Raimundo Floriano
Brigadeiro e Raimundo - Carnaval 1996
Nestes tempos cabeludos de campanhas eleitorais cheias de bravatas e promessas mirabolantes – jamais cumpridas – para engabelar o eleitoranta, digo, o eleitorado, tempos de avacalhação do ensino da Língua Portuguesa, fico a lembrar-me de meu amigo Manoel Brigadeiro, por duas de suas composições, premonitórias, das quais adiante lhes falarei.
Manoel Frederico Soares nasceu no dia 25 de maio de 1922, em Natividade (RJ) e foi batizado com o sobrenome dos patrões de seus ancestrais, remanescentes dos tempos da escravatura.
De família bastante humilde, mudou-se para o Rio de Janeiro aos oito anos de idade, começando a trabalhar muito cedo, como empregado doméstico, na casa dum militar, Antônio Guedes Muniz, que chegou a Marechal-do-ar. A cada promoção que o patrão recebia, os amigos, carinhosamente, também o elevavam de posto. Daí seu pseudônimo artístico: Manoel Brigadeiro.
Embora não tenha estudado Música, Manoel Brigadeiro iniciou-se, ainda na adolescência, na arte da composição de música popular. Frequentava todas as Escolas de Samba, nas quais até hoje tem trânsito livre, andou fazendo uns sambas de enredo, mas logo desistiu desse gênero, passando a dedicar-se a sambas de meio de ano e a marchinhas.
Em sua discografia, constam mais de 60 peças de sua autoria, gravadas por ele mesmo e por grandes nomes da MPB, como Alcides Gerardi, Carmen Costa, Isaurinha Garcia e Mário Genari Filho.
O convívio no meio aeronáutico lhe rendeu a profissão de mecânico de aviões e um cargo no então Ministério da Viação e Obras Públicas. Em 1974, foi transferido para Brasília, lotado no Ministério dos Transportes, vindo aqui residir, acompanhado de Gilda, sua mulher, e dos filhos do casal.
E foi naquele mesmo ano que o conheci. Todos os dias, nosso grupo de amigos ligados ao samba e ao Carnaval se reunia na Estação Rodoviária, após o expediente, num boteco ao qual denominávamos Escritório, para bater papo, jogar conversa fora, compor, paquerar as transeuntes, combinar armações, tomar a saideira, esta acompanhada de caprichado tira-gosto, tudo isso até as 20h00, quando a cambada batia em retirada rumo ao sagrado conforto do lar.
Turminha boa aquela, de vários órgãos da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes: Tarcísio Marujo, Alvinho Barbicha, Walter Passarela, Waldir Pajaraca, Vovô Ozório, Tonico da Portela, José Guedes – pai do saxofonista e gaitista Mílton Guedes –, Lourenço Rodrigues, os Irmãos Pequeno – um deles pai da voleibolista Paula Pequeno –, Salvador da ARUC, Edson Coroa, Ney Coroa, Caju, Roberto Derrubada, José Cordeiro, Capitão Benon, Heitor Brandão, João Quarela, Antônio Patrício, Tenente Fogo Eterno, Juvêncio Das Quebras, Sacramento, Joãozinho Monteiro.
Foi no Escritório que aquele inconfundível negão, com seus característicos terno e boné brancos, se revelou para mim como o compositor, em parceria com João Correia da Silva, do samba Tem Bobo Pra Tudo, que eu já conhecia desde 1963, época de seu lançamento, na voz de Alcides Gerardi, o qual retrata a maioria do eleitoranta, digo, eleitorado de hoje:
Quem não sabe tocar violão, nem pistom, toca surdo.
Sempre agrada porque neste mundo tem bobo pra tudo.
Camelô na conversa ele vende algodão por veludo.
Não tem bronca porque neste mundo tem bobo pra tudo.
A mulher que é bonita consegue o que quer, não me iludo.
E concordo porque neste mundo tem bobo pra tudo.
Todo mal do sabido é pensar que não é enganado.
Quantas vezes também como bobo já fui apontado.
Tem alguém que é bobo de alguém, apesar do estudo.
Está provado porque neste mundo tem bobo pra tudo.
Aqui na Capital Federal, Manoel Brigadeiro pode ser facilmente localizado na ARUC - Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro, Escola de Samba mais antiga de Brasília, da qual assisti ao nascimento. Mas ele não toma partido pela ARUC. Promove todas as Escolas, divulga seus trabalhos, representa-as onde se faça necessário, tendo sido, por isso mesmo, nomeado Embaixador do Samba. No período carnavalesco, sua presença em atos oficiais, em clubes, em batalhas de confetes e no Ceilanbódromo – local dos desfiles das Escolas de Samba do Distrito Federal – é tão importante e imprescindível quanto a do Rei Momo e da Rainha do Carnaval.
Manoel Brigadeiro é atração onde quer que chegue. Vez em quando, apresenta-se em casas de espetáculos, como em recente temporada com o compositor portelense Carlos Elias, também radicado em Brasília, este com músicas gravadas por Paulinho da Viola, Clara Nunes, Nara Leão e Beth Carvalho. A foto abaixo registra dois desses momentos.
Manoel Brigadeiro e Carlos Elias, duas atrações da Capital Federal
Para o Carnaval de 1976, Manoel Brigadeiro, em parceria com Lourival Faissal, brindou-nos com a marchinha Ana-Alfa-Beta, em alusão ao MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, que procurava tirar grande parcela do povo da escuridão literária, em contrapartida com o atual Ministério da Educação, que distribuiu centenas de milhares de livros desensinando o uso correto da Língua Portuguesa:
Vai pro MOBRAL
Aprender a ler
O MOBRAL vai lhe ensinar
Por que
Não se deve dizer
Nóis vai subir pra cima
Nóis vai descer pra baixo
Foi ontem que eu vi ela
Olha a boca dela
Quem não sabe ler
É um verdadeiro pateta
Se você não aprender
Vai ser Ana-Alfa-Beta
Ouçamos, portando, a marchinha Ana Alfa Beta, de Manoel Brigadeiro e Lourival Faissal, gravação de Carmen Costa, para o Carnaval de 1976:
E Tem Bobo Pra Tudo, samba de Manoel Brigadeiro e João Correia de Silva, gravação de Alcides Gerardi, no ano d e1963:
Raimundo Floriano
Vassourinha aos 12 anos
Mário Ramos de Oliveira, o Vassourinha, nasceu em São Paulo (SP), no dia 16 de maio de 1923.
Já era assim conhecido quando, em 1935, aos 12 anos, foi registrado como contínuo – para driblar a legislação trabalhista de então – na Rádio Record, onde iniciou a carreira de cantor, atuando também no horário noturno.
Começou cantando com o nome de JURACY, porque se tratava de uma nomenclatura neutra. Sua voz tendia para timbres agudos, infantis, daí a ideia de dar-lhe um nome que tanto servia para homem como para mulher.
Vale aqui relembrar a origem do pseudônimo. Havia em São Paulo, no Largo do Paysandu, um motorista de praça negro, muito alegre, apelidado de VASSOURA, pelo fato de, altas madrugadas, levar para casa os últimos freqüentadores do Ponto Chic, reduto preferido dos artistas e da grã-finagem da cidade. Quer dizer, “varria” os retardatários. Figura muito popular na capital paulista seria imediatamente lembrado ao se precisar de eficiente nome artístico para o pretinho Mário. Por analogia, gaiatice, ou seja lá o que for, passaram a inventar que o menino era “filho” do Vassoura, e assim nasceu o VASSOURINHA.
Ainda aos 12 anos, participou do filme Fazendo Fita, dirigido por Vittorio Capellaro. Na Rádio Record, formou dupla com a cantora Isaurinha Garcia, apresentando-se em shows e circos.
Em 1941, foi para o Rio de Janeiro, onde gravou na Colúmbia e atuou na Rádio Clube do Brasil. Nos anos de 1941 e 1942, gravou os seis únicos discos – bolachões, de cera de carnaúba – que deixou. O primeiro, com os sambas Juracy e Seu Libório, fez grande sucesso e o projetou nacionalmente como genuíno herdeiro do consagrado sambista Luís Barbosa.
Entre as demais músicas, destacam-se Emília, que ratificou seu êxito inicial, Amanhã tem Baile, Olga e Volta Pra Casa, Emília. Aliás, todo o seu repertório é até hoje cantado pelos curtidores da Velha Guarda.
A 03 de agosto de 1942, com apenas 19 anos, veio a falecer, em São Paulo, vítima, ao que parece, de uma osteomielite, deixando em sua diminuta discografia o suficiente para consagrar-se como um dos maiores sambistas brasileiros.
Vassourinha aos 19 anos
Na época de sua morte, era grande o elenco de famosos artistas no cenário radiofônico nacional. Astros como Gilberto Alves, Ciro Monteiro, Risadinha, Luís Barbosa, Moreira da Silva, Nélson Gonçalves, Sílvio Caldas, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Ataulfo, Alves, Déo, Francisco Alves, Nuno Roland e Roberto Paiva, atuando com o mesmo gênero ou absorvendo seu repertório, fizeram com que o nome do adolescente Vassourinha fosse rapidamente relegado ao esquecimento.
Estas são as 12 músicas que ele deixou gravadas:
Aproveitando ainda os eflúvios futebolísticos do último Brasileirão, no qual o Vasco da Gama gloriosamente conquistou o Vice-Campeonato, ofereço-lhes o samba E o Juiz Apitou, de Wilson Batista e Antônio Almeida, gravado a 15.04.1942.
Quequié? Vice e nada é a mesma coisa? Só mesmo neste Brasilzão querido, onde grandes valores são desprezados apenas pelo simples fato de não terem alcançado o ápice. Relembre você, meu dileto leitor, seus tempos de colegial, quando tirar o segundo lugar em sua Turma lhe dava o maior cartaz com seus familiares e, principalmente, com as mocinhas de sua laia. Ou quando você se classificou em segundo lugar num concurso público de âmbito nacional. Pois então?
A referência ao patrão vascaíno merece que E o Juiz Apitou, composto por flamenguistas, em sadia gozação, chegue agora, decorridos 74 anos, ao conhecimento dos leitores deste Almanaque:
E mais esta pequena amostra de seu repertório:
Seu Libório, samba de João de Barro e Alberto Ribeiro, 1941:
Emília, samba de Haroldo Lobo e Wilson Batista, 1941:
Olga, samba de Alberto Ribeiro e Satyro de Mello, 1941:
Amanhã Eu Volto, samba de Antônio Almeida e Roberto Martins, 1942:
Volta Pra Casa, Emília, samba de Antônio Almeida e J. Batista, 1942:
Raimundo Floriano
Germano e sua ginga no asfalto
Germano Mathias foi primeiro o malandro genuinamente paulistano que incorporei a meu acervo musical, no ano de 1958, quando mergulhei de cabeça na curtição MPB. Com o perfil desse grande sambista, presto mais uma homenagem a sua cidade natal, que a 25 de janeiro passado aniversariou.
Nascido em São Paulo (SP), a 02.06.1934, no bairro do Alto do Pari, frequentava, desde rapaz, as rodas de samba promovidas por engraxates colegas seus das Praças da Sé, Clóvis Bevilacqua e João Mendes. Entrou para Escola de Samba Rosas Negras, em 1951, integrando, depois, a Lavapés.
Em 1955, apresentou-se num quadro para calouros denominado À Procura de Um Astro, no programa Caravana de Alegria, da Rádio Tupi de São Paulo, cantando um samba sincopado, gênero que marcaria para sempre sua carreira. A 26 de outubro, foi contratado e recebeu sua Carteira de Artista com a inscrição “cantor e executante de instrumentos exóticos”, porque marcava o ritmo numa tampa de lata de graxa.
Com a lata de graxa e encarando o telespectador
Em 1956, gravou, pela Polydor, seu primeiro registro fonográfico, Minha Nêga na Janela, composição dele em parceria com Doca, samba que logo se tornou sucesso nacional, num tempo em que o rock já começava a invadir a mídia brasileira. Eis a letra:
Não sou de briga
Mas estou com a razão,
Ainda ontem bateram na janela
Do meu barracão.
Saltei de banda
Peguei da navalha, disse:
– Pula, moleque abusado,
Deixa de alegria pro meu lado!
Minha nega na janela
Diz que está tirando linha
– Êita nega tu é feia
Que parece macaquinha!
Olhei pra ela, disse:
– Vai já pra cozinha!
Dei um murro nela
E joguei ela dentro da pia.
(Breque)
Quem foi que disse
Que essa nega não cabia?
Pela mesma etiqueta, em 1957, lançou os sambas A Situação do Escurinho, de Padeirinho da Mangueira e Aldacir Louro e Falso Rebolado, de Venâncio d Jorge Costa. No mesmo ano, gravou, na Polydor, seu primeiro LP, Germano Mathias, o Sambista Diferente, recebendo por esse trabalho os prêmios Roquete Pinto e Guarani.
O lançamento seguinte, em 1958, deu-se na RGE, com seu samba de parceria com Sereno Guarde a Sandália Dela, de sucesso arrebatador, mais tarde regravado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Em 1959, lançou pela mesma RGE o samba Malandro de Araque, de Príncipe Hindu e Rafael Gentil, sátira aos playboys caboclos e à moda das lambretas recém-surgida. Daí pra frente, sua carreira galgou os degraus da fama, para nunca mais descer.
Na malandragem, gingando no palco e imitando trombone com a boca
Além de inspirado compositor, Germano Mathias é um homem-show. No palco, ele canta, dança, faz piruetas, acompanha-se com a lata e graça e imita o trombone de vara, tocando com a boca e fazendo os gestos característicos.
Quando estive no Recife, para tomar posse na Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, tendo como Patrona a cantora Elba Ramalho, fiquei abismado com a quantidade de forrozeiros que compareceram à solenidade, gente que hoje domina todo o cenário musical do Nordeste, mas que é completamente desconhecida no resto do País. Bem assim acontece com Germano Mathias. Do lado de cima do Mapa do Brasil, quase ninguém o conhece. Mas é só ir a São Paulo, a Capital Mais Nordestina desta Nação, para constatar o quanto ele é, ali, popular, conhecido e atual.
Possuo em meu acervo estas preciosidades que ele gravou:
A Situação do Escurinho, de Aldacir Louro e Padeirinho; Amélia Grã-fina, de Germano Mathias e Oswaldo França; Amor Sociedade Anônima, de Jorge Costa e Durum-dum-dum; Audiência ao Prefeito, de Tóbis e Orlando Líbero; Baiano Capoeira, de Jorge Costa e Geraldo Filme; Baile do Risca-Faca, de Jorge Costa e Durum-dum-dum; Bonitona do Primeiro Andar, de Jorge Costa e Durum-dum-dum; Braço a Torcer, de Alceu Menezes e Antoninho Lopes; Bronca de Marilu, de Jorge Costa e Américo de Campos; Chavecada na Pavuna, de Gariba e Basílio Alves; Derrocada no Salgueiro, de Germano Mathias e Jorge da Silva; Desigualdade, de Germano Mathias; Esculacho na Bonifácia, de Jorge Costa e Durum-dum-dum; Falso Rebolado, de Venâncio e Jorge Costa; Feitiço Fracassado, de Germano Mathias e Wivio Sá; Força do Perdão, de José Ramos e Jorge Costa; Figurão, de Germano Mathias e Doca; Guarde a Sandália Dela, de Germano Mathias e Sereno; Juca do Paulistano, de Henricão e Conde; Lar Sem Pão, de Venâncio e Jorge Costa; Lata de Graxa, de Mário Vieira e Geraldo Blota; Malvadeza Durão, de Zé Kétty; Maria Antonieta, de Germano Mathias e Wivio Sá; Maria Espingardina, de Jorge Costa e Zé da Glória; Mexi Com Ela, de Zé Kétty; Minha Nêga na Janela, de Germano Mathias e Doca; Minha Pretinha, de Jair Gonçalves e Edison Borges; Mulher Por Acaso, de Venâncio e Jorge Costa; Não Aumenta, de J. Santos e Carneiro Filho; Não Volto Pra Casa, de Denis Brean e O. Guilherme; O Mandamento do Amor, de Elzo Augusto; O Presidente Jurou, de Germano Mathias e Sereno; Paraíso da Tereza, de Antoninho Lopes e Benedito Augusto; Pedra Dura, de Antoninho Lopes e Benedito Augusto; Recordando Confusão, de Tóbis; Requebrado Diferente, de Jorge Costa e Luiz Walderley; Romeu e Julieta, de Tânio Jairo e Tião Mendes; Rua, de Jair Gonçalves; Sabão na Panela, de Germano Mathias e Antoninho Lopes; Senhor Delegado, de Ernani Silva e Antoninho Lopes; Sinfonia da Goteira, de Oswaldo França e Antoninho Lopes; Tem Que Ter Mulata, de Túlio Paiva; Vaidosa, de Herivelto Martins e Arthur Morais; e Vigarista no Terreiro, de Zé Kétty e Álvaro Xavier.
Com vocês, Minha Nêga na Janela, sua primeira gravação.
E mais esta pequena amostra de seu riquíssimo repertório.
A Situação do Escurinho, samba de Aldacir Louro e Padeirinho:
Baile do Risca-faca, samba de Jorge Costa e Durum Dum Dum:
Falso Rebolado, samba de Venâncio e Jorge Costa:
Guarde a Sandália Dela, samba de Germano Mathias e Sereno:
Malvadeza Durão, samba de Zé Ketty:
Maria Espingardina, samba de Jorge Costa e Zé da Glória:
Tem Que Ter Mulata, samba de Túlio Paiva:
E este youtube, com O Meu Fraco É Mulher, samba de Conde e Heitor de Barros:
Raimundo Floriano
(Publicado em 19.10.16)
O samba é gênero musical derivado de um tipo de dança de raízes africanas, surgido no Brasil e considerado uma das principais manifestações culturais populares brasileiras. Dentre suas características originais, possuía dança acompanhada por pequenas frases melódicas e refrãos de criação anônima, com alicerces do samba de roda nascido no Recôncavo Baiano
Apesar de resultante das estruturas musicais europeias e africanas, foi com os símbolos da cultura negra brasileira que o samba se alastrou pelo território nacional. Embora houvesse variadas formas de samba no Brasil – não apenas na Bahia, como também no Maranhão, em Minas Gerais, em Pernambuco e em São Paulo–, sob a forma de diversos ritmos e danças populares regionais que se originaram do batuque, o samba, como gênero musical, é entendido como expressão musical urbana surgida no início do século XX na cidade do Rio de Janeiro, nas casas das chamadas "tias baianas" — migrantes da Bahia —, quando o samba de roda, entrando em contato com outros gêneros musicais populares entre os cariocas, como a polca, o maxixe, o lundu e o xote, fez nascer um gênero de caráter totalmente singular.
Um marco dentro da história moderna e urbana do samba ocorreu a 27 e novembro de 1916, no próprio Rio de Janeiro, com o registro em disco, pelo cantor Bahiano, de Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, o Donga, e Mauro de Almeida, considerado o primeiro samba a ser gravado no Brasil, segundo os anais da Biblioteca Nacional. O sucesso alcançado pela canção contribuiu para a divulgação e popularização do samba como gênero musical.
Donga, Mauro de Almeida e Bahiano
Vamos ouvi-lo, na gravação original:
Neste ano de 2016, estamos comemorando, portanto, oficialmente, o Centenário do Samba. Ainda que já existisse desde tempos imemoriais, a palavra samba, no selo desse disco, marcou seu registro de nascimento. Na verdade, pelo andamento da gravação, parece-se mais com um maxixe, mas deixemos isso pra lá.
A partir de então, esse estilo de samba urbano surgido no Rio começou a ser propagado pelo país e, no ano de 1930, foi alçado da condição "local" à de símbolo da identidade nacional brasileira.
Inicialmente, o samba foi associado ao carnaval e, posteriormente, adquirindo um lugar próprio no mercado musical. Surgiram muitos compositores, como Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Sinhô, mas seus sambas eram amaxixados, conhecidos como sambas-maxixe. Os contornos modernos desse samba urbano carioca viriam somente no final da Década de 1920, a partir de inovações em duas frentes: com um grupo de compositores dos blocos carnavalescos dos bairros do Estácio de Sá e Osvaldo Cruz e com compositores dos morros da cidade, como em Mangueira, Salgueiro e São Carlos.
Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Pixinguinha e Sinhô
Não por acaso, identifica-se esse formato de samba como genuíno ou de raiz. À medida em que o samba no Rio de Janeiro se consolidava como uma expressão musical urbana e moderna, ele passou a ser tocado em larga escala nas rádios, espalhando-se pelos morros cariocas e bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro. Inicialmente criminalizado e visto com preconceito, por suas origens negras, o samba conquistaria o público de classe média também.
O samba moderno urbano surgido a partir do início do século XX, no Rio de Janeiro, tem ritmo basicamente 2/4 e andamento variado, com aproveitamento consciente das possibilidades dos estribilhos cantados ao som de palmas e ritmo batucado, e aos quais seriam acrescentados uma ou mais partes, ou estâncias, de versos declamatórios.
Tradicionalmente, esse samba é tocado por instrumentos de corda – cavaquinho e diversos tipos de violão – e variados instrumentos de percussão, como o pandeiro, o surdo e o tamborim. Com o passar dos anos, outros instrumentos foram sendo assimilados, e se criaram novas vertentes oriundas dessa base urbana carioca do samba, que ganharam denominações próprias. Nesse pequeno apanhado, quero mostrar-lhes as categorias do samba mais conhecidas pelos brasileiros.
Sambão - Som pesado, bateria competente, este gênero é o mais apropriado para os dançarinos exibirem seus talentos individuais, o chamado samba no pé. Como exemplo, Sem Perdão, de Jorge Aragão, Nilton Barros e Sereno, Gravação de Alcione, em1982:
Samba Carnavalesco - Também dançante, outrora cantado nos clubes e nos blocos de sujos pelos foliões, geralmente é esquecido no Carnaval seguinte, não sendo o caso deste, Pra Seu Governo, de Haroldo Lobo e Milton Oliveira, que ficou para sempre, na voz de Gilberto Milfont, lançado em 1951:
Samba de Meio de Ano - Abrange também o pagode. Para ser cantado, muito apreciado nos tempos em que ainda se dançava agarradinho. Como amostra, aí vai Última Chance, de Roberto Martins e Mário Rossi, na voz de Gilberto Alves, lançado em 1946:
Samba-enredo - Conta musicalmente o tema imaginado pelo Carnavalesco para o desfile da Escola de Samba, como este Festa Para Um Rei Negro, ou Pega no Ganzê, de Zuzuca, enredo do Salgueiro, na voz de Jair Rodrigues, lançado em 1971:
Samba-canção - Neste gênero, a ênfase musical recai sobre a melodia, geralmente romântica e sentimental, contribuindo para amolecer o ritmo, como em A Volta do Boêmio, de Adelino Moreira, na voz de Nelson Gonçalves, lançado em1956:
Samba de Breque - Acentuadamente sincopada, com paradas súbitas chamadas breque, do Inglês break, nome popularizado no Brasil para freios de automóvel, dando tempo ao cantor para encaixar comentários, como em Baile da Piedade, de Raul Marques e Jorge Veiga, que o interpreta, gravação de 1947:
Samba-exaltação: Gênero de melodia extensa e letra de tema patriótico, cuja ênfase musical recai sobre o arranjo orquestral, que busca um caráter de grandiosidade, como em Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, lançado em 1939, aqui na interpretação de Gilberto Milfont e Núbia Lafayette:
Samba Nordestino - Geralmente trazendo como tema amores desfeitos, relações mal resolvidas, a chamada dor de corno, muito bem representado em Pra Não Morrer de Tristeza, de João Silva e K-Boclinho, composição de 1989, aqui na voz de Ney Matogrosso:
Partido Alto - No partido alto, correspondente à expressão alto gabarito, exibe-se a capacidade de improvisação do intérprete, depois do refrão fixo, como em Saudades da República, de Artúlio Reis, aqui apresentado por Luiz Ayrão, gravação de 1974:
Outras denominações como samba de gafeira, samba-choro, samba de quadra, samba de terreiro, samba de latada, samba-batido, samba-chulado, samba-corrido, samba-de-chave, samba-de-lenço, sambalada, sambalanço, etc., nada mais são que variações dos acima apresentados.
Jovelina Pérola Negra