O SONÂMBULO
Humberto de Campos
A noite estava escura, fria, gelada, com a chuva a despencar, lá fora, os cafezais amadurecidos, quando o caboclo bateu, com a mão tiritante, à porta do casebre.
— Quem é? — indagou, de dentro, uma voz masculina, demonstrando na tonalidade o aborrecimento por aquele incomodo fora de horas.
— Sou eu! — respondeu, de fora, o viandante, o Praxedes Ferreira, antigo tocador de gado em São José do Paraíso.
Aberto um palmo da porta, o recém-chegado explicou-se. Ia de caminho para o Poço Fundo, e, surpreendido pelo chuveirão daquela tarde, pedia permissão para pernoitar no rancho, uma vez que não havia por ali, naquelas quatro léguas mais próximas, um lugar em que se acoitasse.
— Só se for no telheiro da cozinha; mas esse chove, como no meio do tempo. Serve? — observou, de má vontade, o colono Eleutério, dono do lugar e da casa.
— Serve! — concordou o Praxedes.
O colono fechou de novo a portinhola da frente, e ia atirar-se na esteira espichada no único compartimento do casebre, quando a mulher, que já ali estava encolhida, indagou, curiosa:
— Quem é, Lotério?
— Sei lá! É um camarada que vai de viaje. Mandei ele p'r'o telheiro. Tá lá.
— Coitadinho! — gemeu a rapariga. — Com essa chuva!...
E após um momento:
— Por que você não manda o "coitado" aqui p'ra dentro? A esteira é grande, cabe os três. Você fica no meio.
O Eleutério imaginou o que estaria sofrendo, lá fora, o desgraçado, levantou-se, abriu a porta que dava para o velho telheiro alfinetado de chuva, e chamou:
— Ó amigo?
— Hôi? — acudiu o outro.
— Entre p'ra cá. Se deite aqui na esteira, com a gente.
O caboclo entrou, embrulhado num velho capote que tirara do saco, e atirou-se no lugar que lhe foi indicado, separado da rapariga pelo corpo forte, atlético, vigoroso, do dono da casa. Estirou-se, embrulhou-se, e estava para dormir, quando, de repente, como quem se esqueceu de alguma coisa, bate no braço do Eleutério, avisando:
— É verdade, eu me esqueci de lhe dizer; eu tenho um sono muito doído, com uns sonho de home doente; dou pulo, salto, rolo no chão, faço o diabo. Por isso, não se incomode não, se eu, sonhando, passá por cima do sinhô.
— Você é assim? — indagou o colono, descobrindo o rosto.
— É verdade! — confirmou o outro.
— Então, é tal qual como eu. Tem vez que eu sonho que estou agarrado com um cabra doido, da minha qualidade, e quando acordo, tou no meio da casa, em pé, de faca na mão. É um perigo!
O caboclo ouviu a ameaça, pensou, meditou, ruminou, e, após um instante, propôs:
— Vamo, então, fazê uma coisa?
— Que é?
— Vamo drumi sem sonhá?