Sem aceitar o rótulo de criador de obras malditas, o cineasta José Mojica Marins — para a eternidade conhecido como Zé do Caixão — tinha orgulho da criação de filmes arrojados, bizarros e independentes. O diferencial das obras estava, como ele disse ao Correio, em 2013, na coragem e na autenticidade. À época da entrevista, não pestanejou em revisar a própria obra: “Meu melhor momento foi nos anos 1960, com uma fita que foi censurada e ficou 20 anos presa: O despertar da besta. Isso me atrasou a vida demais, naquela época, apostei tudo o que tinha”. Há cinco anos recluso, dada a derrocada na saúde, o artista, ícone maior do terror nacional, morreu, aos 83 anos, na tarde de ontem. O velório está previsto para transcorrer no Museu da Imagem e do Som (MIS).
Autor de filmes emblemáticos, pautados pelo horror do sofrimento e da morte, Mojica confessou, em entrevista que, da morte “não teria medo, não”. “Só ficaria triste de eu partir, deixando aqui mulher, filhos — que eu tenho sete”, completou. Foi a filha dele, Lis Marins quem confirmou a morte, em decorrência de broncopneumonia.
Extravasando o universo das obras criadas no cinema, Zé do Caixão se mostrou muito bem-humorado e, implacável, quando (publicamente), na base da piada, determinava pragas, a pedido dos fãs. Pelo cinema, Zé do Caixão não media esforços. Nas filmagens de Encarnação do demônio (2008), se viu coberto por mais de 100 caranguejeiras, mesmo com todo assumido pânico. Companheira de José Mojica, à época, a atriz Leny Dark entregou a “prova de amor” (como ele brincou), ao adentrar um barril com 3 mil baratas.
Tevê
Antes mesmo de completar a maioridade, o filho de artistas de circo filmou a Companhia Cinematográfica Atlas, pela qual se lançou, na direção de Sina de aventureiro (1957). Para os mais jovens, o ex-morador de subúrbio em São Paulo se afirmou como apresentador do televisivo O estranho mundo de Zé do Caixão (que teve sete temporadas). Elogiado por uma nata do cinema — formada por Glauber Rocha e Luís Sérgio Person, passando por Rogério Sganzerla e Julio Bressane —, ao circular nos circuito dos festivais, Mojica Marins conheceu até mesmo o ídolo — Christopher Lee (o Drácula), que se mostrou apavorado com o brasileiro. O motivo? As unhas compridas, sempre cultuadas, e que lhe dava o ar de um ser “extraterrestre”.
“Coffin Joe”, como Zé do Caixão ficou conhecido no exterior, apareceu pela primeira vez na carreira do artista, no longa A meia-noite levarei sua alma (1963). O longevo personagem atravessou mais de cinco décadas do imaginário nacional.
Por anos, o tipo taciturno levou o cineasta a ser paparicado em reconhecimento diversificado de festivais, tendo chegado ao Texas (EUA), passeado pelo México, e se visto consagrado em eventos na Espanha, Itália, França e no Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, há 10 anos. Nunca envergonhado, Mojica se orgulhava de imprimir nas telas uma linguagem tupiniquim, que o aproximou de diretores como Afonso Brazza (o cineasta-bombeiro de Brasília, com quem filmou Tortura Selvagem — A grade, em agosto de 1999). Naquele período, investiu na carreira de professor, tendo ministrado curso de interpretação em Taguatinga.
Com parte da vida descrita por André Barcinsky, autor de Maldito— A vida e o cinema de José Mojica Marins, o artista nunca cansou de surpreender: teve quatro esposas, e aos 79 anos, retomou o relacionamento com a editora e secretária Nilcemar Leyart, parceira anterior dele por mais de 20 anos. Desde 2014, a saúde ficou comprometida: depois de dois infartos, ele passou a sofrer com problemas renais.
Celebridade de intensa vida, Mojica superou fases de alcoolismo e de jogatina, tendo também passado maus momentos quando até teve que investir em obras com teor pornográfico. Um dos pontos altos do reconhecimento veio quando Matheus Nachtergaele deu vida à persona dele, na série Zé do Caixão, exibida no canal Space.
Sadismo
Admirador de confesso de filmes com Boris Karloff (o predileto foi Torre de Londres, 1939) e encantado pelo clássico de Roman Polanski O bebê de Rosemary (1968), Mojica cunhou estilo singular, sempre reconhecido por fitas do porte de Esta noite encarnarei no teu cadáver (1966) — no qual busca uma mulher para, na paternidade, dar extensão à corrente sádica que disseminou em uma pequena cidade —, O estranho mundo de Zé do Caixão (1967), dotado de necrofilia e de outros tipos de perversão, e Meu destino em tuas mãos (1963), embasado por desavenças familiares.
Diretor de mais de 40 filmes, ele atuava sistematicamente nas fitas. Mais de 60 produções contaram com o talento da atuação do artista. Sob a direção de Zefel Coff, Mojica tomou parte da produção do curta-metragem A praga do cinema brasileiro, que levou assinatura de roteiro do brasiliense William Alves (há dois anos).
Três anos antes da morte, aos 80, o artista teve uma entrevista intermediada pela filha Liz, para o Correio. Ela contou que dadas as sessões semanais de diálise do pai e o uso de medicamentos muito fortes, havia moderação nas exposições públicas. Havia se encerrado a fase de espectador de fitas macabras, pela tevê, o artista estava revendo série de fitas bíblicas e épicos à la espada e sandálias. Continuava rememorando a boa fase das amizades com colegas como Mário Lima (ator de O ritual dos sádicos) e Chico Cavalcanti, um cineasta da Boca do Lixo. Curiosamente, Mojica seguia folheando gibis da Mônica e da Disney, além de revirar a completa coleção de tirinhas de Conan, o Bárbaro.
FRASE
“Precisamos (no Brasil) de pessoas com mais honestidade, inteligência e força”
“Medo, de verdade, eu sempre tive do dia seguinte. Isso, por eu nunca saber o que vai acontecer”
“Nasci com muita força física e uma mente evoluída. Isso me mantém num pedestal”
“Origem do terror é comigo mesmo. Não tem outro, né? Já pus até anúncio, em jornais,
visando a um sucessor”
“O terror, quando bem-feito, entra nos nossos pesadelos”
“Acho que até o Zé do Caixão, queira ou não, quando eu me for, vai se eternizar. É um personagem marcante não apenas no Brasil, mas também no exterior”
“Tenho a impressão de que (os distribuidores) estão só esperando eu morrer, pra botar meus filmes no circuito comercial”