Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 17 de março de 2017

A PIMENTA
 

Há décadas, o fogão de nossa casa, em Nova-Cruz, era “inglês” e à lenha. Fogão a gás era utopia. Dona Lia, minha saudosa mãe, comprava um caminhão de lenha seca, quando precisava, e aguardava que Mendonça, o lenhador, viesse cortá-la em pequenos toros. Era um dia inteiro de um trabalho braçal, muito árduo, com almoço e um pequeno intervalo.

Mendonça era um homem alto e corpulento. Uma vez por outra, ouvia-se um baque enorme, e íamos todos ver o que tinha acontecido. Encontrávamos Mendonça caído no quintal, perto da lenha, e se debatendo, com a boca espumando, num ataque de “epilepsia”. Era uma cena chocante. e minha mãe não permitia que ele continuasse o trabalho nesse dia. Às vezes, ele insistia, dizendo que estava bem, e depois de algumas horas, continuava o trabalho, sem qualquer complicação. Era um homem forte e tinha a força de um animal. Era calado e quando falava, demonstrava ser um homem que tinha muita fé em Deus.

Certo dia, Dona Lia pediu-lhe para substituir umas telhas quebradas, no telhado da nossa casa. Mendonça providenciou uma escada e foi fazer o serviço, levando as telhas novas. Depois de alguns minutos, desceu a escada, chamando alto pela patroa.

O homem tremia mais do que vara verde! Quase não podia falar, de tão nervoso. Dona Lia, que era muito destemida, perguntou:

– O que aconteceu, Mendonça? Porque você está tremendo deste jeito?

Gaguejando e muito trêmulo, Mendonça falou:

– Dona Lia, pela caridade!!! -Em cima da casa da senhora, tem um “CATIMBÓ”!!! Virgem Maria! Não gosto nem de falar nisso!!!

Minha mãe, que não acreditava em “CATIMBÓ” nem FEITIÇARIA, deu uma risada e procurou acalmar o lenhador:

– Mendonça, o poder de Deus é maior do que tudo isso! “CATIMBÓ” não existe! Quer saber de uma coisa? Vá buscar o “CATIMBÓ”, que eu quero ver!

O homem, desesperado, quase chorando, implorou a Dona Lia que não quisesse, nem ao menos, ver o “CATIMBÓ”. Mas ela insistiu e ele subiu a escada novamente, para pegar o “trabalho feito”, que estava em cima da casa.

A nossa expectativa foi grande, até que Mendonça desceu novamente a escada, trazendo o “CATIMBÓ”. Era uma pequena trouxa, amarrada com um terço velho.

Minha mãe ordenou que ele desmanchasse o nó e abrisse o “CATIMBÓ”. Trêmulo, o homem sentou-se num batente do quintal e obedeceu à patroa. Desamarrou a trouxinha, que continha areia, pimenta malagueta e três terços quebrados. Mendonça, quase sem poder falar, garantiu que aquela areia era do cemitério. Propôs a Dona Lia jogar querosene no “CATIMBÓ” e tocar fogo.

A patroa, que era muito corajosa e espirituosa, mandou que Mendonça retirasse de dentro da trouxinha as pimentas malaguetas e as lavasse muito bem lavadas, pois iria usá-las para fazer um molho. O resto da trouxinha, ele podia jogar no lixo.

Mendonça, contrariado, lavou as pimentas com água da cisterna e pôs em uma vasilha que lhe foi entregue por Dona Lia. Minha mãe tornou a lavá-las, agora com água e sabão. Depois de tudo, colocou as pimentas em um vidro, com vinagre e azeite de oliva.

Estava feito um molho, para quem tivesse coragem de usar…

Dona Lia detestava molho de pimenta…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 10 de março de 2017

PACIÊNCIA DE JÓ
 

Há vários anos, quando o melhor cardiologista de Natal, Dr. Hellen Costa, ainda clinicava, o seu consultório no Edifício 21 de Março, na Cidade Alta, era lotado. Eu sempre levava minha saudosa mãe a ele, para tratar do seu coração. As consultas eram muito demoradas, pois o Dr. Hellen se dava ao trabalho de fazer, ele mesmo, o eletrocardiograma do paciente, e de ouvir todas as queixas e problemas existenciais que lhe eram contados. Tive oportunidade de presenciar cenas hilárias de pacientes hipocondríacas, que tomavam o tempo todo do médico e quando já iam saindo do consultório, voltavam para tirar alguma dúvida.

Certa vez, uma senhora idosa, depois de uma hora de consulta, já na porta, perguntou ao Dr. Hellen, em voz estridente:

– Dr. “Reles”, eu posso tomar água de coco? Eu soube que está havendo uma epidemia de cólera aqui em Natal. `Será que água de coco provoca cólera?

Muito paciente, o médico respondeu:

– Dona Severa, se alguém tiver feito uso indevido do coco, antes do coco criar água, com certeza a senhora vai contrair cólera! Caso contrário, não tem perigo da senhora pegar essa doença!!! Mas para a senhora ficar mais tranquila, não beba água de coco!!!

A paciente saiu satisfeita e decidida a não tomar mais água de coco. Meia hora depois, voltou muito nervosa, insistindo com a atendente para falar novamente com Dr. Hellen, pois tinha esquecido de lhe fazer uma pergunta. A moça avisou ao médico, e ele mandou que dona Severa entrasse. A porta ficou aberta e as pessoas que esperavam sua vez ouviram a voz estridente da mulher:

– Dr. “Reles” (ela não acertava dizer o nome do médico), eu como muito tomate. Será que comendo muito tomate, eu vou ter cólera?!!!

E Dr. Hellen, com a paciência de Jó, perguntou:

– Dona Severa, a senhora gosta muito de tomate?

A mulher respondeu:

– Gosto demais, Dr. “Reles”!

E o cardiologista falou:

– Pois a senhora pode continuar comendo tomate, dona Severa! Tomate não provoca cólera!

A paciente saiu muito satisfeita.

Em outra ocasião, presenciei a chegada de outra paciente de Dr. Hellen Costa, com consulta marcada pela primeira vez, visivelmente nervosa. Depois de preencher sua ficha e dizer à atendente que seu nome era Zulmira da Silva, sentou-se para aguardar o atendimento. Imediatamente, puxou conversa comigo, e dentro de dez minutos me contou sua vida. Fiquei sabendo que ela tinha sido casada com um alto funcionário público estadual, mas, ainda jovem, tinha se apaixonado pelo Chefe da Banda de Música da Marinha, que também se apaixonou por ela. O marido descobriu e a abandonou, sem processo de desquite ou divórcio. O cornudo, com desgosto dos chifres que levou, enfiou a cara na cachaça e, dois anos depois, morreu de cirrose hepática. Depois de vários anos de vida em comum, o Chefe da Banda de Música arranjara, recentemente, uma namorada bem mais moça do que ela. Essa era a causa do seu nervosismo.

Chegou a vez de Dona Zulmira, e ela entrou na sala do grande cardiologista, para se consultar. Muito perturbada, abriu as torrentes da alma e lhe contou todos os conflitos existenciais por que estava passando. Repetiu para o médico a história que tinha me contado na sala de espera. Falou do seu casamento, da sua infidelidade, da sua paixão pelo Chefe da Banda de Música, e da morte do marido, de quem nunca havia se separado legalmente. Sua conversa com voz alterada pôde ser ouvida por todos os pacientes que aguardavam atendimento.

Disse que o cornudo morreu e ela ficou recebendo uma polpuda pensão. Mas agora estava sendo castigada, e pagando com juros e correção monetária o que fez com ele. Mesmo ela sendo cheia do dinheiro, o Chefe da Banda de Música da Marinha arranjara outra mulher, bonita e jovem. Sua vida, atualmente, estava um inferno. E haja depressão e pressão alta. Confessou ao médico que havia se arrependido do que fez, mas não podia mais dar jeito.

Como diz o ditado popular: “Agora é tarde; a Inês é morta!”

No consultório, contando sua história, a mulher falava tão alto, que da sala de espera se ouvia tudo. Essa consulta durou mais de uma hora. Dr. Hellen Costa prescreveu a medicação necessária e, finalmente, abriu a porta para que a paciente saísse. Exibindo o contra-cheque na mão, a mulher perguntou em voz alta:

– Diga, Dr. “Reles”, se eu, com um contra-cheque alto desse, mereço ser traída?!!!

Calmamente, Dr. Hellen respondeu:

– Claro que não, Dona Zulmira! Esse Chefe da Banda de Música é um salafrário! A senhora não merece ser traída!!! Vá com Deus e a Virgem Maria!!!

O querido Dr. Hellen Costa, atualmente com 90 anos, além de um grande cardiologista, é um ser humano maravilhoso, dono de um grande coração e de uma paciência de Jó.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 03 de março de 2017

ORANGO
 


Alice era empregada doméstica da casa do Sr. José Gadelha e esposa dona Lúcia. O casal nos vendeu a casa e logo nos mudamos para lá. Três dias depois, ouvi palmas no portão de manhã cedo, e dei de cara com uma moça se oferecendo para serviços domésticos. Ela se identificou, dizendo que, há um ano, era empregada do casal que nos vendeu a casa e que não estava gostando da nova morada. Queria voltar a trabalhar ali naquela casa, pois já estava acostumada com a localização. Coincidiu que eu estava precisando de alguém para trabalhar, e, por ter simpatizado com a moça, dei-lhe um crédito de confiança, admitindo-a sem qualquer informação. Décadas atrás, isso era normal. Ela demonstrou ser cozinheira de mão cheia e logo se adaptou à nossa rotina.

Nos primeiros dias, notei que era muito nervosa e gostava de falar sozinha, olhando para um pequeno retrato. Antes que eu perguntasse de quem era a foto, ela me contou que havia tido um filho, sem ser casada, e que para poder trabalhar, deixava a criança na casa de uma irmã, no Morro de Mãe Luíza. Um certo dia, ao voltar do trabalho, procurou o filho, já com nove meses, e a irmã respondeu que tinha dado a criança a um casal rico, ele, um “doutor engenheiro”, que tinha viajado para fora de Natal.

 


 

Antigamente, um caso desse ficava por isso mesmo, principalmente quando a vítima era pobre. Era o retrato da miséria humana. Desde esse dia, Alice passou a “sofrer dos nervos” e, sem saber o que fazer, teve que aceitar o ato criminoso da irmã, que deu o seu filho traiçoeiramente, coisa que ela, a mãe, jamais faria. No desespero de Alice, o único consolo que lhe restava era saber que seu filho iria ter conforto e estudo, o que jamais ela lhe poderia dar.

A tristeza que se apoderava dessa moça, de vez em quando, evoluiu para um quadro depressivo crônico. Tinha mania de doença. Ia ao INPS se consultar quase todos os dias. Uma hora, era uma dor no braço (bursite), outra hora na coluna; outra hora era gastrite, mas do que mais se queixava era de uma “agonia na cumeeira da cabeça”.

Entre os médicos com quem Alice se consultava, estava o Dr. Hélio Barbosa, que era Psiquiatra. Ele lhe receitava antidistônicos, para que essa “agonia na cumeeira da cabeça melhorasse”. Alice era totalmente hipocondríaca.

Pensando em dispor de mais tempo para suas idas ao INPS, passou a me pressionar, para que eu contratasse outra empregada para lhe ajudar. Depois de muita insistência, terminei admitindo uma colega sua. Só deu certo uma semana. Ela queria ser chamada de Dona Alice e que a moça a tratasse de “senhora”. As duas pegaram uma briga e se engalfinharam pelo chão, aos gritos, atraindo a atenção dos vizinhos. Quando cheguei do trabalho, a novata estava de malas prontas para ir embora. Achei ótimo, pois na nossa casa uma empregada era suficiente. Quinze dias depois, Alice me propôs novamente admitir outra empregada. Ameacei de despedi-la. Na mesma semana, por brincadeira, disse-lhe que tinha encomendado um orangotango adestrado, que fazia trabalhos domésticos, para lhe ajudar. Ela se entusiasmou e perguntou logo:

– Posso chamar esse macaco de Orango? Será que ele atende telefone? Só tomara que ele não seja arengueiro!!!

No dia seguinte, a rua toda ficou sabendo que iria chegar na nossa casa um orangotango para trabalhar com Alice. E os vizinhos me perguntaram se era verdade. A calçada se encheu de meninos da rua para perguntar quando o macaco iria chegar.

Eros, meu marido, brincando com Alice, disse-lhe que se preparasse para dar banho no orangotango uma vez por semana. Aí ela endoideceu!!! E assustada, disse:

– Seu Eros, macaco é um bicho enxerido! Meu irmão disse que um macaco do Amazonas “adeflorou” uma moça!!! Para dar banho nele, eu não tenho coragem!!!

Alice levou tão a sério a “compra” do orangotango, que eu fiquei assustada e resolvi dizer que tinha desistido do negócio. Ela já estava tão empolgada com a perspectiva de trabalhar com “Orango, que implorou para que eu o deixasse vir. Disse que não iria arengar com ele e já estava lhe querendo bem. E fez um último apelo:

– Dona Violante, pelo menos, vamos “expromentar”!!!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 24 de fevereiro de 2017

CARNAVAL DO "PEGA NA CHALEIRA"



“Iaiá me deixa subir esta ladeira…eu sou do bloco do pega na chaleira”…

Essa marchinha, do começo do século passado, ainda hoje faz sucesso e o tema é sempre atual. Os “chaleiras” ou “puxa-sacos” estão sempre presentes em todos os segmentos da sociedade, até mesmo nas Igrejas. No interior, antigamente, havia carolas que chaleiravam o Padre, tornando-se quase governantas da Casa Paroquial. Tomavam conta das batinas, calças, camisas e até das cuecas do vigário, além de manterem o controle de horários das missas e arrumação do Altar da celebração. Elas se apossavam da privacidade do Padre, e ficavam por dentro de todos os seus passos. Eram intoleráveis e dificultavam o seu entrosamento com o povo da cidade.

Em escolas e outras repartições públicas, a figura do (da) chaleira também sempre esteve presente. Dedurava os colegas, fazia fofocas e babava o chefe, querendo fazer dele um amigo íntimo. Mas a falsidade era logo percebida, quando chefe era uma pessoa decente.

 

 

O termo chaleirar tem sua história registrada no folclore político brasileiro.

Dizem os memorialistas literários que o termo surgiu motivado pelo chimarrão, tomado todas as tardes pelo ex-Senador gaúcho, José Gomes Pinheiro Machado, nascido em 1852 e assassinado no Rio de Janeiro em 1915.

Esse homem fora a grande força política brasileira, no começo do século passado. Morava na Ladeira da Graça, no Rio de Janeiro, de difícil acesso. Mesmo assim, isso não impedia que os políticos bajuladores fossem todas as tardes visitá-lo e lhe beijar a mão.

O ex-Senador sentava-se em volta de uma pequena fogueira, sobre a qual era posta uma belíssima chaleira de prata, onde a água para o chimarrão era mantida em ebulição. De cuia na mão e canudo no bico, o ex-Senador puxava o seu chimarrão, paparicado pelos bajuladores. Essa chaleira era disputada por eles, que queriam, todos ao mesmo tempo, servir o chimarrão ao “todo-poderoso”. Uma vez por outra, algum deles, na ânsia de pegar primeiro na alça da chaleira, pegava no bico, recebendo todo o bafo quente que dali saía. A história se espalhou e esses políticos bajuladores, que viviam com os dedos queimados, passaram a ser chamados de chaleiras. Esse vocábulo passou a ser sinônimo de puxa-saco e bajulador.

Daí, surgiu a marchinha de carnaval, Pega na Chaleira, de autor desconhecido, com arranjo do Maestro Costa Júnior, que se assinava “Juca Storoni”, sucesso no carnaval de 1909.

 

Depois, surgiu “Cordão de Puxa-Saco”, marchinha de Frazão e Roberto Martins, gravada pelos Anjos do Inferno. Essa marchinha foi grande sucesso no carnaval de 1946, ficando definitivamente conhecido o tema do chaleirismo ou puxa-saquismo.

 

Na época atual, os (as) chaleiras ainda continuam inspirando os compositores de plantão, que, como Juca Chaves, não perdem tempo em compor sátiras e paródias, ridicularizando esses políticos sem escrúpulos, que vivem chaleirando os poderosos, tentando conseguir vantagens e favores.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 17 de fevereiro de 2017

O ANJO

Décadas atrás, macho e “feme” era o nome dado a pessoas portadoras de distúrbios genéticos, que nasciam com forte tendência a ser do sexo oposto. Era assim que se chamava a pessoa afeminada (ou efeminada), na pequena cidade de Nova-Cruz (RN). Essa anomalia era vista como doença congênita e crônica, e por isso os seus portadores eram respeitados. Atingia mais crianças do sexo masculino.

Os pais percebiam o problema desde a 1ª infância do filho ou filha, e a repressão de nada adiantava.

Na cidade, eram pouquíssimos os casos conhecidos dessa “doença”.

Morava em Nova Cruz (RN) um rapaz de nome José Teixeira, filho de uma viúva, pertencente a uma ramificação de tradicional família daquela cidade.

 

 

Dizem que, desde criança, sempre demonstrou tendência feminina nos gestos, preferindo os brinquedos das irmãs e desprezando carrinhos e bolas que os pais lhe davam para brincar. Cresceu assim, querendo brincar com bonecas, usar laços de fitas na cabeça e até vestir roupas das irmãs, cheias de rendas e babados. A mãe sofria para convencê-lo de que aquilo que ele queria não era para menino.

Dessa forma, tornou-se rapaz, passando a se dedicar às prendas domésticas. Revelou-se um verdadeiro artista, aprendendo a bordar, pintar, confeccionar flores e chapéus femininos ornamentados.

Com o passar do tempo, José Teixeira dedicou-se completamente à decoração de ambientes e preparação de festas, difundindo cada vez mais suas habilidades artísticas. Com elas, passou a ganhar dinheiro, ajudando no sustento da mãe, viúva pobre, e suas duas irmãs.

Era religioso, educado, e sabia respeitar as pessoas, sendo por isso também respeitado. Nenhuma festa acontecia na cidade, sem que estivessem presentes a sua arte e o seu bom gosto. O preparo de altares na Matriz da Imaculada Conceição, Padroeira da cidade, os andores para as procissões, festas de casamento, aniversários, enfim, quaisquer acontecimentos festivos contavam com a sua indispensável participação.

Tornou-se o decorador oficial da cidade, nos eventos públicos ou privados, inclusive nas festas religiosas do final do ano, onde havia uma Quermesse para angariar fundos para a Igreja.

Eram frequentes os jantares, os saraus, os bailes, as procissões e novenas, como manifestações da realidade artística, religiosa e social da cidade. Em tudo, estava a presença marcante desse filho de Nova-Cruz.

Merece destaque o fato de José Teixeira nunca ter escondido sua tendência feminina, mantendo, entretanto, uma conduta discreta e digna. Vivia para o trabalho, e nunca se meteu em fofocas. Seu excelente círculo de amizade incluía moças, senhoras casadas, senhores e rapazes. Até o Padre da Paróquia de Nova-Cruz lhe fazia elogios publicamente, em agradecimento pelo seu trabalho de embelezador e colaborador das festas e procissões.

Nessa época remota, o distúrbio genético apresentado por José Teixeira era raro, e a cidade que o viu nascer o aceitava como era.

Sua presença tornou-se indispensável nas festas de aniversários, casamentos e bailes. Também ocupava lugar de honra na vida familiar da cidade, sendo sempre convidado para almoços e jantares, e ainda para padrinho de crianças. Tornou-se amigo e confidente de todos.

A cidade se desenvolveu e passou a ter mais festas, aumentando também o prestígio de José Teixeira. Era um verdadeiro “patrimônio” artístico de Nova-Cruz.

Surgiu o primeiro bloco de carnaval da cidade, tendo José Teixeira como organizador, decorador e figurinista. Esse bloco saía às ruas de Nova-Cruz no tríduo carnavalesco, “assaltando” as residências de pessoas da cidade, onde era recebido com bebidas e salgadinhos, à vontade.

As calçadas e ruas transformavam-se em salões de festa e a alegria era imensa.

O nosso Tio Paulo, uma figura inesquecível, era um dos maiores incentivadores do bloco, e o “assalto” à sua casa era indispensável! Irmão do nosso pai, Francisco, as casas eram vizinhas, e o “assalto” era aproveitado por nós, ainda crianças. Dançávamos no meio da rua, jogando confetes e serpentinas, presenteadas por ele, num clima de felicidade sem igual.

Tio Paulo distribuía lança-perfumes para os seus amigos, compradas em Natal, que eram usadas para perfumar o cangote das moças. E o cheiro se espalhava pelo ar. Não havia porre, loló nem brigas. O carnaval era só alegria e higiene mental.

O Rei Momo e a Rainha do Carnaval eram eleitos, uma semana antes, por uma comissão apontada por José Teixeira, da qual fazia parte.

José Teixeira confeccionava a alegoria, porta-estandartes e as fantasias para o carnaval.

Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Odaliscas (vem Odalisca do meu harém vem, vem vem… ) e Piratas eram as principais fantasias.

A tarde entrava pela noite, com trombones, tamborins e outros instrumentos, executando os mais belos e tradicionais frevos e marchinhas de carnaval. A cidade era calma e o povo todo era conhecido.

Não havia o carnaval sensual/sexual de hoje, e os seios e nádegas eram guardados com recato.

As marchinha e frevos não tinham maldade. Tinham beleza e poesia.

Podemos dizer que, em Nova-Cruz, foi José Teixeira quem inventou o carnaval, o bloco, a alegoria e o estandarte, quando a maldade não tinha nascido.

Assim era José Teixeira. Totalmente feminino, amado, respeitado, e aceito por todos, sem sofrer exclusão pelo seu modo involuntário de ser.

Para mim, ele era um Anjo. E Anjo não tem sexo…

Hoje, desapareceu a pureza. Os Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Odaliscas e Piratas se desnudaram. Restaram expostos, em abundância, seios, nádegas e tatuagens.

A modernidade nos deixou apenas o direito de nos fantasiarmos de PALHAÇOS!!!Palhaços das nossas ilusões!

Decepcionados, abafamos no peito a saudade dos velhos carnavais.

O cheiro de lança-perfumes sumiu! Roubaram as fantasias do nosso povo!

Roubaram o sorriso de felicidade, que existia nos rostos nos dias de carnaval.

Ó, abre alas, que eu quero passar!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 10 de fevereiro de 2017

LOUVADO SEJA

Há décadas, Louvado Seja era o apelido de um antigo pedinte de Nova- Cruz, portador de um distúrbio neurológico, que o impulsionava a andar correndo. Era como se alguém invisível o estivesse empurrando. Dava pequenas e constantes carreiras, em curtos intervalos. Não ficava parado um só instante, nas horas em que era visto a esmolar. Seu apelido foi motivado pela louvação que dizia a toda hora, inclusive antes de pedir uma esmola. Quando ele apontava no começo da nossa rua, Barão do Rio Branco, a meninada que brincava nas calçadas corria para casa, com medo. Esse pavor era provocado por comentários maldosos, espalhados pela cidade, de que Louvado Seja incorporava um espírito maligno, que o empurrava, para que corresse até sofrer uma queda fatal. Era como se alguém estivesse querendo, com ele, um acerto de contas. Diziam que eram coisas do demônio, e muita gente acreditava piamente nessa versão. Ao pedir uma esmola, a voz forte de Louvado Seja podia ser ouvida de longe:

“Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Uma esmola pelo amor de Deus”!

Recebia a esmola, repetia a louvação e era impulsionado a correr novamente. As crianças tinham pavor a ele, inclusive eu. Minha avó paterna, dona Júlia, nunca deixou de lhe dar uma esmola, nem tinha medo dele. Eu, que vivia muito com ela, em sua casa, vizinha à nossa, quando o avistava tremia de medo e entrava correndo. Arrodeava pelo quintal e ia à procura de minha mãe. Agarrava-me à sua saia, apavorada. Ela me abraçava e tentava me explicar que Louvado Seja não fazia mal a ninguém e que o problema dele era um doença.

 

 

Nova-Cruz, naquela época, era um atraso total. Morria-se à míngua, sem qualquer assistência médica.O deslocamento para Natal ou João Pessoa levava de cinco a seis horas. Isso, se o trem ou o ônibus não desse o “prego”. As estradas rodoviárias eram de barro e esburacadas, e no inverno, então, uma viagem dessa era um suplício. Uma verdadeira “odisseia”.

Nova-Cruz faz fronteira com a Paraíba. O progresso demorou muito a chegar até lá. A energia de Paulo Afonso só foi inaugurada em 1962, por esforço do então Governador Aluízio Alves. Água encanada, também demorou muito a chegar.

Minha saudosa mãe possuía um livro comprado em Natal, chamado “Medicina do Lar”, que, entre diversas doenças, fazia referência aos sintomas idênticos aos apresentados por Louvado Seja. Eram próprios da “doença de São Guido (ou Vito)”. Essa doença também é conhecida como Coreia de Huntington ou Mal de Huntington. É uma alteração hereditária do cérebro, que afeta pessoas de todas as populações em todo o mundo. O seu nome vem do médico George Huntington, que fez a primeira descrição do que ele chamou “Coreia Hereditária”. O termo “Coreia” tem origem na palavra latina choreus (que se refere a “dança”) devido aos movimentos involuntários, que são uns dos sintomas principais dessa doença rara.

Dona Lia se convenceu de que Louvado Seja era portador dessa enfermidade neurológica. Como não era médica, só comentava o assunto com o marido e familiares. O fato é que Louvado Seja padeceu desse mal a vida toda, sem nunca ter ido a um médico.

São Vito (?-303), também chamado por muitos de São Guido, foi um mártir italiano filho de pagãos, mas educado na fé cristã, por Santa Crescência e São Modesto.

As publicações católicas esclarecem que esse santo é considerado padroeiro dos epilépticos e foi um dos mais populares na Idade Média. Sua festa é comemorada no dia 15 de junho.

A associação existente entre São Guido ou Vito e a doença nervosa a que nos referimos, provavelmente, prende-se ao fato de que pessoas atacadas por esse mal começaram a procurar a sua Capela, erguida na Suábia, um antigo ducado alemão da Idade Média, para pedir sua proteção.

O nome “doença de São Guido (ou São Vito)” pegou, e, em algumas regiões, virou expressão popular, para denominar pessoas agitadas, com movimentos involuntários, provocados por contrações nervosas no rosto ou em outras partes do corpo. Estariam atacadas pela “doença de São Guido”.

Ainda hoje me lembro de Louvado Seja, e sinto medo. Suas carreiras curtas e constantes, seus tiques nervosos, além da voz grossa e assustadora, davam-lhe a aparência de um homem elétrico, um ser sobrenatural. Apesar das carreiras que dava, impulsionado pelos nervos doentes, Louvado Seja nunca fez mal a ninguém, durante os anos em que percorreu as ruas de Nova-Cruz, pedindo esmolas. Se algum espírito o empurrava, como muitas pessoas acreditavam, o poder de Deus sempre o protegeu e ele nunca caiu. Deixou de pedir esmolas de repente, e a notícia de sua morte se espalhou na cidade, provocando dó em todas as pessoas.

Ninguém sabia o seu verdadeiro nome, mas o seu apelido é impossível esquecer.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 03 de fevereiro de 2017

A VASSOURADA

Na campanha política para Presidente da República, em 1960, o então candidato Jânio da Silva Quadros tinha como símbolo da sua campanha uma vassoura. Nos comícios, subia ao palanque com uma vassoura na mão. Dizia que com a vassoura, seria varrida a bandalheira e a corrupção do País.

A vassoura, portanto, tornou-se a marca registrada da campanha de Jânio da Silva Quadro (UDN) contra o Marechal HenriqueLott (PSD).

No interior nordestino , os “janistas” tinham, cada qual a sua vassoura, usada nas passeatas e comícios, para insultar os adversários, partidários do Marechal Henrique Lott.

Em algumas cidades, durante a campanha a bagunça foi grande. Os eleitores que apenas assinavam o nome, não compreendiam o sentido da vassoura, nem os discursos de Jânio transmitidos pelo rádio. Então, começaram os insultos e, o que era pior, as vassouradas, durante as passeatas e comícios. A vassoura tornou-se uma arma perigosa nas mãos das pessoas ignorantes. Em Nova-Cruz (RN), o comércio de vassouras prosperou. A campanha tomou proporções alarmantes, e as vassouradas eram dadas indiscriminadamente, chegando a provocar ferimentos em algumas pessoas.

Lourdes, uma moradora da nossa rua, mulher ignorante e agressiva, resolveu ser “janista”, e passou a varrer a calçada de sua casa de manhã, de tarde e de noite, para insultar quem passava. Usando a vassoura como estandarte, agrediu o ex-marido com uma vassourada, e o acertou na fronte. Por um triz, o homem não morreu. Semianalfabeta, Lourdes não entendia de nada, principalmente de política. Mas tornou-se especialista em vassouradas. Não perdia passeatas e comícios, cantava todos os jingles e era uma entusiasta da campanha da vassoura.

Os carros de som, com seus incansáveis alto-falantes, invadiam as ruas das cidades com marchinhas (jingles), que o povão logo aprendeu a cantar.

Algumas delas:

“ Varre, varre, varre vassourinha, varre a corrupção”;

“Jânio vem aí / não demora não / ele vem aí / com uma vassoura na mão”;

“Varre, varre, varre, varre vassourinha / varre, varre a bandalheira / que o povo já tá cansado / de sofrer dessa maneira / Jânio Quadros é a esperança desse povo abandonado! .Jânio Quadros é a esperança de um Brasil moralizado/ Alerta meu irmão, vassoura, conterrâneo/ Vamos vencer com Jânio!”

 

 

Jânio Quadros chegou à presidência da República de forma muito veloz. Em São Paulo, havia exercido sucessivamente os cargos de vereador, deputado, prefeito da capital e governador do estado. Tinha um estilo político excêntrico e um vocabulário exótico, que chegava a ser hilário. Para parecer popular, enchia os bolsos de sanduíches para comer nos comícios.

Foi eleito Presidente da República em 3 de outubro de 1960, pela coligação PTN-PDC-UDN-PR-PL, para o mandato de 1961 a 1965, com 5,6 milhões de votos – a maior votação até então obtida no Brasil. Venceu o Marechal Henrique Lott de forma arrasadora, por mais de dois milhões de votos. Porém, não conseguiu eleger o candidato a vice-presidente de sua chapa, Milton Campos (naquela época votava-se separadamente para presidente e vice). Quem se elegeu para vice-presidente foi João Goulart, do partido da oposição.

Jânio Quadros assumiu a presidência em 31 de janeiro de 1961, em Brasília, que ,pela primeira vez, foi palco de uma posse presidencial.

O governo de Jânio Quadros perdeu sua base de apoio político e social, a partir do momento em que adotou uma política econômica austera. Adotou medidas drásticas, restringindo o crédito, congelando os salários e incentivando as exportações.

Mas foi na área da política externa que o presidente Jânio Quadros acirrou os ânimos da oposição ao seu governo. Jânio nomeou para o ministério das Relações Exteriores Afonso Arinos, que se encarregou de alterar os rumos da política externa brasileira. O Brasil começou a se aproximar dos países socialistas. O governo brasileiro restabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética (URSS).

Num gesto considerado tresloucado, Jânio condecorou, no dia 19 de agosto de 1961, com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, Ernesto Che Guevara, o guerrilheiro argentino que fora um dos líderes da revolução cubana, e era ministro daquele país. Entretanto, segundo conta a História, essa condecoração foi um agradecimento a Ernesto Che Guevara, por ter atendido a seu apelo e libertado mais de vinte sacerdotes presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento, exilando-os na Espanha. Jânio fez esse pedido de clemência a Guevara por solicitação de Dom Armando Lombardi, Núncio Apostólico no Brasil, que o solicitou em nome do Vaticano.

A outorga da condecoração foi aprovada no Conselho da Ordem por unanimidade, inclusive pelos três ministros militares.
A repercussão desse gesto foi a pior possível, sendo, ainda segundo a História, a causa principal da perda de mandato de Jânio. Os problemas começaram na véspera, com a insubordinação da oficialidade do Batalhão de Guarda. Amotinada, se recusava a acatar as ordens de formar as tropas defronte ao Palácio do Planalto, para a execução dos hinos nacionais dos dois países, e a revista. Só a poucas horas da cerimônia, já na manhã do dia 19, conseguiram os oficiais superiores convencer os comandantes da guarda a se enquadrar.

Na imprensa e no Congresso, começaram a surgir violentos protestos contra a condecoração de Che Guevara. Alguns militares ameaçaram devolver suas condecorações em sinal de protesto. Em represália ao que foi descrito como um apoio de Jânio ao regime ditatorial de Fidel, nesse mesmo dia, Carlos Lacerda entregou a chave do Estado da Guanabara ao líder anticastrista Manuel Verona, diretor da Frente Revolucionária Democrática Cubana, que se encontrava viajando pelo Brasil em busca de apoio à sua causa.

No dia 21 de agosto de 1961, Jânio Quadros assinou uma resolução que anulava as autorizações ilegais outorgadas a favor da empresa Hanna e restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais à reserva nacional. Quatro dias depois, os ministros militares pressionaram Jânio Quadros a renunciar:
Diz o texto da renúncia:

“Forças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exercício da minha autoridade……………………………………”

Brasília, 25-8-61.

a) J. Quadros

E assim terminou o mandato de Jânio Quadros, que só durou sete meses. 56 anos se passaram, e o País encontra-se hoje mergulhado na maior crise política da História.

Não há vassourada que dê jeito…

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho terça, 31 de janeiro de 2017

O PEDIDO

 

Malvino era um fazendeiro rico e avarento, que só se preocupava em juntar dinheiro.

Para isso, usava um antigo cofre que tinha em casa, cujo segredo a esposa Damiana sabia, mas nunca teve coragem de mexer.

Não gostava de luxo nem de vaidade. Não admitia que se gastasse dinheiro com coisas supérfluas. A esposa e as duas filhas não pegavam em dinheiro para alimentar a vaidade feminina. Cabelos escovados e unhas feitas, o fazendeiro somente permitia nas festas de Natal e Ano Novo.  A casa, onde a família morava, não era forrada, e o piso era d elajota.

 

dinheiro

 

Aparentemente, Malvino trabalhou pesado a vida toda e não queria ver ninguém usufruir das suas conquistas, nem mesmo a esposa e filhas. Gostava de dizer que filho de pai rico, quando o pai morre, acaba com tudo; e que viúva rica só serve para atrair cabra safado e aproveitador. O plano dele era esse: levar tudo com ele no caixão.

Uma vez por outra, dizia para Damiana:

“Quando eu morrer, quero levar todo o meu dinheiro comigo no caixão. Quero ter toda a minha fortuna, após a morte”!

Claro que isso soava bastante rude e egoísta para toda a família, especialmente para a esposa.

Damiana chegou a conversar com o padre sobre o pedido do marido, e ele lhe disse que não levasse isso a sério.

Anos depois, Malvino adoeceu, passando a sofrer de hipertensão e diabetes. Depois, o quadro se agravou e ele foi a óbito.

A esposa, então, sentiu-se na obrigação de concretizar o seu desejo. Depois de pensar muito, encontrou uma forma genial de conciliar as coisas, sem se prejudicar.

Na hora em que o caixão seria fechado, gritou: “Esperem um minuto”!

Um dos familiares disse: “Espero que você não seja louca de colocar toda a fortuna no caixão”.

A mulher, chorando, respondeu:

“Eu prometi a ele. Sou cristã e irei cumprir o meu juramento”!

Os amigos e familiares ficaram indignados com a situação.

Damiana, então, tirou do sutiã um cheque e pôs sob a cabeça do defunto. E explicou, baixinho, aos familiares:

– Ele vai levando, no caixão, um cheque nominal, cruzado, assinado por mim, no valor de todo o dinheiro que ele deixou no cofre. Amanhã, irei depositar o dinheiro no banco.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 27 de janeiro de 2017

O CIMENTO

 

Marina, já cinquentona, donzela juramentada, aceitou a proposta de casamento de um viúvo “fresquinho”, intermediada por um casal de amigos seus.

Na realidade, o sonho de Marina era se casar. A vida toda organizou seu enxoval, com peças bordadas à mão, e de crochê, que ela, sua mãe e tias faziam com esmero.

O tempo passava e Marina sonhava com a chegada do seu príncipe encantado, montado num cavalo branco. Depois, tornou-se mais condescendente e já admitia que

o príncipe encantado viesse montado num jegue mesmo.

 

 

Ao entrar na casa dos “enta” (quarenta, cinquenta…), Marina já não pensava em príncipe. Queria mesmo era um homem para ser seu marido e companheiro. Um homem para chamar de seu. Vivia bem, financeiramente, e não pensava em acumular riqueza. Seria até capaz de dar casa, comida e roupa lavada, e ainda uma boa mesada, ao marido. Mas ele teria que ser amante e companheiro fiel, e o principal: Não podia ser cachaceiro!!!

Muito católica, a única bebida que Marina não censurava quando via era o Vinho do Padre, durante a Santa Missa.

Pois bem: Apareceu essa proposta de casamento para Marina e, por influência dos amigos, foi aceita, depois de muita insistência.

O pretendente tinha enviuvado recentemente, e os filhos já estavam casados. Funcionário público estadual, o homem ganhava bem, tinha uma excelente casa numa cidade do interior e as informações a seu respeito eram as melhores possíveis. Era o marido ideal para Marina. Logo houve a apresentação dos dois “pombinhos” pelo casal de amigos, e foi “amor à primeira vista”. A carência afetiva em que Marina vivia mergulhada somou-se à recente solidão apavorante do viúvo, que procurou se fazer amado pela celibatária. Surgiu, assim, um casal “apaixonado”, por pura conveniência.

O casamento de Marina e Solano ocorreu em cerimônia simples, na terra da noiva, Nova-Cruz (RN), com a presença de familiares e dos amigos que os aproximaram.

O viúvo fez questão de continuar na mesma cidade e na mesma casa, onde residiu com a falecida esposa e os filhos.

Marina tinha estampada no rosto a imagem da felicidade. O marido vivia bem financeiramente, era católico praticante, e fora casado durante trinta anos, tendo fama de excelente chefe de família.

Num dia de domingo, um mês depois de haver casado com Marina, Solano avisou que iria fiscalizar a feira municipal de um lugarejo vizinho, e passou o dia fora. Só chegou à meia-noite, completamente embriagado. Marina se descontrolou e deu um escândalo com ele, chamando a atenção dos vizinhos. Gritou para ele que aquela seria a primeira e a última vez que ele saía para beber. Disse que não sabia que ele tinha esse vício miserável, e que casou enganada. E que ele teve a sorte de se casar com uma moça virgem!

Solano adormeceu em berço esplêndido, e as palavras agressivas da mulher entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Esse domingo, portanto, foi perdido para Marina. E foi também a primeira das várias decepções que viriam pela frente.

No dia seguinte, pela manhã, Marina soube por um companheiro de farra de Solano, que os dois tinham ido a uma vaquejada, um dos divertimentos preferidos dos homens daquela região.

Essa história de “fiscalização da feira” era conversa “pra boi dormir”! Pura mentira!

Marina “enlouqueceu” de raiva, e entrou no quarto onde o marido ainda dormia, aos gritos:

– Seu safado, você me enganou! Disse que ia fiscalizar uma feira , e foi farrear numa vaquejada. Chegou à meia-noite, e completamente bêbado! Você está pensando que eu sou o que? Você casou comigo, e eu era uma moça! Eu era virgem! Eu vou embora desta casa!!!

Solano despertou, com cana dormida, e pegou brabo, dizendo impropérios com a mulher:

– Quer ir embora? Pode ir!!! Mas não é mais moça!!! Não tem problema não! Vou dar um jeito nisso!

E chamou a empregada, aos gritos:

– Maria, traz aí um pacote de cimento que está na despensa! Vou, agora mesmo, tampar essa mulher com cimento e devolver a virgindade dela!!!

Ouvindo isso, Marina saiu do quarto.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho quinta, 26 de janeiro de 2017

"DISQUE-AMIZADE"



Antes da era cibernética, a comunicação que servia de elo entre as pessoas distantes era a telefonia fixa.

A prestação do serviço telefônico, “145 – Disque-Amizade”, foi inaugurado em 1984.

Discávamos 145 e logo uma ou várias vozes atendiam ao telefone, estabelecendo-se uma conversa simpática, de pessoas geralmente solitárias, a fim de fazer amizades. Pela voz e pela qualidade da conversa, selecionávamos quem se mostrasse mais interessante, e os contatos eram constantes, com hora marcada para a conversa telefônica. Daí surgiam boas amizades, namoros e até casamentos. Havia também muita decepção, pois algumas pessoas trocavam os números dos seus telefones, e continuavam, na conversa reservada, mentindo da mesma forma.

telefone-verde-fixo

Na conversa coletiva, os participantes costumavam usar pseudônimos, pois ali, inicialmente, todos eram desconhecidos. A “brincadeira” era divertida, e servia de lenitivo às pessoas solitárias, desiludidas, e esperançosas de encontrar ou reencontrar um amor.

Muitas viúvas solitárias, mulheres divorciadas ou separadas, atravessando fases de depressão, ligavam o 145 e tinham a sorte de encontrar alguma pessoa boa para conversar. Dessas conversas, às vezes, surgiam amizades sinceras, que com o tempo se solidificavam.

Os homens, cuja natureza é de caçador, estavam sempre à procura de novas caças.

Emanuel, um rapaz de 28 anos, bonito, bem empregado e bem-nascido, através do “145” se apaixonou pela voz de Nina, uma jovem que dizia ter 23 anos, era muito rica, e cujo pai era um verdadeiro carrasco. Trocaram os números dos respectivos telefones e passaram a conversar diariamente. Com o tempo, os dois estavam apaixonados e Nina lhe sugeriu um encontro, para que se conhecessem pessoalmente. Combinou, então, para se encontrar com ele na Av. Hermes da Fonseca, perto do Quartel do Exército. No dia e horário marcados, o rapaz chegou ao local combinado, vestindo a roupa também combinada. Esperou das 15 às 18 horas pela moça, que não apareceu.

Emanuel voltou para casa decepcionado e jurou que nunca mais entraria no “disque-amizade”. No dia seguinte, logo cedo, Nina lhe telefonou se desculpando, e jogando a culpa no pai por ter faltado ao encontro. Para compensar, convidou o rapaz para um encontro em Olinda (PE) no fim de semana vindouro, pois lá ela contaria com a cumplicidade de uma tia. Viajariam separados, mas ficariam no mesmo hotel, cujo nome ela sugeriu. Muito apaixonado, e curioso para conhecer pessoalmente a musa que povoava os seus sonhos, Emanuel aceitou o pedido de desculpa e também o convite para que os dois fossem se encontrar em Olinda. Reservou o hotel e aguardou, com ansiedade, o fim de semana. Nessas alturas, suas duas irmãs já estavam sabendo que ele estava apaixonado, e torciam para que o encontro desse certo.

A sexta-feira chegou, e Emanuel viajou no seu Fusca para Olinda, ansioso pelo grande encontro. Não se cansava de imaginar como seria o rosto e o corpo de Nina. Apaixonadíssimo, apostava no destino, e tinha certeza de que estava indo ao encontro da “mulher da sua vida”.

Chegando ao Hotel Santo Amaro, onde fizera reserva para um casal, Emanuel instalou-se no apartamento. Tomou banho, vestiu uma roupa da melhor qualidade, e ficou aguardando Nina, que, pelo combinado, deveria ter chegado pela manhã à casa da tia.

Anoiteceu, chegou a madrugada, e raiou um novo dia. Nina não chegou nem mandou notícia. Terminou o fim de semana e no domingo à tarde, Emanuel retornou a Natal, arrasado. Adeus às ilusões. Outra decepção, que, dessa vez, pôs fim, definitivamente, ao seu sonho de amor. Nina não passava de uma tratante, e estava zombando dos seus sentimentos. Nunca mais entraria no “disque-amizade”, nem queria mais ouvir a voz de Nina.

Com a decepção estampada no rosto, Emanuel entrou em casa cabisbaixo, e contou às irmãs o “bolo” que, mais uma vez, havia levado de Nina. As duas moças ficaram revoltadas e decidiram descobrir quem seria essa tal moça.

Nessa época, os Catálogos Telefônicos anuais traziam o número do telefone, o nome e o endereço do usuário. Com a paciência de Jó, as duas moças, tendo em mãos o número do telefone da suposta Nina, conseguiram descobrir o nome e o endereço do dono do telefone. Uma delas discou o tal número, o dono atendeu e se identificou. Ela também se identificou e pediu para lhe falar pessoalmente sobre um assunto muito desagradável. Gentilmente, o homem a recebeu no seu local de trabalho, uma conhecida rádio de Natal. Tratava-se de um comentarista esportivo muito atuante nesta capital.

Mara contou-lhe, então, o envolvimento do seu irmão Emanuel com uma jovem chamada Nina, que usava o telefone dele. Disse que o irmão tinha sofrido uma grande decepção com a jovem, que, aliás, ele só conhecia pelo “disque-amizade”. Ela tinha combinado um encontro com ele em Olinda (PE) no último fim de semana, induzindo-o a fazer reserva em hotel, e lá não apareceu nem lhe deu satisfação. Falou também que, antes disso, a jovem havia pedido para se encontrar com seu irmão, nas imediações do Quartel do Exército, indicando o local certo onde ele deveria ficar. Depois de esperar três horas pela moça, o irmão teria retornado à sua casa, disposto a não querer mais conversa com ela. Entretanto, no dia seguinte, a jovem lhe ligou, pedindo desculpa e atribuindo a impossibilidade de ir ao encontro ao pai, que era um carrasco. Então, ela sugeriu a ideia dos dois irem se encontrar em Olinda.

Para surpresa da irmã de Emanuel, o homem falou que morava com a mãe, dona Matilde, uma senhora de oitenta e seis anos, que sofria de obesidade mórbida, e passava o dia todo em casa, somente com uma empregada doméstica. Disse também que Dona Matilde era viciada no “disque-amizade”, coisa que ele não podia proibir, pois era o seu maior divertimento.

Pois bem: A jovem Nina, de voz bonita e sensual, por quem Emanuel se apaixonou perdidamente, na realidade, era Dona Matilde, de oitenta e seis anos, e que sofria de obesidade mórbida. A mulher entrava diariamente no “disque-amizade”, e usava a cada dia um pseudônimo diferente. Fazia uma voz estudada, e facilmente se fazia passar por uma mocinha. Nessa brincadeira, arranjava “namorados”, que sempre se apaixonavam pela sua voz.

Convém salientar que, no dia combinado para o primeiro encontro, da janela do seu apartamento, Dona Matilde reconheceu Emanuel e deu ótimas gargalhadas, ao vê-lo olhar constantemente para o relógio. As características que o rapaz lhe havia dado do seu tipo físico, e a cor da roupa com a qual disse que iria vestido, não davam margem a equívoco. Emanuel foi mais um dos apaixonados por Nina, Tereza, Fátima, Sílvia, ou outros pseudônimos usados por Dona Matilde.

Com o advento da internet, o “disque-amizade” caiu no desuso, perdendo a utilidade. Continua, apenas, na nossa memória, como uma lembrança boa, de um tempo em que ainda não existia a violência exacerbada de hoje. É coisa do passado.

Os homens, cuja natureza é de caçador, estavam sempre à procura de uma nova caça. As mulheres, de um modo geral, alimentavam a esperança de que naquela linha telefônica estaria traçado o seu destino. Acreditavam que a felicidade estava a caminho, e elas iriam encontrar um amor, ou um novo amor, para substituir o que haviam perdido.

Atualmente, o 145 perdeu a utilidade; e hoje o “Disk Amizade” é só uma lembrança em algum blog, na seção de antiguidades.


Violante Pimentel - Cenas do Caminho quarta, 25 de janeiro de 2017

O MILHAR

 


Zequinha era um sapateiro “lambe-sola”, bom no ofício, mas dominado pela bebida. O que ganhava gastava com cachaça. Bebia diariamente, e dizia que não parava de beber, com medo de ter ressaca e não poder mais trabalhar. Tinha certeza de que ficaria acamado, se deixasse a bebida. Todos os dias, tinha que tomar algumas chamadas de cana. Era um homem inofensivo, humilde e simpático.

Conformado com a sua vida solitária, Zequinha havia desistido de casar, pois nenhuma mulher quis se sujeitar à sua bebedeira e à sua vida desregrada.

Também era viciado em jogo de bicho, e diariamente fazia uma fezinha. Quando ganhava, era pouco dinheiro, no grupo.

Um certo dia, Zequinha jogou no bicho e, dessa vez, acertou no milhar. Ganhou um bom dinheiro, que lhe garantiria a sobrevivência por algum tempo, se não torrasse todo em cana. Foi logo receber o prêmio e guardou no bolso, com todo o cuidado.

Muito feliz com o dinheiro ganho no jogo do bicho, dirigiu-se logo à Loja “Guararapes”, e comprou uma muda completa de roupa. Noutra loja, comprou um par de sapato “Conga”. Dirigiu-se ao barraco precário onde morava e tomou um banho de cuia, para trocar os trapos com que andava vestido.

Depois que se aprontou, pôs de molho num tanque com água e sabão a roupa velha que usava, e que daria de esmola. Saiu, então, todo faceiro, para festejar sua sorte num bar de gente rica, que nunca pôde frequentar. Nesse bar, às vezes, ele ficava somente pitigorando os petiscos e bebidas caras que os ricos consumiam.

A notícia do prêmio de Zequinha, entretanto, já havia se espalhado. Entrou no Bar da Jia, de cabeça erguida, pediu logo whisky e uma refeição para matar a fome. Logo se embriagou, fez discurso, disse que agora estava rico, e que, . finalmente, a sorte tinha olhado para ele.

Já tarde da noite, pôs a mão no bolso para pagar a conta, coisa que nunca tinha podido fazer na vida, e o bolso estava vazio. Pensou logo que havia sido roubado. A confusão foi grande. Depois, adormeceu na mesa do bar e só acordou pela manhã. Veio-lhe, então, à memória, as roupas velhas que tinha posto de molho em água e sabão. Empalideceu e correu para casa. A sua decepção foi grande. O dinheiro que ganhara no milhar e que guardara no bolso da calça velha, estava de molho junto com toda a roupa. Todas as notas haviam perdido a cor e não houve jeito de recuperar.

Dizem que o “bicho” dá e o bicho “come”. Mas, nesse caso, quem comeu mesmo foi água e sabão.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 20 de janeiro de 2017

O SÓSIA

Clodomiro, funcionário público federal, nível médio, era lotado na Junta de Recursos da Previdência Social/RN. Viúvo, vivia para os filhos, e durante muitos anos fez as vezes de pai e mãe. Não teve coragem de casar novamente, pois os filhos pré-adolescentes jamais aceitariam alguém no lugar da venerada mãe. Mas a viuvez e a grande responsabilidade que lhe pesavam aos ombros mexeram muito com o seu lado emocional e Clodomiro tornou-se alcoólatra.

 

 

Gostava muito de olhar pelo retrovisor do tempo e relembrar seus momentos de glória, durante a juventude. Trazia sempre consigo uma pequena pasta, contendo fotografias suas, de perfil ou de frente, em tamanho postal, e sempre fazendo pose de galã. Em algumas fotos, aparecia com um cigarro nos lábios ou na mão. Seu maior orgulho era dizer que quando era jovem, na época da Segunda Guerra Mundial, as mulheres o confundiam com o ator americano Clark Gable, “artista” principal, do inesquecível filme “E o Vento Levou.” Era convencido de que tinha sido um rapaz belíssimo e ainda fazia pose quando andava, colocando sempre as mãos nos bolsos, e andando compassadamente.

Mesmo beirando os sessenta anos, ainda se considerava bonito, e seu porte físico o ajudava a manter a postura de um homem bem mais jovem. Ainda caprichava na cabeleira. Andava com um pente “flamengo” no bolso, e um pequeno espelho redondo. Uma vez por outra, era flagrado se penteando e se olhando no espelho. Lógico que estava se achando bonito. Isso era alvo de brincadeira dos colegas, no ambiente de trabalho.

As namoradas que Clodomiro arranjou depois de viúvo, enquanto era mais moço, foram “amores passageiros” e “paixões sem amanhã”.

Com a ajuda de amigos e a sua força de vontade, frequentou a comunidade dos Alcoólicos Anônimos e conseguiu se curar da terrível doença do alcoolismo.

Gostava de contar que, no auge da sua beleza e das conquistas amorosas, mandara confeccionar uns cartões de apresentação, onde, no lugar do seu nome verdadeiro, constava apenas ” Seu C – Agente Americano”. Esse pseudônimo era uma homenagem ao seu ídolo e “sósia” Clark Gable. Ele botou na cabeça que era o próprio galã. Nessa época, frequentava a vida boêmia da cidade, e uma vez por outra se metia em confusões. Era nessas horas que ele puxava o cartão de apresentação e dizia com voz altiva:

– Vocês sabem com quem estão falando?

– Estão falando com Seu “C”, Agente Americano!

Era água na fervura. Os forasteiros logo se afastavam, temendo o tal “Agente”.

Na Repartição, Clodomiro não podia ver ninguém dar uma pausa no serviço, nem mesmo para tomar um café, que, imediatamente, abria sua inseparável pasta e tirava uma fotografia sua e outra de Clark Gable, para que os colegas vissem que ele não vivia mentindo e que realmente os dois eram muito parecidos. Gostava de dizer que, se fossem irmãos, talvez não se parecessem tanto. Para lhe agradar, todos os colegas, e até o Chefe, concordavam com ele. Afinal, não custava nada alimentar a vaidade de um homem tão sofrido, que parara no tempo para se dedicar aos filhos, e, com força de vontade, conseguira se curar da terrível doença do Alcoolismo.

Clodomiro, dentro da sua humildade, era um homem educado e atencioso, o que o tornava muito querido pelos colegas de trabalho. Adorava relembrar seu sucesso com as mulheres, no tempo da Segunda Guerra. Contava que, por causa do seu porte de galã e seus belos olhos verdes, era confundido com os soldados americanos, e que a Guerra, para ele, havia sido “formidável”. Natal concentrava um grande número de soldados americanos e ele tirava proveito disso. Conseguia frequentar os bailes dos americanos, e dançava Foxtrote melhor do que eles. Dançava com as moças mais bonitas, escolhidas a dedo. Contava que nunca havia levado um fora, e que falava com a língua enrolada, num “inglês sem mestre”, para impressionar. Essa foi a fase áurea da vida de Clodomiro.

E o Chefe da Repartição, de tanto ouvir Clodomiro contar suas estripulias no tempo da guerra, por brincadeira, uma vez por outra o chamava de “Seu C”. E ele ficava feliz da vida.

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho terça, 17 de janeiro de 2017

A CAMINHONETE

 

Adamastor era um engraxate, que, na década de 60, atendia aos fregueses na Praça Padre João Maria, bairro da Cidade Alta, em Natal (RN). No final da tarde, guardava seus apetrechos no estabelecimento de um sapateiro “lambe-sola” (consertador de calçados), seu amigo Osvaldo, um homem fanático por Aluízio Alves, na época, governador do Estado. Convém salientar que Seu Osvaldo só usava camisa verde, símbolo do partido político do seu ídolo, e as paredes do seu minúsculo ponto comercial eram totalmente decoradas com fotos desse homem, que exerceu grande liderança política no Estado, durante muitos anos. Além disso, o sapateiro também mantinha na parede externa do seu estabelecimento de trabalho, onde também morava, uma grande bandeira verde. Era uma figura folclórica.

Adamastor, à noite, ganhava dinheiro pastorando carro. Sua freguesia era constituída de frequentadores do Cine Nordeste, localizado na Rua João Pessoa, por sinal, bem perto da Praça Padre João Maria.

 

caminhonete

 

Antes disso, jantava um cachorro-quente “Sebosão”, enorme, que tinha tudo o que o diabo gosta: carne moída gordurosa, salsichão da pior qualidade, frango com muita graxa, vinagrete, e uma cobertura generosa de “ketchup” e maionese. Dentro de uma mochila, trazia sempre uma garrafa de pinga e um copo. Trazia também um depósito com água.

À noite, depois que se transformava em pastorador de carro, Adamastor aproveitava para tomar suas chamadas de cana, quando não havia ninguém olhando. Bebia moderadamente e nunca foi visto embriagado.

Adamastor já era uma figura conhecida na redondeza, e de muita confiança. Tinha seus fregueses cinéfilos, que deixavam seus carros estacionados perto do cinema, aos seus cuidados, e lhe pagavam bem. E ai dos malandros que se aproximassem dos carros que pastorava. Ele gritava, mandando-os “desarredar” imediatamente. Para demonstrar zelo, mantinha sempre nas mãos uma flanela molhada, com a qual tirava a poeira dos carros.

Certa noite, Dr. Mesquita, um advogado muito conhecido na cidade, confiou-lhe sua luxuosa e recém adquirida caminhonete, enquanto iria com a esposa ao “Cinema de Arte”, sessão das 21 horas, no Cine Nordeste.

Como o filme era de longa-metragem e só terminava à meia noite, Dr. Mesquita pediu ao pastorador que redobrasse o cuidado.

Nessa noite, Adamastor se excedeu na cachaça, e ficou ainda mais cuidadoso, principalmente com a caminhonete “zerinho” do doutor. Para se sentir mais seguro, resolveu providenciar um “cacete”, para usar contra qualquer malandro que tentasse bulir nos carros. Nesse tempo, ainda não havia assalto nem roubo de carro em Natal.

Depois que a sessão de cinema terminou, o advogado foi pegar seu veículo e notou que Adamastor estava muito nervoso, pois, quando o avistou, foi logo dizendo em voz alta:

– Graças a Deus, doutor, o senhor chegou!

E Dr. Mesquita perguntou:

– Está tudo bem, Adamastor? Aconteceu alguma coisa?

Então, o pastorador respondeu:

– Agora tá tudo bem, doutor. Mas passei um susto danado! Tava tudo calmo e de uma hora pra outra apareceu um moleque taludo, querendo mexer no trinco da caminhonete do senhor. Parece até que eu tava adivinhando, pois já tava com a arma na mão. Dei uma grande surra de cacete no safado, mas ele conseguiu fugir correndo. Fiquei o resto do tempo “cubando” se ele voltava, mas o ladrão desapareceu de vez.

O “cacete” a que Adamastor se referiu foi, nada mais, nada menos, do que a antena da caminhonete de luxo, novíssima, do advogado, que ele continuava segurando.

Como a causa foi justa, Dr. Mesquita guardou a antena, agradeceu e deu uma nota graúda ao pastorador.

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Violante Pimentel - Cenas do Caminho sábado, 14 de janeiro de 2017

TUPI (CRÔNICA DA MADRE SUPERIORA VIOLANTE PIMENTEL, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

Tupi era o mais inteligente e o mais dócil dos cães. Brincava com as crianças da rua e disputava com elas todos os brinquedos. Era um companheiro incansável. Dava gosto vê-lo atirar-se à piscina e agarrar os brinquedos que os filhos do seu dono lhe atiravam, o mais longe que podiam. Repetia essa tarefa até que os meninos se cansassem. Segurava os brinquedos com a boca, e os trazia como se fossem troféus. As crianças vibravam, com a rapidez com que o cão resgatava os brinquedos atirados à água.

Essa brincadeira recomeçava vinte vezes, sem cansar nunca a paciência de Tupi. Depois, vinham as corridas, lanches, gargalhadas, saltos, até que o assobio de um empregado da fazenda chamava o fiel animal às suas obrigações. Corria, então, como um raio, para escoltar as vacas que eram levadas aos pastos, e impedi-las de entrar nas terras do vizinho.

 

Triste de quem ousasse saltar o muro da fazenda para roubar. Uma vez, o cão deu prova de extraordinária sagacidade. Um desocupado pulou o muro, à noite, e tentou furtar uma saca de batatas. Tupi, como um exímio vigilante, esperou que ele procurasse o caminho da saída, levando a saca na cabeça, e o agarrou pela camisa, sem o largar.

Era como se dissesse: “Onde você pensa que vai, levando as batatas do meu dono?”

O homem quis pôr o saco no local de onde o tinha tirado, mas o cachorro não deixou, mantendo-o seguro pela camisa até de manhã, sem o ferir ou morder. O dono da fazenda, logo cedo, levantou-se e encontrou Tupi nessa difícil posição. Repreendeu o malfeitor, que tremia de medo, e ameaçou de mandar prendê-lo, em caso de reincidência.

O ladrão, porém, ficou com ódio do cão, e, alguns dias depois, voltou a pular o muro da fazenda. Aproveitando a ausência do fazendeiro e dos filhos, chamou Tupi, que correu para ele sem desconfiança. Sem que o caseiro visse, atou uma corda ao pescoço do cachorro e o arrastou até à margem do rio, num local sinalizado como perigoso. Atou à outra ponta da corda uma grande pedra, e, levantando o animal, jogou-o à água. Com o esforço e com o peso do cachorro, o homem se desequilibrou e também caiu no rio, no mesmo local onde acabara de jogá-lo. Como diz o ditado popular, o feitiço virou por cima do feiticeiro.

Como não sabia nadar, o covarde, apavorado, viu-se perdido. E teria morrido afogado, se não fosse o corajoso Tupi. Obedecendo ao seu instinto de salvador, e desembaraçando-se da pedra mal atada, o fiel cão de guarda mergulhou duas vezes, trazendo para terra o seu perigoso inimigo.

Esse ladrão, que já estava quase desmaiado, compreendeu, quando voltou a si, que o cão, que ele tinha querido afogar, salvara-lhe a vida.

Envergonhou-se do ato miserável que praticara e, desde esse dia, deixou de praticar ações violentas.

O exemplo do cão corrigiu o homem.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 13 de janeiro de 2017

O ANTIDISTÔNICO

Perpétua, 50 anos, era servidora pública federal, de nível médio. Tornou-se solteirona juramentada, não por vontade própria, mas porque não encontrava mais nenhum homem para namorar. Sofria muito com isso, pois era quente, e foi acostumada a estar sempre em ação, não passando sem namorado. Vivendo sempre o presente e sem se apegar a ninguém, agora cinquentona passou a sentir solidão. A idade foi deixando Perpétua deprimida. Ultimamente, tinha a sensação de haver passado repelente no corpo, pois não atraía mais nenhum homem. Convenceu-se de que, com a idade que estava, não poderia mais concorrer com as garotas de “carne dura”, tudo no lugar, e com os hormônios fervendo. Tornou-se uma mulher amarga e desiludida, sem esperança de encontrar um companheiro. Das três irmãs, foi a única a ficar "pra titia".

 

 

O peso dos anos tornou a moça depressiva. O mau-humor passou a ser sua característica, a ponto de afastar os amigos e colegas de trabalho. Passou a não suportar brincadeiras, mostrando-se sempre irritada. Em suma, tornou-se uma pessoa extremamente chata e de difícil convivência.

Quando chegava à repartição, dava um “bom dia” de cabeça baixa. Se já estava no birô e chegava alguém, respondia ao cumprimento resmungando. Se fosse o Chefe que chegasse, respondia ao cumprimento, e nas suas costas lhe estirava o clássico dedo médio. Os colegas ficavam com vontade de rir e ao mesmo tempo revoltados, pois o Chefe era uma excelente pessoa e não merecia esse desrespeito. Perpétua tornou-se uma pessoa intratável.

Dr. Pedro Corsino, um dos melhores Psiquiatras de Natal, era amigo de infância de Perpétua e por ela sentia grande apreço. Os dois mantinham uma amizade fraterna. Ao tomar conhecimento do estado depressivo da amiga, Dr. Pedro telefonou-lhe, pedindo que fosse ao seu consultório, para colocarem os assuntos em dia. Uma forma inteligente de forçar a amiga a lhe fazer uma consulta. No dia e hora marcados, Perpétua avisou na repartição que iria ao médico.

Vestiu-se com uma saia preta cobrindo os joelhos, uma blusa de cor sóbria, de mangas compridas e decote alto. Não usou qualquer adereço nem pintura, nem se preocupou em arrumar o cabelo. Perpétua foi muito bem recebida pelo amigo, que logo percebeu o estado depressivo em que se encontrava. Conversaram muito, relembrando pessoas e fatos da infância e da juventude dos dois. Num dado momento, a moça disparou num choro compulsivo, abrindo as torrentes de sua alma e extravasando suas angústias e o medo da velhice, que estava se aproximando.

Dr. Pedro deixou que a amiga chorasse até cansar. Deu-lhe um copo de água com açúcar, e lhe pediu para que retornasse ao seu consultório no dia seguinte, àquela mesma hora. Mas lhe fez as seguintes recomendações:

– Perpétua, quero que você venha aqui amanhã, a essa mesma hora, mas preste atenção:

– Quero ver você com um vestido bonito e decotado, esses peitos quase de fora, brinco e colar, batom vermelho e cabelo arrumado! Você é muito bonita, mulher! Reaja a essa tristeza! Você dá de dez a zero em certas mocinhas que só tem minhoca na cabeça! Você tem tudo para ser uma mulher feliz! Nem só de pão vive o homem! Há muitos casamentos que não dão certo! Olhe-se no espelho, e veja que você ainda está em forma, e “dá vários ponches”!!! Procure suas amigas e volte a frequentar a noite e a se divertir, viajar, enfim, viver!

Perpétua voltou no dia seguinte ao consultório, bonita como antes, e produzida conforme as recomendações do amigo psiquiatra.

A transformação de Perpétua na repartição logo foi percebida.

Esse foi o melhor antidistônico que lhe foi receitado…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho segunda, 09 de janeiro de 2017

A DESPEDIDA

Há várias décadas, em uma conhecida capital nordestina, morreu um advogado criminalista, de renome, Dr. José Paz. O fato comoveu a cidade, por se tratar de uma pessoa muito querida, grande orador, e cuja atuação no tribunal do Júri tinha um público cativo. O velório ocorreu na sua própria residência, como era costume da época. Prolongou-se por toda a noite, tendo sido marcado o sepultamento para 16 horas. Após a cerimônia de encomendação do corpo, feita pelo Bispo da Diocese, veio o momento de maior emoção, quando começaram as despedidas da viúva e das três filhas, que, inconsoláveis, não paravam de beijar o morto.

O sepultamento ocorreu no principal Cemitério da cidade, com homenagens de vários oradores, amigos e colegas de profissão do falecido.

O advogado tinha um motorista de toda confiança, Gonçalo, há mais de dez anos, que era uma espécie de “faz-t

udo”. Além de dirigir, fazia seus pagamentos, e era também seu “segurança”. Cria da casa e filho de uma antiga empregada da família, Gonçalo, quando estava de folga, gostava de tomar umas biritas. A morte repentina do patrão mexeu com os seus sentimentos e fez com que passasse o dia enchendo a cara. Sentia-se desolado, e não sabia como seria sua vida a partir daquele triste dia. E tomou um porre homérico.

Quase na hora marcada para a saída do enterro, entre os soluços da esposa e filhas do advogado, ouviu-se um choro alto, de alguém que se aproximava do caixão. Era o motorista, completamente embriagado, que queria se despedir do seu patrão, protetor e quase pai. O “pau d’água” beijou as mãos entrelaçadas do pranteado advogado, e, com voz pastosa, proferiu frases de gratidão e saudade. Não contendo a emoção, desabou num choro compulsivo e engasgou-se com saliva. Começou a tossir quase cuspindo no defunto, e terminou passando um vexame: Sua dentadura superior caiu entre as folhas e flores do caixão, e quanto mais ele tentava pegar, mais ela escorregava, até sumir completamente. Desesperado e de boca murcha, Gonçalo pedia ao patrão que o ajudasse, chamando a atenção das pessoas ali presentes.

Nesse ínterim, chegou o momento de ser fechado o caixão, para que fosse iniciado o cortejo fúnebre. Como o motorista não aceitava se afastar, foi retirado quase à força, sob protestos veementes. Ao se afastar do caixão, sem recuperar a dentadura, Gonçalo fez o último apelo ao patrão:

– Vá com Deus, patrão! Mas antes disso, devolva minha “chapa”, com o meu lindo sorriso!


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 06 de janeiro de 2017

A FORMATURA



Arnaldo, quarenta e cinco anos, funcionário público federal, era um homem muito estressado. Na repartição onde trabalhava, eram comuns suas respostas grosseiras aos subalternos e até aos seus colegas de cargo. Por diversas vezes, foi visto enraivecido, rebolando no chão pilhas de processos, numa demonstração de desprezo pelo serviço que fazia.

Os processos que recebia e nos quais tinha que colocar despachos de encaminhamento à chefia, viraram uma rotina que mexia com seus nervos. 

 

 

Ele e a esposa Célia sempre foram funcionários públicos federais, mas em repartições diferentes. Os dois filhos do casal estavam com dez e doze anos. Não tinham empregada doméstica, e comiam de marmita, há vários anos. Levavam uma vida metódica e pacata. Ele controlava as despesas da casa e organizava tudo na ponta do lápis. Não faziam gastos supérfluos. A esposa, para galgar um cargo melhor dentro do serviço público, resolveu fazer o curso de Direito. Em casa, Arnaldo era sobrecarregado de afazeres domésticos e assistência aos filhos.

Chegou o grande dia da formatura de Célia. Foram quatro anos de luta, sono atrasado, trabalhos em grupo e pouca assistência aos filhos. A formatura foi esperada com ansiedade por Célia, Arnaldo, filhos e familiares dos dois lados do casal. Arnaldo, eufórico, não cabia em si de contentamento, em ver “sua” Célia bacharela em Direito. Novos horizontes se abriam para o casal. Com certeza, Célia logo faria um concurso público para um cargo de nível superior, e sua aprovação seria certa, pois vivia para o trabalho, filhos, marido e para os estudos. Arnaldo sentia-se realizado. Dois filhos já crescidos, estudiosos e sadios, a esposa formada em Direito, e ele, funcionário do INPS. Formado em Ciências Contábeis, aguardava a ascensão funcional, que na época existia, para mudar do cargo de Agente Administrativo para Auditor Fiscal. E agora a perspectiva da “sua” Célia subir muito na vida. Cheio de vaidade, não se cansava de comentar com as pessoas amigas:

“A minha Célia vai ser uma grande Procuradora, Promotora ou Juíza”!

Dois meses depois da formatura de Célia, Arnaldo chegou à repartição visivelmente contrariado, vermelho de raiva. Mal cumprimentou os colegas, e sentou-se ao birô, resmungando impropérios. Os colegas notaram logo que ele havia voltado àqueles dias de antigamente, em que pegava no arranco, de cinco em cinco minutos. Todos os colegas perceberam que alguma coisa muito séria estava acontecendo com ele. Afinal, a recente formatura da esposa tinha dado outro ânimo à sua vida, e ele passara a ser sempre bem-humorado. Queriam ajudar, conversar com ele, mas não havia chance. Silêncio total na sala. Como se estivesse fechado em um casulo, Arnaldo se limitou a carimbar os processos de cabeça baixa, recusando até o cafezinho, que era o seu fraco.

Algumas horas depois, o chefe chegou, cumprimentou todos os funcionários e se dirigiu ao seu gabinete. Arnaldo não respondeu nem levantou a vista. Simplesmente, ignorou a entrada do Dr. Eduardo, um homem extremamente educado.

O Presidente do Órgão notou o comportamento estranho de Arnaldo, e pediu à Secretária que o chamasse até o Gabinete.

Imediatamente, Arnaldo se viu diante do chefe, que lhe perguntou se estava passando por algum problema.

A resposta veio rápida:

– Estou sim, Dr. Eduardo! Estou desesperado! Quando eu pensava que agora as coisas iriam melhorar, a mulher formada em Direito e os meninos já com 10 e 12 anos, recebi uma notícia que me tirou de tempo! Minha Célia me comunicou que está grávida! O caçula já com 10 anos!!! Não posso suportar uma irresponsabilidade dessa! Estou até sem falar com ela, de tanta indignação!

Ironicamente e com o bom humor que lhe era peculiar, o chefe perguntou:

– A doutora Célia disse quem é o pai?

Arnaldo gaguejou, e viu o papel ridículo que estava fazendo…


Violante Pimentel - Cenas do Caminho domingo, 01 de janeiro de 2017

O ORADOR



Eurico não era advogado, mas tinha mania de fazer discurso. Protético, residia em Natal e gostava muito de aparecer. Estava sempre procurando, no Dicionário da Língua Portuguesa, palavras difíceis, para encaixá-las nos discursos que escrevia. Como todo orador que se preza, trazia discursos gravados na memória, prontos para diversas situações.

 

 

A cidade estava consternada com a morte de Dona Berenice, 85 anos, verdadeiro patrimônio moral da família Salvino. Solteirona juramentada, piedosa e pura, a respeitável mulher passou pela vida incólume às delícias do amor. Deixava o seu exemplo de mulher decente, íntegra e despojada de vaidade, como modelo para as futuras gerações da sua família. Todos choravam, copiosamente, a sua partida. Os sobrinhos a tinham como uma segunda mãe e se sentiam órfãos. Já estavam acostumados à sua doce presença em todas as festas que faziam.

Apesar de não haver se casado e constituído família, a pranteada era mais mãe e avó dos sobrinhos, do que suas três irmãs casadas. Servia até de babá aos menores, quando as irmãs necessitavam de uma “mãozinha”.

Eurico organizava numa pasta os discursos que iria fazer, em cada velório a que comparecesse no ano que se iniciava. Fazia também uma lista com os nomes das pessoas idosas, que possivelmente iriam bater as botas a cada novo ano, de acordo com o seu pressentimento. E no bar que frequentava, eram feitas apostas em cima desses nomes, com prêmios em cervejas para quem acertasse.

Ao velório de Dona Berenice, chegou embriagado, levado por um companheiro de copo. Não estava muito a par da vida da santa mulher, mas já sabia as frases de efeito que diria.

Após a celebração da Missa de corpo presente, o homem se aproximou e proferiu seu discurso:

– Estamos diante de uma esposa extremada e uma grande mãe de família, que teve uma vida dedicada aos seus!!! Dona Berenice já está no Céu! Foi levada pelos Anjos, deixando aqui na terra o seu amantíssimo esposo e os seus filhos e netos, todos inconsoláveis, e aqui presentes! A Natureza chora! Mas o Céu se ilumina, e os espíritos de luz se regozijam com a sua chegada à Morada Celestial! Vá com Deus, Dona Berenice!

O homem inconsolável a que se referiu o orador, era Josias, irmão da falecida. Os jovens a quem apontou como seus filhos e netos, eram, na verdade, filhos e netos de suas irmãs casadas.

A família ficou indignada com o discurso e o orador ouviu poucas e boas.

 


Violante Pimentel - Cenas do Caminho sexta, 30 de dezembro de 2016

O CHOFER

O CHOFER

Violante Pimentel

 

 

Antigamente, não se falava em “motorista de táxi”. O que havia era “chofer de praça”. E na praça, concentravam-se os carros de aluguel.

O táxi, propriamente dito, apareceu historicamente quando foram aplicadas taxas à sua utilização, através do taxímetro, aparelho mecânico ou eletrônico, que mede o valor cobrado pelo serviço, com base em uma combinação entre a distância percorrida e a tarifa inicial. Foi inventado no século XIX, pelo alemão Wilhelm Bruhn.

Em Natal, o chofer de praça trajava sempre terno cáqui, camisa branca, gravata preta e sapatos pretos.

Seu Josias era um conhecido chofer de praça de Natal, educado, conversador e simpático, beirando os 60 anos. Era um contador de histórias. Muito supersticioso, não trabalhava no dia em que tinha um sonho mau. Se sonhasse com gato preto, urubu, sapato ou arrancando dente, sabia que, naquele dia, nada para ele ia dar certo, e preferia ficar em casa. Gostava muito de relembrar episódios de sua vida.

 

 

Contava que, antes de ser chofer de praça, tinha sido chofer de um caminhão misto e havia feito muitas viagens pelo sertão nordestino, transportando passageiros. Gostava muito da profissão, até que, num certo dia, em plena viagem, um dos passageiros do misto foi acometido de uma tremenda dor-de-barriga e ele viu-se obrigado a parar o carro na estrada, diversas vezes. O passageiro entrava correndo de mato a dentro, para satisfazer suas necessidades e voltava pálido e envergonhado. A viagem, nesse dia, sofrera um atraso enorme, o que o deixou bastante contrariado. Numa das paradas solicitadas pelo passageiro, para ir ao mato, disse seu Josias que também desceu e se dirigiu a uma casinha que avistou ao longe, em busca de alguma “meizinha” que curasse essa infeliz dor-de-barriga. Foi recebido por uma velhinha, que lhe perguntou:

– O senhor já experimentou dar o olho da goiaba a ele (o chá)?

Disse seu Josias que não gostou da pergunta e respondeu grosseiramente:

– Se depender disso, esse passageiro pode se acabar pelo fundo, feito balaio!

– A senhora é doida, dona? Vôtes!

E o chofer contou que voltou muito contrariado, e meteu o pé no acelerador, enquanto, nessas alturas, a catinga do passageiro empestava a boleia do misto. Ao chegar a Natal, deixou o passageiro no pronto-socorro e foi direto tratar de mandar lavar o carro.

Foi a última vez que dirigiu o misto. Ficou traumatizado com o ocorrido. Afinal, teve de parar o carro umas dez vezes, para que o passageiro corresse para o mato. A partir de então, abominou a profissão de chofer de misto

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N. E. - Violante Pimentel é escritora potiguar. Colunista do Jornal da Besta Fubana, vem agora enriquecer as páginas deste Almanaque, com seu texto inteligente, seguro e criativo, o que será grande aquisição cultural para todos nós.

 

Que Deus a guarde!


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