Zé com sua negritude reforçada pela persistência
Nascido no dia 29 de fevereiro, Zé aprendeu e aceitou a conviver sem comemorar datas de aniversário. Isso porque, comemorar ano sim, ano não, não era coisa que lhe satisfizesse.
A primeira infância vivida entre enxadas, foices e carpina nos roçados do interior deram tons escurecidos e características de rudeza à sua forma de vida.
Não recebia gentilezas e isso fez com que as desconhecesse.
Frequentou pouco a escola, até que entendeu, que, o que aprendera era suficiente para caminhar vida afora. Para nortear seu destino e ajuda-lo a escolher o melhor para si.
Essas coisas petrificaram em Zé a dura rotina da vida. Não via necessidade em andar por aí “arreganhando os dentes”, como ele próprio falava, quando alguém se dispunha a ouvi-lo.
Entretanto, haverá sempre na face da Terra, aquele que, um dia, iluminado por Deus, conseguirá enxergar o seu real caminho e encontrará o começo do seu destino.
E por que seria diferente com Zé?
Rudeza é uma característica pessoal. Não é um castigo que a vida impõe.
E foi num final de dia, quando sentou na ponta da calçada de casa para limpar a enxada e a foice que usara na roça durante todo o dia debaixo daquele sol escaldante, que Zé foi tocado pela mão suave do destino.
Ocorreu que Zé viu uma nova luz e decidiu que aquele seria o seu último dia de trabalho na roça. Sairia pelo mundo, à procura de um objetivo, e do por que viera fazer o que na Terra.
À noite, após um bom banho com água da terrina, foi jantar. Foi a melhor hora que entendeu ser propícia para comunicar aos pais a sua decisão:
– Pai e mãe, não vou mais trabalhar na roça. Alguém está me dizendo que minha missão na Terra é outra.
Sem entender a decisão intempestiva do filho, ainda jovem, com apenas 16 anos, os pais indagaram:
– Vais fazer o que e aonde menino?
Respondendo com a intenção de colocar ponto final na conversa que, para ele já estava decidida, Zé atendeu a curiosidade dos pais:
– Não sei ainda. Sinto que tem lugar melhor para mim fora daqui.
Quase nenhuma roupa, pouca coisa de higiene (escova de dentes, pente, barbeador, creme dental) e algumas cuecas compuseram “a mala” de viagem de Zé.
O trem era o transporte mais fácil e barato. Os pais, chorosos e inconformados, foram leva-lo a estação.
Pouco demoraram na estação, pois o trem não demorou muito a encostar e muito menos demorou para embarque e desembarque de passageiros e carga. Mas, ainda coube uma despedida e desejos de boa sorte no novo caminho seguido.
A cidade era uma novidade e aquilo tudo atrapalhou Zé. Rodopiou em torno de si mesmo. Examinou seus pés, mãos e sentiu o coração bater mais forte. Chegara a hora de ir à luta. De cuidar de si, de tentar ser e viver como alguém.
Zé não sabia sequer se, na cidade que acabara de conhecer, morava algum parente. Também não pretendia procurar ninguém, haja vista que agora era (e queria continuar sendo) um novo Zé. Zé, o rude, mas vitorioso às suas custas, com o seu trabalho e sem favores de terceiros. Apenas o reconhecimento, quando esse chegasse, seria bem-vindo.
Depois de procurar uma hospedagem, Zé encontrou uma pensão, onde pagaria por semana, com direito ao café da manhã e almoço ou jantar. Precisaria pagar uma semana “adiantada” e assim o fez.
No dia seguinte, vestindo a melhor roupa, saiu à procura de trabalho, com disposição para começar no próprio dia. Trabalho simples, ainda que com salário pequeno, não era coisa difícil de encontrar. E não foi.
Zé conseguiu trabalho para fazer a limpeza geral de um Teatro – e, como precisava trabalhar após os ininterruptos espetáculos, conseguiu também um aposento para morar no próprio local de trabalho. Aceitou o trabalho, o salário e o aposento, o que o livraria do pagamento da hospedagem na pensão.
Não demorou muito para que Zé aprendesse todo o serviço que fazia todos os dias. Inclusive o que fazia após os espetáculos que lotavam o teatro e exigia a cada fim de apresentação uma faxina mais rigorosa para tudo estar bem feito no dia seguinte.
Encaminhado, Zé começou a se organizar. Havia estudado pouco, mas o suficiente para aprender a ler. Com algumas economias que conseguia fazer, comprou livros – didáticos e paradidáticos. Poderíamos até dizer que, se tornando autodidata, Zé voltou a estudar. Tomou gosto pelos livros a cada vez que conseguia descobrir novos caminhos.
Quando a primavera chegou, trazida pela segunda metade de setembro, chegou também o anúncio de uma apresentação especial: a apresentação anual da Orquestra Sinfônica – o que exigia ensaio por muitos dias. O trabalho de Zé, naqueles dias, se resumiu ao básico necessário, que alguns chamam de “manutenção”. Sobrava tempo e o barulho produzido pelos metais da orquestra e outros instrumentos acabaram atrapalhando os estudos e as leituras de Zé.
E aí vem aquele ditado popular: “Deus fecha uma janela, mas a sua bondade enorme acaba abrindo uma porta”. E aquilo foi bom, pois o “faxineiro” passou a ser obrigado a conviver com aquele barulho, ao qual acabou se acostumando. Passou a gostar do que ouvia.
Ninguém precisa correr à procura do destino. Destino é algo que está traçado e tudo acontece quando tem que acontecer. Numa manhã, após demorados ensaios da Orquestra, fazendo o seu trabalho diário, Zé, o rude, encontrou um calhamaço de papeis esquecido por alguém – provavelmente o Maestro!
Guardou para entregar no dia seguinte. Quando tentou fazê-lo, o próprio Maestro afirmou que, por ter perdido, já conseguira uma nova edição e entregou para que Zé jogasse fora aquele velho calhamaço. Mas ele não jogou. Curioso, resolveu guardar para examinar depois.
Sem entender muito o que via naquela papelada toda, Zé indagou a um músico que estava descansando:
– Que calhamaço de papel é esse, amigo?
Sem muita preocupação, o músico respondeu:
– O nome disso, Zé, é partitura. Aí está tudo que o músico precisa saber para tocar.
A partir daquela noite, sempre que a Orquestra encerrava o ensaio e todos os músicos iam embora, antes de iniciar a limpeza necessária, Zé observou com atenção diferente, um dos instrumentos que os músicos não precisavam guardar ou cobrir. O piano.
Fabricado em madeira de lei, muito limpo e conservado, o piano conseguiu atrair a atenção do faxineiro, que a cada dia se interessava mais pelo instrumento. Usando aquela partitura velha jogada no lixo pelo Maestro, na qual Zé aprendera ler e destrinchar todos os sinais que ali estavam escritos, por todas as noites que os ensaios foram mantidos, após o encerramento e com o teatro fechado, sempre que terminava seu trabalho, Zé passou a praticar piano e aprendeu a tocar a partir daquela partitura velha.
Por algum tempo, depois de pedir demissão do trabalho no teatro, Zé, o rude, sumiu. Ninguém mais soube do paradeiro de Zé por alguns anos seguidos.
Entretanto, certa noite passeando em Paris, um casal brasileiro teve a atenção chamada por um cartaz num famoso teatro da capital francesa. A atenção deveu-se pelo cartaz estar escrito em português, de forma clara e direta:
– “Zé, o rude”! Era o chamamento para o concerto daquela noite na capital parisiense. Teatro superlotado naquela noite, na noite seguinte e na terceira noite.
O programa era aberto com o solo de “Tico-tico no fubá”, e encerrado com o solo de “Aquarela do Brasil”!
Zé, nem com aquela magistral mudança de vida em etapas, conseguia deixar de ser rude.