coração no peito, como uma flor na jarra. Dispõem dele à vontade e são felizes. Podem dá-lo ao marido no começo. Depois, com o tempo, libertam-no e o deixam voar, tão solto que nem Cupido no Olimpo. A vida do lar deve ser então um bosque divino, verdejante, respirando chilros de passarinho e murmúrios alegres. A mulher não tem ciúmes, o marido não tem peias. Um paraíso.

Mas falte o dinheiro...

E este é o meu caso...

A minha pequena não tem ciúmes; mas eu prevejo que as há de ter. Não sei o que será...

Por minha parte, não estou contente. O meu casamento pegou-me pela gola... Não admito.

Olha, meu caro X, talvez haja no tálamo uma coisa a sorrir-te sedutora: a lua-de-mel. Não te iludas, menino. A lua-de-mel é uma mentira inventada por um poeta que tinha filhas casadeiras.

No firmamento nupcial só há uma noite de plenilúnio. A minha lua-de-mel, que apenas começou, já está acabada... ora avalia... com uma esposa sem... dinheiro!

Adiciona a tudo isso o gosto que tem minha mulher de andar garridamente enfeitada, não esqueças que não passo de um quartanista que tem mesada fornecida pelo velho, proprietário de um pequeno sítio, e terás feito uma idéia de quão risonho é o futuro do meu lar...

Queres que diga tudo?... Ainda não fiz chegar ao meu velho a notícia!...

Tenho resmungado bastante. Agora vê a causa do meu cavaco.

 

A fim de tornar menos cínica a existência acadêmica, é costume, aqui, em São Paulo, entre a rapaziada fogosa levar a efeito certas empresas que não são verdadeiramente perigosas, é certo, mas erriçadas de pequenas dificuldades, em porção bastante para dar-lhes toda a graça.

São, por exemplo, as correrias noturnas pelos quintais da vizinhança, à cata de galinhas.

Isto é uma pândega que faz rir a perder. O furto, geralmente coroado pelo mais brilhante êxito, é reservado para banquetes, que lembram a decadência de Roma. Às vezes, convida-se a vítima, e ela comparece a tomar parte, a fartar-se num regalório que corre todo por sua conta.

Sou amigo declarado destas gatunagens que valem tão saborosas gargalhadas e tão belos serões de república.

Por isso, há coisa de um mês, estávamos, eu e mais três rapagões sacudidos, por uma noite de garoa espessa, saltando o muro que separa o quintal da república de um dos meus companheiros e o quintal de um vizinho. Este vizinho é um velho gordo e baixote que usa óculos e não usa barbas, vivendo dos interesses possíveis de uma loja de fazendas da rua de São Bento. Vai todas as manhãs para a cidade e volta à noite para sua residência da Consolação. O Sr. Campos mora numa boa casa e trata a família com largueza. Tem uma linda filha e excelentes galinhas. A filha é uma menina de dezesseis anos, róseas cores de paulista, dentes um tanto estragados de paulista também. Veste-se bem e melhor namora. Uma mezinha de truz. Há cinco meses, quando mudei-me para defronte da casa dela, a menina sorriu-me. De então para cá, este sorriso fez progresso. Começou-se a dizer pela cidade, que eu e a mezinha Campos éramos namorados.

As galinhas são esplêndidas.

Raça francesa, gordas, convidativas. Habitam um galinheiro bem gradeado de sarrafos e encostado ao muro que dá para a república donde partia a nossa expedição.

Não tivemos, pois, muito que fazer para nos vermos meio das sedutoras aves. As galinhas dormiam num quartinho, onde reinava um forte cheiro de estrume e muita escuridão. Barafustamos ousadamente, acendendo uma vela. A gente do poleiro bradou: alerta! Foi um cacarejo assustador... Arrebentávamos de rir.

De repente, ouvimos gradar lá fora:

- Quem está aí?...

Deviam ser duas da madrugada. Hora de sono. Entretanto, era evidente que tínhamos sido pressentidos.

Sauve qui peut!

A vela apagou-se. Os meus companheiros sumiram-se. Senti que trancavam por fora a porta que nos dera entrada e a mesma voz que pouco antes tínhamos ouvido:

- Fique trancado, que eu vou chamar meu senhor.

E fiquei eu com as galinhas.

Procurei, então, os meus camaradas de pândega, tateando nas trevas. Os meus dedos, só encontravam penas. Dei por fim um encontrão no poleiro de taquaras, fazendo que muitas aves caíssem gritando e batendo ruidosamente as asas. Algumas roçaram-me pelo rosto...

E nada de achar os companheiros. Os patifes me haviam abandonado!

Avalia, meu caro X, quanto me custava de arrependimentos a tal patuscada. Ia simplesmente passar por uma vergonha atroz. Apanhado como ladrão de galinhas pelo pai da namorada! A mezinha o que diria de tudo?...

Devia escapar-me! Escapar-me a todo o preço!

Dei uma volta pelo quartinho apalpando as paredes com essa energia angustiosa do prisioneiro que imagina que o deus ex machina dos condenados lhe vai rasgar uma saída através da muralha do cárcere.

Nada achei. As paredes eram inflexíveis como um tirano.

Até que afinal senti sob a pressão dos dedos alguma coisa que parecia tábua. Verifiquei. Estava em uma porta. Fiz força para abri-la. A porta cedeu dificultosamente, como se estivesse calçada. Consegui apenas fazer uma estreita abertura.

Em camisa e ceroulas, como me achava, coberto apenas por um prussiano de viagem, não tive dificuldade, insinuando-me como um gato naquela abertura. Passei.

 

Além da porta só havia escuro. Não saíra eu, portanto, por onde entrara. Em todo o caso, não me achava mais naquele cubículo infecto, donde me ia tirar o ridículo de uma família inteira.

Caminhei atrevidamente. Sempre na treva e sempre em frente. Levava-me a aventura.

Em certo momento, os meus cuidadosos passos pisaram um soalho. Ao mesmo tempo, percebi que falavam no galinheiro.

Eu acabava de entrar na casa do meu vizinho Campos. Não te posso explicar bem como o fiz. Naturalmente um feliz desencontro me entregara às portas de um corredor que por dentro levava ao galinheiro, das quais uma fora deixada aberta pelos meus perseguidores que me haviam querido cortar a retirada por fora... e a outra se achava simplesmente escorada.

O fato é que internei-me pela casa... Comprometia-me furiosamente; mas era possível que encontrasse uma porta ou uma janela por onde me esgueirasse para a rua.

Fui entrando... Não te conto as cabeçadas que dei, nem os móveis que pus fora do lugar. Não te falo da maneira porque palpitava-me o coração, ao passo que eu me perdia numa casa onde nunca entrara, ouvindo atrás de mim vozes ameaçadoras. Foi uma via dolorosa em que caí mais de três vezes e só achei o cireneu do meu medo...

Esbarrei de encontro a um obstáculo insuperável!

Era uma porta envidraçada, com umas cortinas sobre o vidro. Tentei abrir o trinco. O trinco abriu mas a porta não se moveu: estava fechada à chave!...

Entretanto, ressoavam dentro da casa os passos dos meus perseguidores. Distingui mesmo certa claridade de vela.

Não perdi esperanças.

Parecia-me estar em uma alcova. Acariciavam-se o olfato umas sensações agradáveis de perfumes de toilette.

Um relâmpago mal definido varou-me o cérebro.

- Parece que ele entrou aqui... dizia uma pessoa que julguei ser o meu vizinho Campos.

Iam entrar no aposento, onde eu me achava... Já não era possível fugir! Restava-me, porém, o recurso de me ocultar em qualquer parte. Dei dois passos e achei uma cama de amplos cortinados. Agachei-me rapidamente e entrei para baixo da cama. Pela hora presente, julguei-me salvo.

Acima de minha cabeça estalitavam, de vez em quando, as tábuas do leito, como se aí houvesse alguém a mexer-se. Ouvia-se ainda a respiração calma e ciciante de um ressonar tranqüilo.

Não tive grande tempo para perguntar-me quem ressonava ali sobre mim, naquela alcova de perfumes...

Uma voz de mulher, que devia ser a esposa do Sr. Campos, gritou de repente:

- Meu Deus do céu! o ladrão entrou ao quarto de Inez! Vejam que a porta não estava assim!...

E eu do meu esconderijo vi todos se precipitarem no quarto, onde eu viera parar.

 

Era chegado o momento de desesperar. Resolvi fazer rendição.

Antes que me puxassem para fora eu abandonei o esconderijo.

Não te posso, amigo X, dar uma idéia da cena que seguiu-se. Houve primeiro um desapontamento acabrunhador.

- Sr. Dr. Z! exclamaram em coro o meu vizinho Campos, sua mulher e um escravo.

Foi um grito estranho, impossível, que me apunhalou de vergonha.

Depois, aproximou-se de mim, com um ar solene e um robusto cacete na mão direita, o respeitável dono da casa.

- Como ousou o senhor penetrar na alcova de minha filha? disse com a voz trêmula e o gesto ameaçador.

Achei um pouco teatral a atitude do homem, mas afinal de contas ele tinha razão.

- O senhor que não tem vergonha de se apresentar aqui nesses trajos, acaba de comprometer gravemente a honra daquela pobre criança...

Olhei para o leito, debaixo do qual me havia escondido.

Através do cortinado entreaberto, via-se, em meio de brancos lençóis, a elevação de umas formas e um lindo busto de carne, meio afundado numa almofada macia.

Era a minha Inez.

Juro-te que nunca me pareceu mais sedutora.

- Pois bem, continuava, com ares de juiz, o pai da menina, se o senhor não se apressar em livrá-la da suspeita que vai deixar sobre a sua pureza, o senhor não passa de um miserável...

Ora, bem sabes, prezado X, que eu não sou um miserável. Além disso já me estava aborrecendo a duração da aventura.

- Faço o que quiser, disse.

- Case-se com a minha filha.

- Caso-me.

 

E me casei, isto é, aposentei-me, acorrentei-me. E o meu digno sogro não me falou em dotes.

Adeus. E põe de molho as tuas barbas que estão a arder as do teu sincero amigo.

 


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